Romance



DA CAMA À FAMA



Um Romance de Angelo Romero

PRÓLOGO

Germaine - 1940
     Hoje pela manhã, ao chegar do colégio entrei em casa cantando. É primavera em Paris e em meu coração. Aos dezenove anos sinto que estou apaixonada por meu professor de literatura francesa. Eu, na verdade, não tive ainda maiores experiências neste campo, pois os jovens de minha idade não me atraem. Paul, meu professor, é viúvo e tem treze anos mais que eu. De estatura média, corpo atlético, cabelos negros ondulados, com alguns fios brancos nas têmporas, posso dizer ser ele um homem bonito. No entanto, parece que Paul dele se esqueceu há algum tempo. Despido de vaidade, veste-se mal. Ele me dá até a impressão que, ou emagreceu, ou a roupa que veste lhe foi dada por alguém mais forte. Os colarinhos de suas camisas estão sempre rotos, o paletó constantemente desabotoado, as calças largas e amarrotadas, e os sapatos por engraxar. Tem o hábito de carregar livros e jornais sob o braço e um cachimbo apagado caído no lado esquerdo da boca. Mas seus olhos negros e profundos emitem tal magnetismo que toda a sua desleixada aparência desaparece diante de meus olhos. O brilho de seu olhar, firme e constante, transmite as bruscas mudanças de seu estado de espírito. Se por um momento ele evidencia, ao passar a matéria para seus alunos, firmeza, conhecimento e entusiasmo, em outro, logo a seguir, ao fixar os olhos no quadro negro à sua frente, torna-se tão ausente que na verdade parece estar olhando na direção do horizonte a milhares de quilômetros dali. E é justamente no flagrante contraste, nos sentimentos opostos, que reside a minha maior atração. Eu me sinto magnetizada pela experiência visível em suas têmporas, pelos conhecimentos da matéria que leciona, tão apaixonante pra mim, como também pelo profundo mistério que aquele seu olhar ausente tenta esconder. Vendo-o, a um só tempo seguro e carente, sinto-me necessitada e capaz.  Pronta para dar e receber tudo o que as pessoas precisam ter para viver um grande amor.
      Eu gosto de literatura de um modo geral, e da literatura francesa em especial, naturalmente. Leio, com avidez, tudo o que me chega às mãos, mas sempre dei preferência a romances e biografias dos grandes autores. Estou ansiosa para concluir meus estudos e assim poder dedicar todo o meu tempo livre à arte de criar e desenvolver temas e personagens. Quando essa guerra acabar, estarei pronta para ser a grande revelação literária de minha geração. Para que estes dois fatos possam acontecer brevemente, conto com minhas aptidões e com o patriotismo e a fibra de meu povo. Por isso creio que, assim que esta guerra imunda acabar, me tornarei uma escritora profissional de renome.
     Paul costuma apreciar meus trabalhos de redação e composição. Tenho a impressão de que ele acredita em meu potencial, pois está sempre me incentivando. Posso até jurar que seja eu sua aluna predileta. De algum tempo para cá comecei a perceber o prazer que dou a Paul sempre que lhe peço explicações complementares sobre a matéria. Sinto a necessidade de estar sempre um passo adiante da turma. Não, não sei se é bem isso ou se é a satisfação de tê-lo a sós comigo, por alguns momentos. Por ter me sentido encorajada, tenho forçado esse tipo de situação ultimamente. Hoje, por exemplo, ficamos juntos mais de uma hora conversando sobre a forma e o estilo de Balzac. Atrasei-me e, ao chegar em casa, fui severamente repreendida por minha mãe. Tenho minhas tarefas diárias predeterminadas no restaurante, e quando me atraso sobrecarrego meus pais. Eu compreendo isso tanto quanto minha mãe compreende minha ânsia de saber.
     O movimento de fregueses no restaurante, ultimamente, não tem estado bom.  Hoje somos apenas cinco pessoas para todo o serviço: eu, papai, mamãe, meu irmão e um garçom. A situação não está boa. Deve ser por causa da guerra. Por isso entendo que papai não possa agora contratar outro empregado. Mamãe passa o dia inteiro e parte da noite na cozinha do restaurante, e não sei como ainda encontra tempo para cuidar de minha irmãzinha e de nossa casa no andar de cima. Ela é uma heroína, coitada.
      Seu tempero é tão gostoso que eu não vejo a hora de trazer Paul até aqui para provar sua comida. Eu, naturalmente, terei imenso prazer em servi-lo.  Penso que ele já se deu conta dos meus sentimentos para com ele pois hoje, pela primeira vez, pude ver um pouco de ternura em seu olhar triste, ao nos despedirmos. Agora eu não sei se aquela ternura era verdadeira, ou se eu a vi por ter querido ver. Será que ele já sente um pouco de amor por mim? Daria a minha juventude para descobrir.
      Se algum dia perceber valor literário neste meu diário, darei a ele uma nova forma, transformando em romance o registro de minhas memórias.
      O sono já está me pegando. Amanhã eu continuo.
      Ah!  Já ia me esquecendo. Hoje, antes de subir para o quarto, vi meu pai chorar pela primeira vez. Ele bem que tentou disfarçar como se estivesse com um cisco no olho. Mas sei que foi o cisco da guerra. Na certa foram as notícias pessimistas que acabara de ouvir pelo rádio. Dizem que os alemães estarão em Paris dentro de poucos dias. Eu, particularmente, não acredito. Mas, se isto acontecer, eles é que estarão perdidos.
      Oh, guerra imunda e desgraçada!
 

Giacomo – 1940

    O sofrimento costuma envelhecer primeiro o interior das pessoas, por isso penso ter sido uma criança envelhecida. Não falo apenas de meu próprio sofrimento mas o de meus pais, causado involuntariamente por mim ao ser acometido, na infância, pela paralisia. Por este fato, fui sempre diferente de meus irmãos. Logo senti a necessidade de construir um mundo só para mim e que, por ser exclusivamente meu, por certo caberiam nele as minhas deficiências. Protegendo-me, em breve saberia como conviver com meu drama.

    Superei a doença, cresci, alarguei minhas passadas e invadi o mundo dos outros, sem no entanto abandonar definitivamente o meu. Era necessário para mim preservar a fantasia de minha infância, o invólucro colorido, a caixa acolchoada que sempre me protegeu. Imprescindível como o ar que respiro, jamais abri mão de minha individualidade.

     Penso que o sofrimento faz desenvolver mais rapidamente a sensibilidade nas pessoas, e faz crescer seu poder de percepção. Ao tornar-me adulto fui levado a manter a diferença que sempre me separou de meus irmãos. Agora ela estava presente por motivos outros. Não eram mais diferenças físicas e sim estruturais. Percebi isso logo depois que a guerra eclodiu. Fui o único que não viu com bons olhos o nazismo. Fui o único, em toda a minha família, que não aceitou o fascismo.

     Fui forçado a retornar ao meu mundo para melhor conviver com os princípios de democracia e liberdade e para refletir melhor e dialogar comigo mesmo, na tentativa de buscar dentro de mim as respostas às perguntas que eu mesmo formulava.

     Em meados de 1940 o temor da guerra cresceu em mim de forma avassaladora. Penso que a notícia da invasão de Paris, pelas tropas nazistas, tenha me causado aquele temor maior e repentino.  Aprendi a gostar da França quando criança, em virtude de ter sido cuidado por um médico francês. Foi a melhor razão que encontrei para o que estava sentindo. A mais plausível.  Afinal, não era Gênova, minha terra, que estava sendo invadida, e sim Paris, que eu nem sequer conhecia pessoalmente. Gênova, eu sabia, não seria invadida. Não precisava. Como uma mulher fácil e volúvel ela havia sido conquistada, assim como toda a Itália, através das palavras pomposas ditas por um fanático fardado. Entre a invasão e aquela conquista residia a grande diferença. A capital francesa representava para mim, e creio, para todo o mundo, um marco: Paris era o berço da civilização contemporânea, da cultura, da liberdade. Aquele berço deveria ser preservado. Aquele marco jamais poderia ser destruído.

     Muito tempo depois, já na França, foi que descobri que o temor que eu havia sentido não foi, na verdade, tanto pela possível destruição do mundo em que as pessoas viviam e, sim, pela destruição do mundo que eu havia criado para mim na minha infância. E foi a partir daquela descoberta que eu passei a me cuidar melhor, pois aquele mundo estava dentro de mim, e só com a minha destruição é que ele poderia ser atingido.

     Este é o resumo de meus sentimentos, da parte de minha vida que você não conheceu. A essência do que fiz e do que fui, antes de conhecê-la. O que deixei de dizer não tem o menor valor. Não irá acrescentar nada. Escreva, se lhe interessar. Descubra as palavras que melhor lhe convier. O importante é que seja mantida inalterada a minha filosofia de vida, e isso, por certo, você saberá como fazê-lo.

     O resto de minha história está tão ligada à sua que, mesmo que deseje, jamais conseguirá separá-las. Somos duas pessoas que temos vivido, até aqui, em uníssono. Estamos ligados pelos mesmos ideais e por um amor verdadeiro. Esse será o nosso maior legado para a futura geração, geração esta que iremos ajudar a procriar.






Bill - 1980

      Bill pensava estar flutuando no ar, suspenso apenas por um fio. O soro estava sendo injetado em sua veia lentamente. Seus olhos estavam fechados e sua cabeça tombada para o lado esquerdo do travesseiro. Momentos antes, alguns anjos vestidos de branco haviam deixado o quarto, depois de lhe terem tomado o pulso. Agora, o cheiro de remédio espalhado pelo ar estava se tornando insuportável. Ainda sob os efeitos da anestesia, ele confundia passado e presente. As imagens estavam sendo interligadas em sua mente.
     "Vamos brincar de guerra" - disse Bill. "Eu sou americano e vocês são os alemães."
     "Não, eu não sou mais criança" - pensava. "Eu fui ferido em combate numa guerra de verdade, e agora estou aqui, na enfermaria deste hospital improvisado, armado no front."
    As dores que sentia no baixo ventre eram agora suportáveis.
     "Fui vítima de uma maldita baioneta alemã" - pensava ele.
     - O homem é muito forte e deverá sobreviver - ouvia a voz do médico. Seu estado é grave e inspira muitos cuidados. Ainda é cedo para um diagnóstico definitivo.
     Bill sorriu. Estava feliz. Paris acabava de ser libertada, e ele, Bill, herói da Resistência, recebera uma condecoração. E antes de ter tempo de ficar orgulhoso, refletiu:
     "Não, não posso aceitar esta condecoração. Eu não lutei. O que soube a respeito da guerra foi através dos livros... eu nem sequer era nascido”...
     - Ele insiste em ler - disse a enfermeira ao médico. No entanto, logo adormece com o livro aberto nas mãos.
A enfermeira o acordou.
     - Vamos dorminhoco, acorde. Está na hora de sua injeção.
     - Chega de remédio - disse Bill. Eu estou faminto, e o que eu quero agora é comida...
     - Tenha paciência, meu bem - falou ela. Tenho primeiro que falar com o doutor. Vou ver o que posso fazer por você.
     Assim que a enfermeira saiu, Bill voltou a mergulhar na angustiante solidão hospitalar. Retomou a leitura de onde havia interrompido. A saída, para ele, poderia estar ali. O personagem principal daquela história identificava-se muito com ele. Quem sabe - pensou - se não estaria ali, num passado que não viveu, o caminho de seu futuro? Quem sabe?

CAPÍTULO 1

O fim da primeira etapa
     Bill, de peito nu, sentado sobre um caixote de livros, acabara de ajudar a carregar o caminhão. Suava em bicas. Observava cada detalhe externo da casa que fora, até então, seu primeiro e único lar, com os olhos marejados de lágrimas. Alguma coisa lhe dizia que ali tinha vivido os melhores anos de sua vida.
     Era uma segunda-feira abafada e ele não gostava desse dia da semana. Não encontrava uma explicação mais razoável para isso, a não ser o fato de ter que acordar cedo para ir ao colégio, depois de um domingo de futebol, festas e garotas. Realmente era uma dose um tanto forte. Ele já tinha se despedido do interior da casa. Detivera-se em cada cômodo, como se estivesse dando o seu adeus a entes queridos que jamais veria de novo. Agora, a sua vista percorria o exterior, parando em cada ponto. Sua mente projetava um filme na tela dos olhos: um resumo dos dezessete anos rodados naquele cenário maravilhoso; da primeira cena que uma mente infantil pode registrar, até a última - o momento atual. As imagens eram projetadas por sua mente obedecendo à ordem cronológica, rigorosamente. Surgiram então, em velocidade espantosa, os acontecimentos importantes que marcaram a sua vida: o sarampo, a festa de aniversário, o natal, o brinquedo e a queda da mangueira que resultou num pequeno corte em sua cabeça. Via o primeiro gol de bicicleta, feito na baliza que o pai o ajudara a fazer, para que jogasse futebol com os garotos da vizinhança no fundo do quintal. De repente, ao olhar o grande balanço de ferro na varanda, sentiu a imagem parar e aos poucos recomeçar a passar, em câmara lenta. E via então o seu primeiro beijo em Márcia, sua prima de sete anos naquela época. Era uma linda garota rechonchuda, de tranças loiras e olhos azuis. Márcia reagira de três maneiras diferentes, numa sequência rápida, ao ser beijada: ao toque puro dos lábios de Bill olhou espantada, em seguida sorriu, e logo depois entrou chorando casa a dentro, dizendo que fora beijada e que estava comprometida com o primo para o resto da vida. Ao lembrar da cena, Bill não pode deixar de sorrir.
     Ele nascera ali no Encantado, simpático bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. A casa, de construção antiga, dava esquina para duas ruas bem arborizadas e de pouco movimento. Pela parte da frente passava uma rua calçada por paralelepípedos. A rua que margeava a parte lateral esquerda da casa era ainda de terra batida. Fronteiro à casa, um muro baixo com dois portões de madeira: um menor ao centro e outro maior do lado esquerdo. Depois de um jardim, vinha a varanda em forma de "L". Começava no centro do prédio e terminava no quintal, contornando todo o lado esquerdo da construção. Do lado direito um janelão emoldurava uma pequena sala de estar; à direita, na parte externa, um corredor com dois metros de largura separava a casa do terreno vizinho; à esquerda, na parte que dava para a ruazinha de terra, um terreno de aproximadamente cinco metros de largura passava entre a varanda e um alto muro, e emendava com o quintal. A cerca da varanda era de madeira, como também os três degraus que desciam para o jardim. Nos fundos do terreno, três frondosas árvores frutíferas: uma jaqueira, uma mangueira e um abacateiro. Mais à frente, uma pequena goiabeira e um coqueiro-anão. Além do quarto e do banheiro que seu pai mandara construir para o casal de empregados, existia ainda um pequeno galinheiro e a casinha do Sultão, um lindo cão de raça pura, que apesar do nome vivia só, sem companheira. O interior da casa era muito amplo, claro e arejado. Na parte térrea, além do grande salão da frente e da pequena sala de estar contígua, uma grande copa-cozinha e um pequeno banheiro limitavam os fundos da casa com o quintal. No andar superior, dois quartos de frente, uma biblioteca nos fundos com varanda para o quintal, um grande banheiro e uma área interna, onde terminava a escada de ferro que, em caracol, descia até o lado direito do salão.
     Há dois dias atrás, no sábado, os pais de Bill deram uma linda festa para comemorar o aniversário do filho e também para se despedirem da casa. Foi a melhor, a mais organizada e concorrida de todas as realizadas ali. Prepararam a casa com o carinho e cuidado de quem prepara uma noiva no dia do seu casamento. A começar do jardim, onde pequenas lâmpadas coloridas foram colocadas entre as folhagens; no quintal, cada árvore tinha sua própria iluminação. Uma grande mesa fora armada nos fundos do terreno. Sobre a mesa, farta variedade de doces e salgados. De um fio, esticado poucos metros acima, pendiam algumas lâmpadas fantasiadas por lindos balões coloridos, que davam um realce todo especial às deliciosas iguarias; do lado direito da mesa, de vários barris, jorrava o chopp estupidamente gelado. As estrelas, em noites claras de verão, ainda frequentavam o céu do Encantado, e, parece que todas elas foram convidadas, pois de lá de cima, no sereno, eram espectadoras privilegiadas.
     Um maitre e quatro garçons foram chamados para servir os convidados. O grande salão fora também redecorado. As cortinas e tapetes foram lavados. As plantas, todas naturais, estavam tão bem cuidadas que apresentavam cores fortes e brilhantes. Revividas, pareciam vestidas de veludo e cetim. Os quadros na parede ganharam iluminação direta. O velho piano fora afinado, e as flores, bem dispostas em lindas jarras, davam o toque final de bom gosto no ambiente.
    Cinco músicos foram contratados para tocar no salão: o italiano Antonino com o seu violino; o francês André Loui com o seu acordeom; Teodorico, baiano de Alagoinhas, com o seu contrabaixo; Bidu, carioca do Sampaio, na bateria, e ao comando, mestre Dedéu, pianista e maestro de famosa gafieira do centro da cidade. Enquanto a velha guarda, na grande sala, se deliciava ouvindo e dançando músicas francesas, italianas e brasileiras, no quintal, num pequeno tablado armado, a juventude curtia a vibrante música americana dos anos sessenta, saída de possantes caixas de som.
    A partir das oito horas da noite os convidados foram chegando. Comerciantes, políticos, contraventores, o médico, o advogado, o dentista e o barbeiro da família. E numa lista de convidados tão extensa, elaborada com tanto cuidado, não poderia faltar o nome de Padre Marcelo, o pároco do bairro, de quem Bill fora discípulo de catecismo. Fora ele que preparara o menino para a sua primeira comunhão. E ali estava o pastor de almas bebendo, com os pais de Bill, alguns cálices do autêntico "Lácrima Christi". Numa festa em casa de família eminentemente cristã, onde o diabo poderia entrar como penetra, um padre é de vital importância. E ele tinha consciência de sua importância, e estava ali, não só para proteger, como também para reconduzir ao seu rebanho algumas ovelhas desgarradas. A juventude, é claro, predominava, e ia chegando em grupos alegres e barulhentos. Todo o bairro do Encantado estava ali, representado por suas figuras mais proeminentes.
     Os jovens, com sua sabedoria instintiva, dividiram a casa em três setores distintos: o jardim, para a paquera, para os que ainda não faziam par; o quintal, para a dança e os comes e bebes, e, finalmente, a varanda, envolvida por uma penumbra pecaminosa, para o namoro, onde um metro quadrado valia ouro. À meia-noite ainda chegaram alguns retardatários, mas já às nove horas, tinha-se a impressão de que não cabia mais gente. O salão e o quintal estavam repletos, a varanda, intransitável; sobrava o jardim, onde poucos permaneciam muito tempo, pois ali a bebida chegava quente e os salgadinhos gelados. Enquanto o salão pertencia à velha-guarda, o berçário fora instalado no andar superior. A verdade é que durante todo o tempo a alegria era contagiante nos quatro cantos da casa. Só Bill, o aniversariante, estava triste. Irrequieto, tenso, procurava um rosto na multidão e, ao procurá-lo, percebia que metade dos rostos que estavam ali lhe eram totalmente desconhecidos - formavam o famoso bloco dos penetras, dos convidados dos convidados. Quando olhou para o salão totalmente lotado, sorriu pela primeira vez naquela noite. Recordou uma cena de um desenho animado que vira no cinema: vários animaizinhos entrando numa pequena casa que ia engordando, engordando até explodir. Era essa a impressão que ele tinha do que ali poderia acontecer. Mas, ao desviar a vista para o portão, pode conservar o sorriso. O rosto que tanto procurava tinha acabado de chegar: Joana, sua namorada, seu amor. Foi recebê-la feliz. Trocaram rápidos beijos na face, e caminharam de mãos dadas. Foi ela quem falou primeiro:
     - Desculpe a demora. Tive que ajudar mamãe a arrumar a cozinha. Não podia deixar de vir para lhe desejar muitas felicidades e lhe dar uma pequena lembrança.
Bill desembrulhou o presente e agradeceu. Era um suéter de lã, feito em tricô.
     - É para quando o inverno chegar. Fui eu mesma quem fez.
     - Não precisava se incomodar. Enquanto eu tiver você, jamais sentirei frio.
     Joana sorriu feliz.
    Durante toda a noite, Bill só tinha olhos para Joana. Andavam de mãos dadas por toda a parte. Dançavam de rostos colados. Beijavam-se atrás do coqueiro-anão, e em alguns momentos, sabe Deus como, conseguiam desaparecer no meio da multidão. Durante todo o tempo em que estiveram juntos, trocaram juras de amor e traçaram planos para o futuro.
     - Você me ama de verdade? - perguntou Bill.
     - Você sabe que sim, e que estou com um medo louco de perdê-lo.
     - Não diga tolices...
     - As garotas da Zona Sul são mais bonitas e evoluídas, e vivem com mais liberdade. Temo que logo me esqueça.
     - Bobinha... - beijou-a de leve. Não vê que só você me interessa? Que é só a você que eu amo?
     - Agora, talvez; e amanhã? Eu continuarei aqui, esperando por você. Minha vida em nada vai mudar. A mesma rotina de sempre. E você? Quantas transformações vão ocorrer? Nova casa, novo bairro. Novo colégio, novas amizades, e na certa, novos amores...
    - Claro que minha vida vai mudar. Vou completar meus estudos. Vou trabalhar com meu pai. Vou economizar dinheiro e venho lhe buscar. Enquanto isso virei vê-la sempre que puder.
    Bill beijou-a com toda a paixão que sentia naquele momento, e, só quatro anos após aquela noite, foram se encontrar novamente.
    Quase todas as suas ex-namoradas estavam ali na festa, inclusive a primeira, a prima Márcia que, aos quinze anos já era uma linda moça. Ela desfilava orgulhosa, exibindo seu novo namorado. Ele não era morador do bairro e trajava uma farda de gala do Colégio Militar; por ambos os motivos era alvo de inveja e provocação dos rapazes da redondeza.
    A festa foi até o romper da aurora, mas acabou, para Bill, às duas da manhã, quando o pai de Joana, menina pobre do bairro, veio buscá-la.
    Bill abriu bem os olhos, como se estivesse levantando a tela. O filme de sua vida acabara de passar. Ainda sentado sobre o caixote de livros, com o braço apoiado na perna e o queixo na mão, olhava os vestígios da grande festa espalhados pelo terreno. O casal de empregados, que trabalhava para a família, já estava no novo apartamento aguardando a chegada da mudança. O caminhão de tio Giorgio já tinha feito a primeira viagem e já estava arrumado para partir, de volta à Zona Sul. Só faltava o caixote em que Bill estava sentado. De onde estava, podia ouvir as vozes e os risos que vinham do fundo do quintal. Lá, seus pais e tio Giorgio terminavam de esvaziar o último barril de chopp que sobrara da festa.
    Os pais partiram num táxi. Seu tio deu a partida no motor tendo ao lado, na cabine, dois ajudantes. Em cima do velho caminhão, misturado com a mobília e segurando objetos quebráveis, ia Bill que, a despeito do lindo dia de sol, via totalmente embaçada a casa se afastando, lentamente.
CAPÍTULO 2 
Paris, 14 de junho de 1940

    Durante cinco anos as botas alemães pisaram o berço da liberdade. O nazismo roubava a cultura, a dignidade do povo francês. Pelas avenidas dos Champs-Elysées, milhares de soldados inimigos marchavam diante de uma multidão perplexa. A França fora invadida e Paris capitulara diante do 5º. Exército alemão, no dia 14 de junho de 1940. Das janelas dos edifícios, à distância, tinha-se a impressão de que a avenida fora tomada por uma grande nuvem de gafanhotos. Muitos cobriam os olhos para não ver, outros se escondiam, mais por vergonha que por medo. Mas todos ouviam o ressoar dos cascos em "passo de ganso". Uma mistura de cadência com estupidez. Era um sábado, dia em que o francês costuma sair às ruas para conversar, rir, beber, dançar e ouvir música. Dia difícil de se encontrar um lugar vago nas mesas dos Cafés espalhados pelas largas calçadas e cobertos por toldos coloridos, onde as flores eram oferecidas aos casais enamorados por senhoras gastas pelo tempo, mas de almas jovens. O turista desavisado, chegado em Paris numa noite de sábado, poderia pensar que um só e imenso acordeão estaria tocando para toda a cidade ouvir, cantar e dançar. Do Arco do Triunfo à Tour Eiffel, das margens do Sena à Place Pigalle e, principalmente no coração boêmio de Paris: Saint-Germain-des-Prés.
     Naquele sábado poucos saíram às ruas, ninguém cantou e o acordeão emudeceu. Grande parte da população passou vários dias para acreditar na profanação do solo pátrio e, só quando as prisões, as sevícias e os fuzilamentos começaram a acontecer, foi que o povo saiu do torpor que o atingiu. A Linha Maginot, tão decantada por sua inviolabilidade, fora transformada no maior fracasso da história da segunda guerra mundial.
    Aos poucos o povo foi transformando sua apatia, gerada dentro da perplexidade que fora, por sua vez, fecundada pelo absurdo, por um revolta muda. Lafayette, Chateaubriand, Baudelaire, Dumas e Moliére eram, entre outros, os grandes nomes da história da França, da história da paz. Foram heróis da luta pela liberdade de expressão. Foram Marechais das artes, das letras, da cultura. E, se vivos estavam na memória e no respeito de um povo tradicionalmente culto e pacífico, felizmente estavam mortos pois assim não podiam se envergonhar com a grande catástrofe que se abatia sobre a nação gaulesa. O povo estava agora entregue à coragem suicida de um maquis, na maioria um jovem estudante servindo à "Resistência". A pátria estava agora no coração heróico de um De Gaulle e no cérebro inteligente de um Sartre.
    Aquele sábado, que amanhecera coberto por uma estranha névoa cinzenta que muitos acreditaram ser um mau presságio, terminara negro. Era como se as nuvens escuras, que cobriam Paris em sinal de luto, tivessem se transformado em chuva e caíssem em forma de nanquim preto, pintando toda a cidade. Cinco anos depois a Alemanha rendia-se aos aliados em Rheims, França, na manhã do dia 7 de maio de 1945. Daquele dia em diante os franceses começaram a limpeza. Lavaram não só Paris como toda a França, mas não conseguiram raspar do solo a grande mancha que ficara na história.
    Se, durante todo esse tempo, tanto o oportunismo como a corrupção foram os responsáveis por grandes fortunas feitas por traidores da pátria, a França pôde mostrar também ao mundo que era capaz de fabricar heróis. Enquanto uns enriqueciam, outros morriam. Tudo isso fruto da invasão de uma terra pacífica e despreparada para uma grande guerra; onde o saboroso vinho, o excelente queijo, o amor desenfreado, e, principalmente a liberdade, são coisas essenciais à vida. De repente esse povo é tolhido de tudo que lhe é mais caro e grande parte dele cede, sucumbe, barganha. Existem duas formas de traição: por medo ou por ambição. Parte do povo traiu por medo da dor física, ou da dor moral; por covardia, diante da morte iminente. A outra parte traiu por oportunismo, ganância e ambição.
    Assim como é verdade que não se deve generalizar nunca, é verdade também, para quem se propõe a escrever sobre a história, que o faça baseado em fatos estatísticos. E diante disso, podemos dizer que em todas as guerras de que se tem notícia, um fenômeno foi registrado: o índice de coragem sempre foi maior entre a parte pobre da população. Quando se fala ou se escreve a palavra povo, lembra-se do necessitado, do oprimido; daqueles que convivem constantemente com a fome, a miséria, a dor. E é desse ou nesse tipo de gente que surgem grandes heróis. Eles encontram forças que jamais um subnutrido supunha ter. O poder de resistência torna-se maior num homem aparentemente fraco. Pode ser contraditório e até irônico, mas quem foi acostumado a comer pouco e mal, resiste mais tempo sem se alimentar. Quem não conhece o bom vinho às refeições, jamais sentirá falta dele. Diante de fatos concretos, insofismáveis e estatísticos, é que podemos afirmar que a história registrou, através dos séculos, um maior número de heróis entre os pobres, e um maior número de traidores entre os ricos.
     Durante todo o tempo em que a França esteve ocupada, como não poderia deixar de ser, repetiu-se o fenômeno. Se um ou outro pobre enriquecia, grande parte dos ricos ficava cada vez mais rica. Quando não triplicavam suas fortunas, conseguiam mantê-las intactas e, com isso, não precisavam abdicar de seus hábitos e regalias - do supérfluo, que só o dinheiro pode comprar, ao bom gosto que o dinheiro aprimora. Enquanto o país desmoronava, eles, os traidores ricos, se mantinham no topo, cercados de padrão e "status".
    É bom também registrar, a bem da justiça, que algumas fortunas foram destroçadas, e que famílias de grandes tradições e privilegiadas condições financeiras, ao findar a guerra, se encontravam na mais solitária das misérias. Foram também heróis; a renúncia, em certos casos, pode ser considerada uma forma de heroísmo.
     No velho carrilhão na parede de um pequeno restaurante em Saint-Germain-des-Prés, soavam nove horas da noite.  A família Fontaine cerrava as portas do seu estabelecimento mais cedo nesse sábado, por falta total de fregueses.  Pierre, o filho mais velho de vinte anos, recolhia as mesas da calçada; Germaine, filha do meio, com dezenove anos, varria o salão; Noelle, a caçula, de seis anos, num canto, brincava inocentemente, com a sua boneca de pano, totalmente alheia aos trágicos acontecimentos. Enquanto Madame Fontaine arrumava a cozinha, seu marido ouvia o rádio no salão, prostrado numa velha poltrona de vime. O locutor dava as últimas notícias da ocupação alemã. A voz parecia insegura e as notícias truncadas, incompletas; encerrava fazendo um apelo patético à população para que não entrasse em pânico. Garantia que em poucos dias tudo se normalizaria; que, se o povo francês mantivesse suas tradições pacíficas e hospitaleiras, nada deveria temer. E antes que o locutor exortasse a população a colaborar com os "boches", Pierre desligou o rádio, cheio de ódio e nojo. Ele a princípio não acreditara no acontecido. Agora não parava de falar, demonstrando com a voz abafada seu inconformismo, aos gritos sua revolta e, em voz chorosa, sua vergonha. Madame Fontaine e sua filha Germaine passaram o dia fazendo perguntas.  Nesse sábado, desde as primeiras notícias da queda de Paris, o velho Fontaine não dizia uma só palavra. Limitava-se a gestos. Estava com uma expressão ausente, como se estivesse dopado.
    Com as portas cerradas e a casa arrumada, reuniram-se em torno da maior mesa do pequeno restaurante, para a ceia. Só em ocasiões especiais, como o natal, é que a família Fontaine se reunia para uma refeição, todos a um só tempo. O velho Fontaine levantou-se em silêncio, foi até a pequena adega e de lá trouxe até à mesa o seu melhor vinho. Serviu quatro copos de fino cristal e uma pequena caneca de alumínio que entregou à Noelle, sua filha caçula. Foi aí então que ele, rompendo o silêncio, falou pela primeira vez nesse dia:
    - Nossa pequena família está aqui reunida, como fazemos sempre nas grandes ocasiões - falava com a voz firme e pausada, para surpresa de todos - Não sabemos quando vamos ter uma nova oportunidade para isto. Talvez seja esta a nossa última refeição juntos. Tudo poderá nos acontecer. Precisamos estar preparados para o pior. Nossa soberania foi ultrajada e nossa honra vilipendiada. Hoje a estupidez venceu uma batalha contra o bom senso. Mas podem estar certos que justamente hoje, quando tropas nazistas pisaram Paris, berço da cultura e grande vitrine das artes, foi que a Alemanha começou a perder a guerra. E por essa certeza e pela fé que depositamos em Deus e num povo que faz da liberdade a sua maior arma, é que ergo a minha taça e proponho um brinde à nossa vitória.
    O velho Fontaine ergueu sua taça com a mão firme, mas suas últimas palavras saíram trêmulas. Terminara o pequeno discurso com a voz embargada.  A emoção o tomara de assalto, e suas faces foram banhadas pelas lágrimas do patriotismo.
   Na manhã seguinte, domingo de sol apático, uma de suas previsões fora confirmada: jamais a pequena família Fontaine estaria reunida em torno de uma mesa. Pierre partira de madrugada.

CAPÍTULO 3

O início da nova etapa
 

    Só a sua família e o pessoal do quartel onde serviu conheciam-no pelo verdadeiro nome. No entanto, por toda a vizinhança, só o conheciam pelo pseudônimo que adotara: Bill. Muito cedo, bem criança ainda, mostrou os primeiros sinais de uma forte personalidade. Seus pais, que a princípio gostavam de chamá-lo apenas por Gil, tiveram que aceitar a troca para Bill, diante da insistência do garoto. O certo é que ele se negava a atender qualquer chamado se não o chamassem por Bill. Aos dezessete anos ele já não lembrava porque e quando adotara aquele nome. Em todos os seus dourados anos de infância e início de juventude, por todo o bairro do Encantado ou por onde quer que fosse, era conhecido apenas como Bill. Para os amigos dos bancos da igreja dominical, para os colegas dos bancos da escola, para os companheiros dos terrenos baldios e campinhos de várzea, onde jogava uma bola redondinha, seu nome verdadeiro era Bill. E até que o nome que adotara combinava muito bem com o seu tipo físico: alto para a idade, forte, louro e de olhos verdes. O sobrenome Morrison ele adotara algum tempo depois que dera baixa da Aeronáutica e tentava conseguir o primeiro emprego. 

    Enquanto ouvia discos, no quarto bem decorado do novo apartamento que seu pai comprara em Copacabana, Bill colava algumas fotos, que ele mesmo tirara, no álbum de recordações. Eram fotografias de namoradas e ex-namoradas. Muitas estavam de vestido ou calça comprida; outras de maiô ou biquíni, e algumas inteiramente nuas. De repente sentiu um calafrio. Regina, em foto colorida, deitada num sofá, numa pose lânguida e sensual, vestia apenas uma corrente dourada em volta do pescoço. Um medalhão pendia da corrente e pousava entre seus seios fartos. Que faria o Coronel Carneiro, a ele, Bill, se visse aquele retrato? 

     Bill detestara a vida militar. Sempre fora avesso a horários rígidos, a fardas e a gritos. Estava agora novamente feliz. Voltara à vida civil. Mas, independente de tudo isso, sabia que poderia guardar para sempre na lembrança os bons momentos que vivera servindo na Base Aérea do Campo dos Afonsos. A despeito de não gostar do militarismo, fora um bom soldado e muito querido entre os companheiros. Era sempre um dos primeiros a se destacar nos exercícios e manobras. Seu comportamento fora impecável. Recebera, dos superiores, citações elogiosas nos boletins. Seu prestígio se solidificara ao ganhar, para a unidade na qual servia, o título de campeão de boxe em sua categoria. Além da bela taça de prata conquistada, recebera também como prêmio, do Comandante, um passe que lhe dava direito a passar três dias com a família. Deixou a Base, no final daquele dia, com alguns de seus melhores companheiros, e foram comemorar a grande conquista numa boate de fama duvidosa.  Bill, que não estava acostumado com bebidas alcoólicas, tomara um porre monumental. Ninguém conseguia lembrar mais do número exato de doses de cuba-libres servidas na rica taça, e só pararam de beber quando passaram a ver várias taças iguais se fundirem sobre a pequena mesa. Ao acordar, no dia seguinte, Bill estranhou ter adormecido de botinas, e mais perplexo ficou ao abrir as cortinas da janela do quarto e ser agredido pelo sol, que antes fora sempre seu amigo. Bill acabara de conhecer o dissabor de uma imensa ressaca.

     Pouco tempo depois de sua grande conquista, passou a ser o ordenança do Coronel Carneiro e seu motorista particular. Bill dirigia muito bem. Sua vida começou a ganhar novos rumos e seus horizontes novas cores. Conheceu Regina, filha caçula e a menina dos olhos do Coronel. Menina não era bem o termo. Uma linda jovem de dezessete anos. Cabelos castanhos claros, olhos castanhos-esverdeados, boca pequena e carnuda, cintura fina, seios fartos e um traseiro imponente. Media 1,60 m de pecado. Regininha, como era chamada, era uma pimenta malagueta. Viva, alegre, geniosa, irrequieta e profundamente ardente. Na primeira vez que botou os olhos em Bill, convocou-o para servir aos seus caprichos. Só que não contava que iria se apaixonar de verdade e muito menos que iria encontrar um rapaz de personalidade marcante, capaz de não se deixar envolver tão facilmente. Bill sabia o que queria, onde e quando. No início os gênios conflitantes se chocaram. Com o passar do tempo ele conseguiu amansá-la.

     Dona Margareth casara, ao completar dezoito anos, com o Coronel Carneiro. Um ano depois nascia Augusto, seu primeiro filho. Rosa, a filha do meio, nascera no ano seguinte, e só três anos depois, em parto muito difícil, no qual quase perdera a vida ou a criança, D.Margareth dera à luz Regina, que seria definitivamente sua filha caçula. O médico a prevenira sobre o perigo de uma nova gravidez. Ela sempre fora uma mulher vaidosa e, depois do nascimento de Regininha, passara a se cuidar melhor. Usava cremes de beleza importados; fazia ginástica diariamente e tomava massagens duas vezes por semana. Obedecia rigorosamente a dieta prescrita por médico nutricionista e se sentia realizada ao ouvir dizer que parecia ser a irmã mais velha de seus filhos.

     Augusto, próximo de completar maioridade, cursava uma faculdade na Zona Sul e morava com os tios na Urca. Costumava passar os domingos com os pais. Rosa casou cedo e foi morar no Méier. Apenas Regininha, que cursava o segundo grau numa Escola em Marechal Hermes, morava com os pais. Educada com todo o mimo e excesso de zelo, ela tinha tudo o que queria, principalmente do Coronel Carneiro. Ela sabia desmontar em segundos toda aquela pose marcial do pai. Quem conhecesse o Coronel apenas no quartel jamais poderia imaginar do que ele seria capaz de fazer em casa, diante dos dengos da filha. Bill, em pouco tempo de convivência com a família do seu comandante, percebeu logo isso e entendeu também que Regininha poderia vir a ser o primeiro grande trunfo de sua vida.

     No início fora difícil, mas, com o correr dos dias, e diante da habilidade de Bill, Regina foi-se moldando. Ela era muito autoritária e geniosa. Quando queria alguma coisa, tinha que ser de imediato e não aceitava recusa. Nos dezessete anos vividos não tinha aprendido a pedir, só sabia exigir. Mesmo quando falava com o pai, num tom baixo e macio de voz, era incisiva, intransigente, categórica. Sabia usar o choro para persuadir e o grito para se impor. Bill tivera que fazer uso de toda a sua sagacidade e inteligência. Como poderia agradar Regina sem se deixar por ela dominar? Agradando-a, estaria agradando também ao Coronel e entendia que tendo o pai dela como amigo, estaria sempre de bem com a vida militar. Tempos depois viu que não havia se enganado.

    O simpático e confortável bangalô, em que a família Carneiro morava, ficava a dez minutos do quartel. O Coronel transitava sempre em carro oficial e deixava o seu para uso exclusivo da esposa que, entre outras coisas, levava a filha à escola. De repente, Bill passara a motorista de Regina. Aquela nova tarefa agradava a Bill e tinha sido criada por um complô organizado por mãe e filha. Ambas tinham interesses distintos e ele sabia que estava sendo usado.  Dona Margareth passara a ter mais tempo livre para cuidar de sua aparência ou para jogar biriba com as amigas e outras pequenas futilidades. Regina passara a ter mais tempo ao lado do seu príncipe encantado. E as mudanças naquela família foram surgindo. Mãe e filha passaram a conviver melhor. Enquanto uma estava mais tranquila e despreocupada, a outra estava mais alegre e menos exigente. Na verdade, ambas estavam mais felizes. Até o Coronel, que vivia envolvido por problemas concernentes à segurança nacional, notara a mudança. Mas estava por demais atarefado para investigar as causas que motivaram tão gratas transformações. - E afinal de contas, por que investigar? - pensava ele. Paz e felicidade não se investiga, se usufrui. Na verdade o Coronel dispunha de muito pouco tempo para passar com a família e há muito não via tanta paz reinante em seu doce lar. Estava também feliz.

     Regina estudava à tarde e Bill sempre a levava após o almoço. Estes eram os únicos momentos que tinha para ficar a sós com ela. Nas três primeiras vezes que a levou à escola o fez no devassável jipe do quartel, e isto não o deixava muito à vontade. No primeiro dia parara em frente ao portão principal que dava para uma rua de tráfego intenso; na segunda vez, durante o trajeto, Regina sugerira que ele a deixasse numa rua de pouco movimento, para onde a escola dava fundos. Ela alegou, com uma pitada de malícia na voz e no sorriso, que devido ao engarrafamento constante na rua principal, seria mais fácil estacionar nos fundos da escola. Um longo e alto muro de blocos de concreto delimitava o Ginásio com aquela pacata rua sem calçamento, onde algumas casas de construção recente, na maioria ainda desabitadas, se misturavam a casebres e terrenos baldios. Bill notou que, no primeiro dia em que ali estacionou o jipe, Regina, ao saltar, dera a volta a pé pelo quarteirão, e que da segunda vez em diante, entrara na escola por um pequeno portão de ferro que antes vivia trancado por um grande cadeado preso por grossa corrente.

     Todas as conquistas amorosas de Bill, anteriores à Regina, independente de seu charme e tipo físico privilegiados, foram difíceis e trabalhosas, e por isso mesmo sentira um prazer todo especial. Com a filha do Coronel fora diferente. Não que ela não merecesse sua atenção, ou que ele temesse arriscar o seu prestígio perante o seu superior. Não, ele sabia que se não era por falta de atributos físicos da parte dela, muito menos seria por medo da parte dele. O mundo, até então, não o ensinara a conviver com tal sentimento. Nunca ouvira, em criança, frases imbecis como as que costumam dizer adultos idiotas e despreparados:

- Se não comer a comidinha toda, o Bicho Papão vem pegar o neném. Se fizer malcriação o guarda prende, etc. 

     Não, seu velho pai lhe ensinara diferente, lhe mostrara a fórmula do destemor equilibrado e da coragem lúcida. Fora bem preparado para a vida. Não temia doenças, pois gozava de ótima saúde, e da morte não tinha medo, pois era jovem demais para se preocupar com ela.  Sempre fora um vitorioso, e por isso jamais sentira a dor da derrota, do fracasso, da humilhação e do castigo. Por que teria que temer o Coronel? Se quisesse conquistar Regina, saberia como fazê-lo. Com sutis insinuações jamais daria margem a melindres e, consequentemente, a reações explosivas. O que poderia conseguir de pior seria uma negativa da parte dela e, se isso acontecesse, usaria a estratégia militar: recuaria, daria campo, ficaria na defensiva e voltaria a atacar no momento oportuno com o inimigo já enfraquecido. Mas não foi preciso nada disso.  Regina não lhe dera tempo. Logo que o viu, jogou-se em cima dele com armas e bagagens. Foram tão evidentes as suas atitudes que logo dona Margareth percebeu. Com três dias como ordenança foi à casa do Coronel para entregar uma encomenda e ouviu da mãe de Regininha um comentário curto e em tom jocoso:

    - Você tem sorte, rapaz... Nunca vi minha filha tão interessada por alguém!

O primeiro diálogo entre os dois fora um tanto áspero:

     - Você trabalha para o meu pai? - perguntou Regina.

     - Não, trabalho para a Nação - respondeu secamente Bill.

     - Mas faz tudo que meu pai lhe manda fazer, não?

     - Recebo ordens militares e as cumpro; fora disso o ajudo em tudo que posso da melhor maneira possível e, em troca, recebo certas regalias...

     - Você não passa de um serviçal presunçoso...

     - Poderia ser, mas sou apenas ordenança e motorista do Coronel.

     - Não creio que você tenha coragem de se negar a cumprir uma ordem de meu pai, seja ela qual for...

     - Nunca me passou isso pela cabeça. Conhecendo o Coronel como penso conhecer, não creio que ele seja capaz de me pedir algo que eu não possa fazer...

Ambos falavam com firmeza, mas os tons das vozes é que eram diferentes: o dela, áspero; o dele, macio. Regina continuou a provocar:

     - Sabe que se eu quiser você trabalhará para mim também?

     - Poderei ajudá-la, se você me pedir e seu pai concordar, ou vice-versa.

     - Pois bem, um dia desses lhe mando fazer alguma coisa para mim e vamos ver o que acontece...

Sem dar tempo de nova resposta, Regina virou-se rápido e saiu da sala, batendo com força a porta de seu quarto. 

     - O último disco acabara de tocar. O automático da vitrola enguiçara e há muito que o disco girava sob a agulha sem sair do lugar. O ruído irritante trouxera Bill de volta ao quarto. À sua frente ainda estava Regina, inteiramente nua em foto colorida. Era ela, até então, o seu mais valioso troféu.
CAPITULO 4


Gênova, 14 de junho de 1940


     Dois sorrisos diferentes pendurados na parede: um bondoso, outro arrogante. Cristo e Mussoline, em dois grandes quadros de molduras douradas, estavam ali, lado a lado, em frente à grande mesa da sala principal da família Spata. O rádio, sobre a cristaleira, acabara de dar as últimas notícias da guerra. Naquela hora, dezenas de bandeiras com a cruz suástica tremulavam nos mastros dos prédios públicos de Paris. A grande metrópole capitulara diante do imbatível exército alemão e um grande passo fora dado para fortalecer a coligação fascismo-nazismo. Dentro de um futuro bem próximo o mundo inteiro renderia homenagens às duas maiores figuras do século XX : Mussoline e Hitler.

     Toda a família do velho sapateiro genovês Giusephino Spata estava ali reunida comemorando, com bom vinho e suculento spaguetti, o grande feito. Toda a família não, pois o sonhador Giorgio, seu filho mais velho, viajara, antes da guerra, para o Brasil. Fora tentar a sorte em São Paulo e há muito não mandava notícias. Com o pensamento no além mar, uma furtiva lágrima brotou nos olhos do velho Spata. Ah! como seria bom que seu filho Giorgio estivesse ali com ele, em Gênova, usando sua coragem e espírito idealista em prol do fascismo. Poderia agora estar lutando lado a lado com o seu irmão, capitão Giovanni, recentemente condecorado por ato de bravura. Ainda que fosse em Turim, Milão ou Roma, não importava. Mas que estivesse na Itália reforçando as fileiras do grande exército comandado por seu querido "Duce". Poderia estar até como Coronel, quem sabe? Em tempo de Guerra as promoções surgem rapidamente e ele era um rapaz forte, inteligente e corajoso.

     Mas o que o velho sapateiro mais lamentava era o fato de Giacomo, seu filho mais moço entre os homens, ter sido dispensado das forças armadas. Tinha um pequeno defeito físico: era coxo, puxava da perna esquerda; tivera paralisia infantil aos cinco anos, o pobre infeliz. Fora uma criança tão alegre, bonita e sadia antes da desgraça, coitado! Continuava bonito e forte, era verdade, mas era um ragazzo triste aos vinte e cinco anos. Oito filhos, pensava, e sete deles ali com ele a seu lado, bebendo e cantando, e só Giacomo não tocara no vinho e não dissera nem uma palavra. Dali a trinta dias, se Deus quisesse e o grande "Duce" permitisse, estariam novamente reunidos. Benedetta, sua santa mulher, quatro anos mais moça que ele, faria 56 anos. O velho Spata estava feliz. Embora pobre, sua mesa era farta, nada lhe faltava. Recebia a proteção dos homens e as graças do bom Deus. Era o chefe de uma família unida, alegre e feliz. À cabeceira da mesa sentia-se como um General no comando do seu pequeno exército.

     Todo mundo estava ali. Junto dele, à direita, sua querida mulher; à esquerda, garbosamente fardado, com uma valiosa medalha pendendo no lado do coração, o capitão Giovanni, seu filho de 32 anos, seu herói. Estava parcialmente bêbado e entornava, goela a baixo, mais uma caneca de vinho. A bebida já lhe escorria pelo canto da boca e manchava a impecável túnica.

     O velho Spata passava agora em revista as filhas.  Silvana era a mais velha e também a mais feia. Solteirona, aos 38 anos, tornara-se beata de missas diárias e plantões na sacristia. Até ela, de temperamento esquisito e alma revoltada, estava alegre e cantando. Ao lado dela estava Gina, a mais bonita de todas. Mantinha a pele jovem e o corpo esbelto, aos 35 anos, mesmo sendo casada e mãe de quatro crianças endiabradas que naquele momento brincavam nos fundos da casa. Gina tivera sorte: casara com um industrial da pesca. Seu marido, entre outras coisas, possuía uma grande frota de barcos pesqueiros. Ainda do lado direito, completando os lugares da mesa, Giuseppino Spata via sua filha Graziela de 28 anos. O rosto continuava bonito, mas engordara demais. Também estava casada, mas ao ter o seu terceiro filho fora aconselhada por seu médico a fazer um severo regime, caso desejasse nova gravidez. Daquele dia em diante o seu espírito materno passou a ser atacado ferozmente por sua insaciável gula. Travou tremendas batalhas interiores, mas seu espírito materno acabou sendo assassinado pelo temperamento guloso.

     Do lado esquerdo do velho Spata, a seguir Giovanni, estava Mônica, bela e virgem aos 21 anos. Bem, virgem pensava o pai, que não sabia que a filha, sendo mais nazista do que fascista, tinha cedido o seu precioso tesouro aos encantos de um jovem soldado alemão. Rapaz de sorte, o Hans! Perdido no emaranhado da guerra fora acolhido por um corpo imaculado e amigo, nele abrindo uma pequena clareira à procura de novos caminhos, para depois sumir de vez. Fora destacado para novas missões e deixara aquele belo corpo imaculado, liberto. Ficaria como um pasto fértil e sempre pronto para saciar a fome de todos os soldados do mundo. Moça de sorte, a Mônica! O cabo Hans era estéril.

      Ah! o pobre Spata, só ele não sabia. Inocência e infância sempre caminharam juntas, e ele ao completar sessenta anos acabara de entrar na sua segunda infância. Da cabeceira da mesa ele sorria para sua filha Mônica, um sorriso inocente. Em seguida os olhos ganharam novos brilhos. Via a filha caçula Carina, de dezessete anos. Não era feia nem bonita, mas era a mais viva, alegre, inteligente e a mais carinhosa de todas. Ele a adorava. Ganhara a predileção do pai na vaga deixada por Giorgio, no mesmo dia em que este partira para o Brasil. Estava esperta, a Carina, e já namorava. O felizardo era o Ferraro, jovem soldado do glorioso exército italiano. Ao lado de Carina estava uma cadeira vazia, era para Giorgio.

      Por último, na cabeceira oposta da mesa, estava o filho Giacomo, o triste. Era diferente de todos. Antes do mal o atingir, fora alegre e feliz como qualquer criança. Jogava bola e corria pelos campos com os meninos da vizinhança. Participava de todas as brincadeiras típicas da sua idade. A doença não conseguira tirar-lhe a vida, mas lhe roubara para sempre a alegria de viver. Inicialmente, ficara com o lado esquerdo totalmente paralisado; aos poucos, foi recobrando os movimentos. Fora um tratamento caro e demorado; praticava exercícios horas e horas seguidas, diariamente. Suportava tudo com muita coragem para sua pouca idade; sua fibra e sua força de vontade eram constantemente elogiadas pelos médicos responsáveis pelo tratamento. Dona Benedetta, sua mãe, católica fervorosa, fizera até uma promessa a São Genaro: se o filho voltasse a andar, ela faria abstinência de sexo por um ano. Era também uma maneira de fazer o fogoso marido participar do seu ato de fé. Diga-se, a bem da verdade, que, desde o dia em que Giacomo voltou a andar, ela, Benedetta, mulher ardente, cumprira galhardamente a sua parte. É verdade também que em muitas noites de quarto-crescente e lua-cheia, sentira necessidade de dormir no quarto dos fundos com as meninas, e que antes de deitar tivera o cuidado de passar uma grande tranca na porta.

      Giuseppino, seu marido, buscava na bebida a fuga para o delicado problema. Quando perdia as contas das canecas de vinho que entornava pela goela, dormia fora de casa e dizia às mulheres do porto que só a esposa era obrigada a fazer a tal da abstinência. Só conseguia ser aceito por prostitutas que não tivessem formação religiosa, pois a maioria das mulheres sentia-se orgulhosa em poder colaborar com aquele maravilhoso ato de fé, sacrifício e renúncia.

     Giacomo foi readquirindo gradativamente os movimentos e quando voltou a andar ia à praia nadar diariamente. Isso é ótimo pra ele - diziam os médicos! - Qual o exercício mais completo que a natação para desenvolver e fortalecer a musculatura? E Giacomo, em pouco tempo, se transformara num exímio nadador. Aos poucos foi adquirindo novos hábitos. Descobriu novas fórmulas para passar o tempo. Aprendeu a pescar e construiu o seu pequeno mundo em cima de uma pedra debruçada sobre o mar. Prendia pequenos peixes e parte de sua infância na ponta de uma isca. Giacomo adorava o mar e pensava em ser um dia marinheiro. Logo aprendeu a ler e passou a gostar dos livros. Sua leitura predileta era sobre homens livres e aventureiros: navegadores, viajantes, exploradores. Gente ávida, como ele, de liberdade e conhecimentos; homens dispostos a descobrir novos mundos, a explorar novas terras. Assim cresceu Giacomo dentro do seu mundo particular. Por mais exercícios que tenha feito, ficara com uma pequena atrofia na perna esquerda. Não fora aceito na Marinha e, talvez por isso, recusara o emprego que Angelo, marido de Gina, lhe oferecera. O cunhado o chamara para trabalhar num de seus barcos pesqueiros. Preferiu estudar, formar-se em contabilidade, e ficar trabalhando nos escritórios de uma fábrica de massas alimentícias.

     Giusephino Spata acabara de passar em revista a sua tropa. Toda a família estava ali reunida, exceto o cabeçudo do Giorgio. Seu lugar estava simbolicamente reservado à mesa. A cadeira estava vazia. Os dois genros também estavam ausentes; trabalhavam ainda naquela hora. Bem, em Angelo, marido de sua filha Gina, ele podia confiar - sempre fora um homem muito trabalhador e por isso era um vitorioso. Deveria estar naquela hora afogado entre faturas, gráficos e mapas, nos escritórios de sua indústria pesqueira. E o safado do Marcelo, marido de sua obesa filha Graziela, onde estaria? Na certa bebendo com alguma vagabunda da beira do cais. Era um porco que só se sentia bem encafurnado na lama. Sempre que chegava em casa, das farras, era obrigado pela mulher a ficar uma hora embaixo do chuveiro para conseguir tirar do corpo os três fortes odores que constantemente impregnavam sua pele: de peixe estragado, vinho barato e mulher idem, idem. O velho Spata, já meio tonto, vendo Graziela tentando se levantar da cadeira em movimentos lentos, sentiu piedade dela. Via em sua filha alguns quilos a mais, e pequenos chifres despontando da alva testa.

     Agora as filhas estavam ajudando a mãe a tirar a mesa e arrumar a cozinha. O capitão Giovanni, herói de grandes batalhas, perdera a última para o vinho e, babando, roncava com a cabeça emborcada na mesa, ali a seu lado. À frente, seu filho Giacomo lhe parecia cada vez mais triste. Definitivamente o velho Spata começara a viver sua segunda infância; a inocência passara a conviver com ele de novo. A ingenuidade sempre foi o primeiro sentimento do ser humano, e o mais puro, e sendo ele agora uma criança idosa, não podia compreender a tristeza que o filho não conseguia esconder. Não entendia que o passado ficara para trás e que levara com ele as marcas da doença que há muito o filho superara. Ele não sabia que Giacomo era o único de seus filhos que desprezava o fascismo e odiava o nazismo; que aquela expressão em seu rosto não era só de tristeza, mas, sobretudo, de inconformismo, revolta e preocupação.

     Giacomo, aos 25 anos, era um homem relativamente culto. Lia muito e estava a par dos verdadeiros acontecimentos. Ele sabia que sua pátria caminhava a passos largos para o caos, governada por um ditador vaidoso, arbitrário e sem escrúpulos. Só ele, ali naquela família, conseguia enxergar o futuro nebuloso e catastrófico. Sabia também que o paranóico e maquiavélico Hitler fizera de Mussoline um boneco de fantoche e manipulava sua vaidade e prepotência com a ponta dos dedos. Mussoline espalhara o fanatismo por toda a Itália e os seus seguidores o chamavam carinhosamente de "Duce". Giacomo sabia que toda a sua família engrossava essa fileira. Ah... se ele pudesse explicar tudo isso ao inocente pai. Mas, se antes era muito fanático para aceitar, agora ele estava muito velho para entender.

     A algazarra das crianças cessara. Os netos do velho Spata já estavam dormindo quando Angelo chegou de carro para apanhar Gina. Como o safado do Marcelo não aparecera, ele se propôs a deixar a cunhada Graziela em sua casa. Sabendo que seu carro não comportaria tanta gente, resolveu deixar os filhos com os avós. No dia seguinte mandaria o motorista buscá-los. Seria uma boa oportunidade para ter sua linda mulher Gina inteiramente para ele, naquela noite.

     O velho Spata ajudou seu filho Giovanni a se livrar da farda e o pôs no sofá da sala, do mesmo modo que fazia quando ele era criança. Podia passar a noite ali, pois só na manhã seguinte é que teria de se apresentar ao quartel. Giacomo, depois de receber a bênção do pai, retirou-se para o seu quarto de solteiro. A noite terminara em paz. Giusephino Spata apagou as luzes e, cambaleante, tropeçou nos móveis da sala que ficara na mais profunda escuridão. 

     Giacomo não conseguira conciliar o sono; duas horas depois caminhava descalço no silêncio da madrugada. Pisando com a ponta dos pés, entrou no quarto dos pais. Naquela noite seu pai dormira mais tarde do que de costume e roncava ruidosamente, pregado ao pesado sono e à bebida leve. Com cuidado acordou a mãe, e a levou até seu quarto. Chegara o momento da conversa que por tanto tempo adiara. Tomou bastante fôlego e falou:

     - Como já deve saber, minha mãe, sou o único aqui que não suporta o fascismo; que não aceita qualquer regime de força. Renego a ditadura; sempre fui livre. Amo o sistema de vida democrático porque sei que é o que nos dá o direito de escolha; se não é perfeito, nos deixa mais próximo da liberdade. Nosso povo está agora dividido. Mal dividido, por sinal, pois só o fascismo está armado. Não fui educado dentro da violência nem do pacifismo exagerado, por isso, entendo que não devo lutar contra meus compatriotas, nem tampouco aceitar o regime imposto. Por não poder lutar contra vocês, meus pais, nem contra meus irmãos, é que só encontro uma saída: partir. Só a senhora, minha mãe, pode me compreender e me ajudar a deixar a Itália. Lutarei contra o nazismo, se preciso for, em outras terras. Destruirei os verdadeiros inimigos da nossa pátria em outros campos, e, com fé em Deus, voltarei um dia, quando então todos nós estaremos livres novamente.

     A mãe ouvira tudo em silêncio e compreendera. Ela conhecia o filho como ninguém seria capaz. Giacomo sempre fora um bom bambino. Ficara triste com a doença, era verdade, mas em momento algum fora uma criança revoltada. Sempre frequentou, ao seu lado, as missas dominicais. Sempre tivera fé no bom Deus e em São Genaro. Era um homem conformado, mas orgulhoso; de aparência triste, mas cheio de vida. Fora o que mais lhe dera gosto nos estudos. Fazia da compreensão e da bondade seus maiores elos de ligação com a família. Era o filho predileto, seu melhor amigo. Dona Benedetta, enquanto ouvia o filho falando, pensara em tudo isso. A tênue luz do abajur disfarçava a emoção dos olhos dos dois. No fim de tudo dona Benedetta dissera apenas:

     - Eu compreendo você, meu filho. Vou lhe ajudar. Pode confiar em mim.

     Giacomo adormecera naquela noite com a cabeça pousada no colo de sua mãe.  







CAPÍTULO 5

Os primeiros caminhos

     Sentindo que não conseguia atingir Bill com a aspereza de suas provocações, Regina logo mudou de método e passou a provocá-lo de maneira diferente. Insistiu nos olhares e sorrisos maliciosos, nos apertos de mão prolongados e na exibição de partes de seu corpo. Isso ela fazia temperando malícia com falso pudor. A princípio as reações de Bill foram de constrangimento e timidez, e Regininha gostava de vê-lo encabulado. Usou todos os artifícios que aprendera em filmes, fotonovelas e romances. Debruçava-se para mostrar o decote; cruzava e descruzava as pernas para mostrar as coxas, e passeava pela sala usando curtíssimos shorts. Num dia teve a ousadia de aparecer vestindo uma blusa fina, sem o sutiã por baixo, e no outro, ao ouvir a voz de Bill, que acabara de chegar, entrou distraidamente na sala, vestida apenas com a saia do uniforme. Ao deparar com Bill, fingiu-se surpresa, e voltou para o quarto tentando esconder os seios com as mãos.  De lá chamou a empregada e, em voz alta, pediu que passasse a ferro a blusa do uniforme.
     Bill entendia tudo muito bem. Compreendia até que Regina gostava de vê-lo embaraçado e, por isso mesmo, fazia o tipo. Na verdade a timidez nunca fora o seu forte.
     Na primeira vez que a levou ao colégio, nada aconteceu durante o trajeto. Nem palavras trocaram. Estavam tensos como dois lutadores que se estudam antes de começar a luta. Quando parou no portão principal do colégio, Regina ao saltar do jipe, beijou-lhe a face rapidamente, e disse:
     - Sabe que você é um garoto bem comportado? - Obrigada.
    Da segunda vez, foram conversando sobre a vida escolar, e, em dado momento, Regina pousou a mão esquerda sobre a coxa direita de Bill, bem próximo da virilha. Ele corou de verdade. Bill sentiu um forte calor subindo pela perna, a começar de dentro da botina. Regina, ao sentir um pequeno volume se formar por sob a calça do rapaz, retirou rapidamente a mão. Não trocaram mais palavras até chegar ao colégio. Antes de saltar Regina olhou para Bill, que ainda estava corado, e desceu lentamente a vista para onde deveria estar a razão de todo aquele tom avermelhado em seu rosto. Bill ainda estava excitado. Ela levantou a cabeça vagarosamente e os dois se encararam. Podia-se notar, em segundos, milhares de micro faíscas que iam e vinham, num rápido duelo de olhos. Regina notou que Bill ia falar alguma coisa e, antes que ele tivesse tempo, acenou sua bandeira branca, em forma de terno sorriso, propondo trégua. Desceu ligeiro do jipe e passou pelo pequeno portão de ferro sem olhar para trás. Era uma terça-feira quente.
    Bill sempre fora um conquistador e, pela primeira vez em sua vida, estava sendo conquistado. Ele não estava gostando nada daquilo. Sabia que era uma experiência nova e que, mais cedo ou mais tarde, teria que passar por ela. Mas, na verdade, aquela aventura amorosa o estava incomodando. Nunca fora de esquentar a cabeça com suas namoradas, mas as atitudes de Regina já o estavam deixando preocupado. Preocupação poderia não ser bem o termo, mas só o fato de ter que estudar a melhor maneira de agir, de como prestar mais atenção às situações, momentos e locais, já o estava aborrecendo.
    Era noite de quinta-feira e ele estava em seu quarto. Acabara de desligar o telefone; recebera um convite de um novo amigo, conhecimento de praia, para um chopinho gelado com a turma. Recusara, alegando cansaço e a necessidade de não dormir tarde naquela noite, pois teria que estar na manhã seguinte, bem cedo, no quartel. Deitou-se, acendeu o abajur de cabeceira, e tentou iniciar a leitura de um novo romance. Lembrou que há dois dias Regina não o chamava para levá-la ao colégio. Bill estava aprendendo a fumar e ainda se engasgava com a fumaça do cigarro, mas, mesmo assim, fumou meio maço aquela noite. Não passou das primeiras páginas do romance, e pegou no sono se questionando seguidamente: - por que?  por que?
    No dia seguinte, no quartel, depois de fazer os exercícios de rotina, foi chamado ao gabinete do Coronel Carneiro. Depois de perfilar-se e prestar continência, falou:
     - Bom dia Coronel; mandou me chamar?
     - Sim, quero que me faça um favor...
     - Estou às suas ordens, senhor.
     - Parece que houve qualquer problema com o nosso carro, e Margareth me telefonou perguntando se você poderia levar Regininha ao colégio.
     - Claro, Coronel. Basta o senhor autorizar...
     - Pois bem, depois do rancho você vai estar dispensado.
     - Só isso, Coronel?
     - À vontade, e obrigado
     Bill deu meia volta, e saiu sorridente.
    Às doze e trinta em ponto, saltou do jipe carregando uma caixa de ferramentas. Dona Margareth veio abrir a porta.
    - Bom dia, madame - falou o rapaz. Que houve com seu carro?
    - Não entendo de motores de carro, e só sei que esse aí não quer pegar.
    Bill, ainda na soleira da porta, viu de relance, Regina atravessar a sala, vestindo uma camisola levemente transparente, podendo se ver, por baixo do tecido, as marcas da calcinha e do sutiã. Foi aí que resolveu falar num tom de voz mais alto que o seu habitual:
    - Não será por um defeitozinho à toa que a senhora vai deixar de levar sua filha ao colégio. Tenho algumas noções de mecânica, e poderia tentar dar um jeito...
     Margareth interrompeu bruscamente:
     - Por que, você não está à nossa disposição?
     - Claro que estou, madame - gaguejou um pouco - é que eu pensei que...
     Margareth interrompeu de novo:
     - Não há necessidade de você se sujar de graxa à toa. Já telefonei para o nosso mecânico e ele deverá chegar a qualquer momento. Gostaria apenas que você levasse Regininha ao colégio, no jipe.
    - Sim, senhora.
    - Entre e sente-se ali. Regininha foi trocar de roupa e não deve demorar. Dizendo isso, saiu da sala.
    Nem bem um minuto tinha se passado e dona Margareth estava de volta, trazendo, numa bandeja, um copo duplo de refresco gelado.
    - Tome. Faz bem aos dois males: hoje está um dia muito quente, e você está um pouco nervoso.
Assim que Bill segurou o copo e ia agradecer, ela completou:
    - Maracujá é calmante.
    - Obrigado, dona Margareth - falou sem conseguir esconder um sorriso brejeiro.
    Logo depois Regina apareceu, com os livros na mão, e saíram. Fizeram a curta viagem totalmente mudos. Vez por outra, Bill assobiava para mostrar descontração. Se a tecnologia eletrônica estivesse evoluída ao ponto de ter inventado um aparelho capaz de captar pensamentos, e um desses aparelhos tivesse sido instalado naquele jipe, teria registrado o seguinte diálogo:
     Ela: - Idiota, orgulhoso. Está doido para saber porque há dois dias não lhe peço para me trazer ao colégio.
    Ele: - Tão bobinha, e pensando que é esperta. Está morrendo de vontade que eu lhe pergunte porque me evitou durante dois dias.
     E foram pensando coisas semelhantes até estacionarem nos fundos do colégio. Regina não saltou logo do jipe, como era do seu costume. Ficou estática, como se quisesse ouvir alguma coisa. Esperando que algo acontecesse, ficou olhando a linha do horizonte, através do para-brisa. Bill não sabia o que fazer ou dizer e, impaciente, assobiava para disfarçar. Regina percebeu que ele a observava, e virou o rosto bruscamente em sua direção. Ficaram cara a cara por alguns segundos, e falaram ao mesmo tempo:
    - Sentiu falta de mim?
    Regina passou o braço em torno do pescoço de Bill, e beijou-o na boca. E, dos lábios, em cascatas, jorraram perguntas. As frases eram curtas, e os beijos longos. Os lábios satisfaziam os corpos e os espíritos, com respostas e carícias. Fizeram uma pequena pausa, como se estivessem readquirindo fôlego, e voltaram a se beijar com sofreguidão. A despeito do sol a pino, de uma tarde de um dia de muito calor, soprou naquele instante uma brisa fresca e agradável. O jipe poderia estar estacionado ali, naquela rua poeirenta e esburacada mas, naquele momento, o jovem casal enamorado acabava de estacionar nas nuvens. Voltaram a conversar:
    - Pensei que este momento não fosse chegar - falou ela.
    - Estava ansioso por isso - disse ele.
    - Não fosse o seu orgulho e teríamos ganho mais tempo de felicidade, pois nunca escondi meus sentimentos.
    - Você me inibiu com a sua pose autoritária e, afinal de contas, não deve esquecer que é a filha do meu comandante. Jamais poderia desagradá-la.
    - Bobinho !
    - Vamos recuperar o tempo perdido, prometo - e Bill beijou-a no rosto.
    O último beijo foi longo, demorado; perderam a noção do tempo. Poderiam ficar assim, indefinidamente, de lábios colados, alheios a tudo, não fosse a voz de uma criança que parada bem próxima ao jipe, dizia:
    - Aí, soldado, manda bala! - E partia correndo pela rua afora, empinando um velho papagaio de papel.





CAPÍTULO 6
 
Paris, três meses depois

    A família Fontaine só foi ter notícias de seu filho Pierre, três meses depois de sua partida. Numa fria manhã de setembro, um menino de sete anos, morador da vizinhança, entrara correndo restaurante a dentro e entregara ao senhor Fontaine um pequeno bilhete escrito em letra de forma, que dizia:
    - Queridos pais, não se preocupem. Estou muito bem. Fui adotado por uma grande família de patriotas franceses e viajo muito por todo o país. Breve estarei com vocês. Beijos, Pierre.
    - Quem lhe entregou isso? - perguntou aflito o pai de Pierre.
    - Foi um homem de blusão de couro que estava num Citroen preto - respondeu o garoto.
    - Ele lhe falou alguma coisa?
    - Ele me disse apenas que entregasse o bilhete em suas mãos. Depois me deu alguns bombons e partiu.
    O velho Fontaine agradeceu à criança e foi contar a novidade à mulher, com os olhos úmidos de lágrimas.
    Três meses foram o suficiente para transformar a risonha cidade-luz. Paris era uma frágil mulher que fora violentada por um grande membro alemão. Traumatizada e infeliz, parecia ser outra Metrópole. Os efeitos maléficos da ocupação alemã já se faziam sentir; havia escassez de tudo, dos gêneros de primeira necessidade aos artigos de higiene, da carne ao sabonete, passando pela gasolina que fora logo racionada. Estava a cidade nas mãos dos aproveitadores, à mercê daqueles que iriam enriquecer ou triplicar suas fortunas, usando o câmbio negro e a desgraça como armas poderosas a serviço de suas ambições. Os generais e grandes líderes das forças alemães de ocupação, Goering e Himmler, confiscavam propriedades particulares e saqueavam, do grande museu do Louvre, obras de arte de valor incalculável. Várias estátuas de heróis franceses foram dinamitadas por pelotões nazistas. Os "Boches" enfraqueciam o povo das duas formas mais eficazes: pela fome e pela humilhação. A ostentação era também outro meio encontrado para ferir a dignidade do povo francês. Os alemães frequentavam os melhores restaurantes, teatros e casas de diversões, comendo e bebendo do melhor, e pagando em marcos de ocupação, cédulas nas quais a promessa de pagamento impressa não tinha assinatura. Garbosamente fardados, os soldados nazistas desfilavam nesses lugares acompanhados por lindas garotas francesas. Se assim sabiam que estavam ferindo o povo, esqueciam-se que, com isso, geravam um ódio incontrolável, acirravam os brios, o amor próprio e a altivez do francês.
    Um fato curioso podia-se observar nas ruas de Paris: as crianças continuavam soltas, brincando: as mulheres continuavam passeando; os velhos, na sua maioria, saiam para comprar alimentos para casa.- E os rapazes? Para onde foram os rapazes? Por onde andava o sexo masculino da juventude francesa? Poucos, muito poucos eram vistos nas ruas. Mas estavam mais vivos do que nunca; trabalhavam, planejavam, lutavam e se escondiam. Comunicavam-se por código; preparavam emboscadas; interceptavam mensagens inimigas; destruíam arquivos secretos; interrompiam as linhas telegráficas e telefônicas; incendiavam prédios públicos, nas mãos dos nazistas; roubavam comida e munição. Costumavam usar, em seus ataques, bombas de confecção caseira. E, o mais importante de tudo, é que comemoravam cada batalha vencida, cada feito isolado, com o sabor de uma grande vitória.
    Um velho celeiro, numa pequena fazenda, nos arredores de Paris, poderia ser um grande depósito de armas e munições para os jovens revolucionários. Um prédio semidestruído, uma casa em ruínas, ou um armazém abandonado, poderia ser também, eventualmente, o ponto de encontro, o quartel-general para aqueles que viriam formar o que seria depois conhecido como a famosa "Resistência". O fato é que eles poderiam estar em qualquer ponto da cidade ou do país. Costumavam sempre trocar de endereço por menor que fosse a suspeita de que estavam sendo seguidos ou vigiados. Um pequeno erro poderia ser fatal. Não tinham medo da morte, mas temiam serem capturados vivos. Sabiam que se um deles caísse prisioneiro e fosse vítima dos já famosos métodos de tortura da "Gestapo", poderia por a perder todo um trabalho, e com isso sacrificaria também uma infinidade de vidas preciosas. Eles não aceitavam limite para o medo, mas acreditavam no limite para a dor. Qualquer pessoa poderia fazer parte da "Resistência", desde que a coragem fosse ilimitada e que o poder de renúncia fosse maior do que o apego à família e superior a qualquer tentação de bem material.
    Dois poderosos grupos, entre outros, faziam parte da "Resistência": os Bombeiros, que por organização e eficiência no desempenho de suas funções, costumavam ter todas as plantas das cidades em suas mãos, e os maquis, formado na sua maioria por jovens estudantes.
    Pierre tornara-se um maquis, e estava naquele dia a quarenta quilômetros de Paris, numa fazendola de criação de aves e porcos. Dentro de um pequeno galpão, entre patos, gansos e galinhas, liderava um pequeno grupo composto por cinco rapazes e uma moça. Enquanto limpava a sua arma, Pierre perguntou:
    - Como foi a operação "Pato"?
    - Sucesso absoluto - respondeu o mais franzino.
    - Quero saber dos detalhes. Saiu tudo bem?
    - Poderia ser melhor - falou a moça
    - Como assim?
    - Um deles conseguiu escapar, e o outro ficou gravemente ferido.
    - Bem - falou Pierre - então o sucesso não foi tão absoluto...
    - Dois morreram na hora, e olha que foi até engraçado - falou o mais alto e forte da turma.
    - Sabe - falou o franzino - o que escapou teve a sorte de estar com a bexiga cheia. Levantou da mesa minutos antes da explosão. Nasceu outra vez.
    - É, safado de sorte! Levantou para mijar na horinha - completou o forte.
    - E o garçom? - perguntou Pierre.
    - Foi preso na hora, sem saber o que estava acontecendo - falou a moça.
    - Não só o garçom como todos que trabalham na casa - falou o franzino. Soubemos depois que soltaram os demais, mas que o proprietário, o cozinheiro e o garçom, ficaram presos e incomunicáveis.
    - Sorte nossa que eles sejam inocentes. Mesmo que venham a sofrer torturas, nada poderão revelar. Infelizmente essas coisas fazem parte da guerra. Eles pagarão por terem sido usados involuntariamente. Faremos o possível para libertá-los.
    Tudo fora tramado com muita arte e cuidado. O serviço de informações dos maquis tomara conhecimento de que quatro dos mais eficientes membros da Gestapo, costumavam frequentar aquele pequeno restaurante, onde comiam, invariavelmente, o famoso prato da casa: Pato recheado, dourado ao forno". Tais "secretas" eram os que mais estavam informados quanto às atividades dos maquis. Um pato fora preparado à moda da casa, com um recheio bem diferente por dentro. Uma carga de explosivo especial detonaria, no momento em que a ave fosse friccionada. Alguém entraria pelos fundos do restaurante e substituiria o pato original, pela imitação. Dois jovens integrantes do grupo foram destacados para a missão, e ambos conseguiram escapar. A mesa usada pelos alemães ficava dentro de um pequeno reservado, um pouco afastada das demais. Mesmo assim, alguns poucos fregueses foram levemente atingidos. Dos quatro integrantes da Gestapo, dois morreram no local. Um ficou gravemente ferido, perdendo a visão horas depois. O outro escapou por não estar na mesa no momento da explosão.
    Ao meio-dia do dia seguinte uma lustrosa "Mercedes Benz" preta, escoltada por dois batedores de motocicletas, com uma pequena bandeira alemã tremulando em curto mastro preso ao pára-choque dianteiro do carro, estacionou bem em frente à porta do restaurante da família Fontaine, em Saint-Germain-des-Prés.  Dois soldados e um sargento saltaram do veículo, entraram no prédio e inspecionaram minuciosamente todas as suas dependências. Os soldados ficaram no salão. O sargento voltou, abriu a porta traseira da "Mercedes", e falou:
    - Tudo em ordem, meu Coronel.
    A rua estava quase deserta àquela hora do dia. Um pequeno grupo de crianças, que brincava na calçada em frente, aproximou-se do automóvel, movido pela curiosidade. Foram elas quem viram primeiro quando o Coronel Kurt Staden, trajando um uniforme vistoso e impecável, surgiu do interior do veículo.
    - Que desejam, cavalheiros? - perguntou o garçom, à entrada do restaurante, procurando ser natural.
    - Gostaríamos de almoçar. Recebi informações de um francês, amigo meu, de que aqui vocês têm um tempero muito agradável. Vim conferir - falou o Coronel Kurt.
    O oficial ocupou uma mesa. O sargento com os dois soldados ficaram numa outra, ao lado. Os dois motociclistas ficaram de pé na porta do restaurante, mantendo severa prontidão. Na rua, sentado à direção do carro, ficara o motorista.
    O que o cavalheiro gostaria de pedir? - perguntou o garçom, entregando o menu.
    - Espero que não se ofenda - respondeu o Coronel - mas, se nos fosse possível, ficaríamos lisonjeados em ouvir a sugestão do próprio maitre da casa.
    - Tenho certeza que será um prazer para ele, senhor - respondeu gentilmente o garçom. Com licença, que vou chamá-lo - e saiu apressadamente.
    O Coronel Kurt era um homem muito polido, de bom gosto e fino trato. Culto, conseguia falar um francês corretíssimo e com admirável pronúncia. Media mais de 1,80 m de altura e era magro. Seus traços fisionômicos destoavam de seu comportamento, pois eram grosseiros. Cabelos claros e ralos, no tom da palha do milho. Possuía um estranho poder sobre os seus olhos de um azul profundo. De acordo com o momento, poderia emitir, através deles, tanto um frio ártico como um calor equatorial. Três dedos abaixo da vista esquerda, uma pequena cicatriz. Caminhava para os cinqüenta anos de vida.
    Não passou mais de um minuto e o Senhor Fontaine estava ali, ao lado da mesa.
    - É um prazer, cavalheiros, tê-los conosco. Não é sempre que nossa modesta casa tem a honra de servir a tão ilustres autoridades - falou o proprietário.
    - A despeito de nossas vestimentas e posições, não estamos aqui como autoridades, e sim, como fregueses comuns que gostam de comer bem e com simplicidade. Não só apreciamos um bom tempero caseiro, como a cordial hospitalidade francesa - respondeu o Coronel, olhando dentro dos olhos do velho Fontaine.
    - Me perdoem a vaidade, mas, posso lhes garantir que vieram ao lugar certo.
    - Estamos certos disso - disse o Coronel num tom de voz indecifrável.
    Os dois estavam representando, e ambos sabiam disso.
    O Coronel, com o menu nas mãos, sem abri-lo, perguntou de repente:
   - Os senhores aqui servem "Pato recheado, dourado ao forno"?
    O Senhor Fontaine ficou nervoso, mas procurou esconder.
    - Infelizmente não, senhor. Temos tido muitas dificuldades com os nossos fornecedores há algum tempo, o que é perfeitamente compreensível, e...
    - Trabalha como maitre aqui há muito tempo? - interrompeu o Coronel.
    - Nosso restaurante é muito modesto para termos um maitre, senhor. Sou o proprietário, e, sempre que posso, faço as honras da casa.
    - Como se chama?
    - André Fontaine, às suas ordens.
    - Muito prazer. Sou o Coronel Kurt Staden. Que nos sugere então para o almoço, Monsieur Fontaine ?
    - Como ia dizendo, senhor, não temos recebido carnes bovina, caprina e certos tipos de aves. Para falar a verdade, hoje só temos peixe e galinha. Peço desculpas, senhor.
    - Que prato nos indicaria, então?
    - Galinha à moda da casa, se não se opõe.
    - Contanto que a galinha não seja recheada, pode nos mandar servir - falou o Coronel, procurando emitir um tom natural na voz, e acrescentando depois de uma pequena pausa:
    - De preferência, que nos sirva já destrinchada.
    - Pode deixar, senhor. Não vão se arrepender. Com licença - e saiu.
    O garçom, único a trabalhar na casa, estava servindo outras mesas quando Germaine, a linda filha de dezenove anos do Senhor Fontaine se aproximou da mesa trazendo, numa bandeja, quatro copos e uma garrafa. Foi direto ao Coronel, e falou:
    - Com licença, senhor. Gostaria de servi-lo e aos seus acompanhantes o nosso melhor vinho, como gentileza da casa - e em seguida encheu os copos.
    Pela primeira vez o Coronel transmitiu alguma emoção. Ao ver a garota seu olhar emitiu aquele calor, e a sua voz, antes firme e segura, vacilou ao falar:
    - Foi muita gentileza de sua parte em vir até aqui nos servir. Trabalha na casa?
    - Trabalho, sim senhor - respondeu Germaine timidamente.
    - Gosta do que faz?
    - Meu pai é o proprietário do restaurante, e eu tenho muito prazer em poder ajudá-lo.
    - Gostei de ouvir isso. Foi muito bonito de sua parte, nobre até. Entretanto, quero crer que você ainda é muito jovem para esse tipo de serviço.
    - Já estou acostumada e o importante é que eu me sinta útil a meu pai.
    - Sentiria orgulho, se tivesse uma filha como você. Seu pai deve ser um homem feliz. Gostaria que o chamasse até aqui. Agora sou eu quem quer oferecer a bebida. Quero brindar com champanhe a sua simpatia, inteligência e beleza.
    O brinde foi feito. A comida foi servida com rapidez e eficiência. Deveria estar saborosa pois os alemães comeram bem, e teceram elogios depois. Pagaram a conta, deixaram gorda gorjeta e partiram.
    Na manhã seguinte, um grande caminhão frigorífico abasteceu o restaurante com todos os tipos de carne.
CAPÍTULO 7


A primeira batalha


    Manda bala, soldado! Aquela frase poderia ter sido dita por um garoto maior, ou até mesmo por um grupo de rapazes, moleques de rua. O fato é que aquele pequeno incidente despertou nos dois uma certa preocupação. Não poderiam se expor, assim, perigosamente; deveriam tomar mais precauções. Nem tanto por eles, pois o destemor fazia parte do caráter de ambos mas, sobretudo, pelo Coronel. Afinal de contas eles estavam trocando carícias dentro de uma viatura militar. Uma denúncia, um escândalo, e estaria a posição do Coronel abalada. Ainda naquela tarde, após o primeiro beijo, alvo da pilhéria infantil, conversaram algum tempo:
    - Não devemos mais sair de jipe - falou Regina. Da próxima vez que me trouxer ao colégio, será no nosso carro.
    - E se sua mãe precisar dele?
    - Dificilmente ela sai logo depois do almoço. Se mamãe precisar sair à tarde, acredito que possa esperar que você volte com o carro.
    - E se houver qualquer outro impedimento?
    - Então nesse dia prefiro que não me traga ao colégio.
    Depois de tudo acertado, Regina beijou levemente os lábios de Bill e saiu. Naquela tarde perdera a primeira aula.
    Aquele final de semana fora o mais longo de sua vida.
    - Será que estou me apaixonando por Regina? A todo instante fazia a si próprio a mesma pergunta.
    No sábado, pela manhã, foi à praia. Jogou vôlei e futebol com a turma. À noite, foi com Marlene, sua parceira de sarros sob as águas do Arpoador, a uma festa de quinze anos, num luxuoso apartamento de cobertura no Leblon. E Regina estava ali presente, dançando com ele. Passeando de mãos dadas ou olhando para as estrelas no céu, que brilhavam e cobriam a área do nono andar. Depois de um beijo, ela falou:
    - Não sei porque insiste em me chamar de Regina, já que meu nome é Marlene.
    - Gosto de você, mas não gosto do seu nome. Desculpe-me. Não quero que fique zangada, mas pra mim você será sempre Regina - falou Bill sem pestanejar e com um tom jocoso na voz.
    Naquela noite bebeu mais do que podia e, quando chegou em casa, adormeceu vestido. Acordou tarde no domingo e foi curar sua ressaca na praia. As fortes ondas arrebentavam com força e Bill arriscou apenas um mergulho. De repente, teve a impressão que o mar, na noite anterior, participara de todas as festas acontecidas próximas à orla marítima, pois estava de ressaca também. Fez a sua pior partida de vôlei e, em conversa com os companheiros, não conseguiu esconder o mau humor.
    A segunda-feira amanhecera chuvosa. Chegou cedo ao Campo dos Afonsos, como era seu costume. A parte da manhã correra sem maiores incidentes. Na hora do rancho, quase não tocou na comida. Sentiu que estava tenso demais. Recebeu o recado de Regina às 12 horas e, minutos depois, apertava a campainha de sua casa. Ela mesma veio recebê-lo, e parecia mais bonita do que nunca. Assim que Bill entrou na sala, ela fechou rapidamente a porta e o beijou demoradamente. Sua mãe estava no chuveiro e a empregada, na cozinha. Regina arranjou uma desculpa qualquer e saíram mais cedo que de hábito. Pela primeira vez estavam indo para o colégio em carro particular, o "fusquinha" dos pais dela. Chovia muito e Bill dirigia com cuidado, em marcha reduzida. Em cada sinal fechado que parava era beijado por Regina. A ruazinha, para onde o colégio dava fundos, por pouco não estava intransitável. Mais uma hora de chuva intensa, e por certo o carro atolaria. Se estivessem com o jipe, veículo mais apropriado para terrenos acidentados e lamacentos, não teriam problemas. Tudo isso passava rápido pela cabeça de Bill. Depois de analisar os prós e contras, resolveu entrar na rua com atenção, procurando desviar das poças maiores e das partes mais escorregadias. Estacionou um pouco além do local de costume, defronte de uma casa nova ainda não habitada, e ao lado de um terreno baldio. Desligou o motor do carro. Os vidros do pequeno veículo estavam totalmente embaçados. Com o limpador do para-brisas desligado, pouco ou quase nada podiam enxergar ao redor. Agora era Regina quem se mostrava tensa; estática, parecia aguardar o ataque. E, para bem da verdade, não teve que esperar muito tempo. Bill deu a última tragada em seu cigarro e o amassou no cinzeiro. Procurou uma música suave no rádio e diminuiu o volume. Segurou Regina pelos cabelos e a beijou com a fome de quem fez jejum de sexo e amor por muito tempo. Regina correspondeu; também estava em jejum. Também não tinha almoçado e transferiu todo o seu apetite digestivo para o sexual. Pela primeira vez era Bill quem tomava as iniciativas. Ah... como foi bom esperar a hora do bote, pensava ele.  Soltou os cabelos de Regina e acariciou suavemente seu rosto. Desceu vagarosamente as mãos para os ombros dela e logo depois ao busto. Cada mão em cada seio, delicadamente a princípio e, em seguida, alternando toques leves e apertos firmes. Simultaneamente beijava suas faces, seus olhos, nariz, boca e nuca. Percebeu que, quando a ponta de sua língua tocava a orelha de Regina, ela estremecia de prazer. Suas mãos trabalhavam sem cessar e agora abriam os botões da blusa, um a um até o último, que antes estava por sob a saia de pregas do uniforme de Regina. Bill sabia que ainda tinha que rodar muitos quilômetros por aquele corpo, mas não tinha pressa; não estava preocupado, porque sabia também que tinha energia suficiente para tanto. Regina não largava a cabeça de Bill, segurando-a por trás, pelos cabelos, como se em silêncio lhe implorasse mais carinhos. Com sua mão esquerda ele apertava o seio parcialmente escondido e, com a direita, tentava alcançar, pelas costas, o fecho do sutiã. Regina não se alterou. Bill começou a suar. Que diabo de coisa mais complicada, pensava. Suas mãos estavam pesadas, grossas, com pouco tato, por excesso de calosidade devido aos exercícios com as armas e com a mecânica. Ele não queria admitir sua falta de prática com determinadas partes do vestuário feminino. Bill, cada vez mais impaciente, começou a forçar o fecho. Pela primeira vez Regina soltou as mãos dos cabelos dele e, antes que Bill arrebentasse seu sutiã, ela mesma, com um toque suave, soltou o fecho. Ah... enfim a liberdade! - Por que a sociedade tem a mania de prender, coibir, censurar, esconder tudo o que deveria ser livre. E, ao beijar o bico da liberdade, encontrou ele a resposta: é porque as leis da sociedade são  feitas pelos homens, e os homens são uns imbecis. Mas parou logo de pensar; não deveria naquele momento misturar filosofia com anatomia, e continuou a explorar aquele corpo maravilhoso e prenhe de desejo. Fez de sua mão um avião e subiu uma pista de carne farta e macia. Sobrevoou o biquíni e pousou numa pista de grama castanha.
    A chuva diminuíra de intensidade. A rua estava totalmente deserta e o carro envolvido em brumas. Se algum transeunte apressado por ali passasse, dificilmente poderia ouvir os gemidos. Bill fez tudo o que tinha direito. Regina, a princípio passiva, aos poucos foi se soltando e no fim o surpreendeu. Ambos sentiam nos lábios vários sabores. Regina saltou do carro e ficou por alguns momentos sob a chuva. Precisava de uma desculpa para se apresentar no colégio com o uniforme tão amarrotado. As rodas do carro giravam em torno de si sem mover o veículo. Estavam parcialmente submersas em pequenas poças. Bill saltou também e procurou pelo caminho algumas pedras com que pudesse calçar as rodas do carro. Ficou todo encharcado e sujo de barro e lama, e, só assim, pôde disfarçar a grande mancha na perna da calça de seu uniforme.
    Pouco tempo depois, durante a aula, o professor de matemática perguntou à Regina qual era o motivo de seu sorriso, e ela respondeu, depois de vacilar, que estava feliz por ter encontrado a resposta para tão intrincado problema antes que ele terminasse no quadro-negro os cálculos que fazia. Sim, realmente tinha acabado de encontrar a resposta para o grande problema que lhe afligia no momento: como conseguira sair intacta e soubera preservar inviolável algo que lhe era muito caro. Recebeu orgulhosa os parabéns do professor. Sim, podia sorrir à vontade o seu riso de felicidade e profunda paz interior.
    Ah... como são difíceis e espinhosos os caminhos que nos levam à paz. Quantas provocações, insultos, batalhas são travadas até que descubramos, entre outras coisas, o precioso tempo gasto de nossas vidas. Ah... quantas barreiras temos que transpor; quantas picadas temos que abrir em meio a florestas densas e virgens; quantas íngremes montanhas temos que escalar, e tudo isso para que? Para nos levar ao recanto da paz? Mas se este recanto sempre foi ligado ao resto do mundo por uma estrada larga, plana, clara, fresca, calçada, reta e florida!
    Estavam agora os dois no caminho certo, pelo menos assim pensavam. Uma trégua fora proposta de início e a paz fora selada logo após. Passaram a viver momentos felizes. Aquela tarde chuvosa fora decisiva. Era como se os dois fossem lindos corcéis puro sangue e que estivessem sendo preparados para uma grande corrida. Antes, presos ao estábulo, recebendo o tratamento necessário. Em seguida, trotando com rédea curta ou sendo freados ao primeiro perigo. E agora, finalmente livres, galopando em desenfreada carreira em torno da mesma pista. As pequenas viagens ao colégio eram cada vez mais frequentes. O jipe fora para eles apenas um veículo de transporte, mas o pequeno "fusca" era muito mais que isso: um templo sagrado sobre rodas para transportar e abrigar um grande amor.
    As situações foram se repetindo: as mesmas carícias, os mesmos locais. Bill sentia a necessidade de mudar alguma coisa e apenas não sabia ainda o que, e como. Só uma pequena alteração fora observada por ele: Dona Margareth, que costumava sair muito, agora estava presente; era ela quem sempre o recebia na porta. Bill buscava respostas para esta pequena mudança de comportamento e não encontrava. Será que ela sabe do nosso caso? Deve saber. Até quanto? Será que concorda?  Estou sendo aceito pela família? E o Coronel Carneiro, o que pensa ele, se é que pensa ou desconfia? Se sabe, ótimo, pois me trata cada vez melhor; talvez saiba e não queira dar a perceber. De repente Bill se viu cercado, envolvido, sufocado por suas próprias perguntas, e passou a observar melhor o comportamento dos pais de Regina. No Coronel nada notou que lhe chamasse a atenção, mas com dona Margareth alguma coisa estranha estava acontecendo. Estando sempre presente em casa, dificultava um pouco as coisas. E não era só isso: nos momentos em que a filha estava ausente, ela o tratava bem; na presença de Regininha, ficava tensa, nervosa, irritava-se por qualquer motivo, brigava com a filha, chamava a sua atenção por pequeninas falhas, por coisas tolas e banais. Por quê? E para essa pergunta Bill não encontrava uma resposta plausível. Por que dona Margareth tentava envergonhar a filha, diminuí-la, despindo-a de qualidades e vestindo-a de defeitos, ali em sua presença? Bill passou vários dias perguntando à sua imagem, refletida no espelho: - por quê? E só algum tempo depois é que foi encontrar límpida, cristalina, à sua frente, a resposta para todas as perguntas.


















CAPÍTULO 8

Gênova, três meses depois


     Uma série de providências tiveram de ser tomadas para a fuga de Giacomo. Dona Benedetta, sua mãe, conseguira convencer o genro Angelo a transportar seu filho até a fronteira da França em um dos barcos pesqueiros. Esta fora a parte mais fácil da empreitada. Ela conseguiria muito mais que isso, pois sabia que, sem a aquiescência e efetiva colaboração dele, o plano dificilmente teria êxito. Ele era um homem muito rico, poderoso e bem relacionado com as autoridades constituídas. E logo Angelo fazia valer o seu prestígio e usava a força de suas liras como argumento decisivo. Encontrava o homem certo no lugar certo: um alto funcionário do governo fascista, chefe da seção de expedição de documentos. Era um homem rico de ambições e sem nenhuma ideologia política. Ele se encarregaria de forjar, com arte e precisão, toda a documentação necessária. Se Giacomo fosse capturado, seria com outro nome, parentesco e endereço. Tudo seria elaborado com muito cuidado: se ele caísse nas mãos de patriotas franceses, seus antecedentes fascistas não o prejudicariam; se fosse capturado pelos alemães, sua família na Itália não sofreria represálias.
    Dona Benedetta estava feliz; conseguira sucesso inicial para uma das partes mais importantes do plano. Através da Cruz Vermelha Internacional, descobrira não só o paradeiro, como os meios de se comunicar com o Dr. Christian Louch. Ele morara 15 anos em Gênova e fora o médico responsável pelo tratamento de Giacomo. Tornara-se um grande amigo da família. Mesmo depois de seu regresso à França, sua pátria, continuou a manter correspondência, e, por duas vezes que esteve em Gênova, de férias, foi hóspede da família Spata. Dr. Louch era um democrata ferrenho e, tivera discussões acaloradas, mas amistosas, com Giuseppino Spata. Ele estava agora em Paris e prestava serviços à Cruz Vermelha Internacional. Seria ele então o grande contato, sem o qual o trânsito de Giacomo em solo francês poderia ser tremendamente arriscado. Os detalhes finais do plano foram elaborados nos escritórios da indústria pesqueira, no dia 8 de setembro de 1940. Era uma segunda-feira. Do encontro participaram apenas Angelo, Giacomo e dona Benedetta. Fora uma reunião demorada, interrompida apenas, vez por outra, por chamadas telefônicas importantes.
    Era Angelo quem falava no momento em que discutiam de que forma e quando Giacomo deveria embarcar:
    - Sou de opinião de que tudo deverá parecer normal e legal.
    - Como assim?  - perguntou Giacomo.
    - Todos nós devemos correr o menor risco possível. Nada é mais ilegal do que a aparente legalidade.
    - Não sei aonde você quer chegar - falou dona Benedetta.
   - Muito simples: se Giacomo viajar como clandestino, correrá um risco maior; tanto poderá ser descoberto no momento do embarque como durante a viagem, se formos interceptados por um barco patrulha em alto mar.
    - Então, qual seria a melhor solução? - perguntou Giacomo.
    - Legalizarmos sua situação, empregando-o como membro da tripulação. Aí sim, tudo pareceria natural.
    - Já sei, pediria minhas contas ao meu patrão e passaria a trabalhar para você - falou em tom pilhérico.
    - Certo.
    - E como você explicaria o meu desaparecimento?
   - Como marinheiro de primeira viagem, sem a natural experiência para a função, seria mais fácil cair ao mar e não ser encontrado.
    - Você se esquece que sou conhecido como exímio nadador?
    - É claro que não desconheço suas qualidades, mas vamos admitir que você caia ao mar e ninguém o veja cair. Na queda, bate com a cabeça num objeto qualquer - o mar está revolto e a noite escura.  Quais seriam as suas chances?
    - Admiro o seu poder de imaginação para tragédia - falou Giacomo sentindo-se um náufrago em potencial.
   - Só espero que a proteção de San Genaro seja suficientemente capaz de evitar que este ardiloso plano se transforme numa trágica realidade - falou dona Benedetta, fazendo o sinal da cruz.
    Angelo acendeu o seu cachimbo, impregnando a sala com o aroma do mais fino tabaco inglês. Em seguida, presenteou o cunhado com um pacote de cigarros americanos.
    - Vai precisar para a viagem - falou.
    - Acertou em cheio, é a minha marca predileta. Este é o cigarro que eu gostaria de poder comprar. Obrigado.
    Abriu um maço e acendeu um cigarro. Puxou a fumaça com sofreguidão.
    - Além da roupa do corpo, dos documentos e dos cigarros, de que mais meu filho irá precisar? - perguntou dona Benedetta.
    - De francos franceses; muitos francos - respondeu Angelo.
    - Tenho algumas economias costuradas no forro do colchão - falou dona Benedetta.
    - E eu tenho o meu ordenado para receber no fim do mês - falou Giacomo.
    - Eu colaborarei com o resto que for preciso. Entreguem-me todas as liras que possam conseguir, que eu me encarregarei de transformá-las em francos.
    - Quando acha que poderei partir?
    Angelo consultou a folhinha e um gráfico, pendurado na parede, no qual as viagens eram programadas com antecedência.
    - O dia certo ainda não posso precisar, mas garanto-lhes que será em meados do próximo mês. Devo escalar, para essa viagem, o maior e mais veloz barco de minha frota: o "Gina D'Oro".
    - Parece que já temos tudo acertado. Alguma coisa mais a acrescentar, Angelo? - perguntou dona Benedetta.
    - Quantas pessoas sabem a respeito desta fuga? - respondeu Angelo com outra pergunta.
    - Só nós três - respondeu dona Benedetta.
    - E, naturalmente, as pessoas ligadas na falsificação de minha documentação - acrescentou Giacomo.
    - Engano seu, caro cunhado. Apenas uma pessoa tratou de seus papéis, mas já recebeu o suficiente para ignorar para quem está falsificando os documentos.
    - Perfeito! - exclamou Giacomo, cheio de admiração.
    - No próximo dia 1º você começará a trabalhar para mim - finalizou Angelo.
    - Já estou começando a gostar do meu novo patrão - sorriu, arrematando a conversa.
    Giacomo sabia que seu próximo passo seria propor um acordo ao seu patrão, Juliano Morone, Diretor-Presidente da "Fábrica Morone", indústria de porte médio de massas alimentícias. A rescisão de trabalho não seria fácil, e ele sabia. Começara a trabalhar na fábrica aos quinze anos. Percorreu todos os setores da organização, enquanto estudava à noite com afinco. Começou como entregador, e logo depois passou a controlador de estoque. Algum tempo mais tarde era promovido a despachante. Ávido por novos conhecimentos, tentou o setor de vendas e surpreendeu a todos em sua nova função. Um ano depois era elevado à categoria de Gerente do Setor. Sendo muito disciplinado, encontrava tempo para aprender tudo o que dizia respeito ao fabrico dos diversos tipos de massas e a ajudar na parte contábil do escritório. Foi muito bem nos estudos e se formou em Contador com louvor. Aos 22 anos já era o Diretor mais novo da empresa: Superintendente Geral da Contabilidade.
     Morone sabia que depois dele, ali na fábrica, só o seu bambino Giacomo era capaz de conhecer todos os setores da organização. O velho Morone tratava-o como a um filho e tinha grandes planos para ele. Confiava em sua honestidade e grande capacidade de trabalho. A despeito de ter um filho, um cunhado e três genros trabalhando para ele, ali, e que morriam de inveja e ciúme de Giacomo, era para o jovem Contador que Morone tinha grandes planos. O velho industrial fora informado do desejo de Giacomo, no dia seguinte em que este se reunira com o cunhado e a mãe:
    - Com licença, senhor Morone - entrara Giacomo na manhã de 9 de setembro, no gabinete do Diretor-Presidente.
    - Entre, caro bambino. Que deseja?
    - O assunto que me traz aqui é muito delicado.
    - Seja o que for que venha me pedir, já tem a minha aprovação.
    Giacomo, que pretendia dar várias voltas para chegar ao assunto, aproveitou a deixa:
    - Quero minha demissão.
    O velho Morone sorriu, pensando ser brincadeira, mas ao ver a expressão carregada no rosto do rapaz, falou:
    - Não posso acreditar no que estou ouvindo, mas se for verdade o que diz, podemos acertar tudo num só minuto: dou-lhe promoção, aumento de salário e férias. Você deve estar esgotado!
    - Não se trata disso...
    - Se for algum problema com algum parente meu, que eu não possa contemporizar, despeço o cretino já - interrompeu Morone.
    - Bem, é que... - gaguejou Giacomo.
    - Deixe-me adivinhar; foi meu intrigante cunhado Angione. Teve algum problema com aquele "figlio de una putana", não foi?
    - Não, não houve problema algum. Por favor, não diga nada e me escute.
    O velho Morone calou-se e vestiu seu rosto com uma rica máscara de expressões: surpresa, curiosidade, preocupação, etc. Giacomo pigarreou, limpando a garganta, e continuou:
    - Na intimidade de seu escritório posso dizer que o tenho como a um pai e sei que o Sr. me tem como um filho. Como conhecer o filho é um dever paternal, estou certo que me conhece tão bem ou melhor que meu próprio pai.
    O velho Morone, em silêncio, acompanhava tudo com interesse e angustiante curiosidade.
    - Assim sendo - continuou Giacomo - sei que não desconhece o meu grande amor pelo mar. Sabe também que a minha maior decepção foi não ter podido seguir a carreira naval. Por tudo isso foi que resolvi aceitar um convite que há muito tempo meu cunhado me fez e que agora renovou. Não foi o excelente ordenado oferecido que me motivou e, sim, a oportunidade de trabalhar em sua frota pesqueira. Espero que me perdoe, compreenda e aceite este meu pedido.
    - É tudo o que me tem a dizer, meu filho? - perguntou Morone, com a voz abafada de tristeza.
    - Acho que sim.
    - Mesmo não sabendo o quanto vai ganhar, ofereço-lhe o dobro, com direito a férias a partir de hoje. Estou certo que as merece e precisa. Enquanto estiver no gozo de suas férias, poderá pensar melhor no assunto e reconsiderá-lo. Quem sabe voltará atrás?
    - Agradeço tudo o que já fez por mim e o que tenta fazer agora, mas esta minha decisão é irrevogável.
    - Como eu ficarei? Quem eu ponho em seu lugar?
    - Carlo, meu ajudante. Desde que comecei a pensar em sair que o venho preparando. É um rapaz de muito valor e eu o considero apto para assumir o meu lugar a qualquer momento.
    - Há alguma coisa que eu possa fazer que seja capaz de mudar sua decisão?
    - Não - respondeu com firmeza.
    - Então expedirei uma ordem para que seja demitido, pois assim terá direito à indenização. Além do ordenado do mês em curso, mandarei pagar em dobro as suas férias acumuladas. Como o conheço bem, não conto com seu fracasso e, querendo-o como a um filho querido, só posso lhe desejar muitas felicidades. Acontece que um bom filho sempre volta ao lar e aqui o estarei esperando de braços abertos.
    O velho Morone beijou a face de Giacomo e os dois, abraçados, choraram em silêncio por algum tempo.
    No dia 1º de outubro Giacomo iniciava suas novas funções na indústria pesqueira do cunhado. Fazia parte do plano um período de aprendizagem. Ele teria que aprender, em pouco tempo, tudo o que dissesse respeito à organização: da pesca à embalagem, passando pela administração. Durante este tempo, fizera viagens em pequenos barcos. Seu progresso era espantoso. Quem não conhecesse seus objetivos, só poderia pensar que Giacomo pretendia encetar brilhante carreira em seu novo emprego. Diga-se, a bem da verdade, que ele estava realmente gostando do que fazia; ganhara novo ânimo, motivação e energia. Trabalhava com desusado entusiasmo e inédita alegria.
    Até seus parentes e amigos mais íntimos notavam a diferença em seu comportamento; era evidente a sua transformação. Seu temperamento eternamente sisudo foi alterado: estava pilhérico. O cunhado Angelo estava tão entusiasmado com ele que, ao cabo de 15 dias, chamou-o para uma conversa em seu escritório:
    - Sabe que sempre foi do meu desejo tê-lo aqui trabalhando a meu lado, não sabe?
    - Claro, você nunca me fez segredo disso - respondeu Giacomo, procurando adivinhar o motivo da conversa.
    - Não foi surpresa para mim sua rápida adaptação ao serviço, mas devo lhe dizer que estou profundamente admirado por sua eficiência e dedicação, e tenho que parabenizá-lo por tudo isso.
    - Muito obrigado. Só falta dizer que já está pretendendo aumentar o meu salário - pilheriou Giacomo.
    - Falo sério. Você conseguiu, em apenas 15 dias, conhecer a nossa organização melhor que muitos que trabalham nela há anos. Lamento apenas as circunstâncias em que está aqui. Gostaria que você pesasse tudo isso e alterasse seus planos.
    - Não sei onde quer chegar. Prefiro que jogue aberto comigo - falou Giacomo, com a sua conhecida expressão sisuda.
    - Pois bem, vou falar claro - Angelo acendeu o cachimbo, fez uma pequena pausa, e continuou:
    - Você mora na Itália, sua pátria - em Gênova, sua terra natal; tem uma grande e unida família que lhe quer bem, alguns bons amigos que o admiram, um emprego de futuro promissor, saúde, mocidade e lindas garotas. Que quer mais? Você aqui tem tudo! Quero que pense em tudo isso e aceite a minha oferta: diga em que setor quer trabalhar, o que quer fazer, e quanto quer ganhar. Fique conosco de verdade, para o seu próprio bem.
    - Tenho tudo, disse você. Não, meu caro cunhado. Falta-me o principal: a liberdade; o meu direito de expressão, do qual não abro mão. E quero que entenda duas coisas fundamentais: a alegria que demonstro ter no momento é motivada pela proximidade do dia de minha partida e que, se eu não conseguir fugir, será pior pra todos nós. Quero que compreenda, também, que se eu ficar aqui serei impelido a quebrar o meu silêncio e a sair por aí gritando a minha verdade pelos quatro cantos da Itália. Libertarei a minha insatisfação represada e serei o mais ferrenho inimigo do regime imposto. Odeio qualquer tipo de repressão e não suporto ver o sorriso estampado na face de um governo, onde a prepotência e o cinismo comungam dos mesmos ideais. Se eu ficar, meu caro Angelo, não serei a maior vítima, pois estarei lutando pelos meus direitos, mas minha família poderá ser perseguida, e até a sua indústria poderá ser confiscada. E como não desejo prejudicar aqueles que mais amo, é que entendo que devo partir.
    Angelo ouvira tudo no mais profundo silêncio e compreendera. As últimas palavras do cunhado lhe proporcionaram um leve tremor de preocupação. Entendeu, pela primeira vez, a gravidade da situação e prometeu fazer todo o possível para que a fuga de Giacomo fosse coroada do mais pleno êxito. Puxou mais uma baforada de seu cachimbo, e falou :
    - Pode ficar descansado. Daqui a cinco dias você partirá.


CAPÍTULO 9


Novas descobertas


    Bill acabara de deixar Regina no colégio e estava de volta à casa do Coronel, dirigindo o seu templo do amor verde musgo sobre quatro rodas. Mal ultrapassara o portão da garagem e desligara o motor do carro, ouviu dona Margareth lhe chamar da porta principal. Entrou na sala e encontrou a mãe de sua namorada como se estivesse se preparando para sair. Os cabelos estavam bem penteados e, no rosto, podia-se notar uma suave e bem feita maquilagem. Usava um peignoir que deixava transparecer, contra a luz, os contornos de seu belo corpo e, no ar, pairava o perfume discreto de um fino sabonete. De repente Bill teve um pensamento estranho; ele sabia que dona Margareth era uma mulher bonita e atraente, mas era como se alguém lhe tivesse dito aquilo, e ele tivesse acreditado. Era curioso que depois de vê-la quase que diariamente, durante tanto tempo, só agora, naquele momento, era que ele a observava de verdade. Analisava-a como se a estivesse vendo pela primeira vez. E descobria um corpo esbelto e perfumado; um rosto maduro, de expressões jovens; a pele e a silhueta bem conservadas aos 39 anos. Ao sentir que estava também sendo observado, corou. Envergonhou-se de seus pensamentos como se eles estivessem sendo decifrados e entrou na realidade quando ela falou:
    - Há pouco você me olhava como se nunca me tivesse visto.
    - Desculpe - respondeu Bill - eu estava distraído.
    - Distraído comigo ou com o pensamento distante?
    Bill ficou bastante embaraçado, mas ainda falou:
    - É que eu estou um pouco preocupado com a hora. Ainda tenho muitas coisas a fazer no quartel.
    - Tinha, não tem mais. Consegui que o liberassem até o fim da tarde. Preciso de um favor seu.
    - Sendo assim, estou a seu inteiro dispor.
    - Ótimo! Preciso fazer uma visita a uma amiga que mora no Méier, e acho que não vou poder dirigir. Pisei em falso e tenho a impressão que torci o tornozelo.
    - Deveria ter logo feito aplicação de gelo no local - falou Bill, demonstrando certa preocupação.
    - Foi o que fiz e acho que já melhorei bastante. Assim mesmo ainda estou com receio de forçar o pé.
    - Seria interessante também que fizesse uma imobilização para proteger o tornozelo enquanto estiver se movimentando.
    - Tentarei. Vou pôr um vestido e, enquanto me espera, o que deseja beber - café ou refresco?
    - Um cafezinho, obrigado.

    Pouco tempo depois era servido a Bill, pela criada, um café fresco e saboroso. Logo em seguida reaparecia dona Margareth já pronta, e trazendo na mão um pé de tornozeleira.
    - Gostaria que me ajudasse a colocar. Tentei calçar, mas não consegui.
    - Pois não - respondeu o rapaz.
    Ela sentou, tirou o pé direito do sapato esporte que calçava e estendeu a perna em direção de Bill. Ele se pôs de joelhos ao seu lado e, na posição em que estava, pôde ver parte das coxas de Margareth. Percebendo que já estava suando, tentou disfarçar o seu nervosismo. Ela estremeceu ao primeiro toque de Bill em seu pé.  Cócegas ou dor? - pensava o rapaz, que não conseguia entender ainda o que ela realmente sentia. Trêmulo e desajeitado, levara mais tempo que o necessário para calçar a tornozeleira. Trinta e cinco minutos depois estavam chegando no Méier e ele estacionava o "fusca" numa ruazinha tranquila e arborizada. A casa era pequena e sombria e estava envolta por plantas de todos os tipos, do pequeno jardim à minúscula varanda. Ao saltar do carro, dona Margareth falou:
    - Se quiser dar um passeio pelo comércio, esteja de volta dentro de uma hora.
    - Obrigado, madame.
    Nada acontecera digno de registro, durante a viagem de volta. Ao saltar do carro, não fosse a proteção imediata de Bill, que passou o braço em torno de sua cintura no momento exato, Margareth quase caiu ao falsear o pé. Ela apoiou-se em seu ombro e ele ajudou-a a subir os dois pequenos lances da escada que separava o jardim da porta principal da casa. Ao transpor a porta, ela falseou novamente o pé e deu um pequeno gemido de dor. Bill tomou-a nos braços e levou-a até o grande sofá, no centro da sala. Deitou-a com todo o cuidado e retirou a tornozeleira. Não percebeu nada de anormal; nem sequer estava levemente inchado o tornozelo dela. Mesmo assim, fez uma pequena fricção. Afinal, para que serviam as aulas de primeiros socorros que recebera no quartel? Ela estremeceu de novo ao toque de suas mãos; se ele percebeu, não deu a entender. Estava agora bem mais à vontade e desembaraçado; foi até a cozinha providenciar gelo e logo depois colocava uma pequena bolsa de borracha sobre o frágil tornozelo de dona Margareth. Bill se movimentava rapidamente como se não quisesse perder um só minuto. Não olhava nunca em direção do rosto de Margareth, e assim, não pôde ver em sua face uma expressão mista de admiração e desejo.
    - A senhora deve aplicar o gelo durante as primeiras 24 horas e procurar manter o tornozelo nesta posição o maior tempo possível. Agora preciso ir.
    - É pena que tenha chegado a sua hora. Gostaria que me fizesse companhia mais um pouco.
    - Lamento muito também, mas infelizmente não posso. Estou certo de que está bem medicada e que não vai mais precisar de mim hoje.
    - Estou muito agradecida por tudo.
    Ao chegar à porta, Bill ouviu dona Margareth dizer qualquer coisa e virou-se para vê-la.
    - Você foi maravilhoso! - e em seguida, levando a ponta dos dedos à sua boca, ela atirou um beijo para o rapaz.
    No quartel, naquele fim de tarde, Bill não conseguia pensar noutra coisa a não ser em tudo o que ocorrera. E, rememorando todas as cenas, não lembrou de ter visto dona Margareth mancando um só momento, até chegarem de volta à casa.
    Corria o ano de 1964, enquanto Bill servia à Aeronáutica na base aérea dos Campos dos Afonsos. O país vivia momentos de forte tensão; na véspera do dia 1o. de abril, fora debelada uma grande crise político-militar. As Forças Armadas estavam divididas no que fora denominado, depois, de esquerda e direita. A facção contrária ao governo civil constituído saíra vitoriosa. Fora organizada uma Junta Militar para assumir provisoriamente o governo da nação. O presidente nem sequer fora deposto, pois antes do momento final, abandonara o país. Depois de conseguir asilo político, viajou para um país vizinho. Muitos, depois, elogiaram o seu gesto heróico - a renúncia também pode ser um ato de heroísmo. Em decorrência de sua providencial saída, conseguira evitar derramamento de sangue entre irmãos. O povo, de temperamento reconhecidamente pacífico, através da história, acompanhava à certa distância o desenrolar dos acontecimentos. Afinal, um povo que julga ter, no mundo, o melhor carnaval, o melhor futebol e a melhor mulher, não precisa ser necessariamente político. Os dias iam passando e tudo voltava à normalidade na medida do possível.
    O Coronel Carneiro, por força das circunstâncias, viajava muito. E, enquanto ele tratava e protegia os interesses do país, Bill, seu ordenança, tratava e protegia os interesses de sua família.
    Bill e Regina continuavam firmes no namoro; sem brigas ou qualquer outra novidade digna de registro. Suas carícias só iam até onde a sociedade permitia; o santuário sagrado continuava inviolável, muito embora em sua porta, muitos dedos aflitos e boca sedenta tenham tocado. E toda aquela imensa aflição continuava presa e limitada ao interior do pequeno automóvel.
    O relacionamento de Bill com dona Margareth pouco se alterara. Ela continuava cortês e atenciosa com ele na ausência da filha, e impaciente e mal humorada na presença dela. Bill não notara nela nada que pudesse chamar realmente sua atenção, a não ser, vez por outra, alguns furtivos olhares. Não entendia ou tinha medo de entender, mas o certo era que não desejava fazer um julgamento precipitado. Se houvesse maldade em dona Margareth e aquele seu comportamento provocante fosse uma forma de convite, ela que o mandasse assinado e dentro de um envelope com o nome do remetente. Mas não teve que esperar muito tempo para dizimar sua dúvida. Dona Margareth reclamara de vir sentindo, já algum tempo, leves tonteiras e, com a ausência do marido, que viajara para Natal, pedira a Bill que a levasse ao médico. Durante o trajeto, tanto de ida quanto de volta, ela se mostrara bem disposta e conversara bastante sobre diversos assuntos. Ao saltar do carro, já em casa, ela sentiu de novo uma leve tontura e se apoiou no ombro de Bill. Regininha ainda estava naquela hora no colégio e a empregada tinha saído. Margareth pedira a Bill que ficasse ali com ela até que uma das duas chegasse. Ele sentou no sofá e começou a desfolhar uma revista enquanto ela se retirou da sala para mudar de roupa. Minutos depois voltava vestindo um provocante peignoir e trazendo, numa pequena bandeja, um copo de refresco de maracujá. Sentou-se no sofá bem próximo a Bill e falou:
    - Maracujá para você. Gosto de vê-lo bem calmo.
    Bill segurou o copo e agradeceu.
    - Muito obrigado pelo refresco. Está se sentindo melhor agora?
    - Estou. O médico me disse para não me preocupar. Constatou apenas uma ligeira queda de pressão. De que vamos falar agora?
    Margareth chegou mais próximo de Bill e o copo tremeu na mão do rapaz. Ele estava realmente embaraçado.
    - Poderíamos falar sobre sua filha, se não se importa.
    No rosto de Margareth, uma ponta de decepção.
    - Se é do que deseja falar, sou toda ouvidos.
    Bill perdeu alguns segundos, procurando as palavras certas.
    - Penso que sabe que amo sua filha e que estamos namorando já há algum tempo...
    - Se a ama, realmente eu não sei - interrompeu Margareth - só no tempo e momento oportunos é que poderá nos provar. Quanto ao namoro propriamente dito, é claro que sempre soube; já o tinha previsto antes mesmo de começar.
    - Estou ficando cada vez mais confuso...
    - Como assim?
    - Sabe do nosso caso, permite o nosso namoro e nos dá a impressão de não aprová-lo.
    - E quem lhe disse que eu dei minha permissão?
    - A senhora mesma, ainda há pouco, disse que sabia de tudo e nunca nos proibiu...
    - Proibir é uma coisa, permitir é outra. Para que se possa proibir ou permitir algo, é preciso que se tome conhecimento oficial do fato; vocês não me participaram o namoro, portanto, eu o ignorava.
    - E agora que sabe, qual é a sua opinião?
    Margareth respondeu a pergunta de Bill com outra pergunta:
    - O que levou você a crer que eu não o aprovo?
   - Suas atitudes estranhas - respondeu prontamente. A senhora está sempre bem humorada e atenciosa comigo quando sua filha está ausente e muda totalmente de comportamento quando estamos todos juntos...
     - Já lhe ocorreu que isso poderia ser ciúmes?
    - É natural o seu cuidado - falou rapidamente - mas acontece que as minhas intenções...
    - Quem falou em cuidados? - interrompeu Margareth. Eu falei ciúmes, idiota!
    Margareth colocou sua mão na coxa de Bill e juntou o seu corpo ao dele. Em seguida, falou com a sua boca próxima à boca do rapaz, com uma voz quente e afetuosa.
    - Eu sinto ciúmes de você. Eu o quero também para mim.
    Bill perdeu o controle e como um animal enfurecido atacou a sua presa com um bote felino. Derrubou-a sobre o sofá e atirou-se por cima. Beijou-a na boca, com sofreguidão, enquanto suas mãos a apertavam com força. A princípio Margareth correspondera, mas, aos poucos, foi se controlando e acabou sorrindo.
    - Que houve? - perguntou espantado. O que está acontecendo? O que fiz de errado?
    - Você reagiu como eu esperava que reagisse: como uma criança grande.
    - Eu não sou criança.
    - A princípio passou séculos para entender o que estava estampado no meu rosto todo o tempo, e quando declaro meus sentimentos abertamente, você perde imediatamente o controle. Num pequeno espaço de tempo você consegue ser inocente, tímido e selvagem!
    - Não era isso que você queria, que eu a beijasse?
    - Claro, meu amor - falou com voz carinhosa - e estou muito feliz com isso. Tanto a inocência como a impetuosidade são próprias de sua idade. Você não é nem mais nem menos do que um jovem homem. Um forte e belo jovem homem, por sinal!
    - Não brinque comigo!
    - Falo sério. Você necessita receber duas coisas que a minha filha não está ainda preparada para lhe dar: experiência e amor absoluto e total. E eu vou lhe dar tudo isso, meu bem.
    Margareth beijou-o na boca ternamente, acariciando seu rosto, seus cabelos, seu peito. Ele se deixou levar, inebriado por uma onda quente de ternura e desejo. As mãos de Margareth eram bem diferentes das de Regina: maiores e mais experientes. E elas percorreram lentamente seu corpo até pousar suavemente no seu orgulho. Ela o segurou com a firmeza de quem se apresenta a alguém que não se conhece. Bill estremeceu de prazer e sentiu que já estava no ponto de explodir, de voltar à carga. Seu espírito selvagem ressurgia velozmente quando ela sussurrou ao seu ouvido:
    - Não aqui, nem agora. Tudo tem o seu devido tempo e lugar. Aprenda a esperar.
    Nem bem um minuto se passara quando a campainha da porta tocou. Bill, suado, com os cabelos em desalinho e ainda excitado, levantou-se e caminhou até a porta. No curto trajeto pôde voltar ao seu estado físico normal. O susto tivera o efeito de uma ducha fria. Abriu a porta e deu de cara com Regininha que, ao vê-lo àquela hora ali e naquele estado, e vendo também a sua mãe estendida no sofá, exclamou assustada:
    - O que é que está acontecendo aqui?
   - Sua mãe está passando muito mal - respondeu Bill, procurando dar à voz um tom mesclado de naturalidade e preocupação.

CAPÍTULO 10
Paris, outubro de 1940.

    - Pela última vez, Armand: quem lhe entregou o pato com o explosivo dentro? - perguntou o frio oficial da Gestapo.
    - Pelo amor de Deus, acredite em mim! Já disse tudo o que sabia - respondeu o cozinheiro.
    - Mas você nos disse que já o tinha visto, não?
    - Não, eu não disse isso. Jamais o vi, não sei de onde veio e nem sequer o vi entrar na cozinha.
    - Mas ele chamou pelo seu nome, não foi?
    - Certo. Naquele momento tive a impressão que ele me conhecia.
    - Por quê?
    - Pelo tom íntimo e afetuoso com que falava.
    - O que aconteceu então?
   - Já contei tudo dezenas de vezes, em seus mínimos detalhes. Por favor, não me faça mais passar vergonha.
    - Um efeminado não costuma ter vergonha, Armand. Procure lembrar da cena mais uma vez. Afinal, recordar um agradável momento só deveria lhe dar prazer, não concorda?
    Armand controlou os soluços, mas não pôde evitar que uma lágrima ou outra deslizasse por suas faces. Com dificuldade começou a falar:
          - Eram quase 21 horas e eu estava só na cozinha. Acabara de preparar tudo, enquanto os dois garçons estavam servindo no salão os últimos pedidos. Faltavam servir duas mesas. O pato estava pronto e arrumado na travessa, sobre o pequeno balcão da cozinha. O movimento fora fraco naquela noite e por isso pretendíamos fechar mais cedo.
    - O que você estava fazendo naquele momento? - perguntou o oficial, interrompendo a narrativa.
    - Estava arrumando as latas de mantimentos e os frascos de temperos nas prateleiras, numa pequena sala contígua.
    - Continue, e depois?
    - Foi quando senti um bafo morno no meu pescoço e ouvi uma voz quente e macia, que me chamava pelo nome. A princípio não pude vê-lo direito, pois ele me abraçava por trás enquanto falava e me acariciava levemente. Confesso que de início fiquei sem ação, imobilizado, mudo. Só aos poucos fui tomando consciência da situação. Não posso negar que gostei do rapaz, de seu jeito terno, de sua voz tranquila...
      - Como era o rapaz?
    - Tinha um corpo musculoso, os cabelos negros encaracolados, olhos castanhos claros, mãos grandes e aveludadas, mas firmes. Era um pouco mais baixo do que eu, mas achei que isto não tinha a menor importância. Afinal...
    - Algum sinal característico? - interrompeu o oficial, mais uma vez.
    - No rosto, não. No corpo eu não pude ver, ele estava todo vestido - falou com melancolia na voz. Mas tinha uma pele tão...
    - Chega, Armand. Ninguém poderá descrever um homem melhor que você, "queridinho". Agora queremos ação, muita ação. Por favor!
    - Ele fechou a cortina que separava a saleta da cozinha, para que ninguém nos visse, e continuou a falar e a me acariciar mais ousadamente. Disse que me conhecia de vista há algum tempo e que simpatizava muito comigo. Perguntou se podia passar aquela noite em meu quarto; alegou que estava sem emprego por falta de documentos, que não tinha para onde ir e que estava esfomeado. Pediu-me que levasse algo para comermos. Perguntou a hora que eu deveria sair, disse que sabia onde eu morava e que iria me esperar na porta do meu prédio. Falou que seria melhor sair pelos fundos, pois não deveria ser visto ali, naquela hora; achava arriscado demais frequentar locais públicos, sem documentos. Pegou restos de comida de uma travessa servida, sorriu e saiu pela porta dos fundos, mastigando uma coxa de galinha. Eu ainda vi seu vulto, no escuro da noite, escalando o pequeno muro no fim do terreno que faz divisa com um prédio abandonado.
    - Quanto tempo durou esse emocionante colóquio? - perguntou, com ironia, o oficial inquisidor.
    - Não mais que quatro minutos, presumo. Foi tudo tão rápido - falou em tom de lamento.
    - Não viu nem ouviu mais nada que pudesse lhe chamar a atenção?
    - Enquanto falávamos, ainda na despensa, ouvi ruídos na cozinha mas não me preocupei. Achei que deveriam ser os garçons com as bandejas.
    - Mais algum detalhe?
    - Sim, claro. Percebi, assim que o jovem partiu, que o pato já não estava mais no balcão. Deveria estar sendo servido naquele momento.
    - Sei que é tolice lhe perguntar, mas... Como ele disse que se chamava?
    - Quando eu perguntei seu nome, ele sorriu com sua boca bem feita, de dentes alvos e perfeitos, e me disse que gostaria que eu lhe arranjasse um. Disse que ficaríamos mais íntimos assim, mais nós - falou emocionado por uma lembrança terna.
    - Terminou? - perguntou o oficial, emitindo desprezo na voz.
    - Ah... sim - falou como se tivesse lembrado de algo importante - mal o jovem acabara de pular o muro e "bum", a explosão. Fiquei gelado e quase desmaiei. Afinal de contas foram duas emoções muito fortes para uma noite só.
    - Muito bem. Como já esperávamos, nada de novo foi acrescentado nesse seu depoimento. Perdemos apenas o nosso tempo e em troca disso você perderá sua vida; não só você, como seus dois comparsas também.
    - Eu juro que falei toda a verdade!
    - Por falta absoluta de provas concretas e por não termos encontrado uma nova pista até agora, seremos obrigados, infelizmente, a arquivar temporariamente este caso. Atentados são praticados quase que diariamente e não podemos perder tempo com um caso isolado, por mais lamentável que ele seja. Por tudo isso, sentimos muito informar que vocês vão ter que morrer para que o caso não fique sem solução.
    - Mas se não ficou provada a nossa culpa, porque vão nos sacrificar? - perguntou Armand, apavorado.
    - Também não foi provada a inocência de vocês e alguém terá que pagar para que crimes como este, covarde e brutal, não venham a se repetir - falava o oficial com voz firme e pausada. Então, "queridinho" Armand, acreditava mesmo ser capaz de fazer um jovem e bonito rapaz, como disse, se apaixonar por você? Você, bicha velha, feia, gorda e enrugada, se acha capaz de conquistar um príncipe encantado que tem o poder de aparecer à sua frente, no meio da noite, como num passe de mágica? Um jovem corajoso que arriscou a própria vida aparecendo, sem documentos, num local público sabidamente frequentado por oficiais da Gestapo?! Quer que acreditemos nisso, nessa estória fantástica?  Hein, bicha imunda e covarde?
    Armand ouvia tudo entre soluços.
    - Você nos deu muito trabalho, sabia, efeminado escroto? Fez com que fizéssemos desfilar à sua frente uma infinidade de jovens com traços físicos semelhantes ao do seu príncipe. Covardemente você nos apontou um deles. Um inocente que só não foi morto em seu lugar, porque tinha sido detido por nós um dia antes do atentado. Você é um anormal velho, feio, covarde e pelancudo. Acusou um irmão inocente para salvar as suas pelancas. Você vai morrer, antes de tudo, por não merecer viver.
    O oficial fez uma pequena pausa para acender um cigarro e logo depois continuou:
    - Ainda quer se salvar, ou prefere continuar a nos fazer de idiotas? Quer contar agora a verdade, ou quer que acreditemos na sua estória encantada?  Vamos, responda! Você tem um minuto. Esta é a sua última chance.
    Armand foi se controlando aos poucos. Engoliu o choro e enxugou os olhos com as costas da mão. Respirou fundo e começou a falar num tom de voz diferente, mais grosso e firme:
    - Se acusei um jovem inocente, num momento de fraqueza, muito me arrependo disso. Peço perdão, não a vocês, que nem sequer são humanos, mas ao meu Deus. Fraquejei depois de horas intermináveis de torturas e de dores insuportáveis. Não foi da morte que tive medo, mas da dor intensa no meu corpo dilacerado. Não suportava mais os maus tratos, fome, sede e humilhação. Agora não; tudo passou, me sinto outro homem. Fiquem sabendo que o que contei foi a verdade; antes tivesse mentido, pois teria mais sabor. Se soubesse agora os nomes dos responsáveis, nada lhes contaria; teria então um motivo a mais para me orgulhar, para sentir prazer e rir de vocês.
    Os olhos de Armand foram adquirindo um brilho estranho.
    - Sou um homossexual e não me envergonho disso, pois sei que mesmo assim sou, antes de tudo, um ser humano. E vocês, o que são? Para mim não passam de uns animais. Antes de ser tudo o que disseram que sou, me orgulho de ser francês. Só quem tem o privilégio de nascer nesta terra, livre e maravilhosa, é que pode compreender a emoção que sinto agora. Estou feliz em poder dar a minha vida pela liberdade e por meu país. Podem me matar, e que Deus os perdoe.
    A poucos quilômetros dali, num prédio em ruínas, naquela hora, outro grande atentado contra os nazistas era arquitetado. Um grupo de oito jovens, todos maquis, discutiam detalhes do plano. Pierre comandava o grupo.
    Hans, o oficial nazista, membro da Gestapo, que fora vítima do atentado e em consequência perdera a visão, conseguira ser designado para chefiar o inquérito sobre o caso do "pato explosivo". Ele mesmo fazia questão de executar pessoalmente os tipos de tortura que criava com prazer. O interrogatório se estendera por três dias e três noites consecutivas, com pequenos intervalos para descanso. Durante todo esse tempo, os três implicados no caso sofreram os mais variados tipos de tortura; tão perversas, aberradoras, sórdidas e desumanas, que jamais uma mente sadia seria capaz de inventar.
    Mas o oficial Hans não estava ainda satisfeito. Ele mesmo fez questão de sugerir três maneiras diferentes para executar os prisioneiros. Durante a noite, aos berros em sua cela, estrebuchando no chão e babando, morria Victor, o garçom, envenenado pelo fausto banquete que lhe serviram como jantar; às dez horas do dia seguinte, no pátio interno da prisão, morria Philipe, o proprietário do restaurante, diante de um pelotão de fuzilamento; na mesma hora, a poucos quilômetros de Paris, dentro de um pequeno galpão de madeira, morria Armand, o cozinheiro, explodindo com um banana de dinamite acesa e enterrada em seu ânus.


CAPÍTULO 11
Entre duas bandeiras

    Toda a trama girava em torno da colonização branca no oeste selvagem dos Estados Unidos. O romance, como a maioria do gênero, era cheio de lugar comum, mas mesmo assim Bill divertia-se lendo-o. Embora a vida no quartel fosse agitada e seus dias de folga bem aproveitados entre a praia, os esportes, as festas e as garotas, Bill ainda encontrava tempo para ler. Estava atualizado com todos os assuntos - da política internacional ao futebol, passando pela economia e pelas artes. Escolhia, nas revistas e nos jornais, os assuntos mais palpitantes e costumava estar sempre lendo um bom livro. Era, em síntese, do tipo de leitor que não tendo nada melhor com que passar o tempo, lia até estórias em quadrinhos.
    Aquele romance lhe tinha sido presenteado por uma garota muito especial e, embora fosse do tipo água com açúcar, ele o estava lendo para prestigiá-la. Naquele momento lia o capítulo em que um bandido, depois de atirar num outro, riscava o cabo de sua arma para indicar, com aquela marca, o número de pessoas que abatera. Quando chegou nesse trecho da estória começou a rir. Ele estava prestes a abater mais uma de suas vítimas, só que ele usava outro tipo de arma, pois era um herói da paz e do amor. Costumava travar os seus duelos entre almofadas, colchões e tapetes e, ao lembrar do número de mulheres que conseguira abater com sua arma, imaginou como estaria ela agora, se a tivesse marcado com riscos. Não, ele usava outro método para registrar as suas vitórias; num pequeno caderno com a capa preta de couro e com a inscrição "Bill" gravada em dourado, costumava escrever o nome de cada mulher com quem iniciava um caso amoroso. Só depois de abatê-las, de tomar posse definitiva e total, é que riscava o nome de suas vítimas com um lápis vermelho.
    Ao completar quatorze anos seu pai o levara a passear no bairro do Catete. Entraram num grande casarão colonial todo decorado à moda antiga: na sala principal, um pequeno bar em madeira de lei e uma grande vitrola automática, que funcionava mediante a introdução de pequenas fichas de metal num orifício colocado no centro do aparelho; das portas e janelas caiam pesadas cortinas; poltronas e almofadões em toda a volta da sala compunham o ambiente. O chão, de tábuas corridas, estava muito bem encerado. Predominava a luz vermelha no ambiente e o mais importante estava ali à sua frente: lindas mulheres, provocantemente vestidas e bem maquiladas, sentadas como se estivessem aguardando o início de uma grande festa. Seu pai lhe dera, antes de sair, algumas explicações e conselhos:
    - Você já é um homem e precisa aprender a conhecer as mulheres. Todas essas que você vê aqui estão preparadas para lhe oferecer experiência, amor e sexo; conquiste a que mais lhe agradar e aproveite ao máximo. Tenho um compromisso agora e devo me ausentar por umas duas horas; passarei depois aqui para buscá-lo. Fique à vontade. Saio confiante e certo de que mais tarde só terei com que me orgulhar de você. Depois, se desejar, poderemos conversar sobre esta sua primeira experiência.
    O pai de Bill, antes de sair, deixou alguns trocados com ele para alguns "drinks" caso precisasse se desinibir. Só uma mulher, a mais nova, sorria e olhava discretamente para o jovem rapaz. Bill gostou dela. Conversaram, dançaram e desapareceram da sala por mais de uma hora. Mais tarde, ao ver o pai de volta, ele sorriu e foi em sua direção.
    - Aqui está o seu troco - disse Bill. Eu me senti bem à vontade e por isso não precisei beber bebida alcoólica, tomei apenas um refrigerante; minha companheira é que me pareceu um pouco nervosa e me pediu que lhe pagasse um drink - completou o rapaz. O pai, ao ouvir aquilo, não pôde deixar de sorrir.
    Bill estava agora olhando a primeira página do pequeno caderno e não conseguia ler o primeiro nome de mulher por ele ali escrito. Sabia, de lembrança, que era Mônica. Fora ela a responsável pela quebra de sua virgindade e, por isso, jamais poderia esquecer aquele nome. Soubera, pouco tempo depois de sua aventura, por um amigo mais velho e experiente, que o pai teria pago por seu prazer, e tão decepcionado ficou ao descobrir a verdade que, com raiva, riscou de preto aquele nome. Vai ver que Mônica nem era o seu verdadeiro nome - pensou.
    Fora aquele o primeiro e último caso que tivera com uma profissional.  Bill só escrevia em seu caderno nome de mulheres que conseguia conquistar por amor ou por atração física recíproca, única e exclusivamente, por seus méritos pessoais. Durante o tempo que morou no Encantado, poucos nomes pôde registrar no caderno. A não ser o de Lúcia, sua vizinha, os demais eram de humildes empregadinhas domésticas, muitas das quais conquistadas entre a pia e o fogão de sua própria casa. Lúcia fora um caso rápido e especial. Viera morar no bairro com seus pais, vinda do interior do Estado. Chegara grávida, aos quinze anos, vítima de um rico fazendeiro, dono de muitas terras e ex-patrão de seu pai. O próspero latifundiário tivera que despender uma alta soma, não só para abafar o escândalo, como também para enviar para bem longe a prova contundente de seu erro. Com o dinheiro recebido, os pais de Lúcia puderam comprar a casa ao lado da de Bill. Aos primeiros indícios da gravidez ela casava com um motorista de ônibus da empresa em que seu pai arranjara emprego como trocador. Bill deitara com ela algumas vezes numa casa em construção, no final de sua rua. O rápido caso só foi interrompido quando ele percebeu um pequeno volume a se formar na alva barriguinha de Lúcia. Na época, tinha quinze anos também e passou algumas noites sem conseguir dormir direito. Passou a se sentir um pai em potencial e só conseguiu descansar quando soube de toda a verdade.
    Com menos de dois anos como morador da Zona Sul Bill já tinha conseguido riscar de vermelho, em seu caderno, o dobro de nomes de mulheres escritos em toda a sua curta vida amorosa no Encantado. Três nomes ainda estavam ali para serem riscados. Margareth era um deles.
    A vida no quartel seguia o ritmo normal, e para Bill sempre fora mais suave que para os demais. O Coronel Carneiro gozava de muita autoridade e prestígio e Bill era o seu "peixinho" ali. Só uma vez teve que ficar de prontidão; foi quando correu uma notícia de que no dia seguinte haveria uma passeata monstro, organizada por estudantes e artistas. Todos no quartel tiveram que ficar de prontidão durante 24 horas.
    O namoro com Regina continuava sem novidades. Resumia-se nas pequenas viagens de ida da casa dela para o colégio. Com Margareth havia uma pequena diferença; quase vinte dias já se tinham passado desde que ela lhe revelara suas reais intenções e já se podia sentir, no ar, uma suave atmosfera romântica. A partir do momento em que ela colocara a nu seus sentimentos, diante dos olhos admirados do jovem recruta, fortuitos beijos, leves toques de mão e rápidos abraços vinham acontecendo entre os dois. Aquele envolvimento crescia como uma linda sonata: lenta e ritmadamente. Margareth já lhe tinha dado a certeza de que seria para ele uma excelente professora. Bill aprendera a primeira lição: como arder de desejos e saber controlar os impulsos. Ela agora era quem estava sendo vítima dos próprios ensinamentos pois, vez por outra, deixava escapar seu auto domínio; Bill, por duas vezes, tivera que  chamar a atenção para a presença da criada e para o horário de chegada de Regininha. Tanto ele sabia que a imensa ansiedade era recíproca, como tinha consciência de que Margareth aguardava a melhor oportunidade. Bill gostava da espera e acumulava suas energias para a batalha decisiva. Era estranho como conseguia se sentir bem diante da enorme expectativa. A demora - pensava ele - só poderia valorizar o sublime ato da entrega e da posse. Ah! como seria bom receber carinhos e ensinamentos de uma mulher madura, bela e cheia de amor para dar. E como ele ansiava em surpreendê-la, mostrando-lhe que não era tão cru como ela o tinha julgado. Ele estava confiante, pois sabia que depois só teria motivos com que se orgulhar de sua virilidade e de seu órgão sexual bem dotado e insaciável.
    Tudo começou numa sexta-feira e naquele dia não vira Regina nem Margareth. Os colégios não funcionaram. Estava quase no fim do expediente, recebendo instruções a respeito de motores de avião, quando o sargento instrutor lhe chamara para uma conversa em particular:
    - Ao ser dispensado, depois da revista, apresente-se na casa do Coronel Carneiro - dissera ele.
    Seu coração disparou. Quem o estava chamando - Regina ou Margareth? Uma hora depois estava apertando o botão da campainha da porta de seus dois amores. Margareth veio recebê-lo. Estava vestindo uma calça de brim justa e uma blusa leve e decotada. Parecia mais jovem com os cabelos soltos e sem maquilagem. Bill deixava sempre para ela as iniciativas, pois sabia que uma atitude mais indiscreta da parte dele, poderia por tudo a perder. Margareth beijou-o na boca demoradamente que, entendendo que o sinal verde estava aberto para ele, correspondeu ao beijo com ardor. Depois de um momento intenso de frenesi, ela falou:
    - Precisamos ter cuidado! Regininha deve chegar a qualquer momento e eu não gostaria que ela o visse aqui.
    - Por que me chamou a esta hora? - perguntou Bill.
    - Estava louca de saudades!
    - Eu também, mas por que não me chamou mais cedo?
    - Minha filha não teve aula hoje e eu só pude ligar para o quartel depois dela ter saído para ir ao dentista...
    - E então resolveu me ver por um minuto?
    - Sei que um minuto é pouco, mas acha que desejar vê-lo não chega a ser um motivo suficiente?
    - Bem..., claro..., isto é - Bill procurava as palavras certas - eu pensei que...
    - Houvesse um outro motivo para chamá-lo? - completou Margareth.
    - Sim... isso mesmo.
    - E há. Gostaria de lhe pedir um favor, se fosse possível, é claro...
    - Pode pedir...
    - Minha filha Rosa e meu genro estiveram ontem à noite aqui e me entregaram as chaves de seu apartamento no Méier. Eles viajaram hoje cedo para Pernambuco, de avião. Foram passar as férias em Olinda. Rosa me disse que provavelmente teria que deixar o apartamento desarrumado e me pediu que fosse até lá para dar um jeitinho para ela. Achei que este fim de semana seria o ideal para isso, pois Regininha irá passá-lo com os tios, na Urca, e meu marido, como sabe, está viajando e só deverá estar em casa no domingo à tarde. Como domingo é o dia de folga da nossa empregada, resolvi dar a ela o sábado, também. Como vê, tenho amanhã o dia todo livre para mim.
     - Muito bem, e aonde eu entro nessa estória?
    - Como sei que você vai estar de folga neste fim de semana, pensei em contar com você para me ajudar na faxina...
    - Basta me dar o endereço e dizer a hora que deverei chegar, e estarei amanhã pontualmente no local, com um esfregão na mão.
    Bill chegara ao endereço na hora marcada: oito da manhã em ponto. A rua era tranquila, mas o edifício ficava próximo à esquina da principal rua do Méier. Era um prédio antigo de três andares, tendo dois apartamentos em cada. Rosa morava no 302, que ficava no terceiro andar, de fundos, num prédio que não tinha porteiro nem elevador. Bill não estava bem disposto; tivera um sono agitado e acordara várias vezes na noite anterior. Pela manhã, bem cedo, depois da ducha fria, tomara apenas uma xícara de café puro e forte. No ônibus, a caminho do Méier, fumara mais cigarros do que estava habituado e sentia agora na boca um gosto amargo e a saliva pastosa. Subiu os três lances de escada de uma só vez e, ao chegar ao terceiro andar, suava muito e sentia uma pequena taquicardia. A porta estava apenas encostada, como havia sido combinado, e ele ao entrar teve o cuidado de passar a chave. Chamou por Margareth e ouviu a voz dela vindo de um dos quartos. Passou pela saleta de entrada e pela sala sem observar o quanto estavam desarrumadas. Entrou no quarto e encontrou Margareth forrando a cama. Ela estava com a mesma calça justa que usara na noite anterior. A blusa era de malha de algodão e os seios, soltos sob ela, mostravam salientes as suas extremidades. Parecia mais jovem ainda, descalça e com os cabelos para trás presos por uma fita cor de rosa. Estava com a pele fresca como se tivesse passado a noite dentro de uma banheira. Beijaram-se.
    - O que há com você? - perguntou ela. Parece que viu um fantasma!
    - Dormi pouco, fumei muito, estou em jejum e subi as escadas correndo para vê-la.
    - Trouxe roupa para mudar?
    - Esqueci, mas estou de short por baixo da calça...
    - Pois bem, vou preparar-lhe um bom banho morno na banheira e enquanto você se refaz, preparo também um café reforçado.
    Poucas vezes em sua vida Bill tomara um banho morno. Só nas poucas vezes em que adoeceu - pensou - e ele teve uma infância muito sadia. A água estava numa temperatura agradável. A banheira era grande e ele podia se esticar todo, deixando o corpo submerso na perfumada espuma. Pensava em Margareth e sabia que aquele seria o dia "D". O grande momento não deveria tardar e ele gostaria de saber quando seria. Ela devia estar com tudo planejado. A arrumação do apartamento só devia ter sido um pretexto para estarem juntos. Tudo deveria parecer espontâneo, natural, pois Margareth era uma grande mulher, sem dúvida! E, enquanto absorto pensava, sentiu uma pequena aragem vinda da porta. Olhou e deu com os olhos em Margareth, que encostada à soleira o observava.
    - Foi boa a ideia? - perguntou ela.
    - Maravilhosa! Senti que estava precisando. É muito reconfortante...
    - E calmante - completou ela. Você estava cansado e muito tenso. Precisa agora é de se alimentar. O café já está pronto.
    - O difícil vai ser eu encontrar coragem para sair daqui.
    - Eu vou lhe ajudar.
    Margareth tirou de um pequeno armário um vidro de shampoo oleoso e despejou uma parte do líquido numa esponja macia. Sentou num pequeno tamborete junto à banheira e começou a esfregar Bill com a esponja. Fez com que ele ficasse de costas e começou a massagem pelos pés. Lentamente foi subindo, passando pelas pernas, coxas, nádegas, costas e demorando-se mais um pouco no pescoço e na cabeça. Bill, de olhos fechados, tinha a sensação de estar flutuando no espaço e quase adormeceu. A pedido dela, virou de frente. Margareth voltou aos pés e foi subindo devagar. A esponja agora deslizava entre suas coxas, tocando de leve suas partes mais sensíveis. A calmaria passara. O mar estava, naquele momento, revolto. Fortes ondas iam e vinham cada vez mais agitadas. Bill era um frágil barco a pique de naufragar. Agarrou-se ao pescoço de Margareth com a agonia de um náufrago preso a um tronco de madeira. Ela o beijou na boca com ternura e o despertou do pesadelo com sua voz macia:
    - Primeiro vamos ao café.
    Entregou uma grande e felpuda toalha a Bill e saiu do banheiro sem olhar para trás.
    O desjejum foi reforçado: chocolate, café, ovos, geléia, presunto, queijo e torradas. Bill comera de tudo com disposição.
    - Deite agora ali naquela poltrona - falou Margareth - pois só vou precisar de toda a sua energia mais tarde. Descanse agora enquanto arrumo os armários, gavetas e prateleiras. Depois venho lhe chamar para me ajudar no pesado.
    Bill deitou-se na poltrona da sala e enquanto fumava, desfolhava uma revista. Alguns minutos depois, dormia um sono profundo e sereno, com a revista aberta em seu peito.
    Às três horas da tarde o apartamento estava todo limpo e arrumado. Bill limpara os vidros das janelas e ajudara a Margareth na lavagem da cozinha e do banheiro. Os dois, de short, sentados no tapete da sala conversavam, riam e brindavam o final dos trabalhos com taças de champanhe.  Margareth falou:
    - Agora é a minha vez. Vou tomar uma boa ducha para ficar cheirosa para você.
    Da sala Bill ouvia a voz de Margareth cantarolando sob o chuveiro. Impaciente com a demora, foi em direção da voz, segurando com uma das mãos a garrafa de champanhe. A porta do banheiro estava apenas encostada e ele entrou. Através da fina cortina de plástico rosa, ele pôde ver a silhueta de Margareth. Abriu a cortina e, pela primeira vez, a viu totalmente nua. Seu corpo era esplêndido! Seus seios pequenos tinham o formato de manga espada, e ainda estavam rijos; as nádegas eram redondas e fartas; os olhos eram castanhos claros, o nariz levemente arrebitado e a boca carnuda. Bill, extasiado e enrijecido, despiu o short antes de abrir a cortina. Margareth continuava a se ensaboar como se não estivesse sendo observada. Também não demonstrou nenhuma alteração quando ele entrou no boxe e tirou o sabonete de suas mãos. Bill esperou que toda a espuma escorresse pelo corpo dela e desligou o chuveiro. Ela o fitou pela primeira vez e ficou na expectativa. Ele derramou o resto do champanhe, ainda gelado, em seus cabelos e ela estremeceu. O líquido correu veloz pelo seu corpo tanto quanto a língua de Bill e, naquela corrida louca, não houve vencido nem vencedor; ambos chegaram juntos ao local do encontro: a cascata do amor. O chuveiro fora novamente acionado e a forte ducha batia nos corpos nus. Bill estava agora de pé, e um pouco mais abaixo, em seu corpo, "Ele", de pé também, tremia sob os respingos frios. Margareth agachou-se e fez de sua boca uma capa de borracha e o envolveu, protegendo-o do forte temporal.
    Dois corpos ainda molhados, envoltos em toalhas e de mãos dadas, corriam pela casa em busca de abrigo. Uma grande cama de ferro os recebeu em silêncio. Compreendeu a urgência e os acolheu com respeito, e eles, entrelaçados, rolaram juntos ocupando todos os espaços do velho colchão de molas. Tão juntos estavam que se perdiam em busca dos caminhos que os pudessem levar ao êxtase. Mais fácil seria, aos dois corpos perdidos, que se fundissem num só corpo e corressem numa só direção. Na dor da agonia, gemiam, rangiam, gritavam. A velha cama era agora uma mulher carpideira que gemia para eles. Em determinado momento os corpos se separaram. Margareth, de frente sob o corpo de Bill, tinha o olhar de súplica. Ele, com o corpo suspenso e com suas mãos apoiadas no colchão, era um grande pássaro sobrevoando sua frágil presa. Com suas asas abertas, flutuava no espaço, e pousava suavemente. Ainda do alto podia ver a expressão de dor e prazer nascer no rosto dela no exato momento em que sua afiada garra penetrava lentamente no pequeno ninho de sua caça.
    Durante todo aquele tempo continuaram a ouvir o barulho da água a correr e só perceberam que não era do chuveiro, quando viram os vidros da janela do quarto embaçados pela chuva de verão. As sombras do cair da tarde foram impedidas de entrar no quarto pelo suor da vidraça, e assim não puderam testemunhar aquela maravilhosa cena de amor.
    Entre as pequenas tréguas, comiam, bebiam e ouviam música, e emendaram tarde, noite e madrugada, num só pedaço de tempo.
    Margareth chegou em casa às 7 horas da manhã do dia seguinte, domingo. O Coronel Carneiro já estava em casa. Chegou cedo da viagem e já tinha feito o seu café. Sentado na grande poltrona da sala, lia o gordo jornal de domingo.
    - Está chegando de onde? - perguntou entre o curioso e espantado.
     - Dormi no apartamento de Rosa.
    - Você está com uma expressão cansada, abatida, de olheiras fundas, que aconteceu?
    Margareth contou sobre a faxina e valorizou o duro que dera para por em ordem o apartamento da filha. Disse também que ao terminar o serviço, tarde da noite, e ao se encontrar exausta, resolveu passar a noite lá, e concluiu:
    - Você precisava ver a desarrumação e a imundície que ela deixou... Nunca pensei que nossa filha fosse tão relaxada!



CAPÍTULO 12


Gênova, outubro de 1940


    Giacomo Spata acordara cedo naquele domingo, véspera de sua viagem. Estava feliz.  Sentia-se como se fosse um turista pronto a dar a volta ao mundo. Tudo fora providenciado nos seus mínimos detalhes. Seus documentos estavam em ordem; a falsificação de sua nova identidade ficara perfeita; uma boa quantidade de francos franceses estavam costurados sob o forro de seu colchão. O dinheiro fora conseguido de três maneiras diferentes: a maior parte, proveniente de suas próprias economias, era a soma de três meses de salários da indústria pesqueira e a indenização e vantagens recebidas do primeiro emprego; a mãe contribuíra com a outra parte, fruto de suas economias domésticas e, por último, a terceira parte lhe fora emprestada pelo cunhado e atual patrão. Angelo, ao lhe entregar o dinheiro já cambiado, dissera:
    - Esta é a minha colaboração em dinheiro. Poderia presenteá-lo com esta quantia, pois tenho meios suficientes para isso. Entretanto, resolvi emprestá-lo, pois sei que agindo assim poderei vê-lo brevemente. A responsabilidade do pagamento desta dívida o trará de volta ao seio de sua família e de sua pátria.
    - A gratidão será a minha maior dívida e o principal motivo que vou ter para um dia regressar - falou Giacomo, com emoção.
    Uma sacola fora confeccionada, em material impermeável, para que ele pudesse levar os documentos, dinheiro, cigarros e um pequeno mapa da França, no qual estaria marcado o local onde deveria desembarcar. Levaria também uma lanterna e um afiado punhal, escondido dentro da bota.
    Giacomo falava francês com uma pronúncia invejável. A França, através da literatura, o cativara. "Os três Mosqueteiros", de Alexandre Dumas, fora o primeiro romance que lera, ainda garoto. Conhecia quase toda a obra de Victor Hugo e passara a se interessar por tudo o que dizia respeito ao povo gaulês: história, costumes, geografia e língua. No dia em que resolveu fugir para a França, contratou o melhor professor da língua francesa que encontrou em Gênova, para aprimorar a sua pronúncia, e agora estava apto até a passar por um verdadeiro francês.
    O cunhado e a mãe eram os únicos que sabiam da viagem no dia seguinte, e ele sentia necessidade de se despedir dos parentes e amigos, sem deixar transparecer a eles as suas reais intenções. Naquela manhã de domingo, depois do café que tomara bem cedo, fora pescar com o capitão Giovanni, seu irmão, em cima da grande pedra que durante muito tempo fizera parte do seu pequeno mundo infantil. Giacomo descobrira logo que tanto a maré naquele dia não estava favorável para uma boa pescaria, como o seu irmão Giovanni não tinha a menor vocação para pescador.  Mais tarde, entre caniços, iscas e anzóis, fez a descoberta mais importante: ele e o irmão, independente de seus ideais, tinham muita afinidade. A pescaria em si, poderia ter sido um fracasso, mas o encontro dos dois foi um sucesso absoluto. Descobriram, durante todo aquele tempo em que estiveram conversando, o quanto se entendiam e se admiravam.
    - O que você espera desta guerra? - perguntou Giacomo.
    - Que a paz chegue depressa - respondeu Giovanni.
    - Você tem opinião formada sobre Mussolini?
    - O "Duce" é um grande homem! Ele só deseja o bem da Itália, embora se deixe empolgar demais pelo poder. Os alemães se julgam superiores e dentro da prepotência são muito observadores. Já descobriram que a vaidade é o ponto fraco de nosso líder. Tentam influenciar e até interferir na nossa política, no nosso comando, e isso tem gerado um certo descontentamento nas tropas e em parte de nosso povo.
    - Você não acha que se a Alemanha perder esta guerra poderá arrastar a Itália para o caos?
    - Nós pensamos de maneiras distintas: enquanto eles sonham com o impossível - a conquista do mundo, nós buscamos apenas a nossa afirmação como grande potência. Se perdermos juntos esta guerra, nós sobreviveremos e eles se renderão.
    Giacomo foi almoçar com sua irmã Gina e o cunhado Angelo. Passou parte da tarde brincando com os quatro sobrinhos. Ao se despedir, ouviu da irmã uma observação:
    - Soube que vai muito bem no seu novo emprego. Estou feliz por você.
   - Tenho trabalhado com prazer, mas não estou fazendo vantagem nenhuma, pois no lugar do patrão encontrei um cunhado.
    - Soube que Angelo pretende lhe promover. Quer lhe dar um cargo na direção da empresa. Que acha disso?
    - Parece muito bom!
    - Ele tem muitos planos para você...
    - Quanto a isso, não tenho a menor dúvida - falou Giacomo, sorrindo.
    Antes de voltar para casa, lembrou de visitar sua irmã Graziela. O cunhado Marcelo, um mau caráter, não estava em casa e ele achou melhor assim.  Encontrou a irmã com o rosto inchado de tanto chorar. Ela ficou muito alegre com a visita e aproveitou a oportunidade para desabafar, para por pra fora toda a mágoa estocada nos seus 84 quilos.
    Giacomo ouviu tudo em silêncio e depois falou:
    - Conselho não se dá e por isso vou lhe fazer apenas umas advertências. Você é uma Spata e nossa família sempre manteve tradição de força de caráter. Ninguém, em momento algum, se deixou abater. Olhe para o espelho. Você ainda é jovem e bonita; faz parte de uma família forte, unida, que lhe quer muito bem e que não lhe negará apoio em qualquer ocasião, desde que esteja do lado certo. Você tem três filhos bonitos, sadios e que a adoram. A felicidade deles depende da sua felicidade, e no momento em que tiver que tomar uma atitude drástica, eles estarão do seu lado também.  Reaja enquanto há tempo. Lute. Cuidando do corpo e do espírito, logo verá que será ainda capaz de ser admirada por olhos cobiçosos. Alimente o seu orgulho e a sua vaidade. As soluções e as respostas estão dentro de você mesma - encontre-as. Quem é Marcelo? De onde ele veio? A qual família pertence? O que ele tem lhe oferecido? Quem precisa mais de quem? Para onde ele irá, se um dia você o abandonar? Sem tradição, família e dinheiro, encontrará abrigo entre as prostitutas do cais? Pense bem, minha irmã. Você é uma Spata e uma Spata não se entrega.
    Graziela ouviu tudo em silêncio e compreendeu a mensagem do irmão. Transformou a piedade que sentia por si mesma em um olhar confiante, seguro. Enxugou a fraqueza de seus olhos e por eles pôde antever o seu futuro repleto de soluções. Giacomo deixou a irmã com o moral elevado. Já na rua, em silêncio, fez uma prece a "San Genaro". Pediu ao santo milagroso forças para que ela pudesse reagir.
    Giacomo jantou com os pais naquela noite e saiu para falar com Sofia, sua namorada. Não podia preveni-la sobre sua viagem, mas também não poderia deixá-la esperando por ele, indefinidamente. Teria que encontrar uma solução. Passearam de mãos dadas, tomaram sorvetes, e no fim ele falou:
    - Sei que nunca me fez prometer coisa alguma e que jamais exigiu algo de mim. Assim mesmo me sinto na obrigação de ser honesto com você. Lamento dizer que não posso mais roubar o seu tempo. Você já está numa idade boa para casar, constituir família. Precisa de alguém que lhe possa dar amor, proteção, segurança, e eu infelizmente não posso pensar em compromisso tão cedo. Agora é que comecei a cuidar de meu futuro. Estou dedicando todo o meu tempo nesta empreitada. Além do mais, sou o responsável por minha família. Meu pai já está muito idoso e cansado. Meu irmão mais velho mora no Brasil e o outro é militar e está lutando por uma causa perdida. Resta eu. Tenho certeza que um dia você compreenderá tudo isso e me dará razão. Espero que seja muito feliz e desejo que possamos continuar como bons amigos, como sempre fomos, sem mágoas e ressentimentos.
    O sexto sentido feminino falou mais alto e Sofia percebeu que, por trás de toda aquela estória, havia algo importante que Giacomo preferia esconder. Como se estivesse penetrando no pensamento dele, beijou-o em lágrimas e disse apenas:
    - Boa sorte, meu amor.
    Giacomo, antes de voltar para casa, passou ainda no bar de costume para uma prosa com os amigos. Perdeu a conta dos vermutes que bebeu e chegou em casa alegre, cantarolando. Passou pelos pais que, ainda acordados, conversavam na sala. Já no quarto, Giacomo pôde ouvir seus pais comentarem sobre ele. O velho Spata estava maravilhado com a transformação que via em seu filho:
    - Minha velha, pela primeira vez em toda a minha vida, me sinto realmente realizado. Meu último problema foi solucionado. Vejo de novo em nosso filho Giacomo a alegria de seus primeiros anos. Se ele tivesse me ouvido antes, há muito que já estaria trabalhando com o cunhado. Angelo é um excelente rapaz e sua indústria só tende a progredir. Estou muito feliz, minha velha.  Imensamente feliz!
    Os dois se abraçaram e choraram muito tempo, juntos, seus sentimentos opostos.


CAPÍTULO 13

Um acordo conveniente

       Há muito tempo que o Coronel Carneiro não passava um domingo tão agradável e até certo ponto surpreendente, como aquele. Preocupado com o estado de exaustão em que a esposa se encontrava ao chegar em casa, preparou para ela um bom banho de banheira e lhe deu um sedativo. Margareth dormiu a manhã inteira e acordou ao meio-dia com fome e bem disposta. Para sua surpresa, encontrou a mesa posta e um delicioso almoço quase pronto. A culinária era o maior hobby do Coronel. Vez por outra ele costumava convidar casais amigos para o almoço do domingo e, quando isso acontecia, ficava feliz em poder mostrar seu vasto conhecimento sobre a cozinha nativa. Sabia, de cabeça, receitas de uma infinidade de pratos de todas as regiões do Brasil. E, na verdade, tinha mão e paladar privilegiados. Passara aquela manhã de domingo na cozinha e deixara ali prontos um arroz de forno enfeitado e uma saborosa farofa. As batatas, cortadas em rodelas, estavam numa panela com água e sal, para serem fritas na hora. De dentro de casa podia-se sentir o aroma maravilhoso de carne verde na brasa, vindo do quintal. De repente, Margareth percebeu que era mesmo um bom churrasco que gostaria de comer naquele dia. Seu marido fora feliz na escolha do cardápio - pensou. O Coronel Carneiro ganhara a churrasqueira, da esposa, como presente de aniversário, e só a tinha usado uma vez. Margareth, guiada pelo aroma, foi até o quintal e agradecida, beijou o marido. Provou uma fina e sangrenta fatia da carne com uma pitada do suculento molho, feito à base de cebolas, e pôde comprovar a alta qualidade da matéria prima e da mão de obra. A geladeira da casa estava bem abastecida de cerveja e, meia hora mais tarde, o casal comia e bebia até não poder mais.
      Augusto, o filho mais velho do casal, que  morava na Urca com os tios, telefonara avisando que naquele domingo não iria almoçar com os pais, mas que à noite passaria por lá para levar a mana Regininha. Por certo deveriam estar, àquela hora, esticando o domingo na praia. Há muito não fazia um dia tão ensolarado. Todas as nuvens negras do sábado se transformaram em chuva noturna e, ao amanhecer, o Deus Sol reinava absoluto no céu límpido e claro. O calor era suportável, pois soprava uma brisa constante e agradável.
      Confortavelmente sentados e aconchegados, o casal assistia televisão na grande poltrona da sala. Era evidente que a comida e a cerveja provocara neles aquele natural estado de sonolência e, mais evidente ainda era a força que ambos faziam para controlar o sono. Era notória a necessidade que sentiam de estarem juntos e a sós. Fazia tempo que isto não acontecia e não queriam desperdiçar a providencial oportunidade. Estavam ali tentando retirar os ossos do passado, há muito sepultado. Num perfeito exercício de memória, encontravam retalhos de lembranças. Procuravam os olhos vigilantes dos pais de Margareth pela sala, quando trocavam carícias mais audaciosas. Logo depois ela estava se recompondo, como se tivesse sido apanhada em flagrante. Ele cruzava as pernas desajeitadamente e, envergonhado, escondia o volume de seu pecado. O sorriso travesso e acanhado no rosto de ambos eliminava vinte anos de rugas. Na sala, o prelúdio fora maravilhoso. Foram namorados tímidos e bem comportados, dentro da premência do sexo. No quarto, sobre a larga cama de casal, foram amantes insaciáveis e devassos; usaram a liberdade e a libertinagem como nunca ousaram antes, e se descobriram, surpresos. O Coronel, bom piloto, fazia voos rasantes, bombardeando tabus e, via do alto, desmoronando toda a falsa moral vigente. Pôde então perceber a grande quantidade de sexo que transportava e o quanto negligenciara como marido. Sentia, naquele momento, o quanto fora infiel à esposa, naqueles últimos anos. Estava casado com Margareth, mas na verdade, era com a Aeronáutica que vivia. Respirações ofegantes, sussurros, gritos e gemidos enchiam a casa como um bando de duendes. Da penumbra à escuridão total, a passagem fora imperceptível aos dois corpos flamantes e entrelaçados. Novos sons chegaram e se misturaram aos antigos e os amantes só foram perceber a chegada dos filhos, algum tempo depois, quando pararam de gemer.
      Na manhã seguinte, segunda-feira, o Coronel Carneiro acordou bem cedo. A empregada do casal já estava trabalhando, mas foi Margareth quem preparou o desjejum para o marido. Amanheceram ainda no clima de lua de mel renovada. Na porta, ele se despedia trocando beijos apaixonados com a esposa. Só muito tempo depois é que Regininha acordou. Passou na sala pela mãe como se não a tivesse visto. Foi até a copa e lá tomou o seu café. Margareth pregava um botão numa camisa do marido, quando a filha passou por ela, novamente, sem sequer lhe olhar. Não entendendo a atitude dela, falou:
      - Pelo menos um bom dia ainda se dá...
      - Por que devo dar? Não acho que este seja um bom dia - respondeu Regina, sem olhar.
      - Não dormiu bem esta noite?
      - Não.
      - Teve algum aborrecimento neste fim de semana?
      - Tive.
      - Que tipo de problema?
      - O pior possível.
      - Foi algum aborrecimento com alguém que conheço?
      - Foi.
      - Com quem?
      - Com você - e saiu da sala, em prantos, em direção do seu quarto.
      Margareth seguiu a filha e a encontrou chorando, deitada de bruços sobre o colchão.
      - Sinto muito, mas minha intenção foi a melhor possível quando lhe sugeri um fim de semana com seus tios. Você precisava se divertir, sair, mudar de ambiente. Achei que estava fazendo um bem...
      - Um bem a si própria - interrompeu Regina.
      - Como assim?  Não sei aonde quer chegar!
      - Claro que sabe e não queira me fazer de idiota.
      Regina parara de chorar e falava com ódio na voz.
      - Por que me culpa do que lhe aconteceu?
     - Porque só você tem culpa. Passei o sábado inteiro ligando o telefone para cá e ninguém atendeu...
     - Só porque eu tive que sair...
     - Também passei o sábado inteiro ligando para o Bill - interrompeu Regina - e lá da casa dele ninguém soube me dizer para onde tinha ido.
     Margareth começou a compreender e foi ficando tensa, nervosa. Ainda tentou contornar a situação quando falou:
     - Bem, eu passei o dia no apartamento de...
     - Eu sei onde você passou o dia - interrompeu Regina, mais uma vez - como também sei onde Bill passou. Aliás, o dia e a noite. Por coincidência vocês passaram juntos, no mesmo endereço.
     - Você ficou louca!
     - Você faz uma loucura e eu é que fico louca? Estou louca sim, mas é de raiva. Já tinha uma leve suspeita mas não quis acreditar, mas quando os procurei pelo telefone, desconfiei ainda mais. De repente, me lembrei da viagem de Rosa e das chaves do apartamento dela em seu poder, e aí resolvi arriscar.
    - O que é que você está pensando? - falou Margareth, apenas por falar.
    - A minha intuição não falhou. Consegui que um  amigo me levasse até o Méier, no seu carro. Entrei no edifício e fiquei parada no corredor do terceiro andar, com o ouvido colado na porta do apartamento, o tempo suficiente para entender o que estava acontecendo no seu interior. Os ruídos, risos e vozes que ouvi, davam para incriminar qualquer pessoa. As vozes, então, eram inconfundíveis e bem familiares. Jamais poderia me enganar. Passei a noite inteira dentro do carro e vi quando Bill saiu às cinco horas da manhã. Não precisei esperar muito para vê-la sair também, pouco tempo depois. Pretende negar? Quer dizer que  nada aconteceu?
     - Seria uma estúpida se admitisse a minha inocência. Não, não vou negar a minha culpa, nem estou arrependida do que fiz. Lamento apenas que você tenha descoberto, pois, em momento algum, pretendi magoá-la. Aconteceu o que tinha que acontecer; nem mais, nem menos. Pedi a Bill que me ajudasse na parte mais pesada da faxina e ele depois me cobrou pelo serviço...
    - Com que facilidade você transforma amor e sexo numa coisa suja, baixa, asquerosa!
    - Você é muito esperta e em pouco tempo aprenderá a separar as coisas. O amor, de uma maneira ampla, é o sentimento mais forte, intenso e sublime que existe. A atração física é diferente: é um encontro de dois corpos necessitados de uma satisfação carnal. Esse sentimento surge em determinados momentos apenas. Isso não é amor. Nós não amamos Bill, como ele também não nos ama.
    - Responda por você apenas. Não lhe dou o direito de julgar os meus sentimentos.
    - Nós estamos usando ele, assim como ele está nos usando, também. Existe apenas uma suja troca. Estamos precisando dele, de sua mocidade, de seu sexo viril. Você, no início de sua vida amorosa, precisa praticar, aprender, e eu, no ocaso da minha, preciso me afirmar, e me contento em ensinar tudo o que aprendi. Sinto necessidade de alimentar minha vaidade há tanto tempo adormecida; de voltar a me sentir desejável como sempre fui, num passado não tão distante assim. Preciso me sentir mulher, nem que seja por alguns momentos apenas, e não o objeto de uso doméstico que tenho sido há algum tempo.
    - Você já tem o seu homem. Bill é meu e me ama, tenho certeza. Eu perdoarei a sua fraqueza.
    - Se ele a amasse, não teria me faltado com o respeito.
    - Você não se deu ao respeito.
           - Dois não erram quando um não quer.
    - Isso não interessa agora. O fato é que você me atingiu em cheio com o seu erro, e eu gostaria de saber o que pretende fazer, daqui pra frente.
     - Era esta a pergunta que eu ia lhe fazer.
     - Estou com vontade de ter uma longa conversa com papai. Gostaria de contar a ele, não só sobre este caso, como sobre outros anteriores, que também acabei descobrindo. Falaria sobre o dentista, o tenente...
     - Não precisa me lembrar os nomes - interrompeu Margareth - pois eu não os esqueci. Falando com seu pai, você faria a única coisa que jamais deveria fazer. Você não é melhor nem pior do que eu; é minha filha, e somos bastante parecidas. Talvez por isso mesmo eu lhe queira tanto bem. Sua lista é mais extensa que a minha e seu pai nunca soube de nada. Tive que usar de toda a minha habilidade para que ele não descobrisse sobre os seus casos com homens maduros e casados, amigos dele. Agi com diplomacia para evitar que seus flertes, inconsequentes, mas perigosos, prosseguissem. Não fosse eu perspicaz e o escândalo seria inevitável, ou até uma tragédia, quem sabe. Sempre tive uma certa predominância sobre seu pai, um certo domínio até. Ele ainda me ama. Ontem tivemos um dia maravilhoso! A quem ele daria mais crédito, a mim ou a você? Portanto, querida filha, proponho inicialmente que deixemos as coisas como estão. Vamos por um fim neste pequeno incidente.
     - Quer que eu esqueça tudo, assim tão de repente?
     - Para o nosso próprio bem: meu, seu, de seu pai e de Bill. Esta foi nossa primeira conversa realmente adulta. Eu preciso de você, do seu amor e compreensão, como você precisa de minha ajuda, apoio, conselhos e experiência. Poderíamos e deveríamos ser boas amigas. Sei que agora você está muito magoada e eu lhe dou razão. Com o tempo você esquecerá tudo, prometo. Quando o amadurecimento chegar, você entenderá que eu não a traí, nem nunca pretendi roubar seu namorado. Que me diz disso tudo?
     - Se eu aceitar seus argumentos, o que acha que devo fazer agora?
     - Já esteve com o Bill, ou falou com ele a respeito do que aconteceu?
     - Não.
     - Então não fale. Deixe que ele pense que você não sabe de nada. Se contar a ele o que descobriu, na certa ele tentará negar e você irá se decepcionar mais ainda. Aprenda a usá-lo também. Aproveite o que ele tem de bom para lhe oferecer. Todo o homem é forte e fraco ao mesmo tempo. Coragem e covardia variam com a idade e de acordo com os tipos de situações que se tem que enfrentar. O homem maduro normalmente não gosta de se sentir só. Os jovens, muitas vezes, procuram se isolar e em determinados momentos são solitários, porque não sabem o que é solidão. Bill foi um fraco porque pensou ser forte demais. Aceite-o como é, com seu tipo de fraqueza própria da idade, e tente lhe perdoar.
     - Admitamos que eu esqueça tudo e perdoe a ambos; você continuará o seu caso com ele?
     - Antes de lhe responder, farei minha proposta final: a partir de hoje, facilitarei ao máximo o namoro de vocês, criando até boas oportunidades para que estejam a sós; conseguirei não só a concordância, como as boas graças de seu pai, para o namoro de vocês. Se ele provar que a ama de verdade, farei tudo para que se casem e sejam felizes. De minha parte, prometo que o evitarei e farei com que pense que o que aconteceu foi por minha culpa, e que não passou de um momento de fraqueza de minha parte. Agora, se ele me procurar, insistir, me mostrar e provar que me deseja também, eu o usarei até o dia em que ele não me interessar mais. Se ele agir assim, estarei certa de que não passa de um aproveitador e que não a ama de verdade, e aí, cabe a você decidir usá-lo ou não. Está certo assim?
    Regininha ficou algum tempo pensando, e depois respondeu com convicção:
     - Acho justo assim. Concordo com tudo o que disse. Vou passar a observá-lo melhor. Se me provar o seu amor, ficarei com ele enquanto for sincero e honesto. Caso contrário, vou aprender a usá-lo como a um objeto descartável: quando estiver gasto e imprestável, eu o jogarei no lixo e o substituirei por um outro melhor.
     O relacionamento mãe e filha, a partir daquele dia, melhorou sensivelmente. Se não atingiu a perfeição, ficou melhor do que sempre fora antes. Margareth cumprira a promessa feita à filha: a princípio, resistiu às investidas de Bill o quanto pôde, mas depois, acabou cedendo. Regininha, por sua vez, na falta de novas provas que pudessem incriminar o rapaz, deu sequência ao namoro, como se nada tivesse acontecido, e por vezes, dava a impressão, à mãe, que preferia ficar na inocência do que enfrentar a verdade. Bill não sabia que era agora um objeto descartável e que estava sendo usado também. Ficou como único inocente na estória - um inocente útil e cada vez mais feliz.



CAPÍTULO 14


A permuta

    Com cinco meses de ocupação nazista, Paris era uma outra cidade. Tudo estava sob o mais rígido controle do Alto Comando Alemão. A eficiência da Gestapo se fazia sentir a cada momento. A vida pregressa de qualquer cidadão francês era levantada nos seus mínimos detalhes bastando, para isso, que recaísse sobre ele a mais leve suspeita de traição ao regime imposto. O pavor se espalhara pelos quatro cantos da cidade. Ninguém confiava mais em ninguém. Até as conversas entre vizinhos estavam restritas a cordiais cumprimentos. Só se falava sobre a guerra e as suas consequências maléficas na intimidade do lar, entre os parentes mais chegados.
    Quase tudo era racionado e grande parte dos artigos de consumo estava sendo falsificada, até o amor. As ruas, cada dia mais desertas, tinham o ar triste do abandono. O tráfego fora reduzido consideravelmente, tanto de pedestre como de carros. Os táxis eram escassos e o povo usava, como meio de transporte, os cabriolés de dois lugares puxados por bicicletas.
    Os alemães faziam turismo em Paris. Em grupos alegres pareciam um bando de colegiais em férias, dada a segurança e tranquilidade que a cidade a eles assim apresentava. E aproveitaram ao máximo! Aprenderam a degustar vinhos e queijos, a apreciar o teatro musicado e a aliar a técnica à força, na grande arte do sexo.
    Enquanto isso, no interior da França, a Resistência era organizada. De Londres, o grande De Gaulle enviava mensagens em código aos seus compatriotas. Os maquis continuavam a sua luta sem tréguas. Usavam de muita astúcia e vigor. De quando em quando uma fábrica, uma ponte, um poste telegráfico eram destruídos. Eles proliferavam e se espalhavam por todos os lados do território francês. Procuravam se reunir em grupos, em pequenas aldeias nos arredores da grande capital. Vez por outra preparavam um atentado arriscado, uma incursão perigosa, quase suicida, ao centro de Paris. Numa dessas incursões Pierre fora ferido por uma bala inimiga, no ombro esquerdo. Por milagre conseguira escapar, com a ajuda de um amigo, através de um esgoto. Paris sempre teve uma das maiores, se não a maior, rede de esgotos do mundo. Suas enormes e bem traçadas galerias de águas pluviais, formavam uma cidade sob a outra. Pierre conseguira escapar da Gestapo como o grande personagem de "Os Miseráveis", de Victor Hugo, escapava sempre do Inspetor Jouvert. Mais tarde escondeu-se num pequeno sítio em "Créteil", a poucos quilômetros de Paris. A bala passara de raspão, mas fizera uma grande ferida. Um médico, de inteira confiança do grupo, fora chamado para fazer o curativo.
    - Você está fora de perigo, mas deve repousar por uns dias até que cicatrize totalmente. Por sorte não atingiu a articulação. Mais um centímetro abaixo e o projétil teria feito um grande estrago.
    - Muito obrigado, Dr. Louch. Além de competente médico o senhor é patriota e amigo.
    - Eu cumpro a minha obrigação. Você deve agradecer a Deus a ajuda que recebeu.
    Dr. Christian Louch arriscava a vida daquela maneira. Era a forma que encontrava para colaborar com seu país. Era um nacionalista extremado e odiava o nazismo. Seu ódio aumentara a partir do dia em que o filho caçula chegara em casa totalmente irreconhecível, depois de preso e torturado pela Gestapo. O pior é que ele estava inocente. Fora vítima de um infeliz acaso. Sua captura acontecera quando se encontrava conversando com um grupo de rapazes, próximo de casa. Um deles era um maquis e ninguém sabia. Agora ele fazia parte do grupo de Pierre, e era um dos mais corajosos. A uma graciosa jovem que fazia também parte do grupo, Dr. Louch explicara, antes de partir, como deveria ser feito o curativo em Pierre:
    - O curativo deverá ser trocado diariamente. Vou deixar sob sua responsabilidade os medicamentos necessários e em quantidades suficientes: água oxigenada, algodão, gazes, esparadrapo e sulfa em pó.
    - Pode deixar, doutor - falou a moça - quando esta guerra terminar, terei completado meu curso prático de enfermagem.
    Naquela hora, em Paris, precisamente em Saint-Germain-des-Prés, o Coronel Kurt Staden entrava para jantar no pequeno restaurante da família Fontaine. Estava à paisana e vestia um vistoso terno cinza grafite, de colete, e uma gravata vinho. Estava só, muito embora podia-se notar, em algumas mesas, alemães, também à paisana, jantando antes de sua chegada. O Coronel reclamou polidamente, ao garçom, a presença de Monsieur Fontaine.
    - Boa noite, Coronel Kurt. É um prazer tê-lo de volta - falou o proprietário do restaurante.
    - O prazer é todo meu, Monsieur Fontaine. Fico contente em saber que não esqueceu meu nome.
    - Isso faz parte de nossa profissão. Nunca esquecemos os nomes dos bons fregueses, se me permite classificá-lo assim.
    - Claro, claro. Gostei do atendimento e do serviço, e posso lhe garantir que virei sempre aqui enquanto estiver em Paris.
    - O senhor fica muito bem à paisana, Coronel. Pela maneira como está vestido presumo que tenha vindo para  jantar, não?
    - Sim, e gostaria de ouvir sua sugestão. Que prato devo pedir?   
    - "Quenelles de brochet", e para acompanhar recomendo "vin blanc corsé". Tenho certeza que vai gostar.
    - Confio no seu bom gosto e gostaria de convidá-lo a jantar comigo.
    - Eu agradeço, mas jantei cedo hoje, justamente para poder atender melhor aos meus fregueses.
    - Aceite então uma bebida, mas por favor sente-se aí e me faça companhia. Não gosto de jantar sozinho.
    O senhor Fontaine sentou-se à mesa e pediu ao garçom o jantar e o vinho do Coronel. Para ele, pediu uma dose de "cognac". O Coronel parecia não ter pressa e, enquanto comia, conversava.
    - Espero que não tenha tido mais problemas com seus fornecedores, monsieur.
    - Não tive mais problemas e estou certo agora de que houve uma interferência amiga a meu favor. Fico-lhe muito grato, Coronel.
    - Aos amigos e colaboradores nós costumamos oferecer tudo, e aos inimigos fazemos cumprir a lei.
    O senhor Fontaine preferiria não ter o Coronel Kurt como amigo, nem como inimigo também. O certo é que achava que alguma coisa não estava lhe cheirando bem.
    - Espero que a guerra não tenha prejudicado muito o seu negócio, monsieur.
    - Poderia ser pior. Perdemos alguns fregueses, mas estamos conquistando outros.
    - Soube que moram aqui mesmo, não?
    - Sim, ocupamos também o andar superior. Temos os quartos lá em cima.
    - Sua família é muito grande?
    - Somos cinco pessoas; eu, minha mulher e três filhos.
    - Só conheço as duas meninas.
    - Temos um rapaz também, mas está sempre fora. Quase não o vejo.
    - Mora com vocês?
    - Morava. Ultimamente tem dado muitos desgostos a nós. Arranjou uma amante e raramente nos dá notícias.
    - Qual é a idade dele?
    - Completou 20 anos este ano.
    - Então deve estar servindo às forças armadas, não?
    - Não sei.  Acho que não. Na verdade pouco tenho sabido de sua vida.
    O senhor Fontaine começava a demonstrar o seu nervosismo.
    - Com a idade que tem, deveria ter sido recrutado. Se não está em serviço, é aleijado, doente ou desertor.
    - Aleijado ele não é. Talvez esteja doente, ou...
    - Vamos jogar limpo, monsieur. Me parece que eu sei a respeito do seu filho bem mais do que o senhor. Na verdade ele arranjou uma amante, e até eu sei o nome dela: chama-se França. Pierre Fontaine é um desertor e está sendo procurado não só por isso como também por ser considerado um inimigo do governo. Ele tem andado em más companhias e tem feito coisas muito feias.
    - Não é possível! Meu filho sempre foi muito pacífico e até um pouco medroso. Talvez o senhor esteja enganado. Deve estar fazendo confusão com outra pessoa.
    - Quer que lhe mostre a ficha de seu filho Pierre? Posso lhe garantir que hoje eu sei mais a respeito dele que propriamente o senhor. Não só tenho conhecimento de dados a respeito de seu passado, que o senhor não deve mais se lembrar, como de suas atividades no presente que, me parece, o senhor desconhece. Sei até que hoje à tarde, durante um atentado, ele foi ferido.
    O senhor Fontaine, derrubou sobre a alva toalha da mesa o resto do seu "cognac".
    - Por favor, me diga. Como ele está?
    - Desta vez, teve sorte. Conseguiu escapar. Ao que me consta, parece que a bala pegou apenas de raspão.
    - Por Deus, me diga o que devo fazer para salvá-lo?
    - Se o senhor o encontrar primeiro, nos entregue e eu lhe dou minha palavra que lhe poupo a vida.
    - Já faz cinco meses que eu não sei de seu paradeiro. Como poderei encontrá-lo?
    - Se ele não o procurar agora que está ferido, posso lhe garantir que muito breve o pegaremos.
    - E o que acontecerá com ele então?
    - Isso em parte vai depender do senhor. De sua compreensão e boa vontade.
    - Tudo farei para salvar a vida de meu filho. Darei até a minha vida em troca, se for preciso.
    - Em absoluto! O senhor é o chefe da família. Sua vida é muito preciosa. Tem uma filha ainda criança para criar.
    O Coronel Kurt fez uma pequena pausa, acendeu um cigarro e continuou:
    - Tive uma ideia. Vou lhe propor um acordo, uma permuta. É a única maneira que encontro, no momento, para salvar a vida de seu filho.
    - Por favor, fale, Coronel!
    - Proponho permutar a vida de seu filho por Fraulein Germaine.
    A princípio a surpresa, e logo depois, o ódio, ficaram estampados no rosto do senhor Fontaine e ele não pôde disfarçar.
    - O senhor, Coronel, já entrou aqui com este plano no bolso de seu colete. Vocês são incapazes de fazer o bem, sem logo em seguida exigir um grande favor em troca, não?
    - Esta forma de agir não é peculiaridade do povo alemão, e sim de toda a humanidade, Monsieur Fontaine. Ninguém dá nada inteiramente de graça. Até os pais esperam uma recompensa dos filhos e vice-versa. Não esperava que arriscasse a minha patente, salvando a vida de um inimigo nosso a troco de nada, não é? Sua filha estará melhor sob meus cuidados e proteção, do que aqui com vocês. Do contrário, assim que a Gestapo botar as mãos em Pierre, todos vocês sofrerão as conseqüências. Serão presos para interrogatório e terão o restaurante fechado. Sem minha ajuda, dificilmente conseguirão provar inocência. Já imaginou o que lhes poderá acontecer? Com quem ficará sua filha, uma criança de seis anos? Pense em tudo isso, monsieur e verá que tendo a mim como aliado, não será tão ruim assim. Fraulein Germaine terá tudo do bom e do melhor. Boa comida, roupas caras, joias, divertimentos e, o mais importante, total proteção. Garanto-lhes a vida de seu filho e minha proteção. Jamais sofrerão punições e perseguições. Continuarão livres, trabalhando honestamente. Que me diz disso tudo?
    - E se minha filha não aceitar sua oferta?
    - É claro que vai aceitar. Ela lhe quer muito bem e deve querer também ao irmão. Conto com sua ajuda para convencê-la. Espero uma decisão rápida, pois pretendo levá-la ainda esta noite. Diga a ela que não precisa trazer bagagem. Basta que venha com a roupa do corpo e seus objetos pessoais.
    - Como pode desejar a companhia de alguém que poderá vir a lhe odiar?
   - Este será um problema meu que espero resolver satisfatoriamente.
    - Minha filha tem apenas dezenove anos e é ainda virgem.
    - Antes de tudo, quero que saiba que sou um cavalheiro, e não poderia ser de outra forma, como oficial do glorioso exército alemão. Ela deverá ir comigo hoje, mas eu só a tocarei quando conquistar a sua amizade e confiança. Sou um homem de palavra. Tudo o que prometi, até aqui, pode ficar certo de que cumprirei.
    Eram quase meia-noite quando o Coronel Kurt Staden entrava com Germaine Fontaine numa lustrosa "Mercedes" preta, estacionada na porta do restaurante. O último freguês há muito tinha ido embora, e as portas do estabelecimento já estavam semicerradas.  Lá dentro, o casal Fontaine abraçado, soluçava sem parar. Pouco tempo depois, Germaine era instalada numa confortável suite no último andar de um hotel localizado na "Avenue Marceau".


CAPÍTULO 15


Uma nova experiência

     A vida amorosa de Bill não poderia ir melhor. Regina, para ele, era um excelente aperitivo, e Margareth, um fausto banquete. E havia ainda as inconseqüentes aventuras de fim de semana, com as amiguinhas de praia. Ele achava que todas mereciam uma oportunidade, mas raramente saía mais de uma vez com a mesma garota. Esses pequenos casos ele costumava classificar como tira-gosto.
     A primavera, naquele ano, chegara com todas as cores e os domingos de sol se repetiam. Num desses domingos, Bill e Fernando disputaram uma partida de voleibol diferente. Só eles sabiam que estava em jogo um valioso troféu. Ambos jogavam muito bem e, naquele dia, eram adversários. Enquanto Bill liderava um "time", Fernando liderava o outro. Fátima, uma linda loura de dezoito anos, era o rico troféu. Eles combinaram que quem vencesse aquela partida sairia com ela, naquela tarde. Ambos sabiam que Fátima se insinuava para os dois, alternadamente, mas eram muito unidos para se magoarem, um com o outro, por causa de uma garota leviana. Nenhum dos dois quis tomar primeiro a iniciativa da conquista e, quando o assunto entre eles veio à baila, decidiram resolver a parada em forma de aposta. A partida foi muito bem disputada e o "time" de Bill saiu vencedor. Depois do tradicional mergulho dos atletas nas águas de Copacabana, Bill e Fernando foram em direção à Fátima, que, isolada do grupo, se bronzeava deitada de costas.
     - Alô - disseram, a um só tempo.
     - Ôi - respondeu ela, virando-se surpresa com a presença dos dois.
    - Acabamos de disputar uma partida de voleibol em sua homenagem - falou Fernando.
    - Não mereço tanta honra...
    - Isso é o que estamos pretendendo saber - comentou Bill, com ironia.
    - Não estou entendendo a piada...
    - Fizemos uma aposta entre nós. O vitorioso sairia com você esta tarde - falou Fernando.
    - Quer dizer que vocês disputaram a minha companhia sem me avisar? E como sabem que eu gostaria de sair com um de vocês?
    - Não sabemos, mas acreditamos que depois de uma homenagem tão espontânea, você não vai se recusar a sair com um de nós - comentou Bill.
    - Poderia entender como homenagem se tivessem me participado antes. Da maneira como fizeram, me colocaram na posição de objeto - falou Fátima, fingindo aborrecimento.
    - Não pensamos assim, nem acreditamos que, inteligente como você é, venha a pensar desta forma - falou Fernando.
    - Claro. Uma notícia dada assim só poderia ter o sabor de uma agradável surpresa e ser motivo para envaidecimento - completou Bill.
    - Não quer saber quem ganhou? - perguntou Fernando.
    - Se é assim que acham que eu devo pensar, claro que gostaria de saber com qual de vocês vou ter que sair.
    Fernando já se preparava para apontar o vencedor, quando Bill interrompeu:
    - Ficamos com um pequeno problema; a partida se estendeu por mais tempo do que esperávamos em virtude do grande equilíbrio e, como não chegava ao fim e já estávamos exaustos, resolvemos encerrá-la, dando o empate como resultado final. Portanto, não houve vencedor.
    Embora sem compreender a atitude de Bill, Fernando manteve-se calado. Fátima, surpresa com a notícia, não conseguiu esconder uma ponta de decepção quando falou:
    - Quer dizer então que não vou precisar sair com um de vocês?
    - Pelo contrário - falou Bill - gostaríamos que aceitasse o nosso convite e saíssemos os três. Não podemos perder a oportunidade de homenageá-la.
    - Claro! Não poderia ser de outra forma - falou Fernando, começando a compreender.
    - Não sei o que dizer. Estou realmente surpresa e envaidecida, entretanto, acredito que vá me sentir inibida saindo sozinha com vocês dois. Quem sabe se não seria melhor que eu trouxesse uma amiga comigo?
    Bill respondeu rapidamente, antes que Fernando tivesse tempo de dizer alguma coisa:
    - Em absoluto! Achamos que você deverá reinar sozinha. Esta tarde só você deverá estar cercada de nosso carinho, atenção e gentileza.
    Bill tinha em Fernando o seu melhor amigo. Era evidente a grande afinidade entre os dois. Gostavam das mesmas coisas: esportes, praia, bailes e garotas. No futebol, ambos torciam pelo Fluminense. Aliavam ao espírito de liderança, predicado nato nos dois, o charme e a simpatia pessoais. Enquanto Bill se interessava por todos os assuntos sem se prender a um só especialmente, Fernando estava sempre a par de tudo o que dizia respeito ao cinema, televisão e, principalmente, à arte fotográfica, sua grande paixão. Ao completar dezoito anos ganhara de presente dos pais um pequeno apartamento em Copacabana, onde ele pudesse montar seu pequeno estúdio fotográfico. Se era intenção da mãe proporcionar-lhe condições para que ele desenvolvesse a sua arte, para seu pai seria a chance que daria ao filho de descarregar todo o seu apetite sexual. Foi a fórmula mais eficaz, e até certo ponto sutil, que encontrou para bloquear o assédio e as visitas noturnas do filho ao quarto das empregadas. Fernando não era como Bill um bom estudante, mas fazia do estudo a sua profissão. Era a fórmula mágica que encontrara para continuar a receber, mensalmente, dos pais, gordas mesadas. Enquanto fingia que estudava, sabia que não precisaria trabalhar de verdade. Quando seus gastos mensais ultrapassavam a quantia que recebia, alugava o apartamento por hora a amigos de toda confiança, para completar o orçamento. Fernando, assim como Bill, levava uma vida sexual intensa. Era o que se podia chamar de "Don Juan" dos anos sessenta. Seu temperamento alegre e comunicativo cativava, suas excelentes condições materiais impressionavam e seu tipo físico atraente acabava por minar e enfraquecer qualquer tentativa de resistência do sexo oposto. Tinha quase 1,80m de altura, pesava aproximadamente 75 quilos, cabelos e olhos negros, pele  morena e bem bronzeada, num corpo atlético e peludo. Usava um grosso bigode e era de origem árabe. Era um ano mais velho que Bill.
    Exatamente às cinco horas da tarde Fernando e Bill apanhavam Fátima na porta do seu edifício. Ela estava mais bonita, atraente e sexy, como nunca tinham visto. Vestia um vestido de alcinhas, em que o tom verde predominava no estampado, combinando com a cor de seus olhos. Calçava uma sandália de salto alto e tiras de couro. Os cabelos dourados estavam soltos. Usava um par de brincos de pedra verde e, nos lábios, um discreto batom rosado. Fernando saíra com o carro de seu pai, um "pontiac" do ano 1962, quase novo. Os três, sentados no inteiriço banco da frente, rumaram para um barzinho discreto, no fim do Leblon. Acharam melhor escolher um local distante dos olhos curiosos dos amigos comuns. Conversaram e riram bastante e chamaram a atenção de todos que os circundavam. Tinham a impressão que estavam sendo examinados como um jogo de quebra-cabeça, onde uma parte estava faltando. Perderam a conta dos chopps que beberam e às 7h30min da noite já estavam bem alegres. Num abrir e fechar de olhos estavam os três no apartamento de Fernando, apreciando suas fotos artísticas, e o tempo foi pequeno demais para a sucessão de coisas que foram acontecendo. Enquanto a luz ofuscante era substituída pela tênue lâmpada vermelha do abajur de pé, a música quente dava lugar à romântica. Uma garrafa de puro uísque escocês fora aberta. Bill e Fernando beberam algumas doses diluídas em cubos de gelo, enquanto Fátima misturava guaraná ao seu uísque. A atmosfera foi ficando cada vez mais quente e o possante aparelho de ar refrigerado não conseguia esfriar as emoções. A dança passava a fazer parte do jogo amoroso, e Bill e Fernando revezavam-se dançando com Fátima. Algumas vezes, quando o ritmo da música era bem arrastado, os três dançavam juntos. As trocas de carícias mais ousadas já se faziam sentir. De repente Fernando acionou o dispositivo final para completar a excitação geral: projetou, sobre uma pequena tela, curtos filmes pornográficos coloridos em oito milímetros. Após a conclusão do último filme, os três estavam num estado desesperador, e foi aí que Fernando sugeriu à Fátima que fizesse um strip-tease. Aos primeiros acordes de uma melodia própria, ela não se fez de rogada, e foi tirando peça por peça da vestimenta com a sensualidade e a arte da melhor profissional do gênero. Enquanto Bill, deitado sobre almofadões, se deliciava, Fernando não perdia um só movimento e fazia explodir várias vezes o "flash" de sua máquina fotográfica. Fátima, apenas de calcinha semitransparente, dançava agitando suavemente os quadris, num movimento super erótico. Rebolava no centro da sala sem sair do lugar, com os braços estendidos para cima entrelaçando-se no ar como serpentes, quando Fernando largou a máquina e atirou-se de joelhos aos seus pés. Estava tentando descer lentamente a última peça de fino nylon que mal cobria a total nudez daquele corpo escultural, quando Bill propôs deixá-los a sós. Argumentou que precisava descer até a rua para comprar algo para comerem. Ninguém fez objeção e ele só voltou uma hora depois.
    Bill encontrou os dois totalmente despidos, deitados lado a lado no grande sofá aberto na sala. Ambos dormiam, e Fátima pousava o rosto no peito cabeludo de Fernando. Bill os acordou e, enquanto os dois tomavam uma ducha fria, ele preparava a mesa para servir uma saborosa pizza que, bem embalada, ainda estava quente. Tanto a pizza, como a saída estratégica e providencial de Bill, foram muito apreciadas por Fernando e Fátima.
    Bill aprendera a esperar com a sua grande mestra Margareth e por isso tivera a frieza de elaborar todo aquele plano. Olhava para Fernando e via em seu rosto a expressão do desejo satisfeito; olhava para Fátima e via em seu rosto uma expressão tanto insaciável quanto inquisidora e, depois de rápida troca de olhares, resolveu falar:
    - Sabe que horas são, Fernando?
    - Não - respondeu ele, distraído.
    - Quase duas horas da manhã.
    - Tudo isso? Juro que não percebi o tempo passar. Já está ficando tarde...
    - Para você - completou Bill - pois sei que seus pais não gostam que passe toda a noite fora de casa.
    - Sim, é verdade. São muito rígidos e se preocupam demais comigo. Não posso contrariá-los, pois sou muito dependente. Se romper qualquer regra disciplinar imposta por eles poderei perder minhas regalias e isso não será nada bom.
    - Proponho então que se vá - falou Bill - e nos deixe ficar mais um pouco. Levarei depois a Fátima em casa e ao sair deixarei as chaves de seu apartamento com o porteiro, ok?
    Fátima não disse uma só palavra. Fernando olhou para os dois e pôde ver a cumplicidade em ambos. Não precisou ser muito esperto para sentir que era ele, agora, quem estava sobrando. Sorriu e falou:
    - Ok, garotão esperto. Você fez por merecer - e completou baixinho ao ouvido de Bill - quero que fique sabendo que você é o único cara que eu conheço para quem não vou cobrar a diária.
    Fernando se vestiu, piscou o olho para os dois e falou antes de sair:
    - Não se esforce para ser melhor do que eu Bill, pois isso você jamais conseguirá e esta preocupação poderá lhe ser fatal.
    Como a pólvora e o fogo, a ternura e a violência se misturaram e houve uma explosão de carícias, e quando a primeira brisa da manhã penetrou pela janela entreaberta, só encontrou as cinzas mornas do sexo pelo chão da sala. O céu já estava sangrando com os primeiros raios de sol do dia, quando Bill chegou em casa. Vestiu a farda, tomou um café quente e forte e ainda encontrou tempo para escrever, em seu caderno de capa preta de couro, mais um nome de mulher. Por sobre o nome, um traço de lápis vermelho.


CAPÍTULO 16


A viagem no Gina D'Oro


    Exatamente às cinco horas da manhã o Gina D'Oro deixava a "Bacino Porto Vecchio". Dezoito homens faziam parte da tripulação e Giacomo era um deles. Levava como bagagem apenas uma sacola impermeável à tiracolo sobre o casaco de couro mas, dentro do peito, carregava o peso maior: uma gama de sentimentos conflitantes em que a alegria, o otimismo e a esperança se misturavam à tristeza, à angústia e à saudade. Fazia um frio agradável, com a temperatura a 10 graus, própria para aquela época do ano. Giacomo, encostado à balaustrada, via o porto de Gênova se afastando lentamente e não percebeu que estava chorando, pois o vento atirara em seu rosto respingos do Mediterrâneo. Naquele momento sentia sono pois a expectativa da viagem não o deixara dormir direito na noite anterior, e já às quatro horas da madrugada estava de pé. Queria sair sem ser visto mas logo percebeu que a sua mãe já estava na cozinha preparando para ele um café bem reforçado. Dona Benedetta teve oportunidade de mostrar mais uma vez o quanto era forte, deixando para chorar depois que o vulto de Giacomo desapareceu do campo de sua visão. O abraço entre mãe e filho fora longo e silencioso. Ela o abençoou e o beijou com ternura. Naquele instante o marido, Giuseppino Spata, dormia um sono profundo e inocente. Sonhava com a sua Itália triunfante, rica e poderosa. No sonho, no lugar daquele casquete ridículo que costumava usar, seu querido "Duce" usava uma coroa de ouro, incrustada de rubis e esmeraldas, representando as cores da bandeira da pátria.
    Giacomo olhava o casco do barco cortando o mar e via o rosto de sua mãe na linha d'água. Retinha ainda nas mãos um pacote que ela lhe entregara no momento da partida, contendo frutas, queijos e algumas bolachas ainda mornas, que ela fizera especialmente para ele. Aquelas bolachas tinham para Giacomo um sabor de infância. Elas o acompanharam por toda a vida - nas manhãs de domingo, na merenda escolar, no leito do hospital e nas primeiras pescarias. Ninguém as fazia como sua mãe, e ela tinha consciência disso. Aquela bolacha era muito simples para ter receita e saborosa demais para ser copiada. Ele sabia que aquele pacote de iguarias lhe era totalmente desnecessário, pois o barco fora abastecido de gêneros alimentícios, como era lógico, mas a lógica nunca conseguiu vencer o coração previdente e preocupado de uma mãe.
    Pouco tempo depois, Giacomo estava na torre de comando ao lado do cunhado. Há muito tempo que Angelo não navegava. Vivia ocupado demais nos seus escritórios e raramente ia até o porto. Naquela viagem resolvera ele mesmo comandar o Gina D'Oro.
    - Que me diz do meu barco? - perguntou Angelo, quebrando o silêncio.
    - Um grande barco!
    - Grande só? Este é o maior, mais veloz e bem equipado barco pesqueiro da Itália!
    - E bonito também?
    - Claro! Você precisa ver meu camarote. Que luxo! Saiba que, da minha frota, este é a menina de meus olhos. Se quando esta guerra acabar os meus negócios estiverem tão firmes e prósperos como estão agora, farei uma viagem de volta ao mundo nele.
    O Gina D'Oro só saía do porto para viagens maiores. Angelo morria de ciúmes do barco, e quando o entregava a outro comandante, o fazia com recomendações especiais e algumas restrições. Na verdade, fosse quem quer que fosse que estivesse ao comando do grande pesqueiro, não tinha permissão para usar o seu camarote principal.
    - Sua decisão de vir nesta viagem deve ter causado uma certa surpresa entre a tripulação, não? - perguntou Giacomo.
    - Realmente. Eles já estavam desacostumados de me verem a bordo. Há muito que não viajam sob meu comando.
    - Não acha que podem estar curiosos, ou que esse fato pode ter levantado alguma suspeita sobre o nosso objetivo?
    - Não creio. Sempre agi assim. Vez por outra me lanço ao mar sem algum motivo aparente, a não ser a necessidade que sinto de me distrair um pouco, enquanto trabalho. Quando viajo em outro barco qualquer assumo a condição de um mero espectador, um privilegiado turista, mas, quando o faço no Gina D'Oro, não abro mão de seu comando. É no mar que descarrego minhas tensões e volto às minhas origens. Quase nasci num pequeno bote. Meu pai viveu e morreu da pesca, sem sequer conhecer outro ofício. O mar me fascina tanto quanto uma mulher recatada e misteriosa: ela, assim como o mar, me recebe, inebria, me acalenta, me faz queimar de desejo, mas evitando uma intimidade maior, não se deixa dominar e permanece com seus segredos e mistérios insondáveis.
    - Você me fez ver uma linda imagem. Na verdade, sinto da mesma forma. Neste ponto, somos duas almas gêmeas.
    - Como você conseguiu viver longe do mar tanto tempo?
    - Eu sabia que não era um rompimento definitivo, e que mais dia, menos dia, teria que ceder. Da janela do meu escritório, lá na fábrica de massas, eu olhava o mar à distância, diariamente, como alguém que olha a mulher que ama e espera apenas o momento certo para abordá-la.
    - Por que você evitou o mar por tanto tempo?
    - Pelo mesmo motivo que o homem evita a mulher que ama - por insegurança. Quando se deseja e se ama verdadeiramente uma mulher, nós a queremos como amante e companheira e jamais nos conformamos de tê-la apenas como amiga. Eu jamais quis apenas viver para o mar, pois na verdade eu sempre desejei foi viver com o mar. Meu sonho de marinha começou a morrer no nascedouro, quando, em criança, adoeci seriamente. Mais tarde, ao ser reprovado no exame médico da Escola Naval, compreendi que não podia mais conviver com algo que já estava morto dentro de mim. Rompi com o mar única e exclusivamente como instinto de defesa, pois sempre tive consciência de que ele não teve culpa alguma do que me aconteceu. O mar nunca me fez mal, pelo contrário, se alguma participação teve, em toda a história, foi benéfica, pois foi um auxiliar decisivo na minha recuperação.
    - Espero que esta reconciliação seja definitiva e duradoura e que vocês possam viver juntos, e felizes para todo o sempre.
    Giacomo apenas sorriu e acendeu um cigarro. Depois de um pequeno silêncio, que aproveitou para meditar, perguntou:
    - Você acha que estaremos no local do meu desembarque na hora exata que planejou?
    - Se não houver nenhum contratempo, o que espero que não aconteça, você pisará o solo francês antes da meia-noite.
    Angelo sabia que seu cunhado poderia fazer em apenas 4 horas, por terra, aquela viagem, pois 200 km, aproximadamente, separam Gênova de Nice. Acontece que por mar, e naquelas circunstâncias, 18 horas seriam o ideal. Se o Gina D'Oro fizesse aquele percurso direto, sem escalas, desenvolvendo a velocidade de l2 milhas marítimas por hora, do que era capaz, na certa gastaria a metade do tempo. Mas aí eles não procurariam as melhores regiões para a pesca, que era, para todos os efeitos, o objetivo da viagem. Só Angelo ali sabia a rota a seguir e a distância exata a percorrer. Conhecia bem a região e tinha elaborado minuciosamente o plano de viagem. Sabia sobre a profundidade e a temperatura das águas e que, exatamente às 11h 17min da noite, a maré estaria em preamar, o que ele achava o ideal para o desembarque do cunhado. Com a maré em baixa-mar, ele não poderia se aproximar muito da terra devido ao grande número de arrecifes que assolam aquela região rochosa.
    A viagem, para Giacomo, foi mais de recreio do que de instrução. Para que tudo parecesse normal, Angelo se fazia acompanhar pelo cunhado aos quatro cantos da embarcação. Passaram pela casa das máquinas, onde Giacomo pôde ver como funcionava a complicada engrenagem do potente motor que era alimentado a óleo diesel. Viu, nos porões, como era armazenado o peixe sobre o gelo. Passaram pela cozinha, refeitório e dormitório da marujada. No setor de comunicação recebeu noções de radiotelegrafia, e pôde observar como eram transmitidas e captadas as mensagens. E depois de conhecer os sistemas de iluminação e alarme, completou seu rápido curso prático com o sinaleiro, o mais velho tripulante de bordo, um tipo melancolicamente cômico, ágil, irrequieto, cheio de gestos, baixo, narigudo, com um semblante carregado de passado e uma semelhança física com o "Cyrano de Bergerac". Investido de sua importância, como se estivesse representando para uma grande platéia, mostrou a Giacomo alguns sinais convencionais.
    De volta à torre de comando, Angelo, ao lado de seu imediato, deu uma verdadeira aula ao cunhado sobre os instrumentos de navegação. Era verdade que Giacomo em terra, e durante as pequenas viagens que fizera anteriormente em barcos menores, já tivera as primeiras noções da técnica, da ciência e da arte de navegar, mas sabia que tudo aquilo eram pequenos ensinamentos e que só com o correr do tempo e depois de muito praticar é que poderia sentir-se apto para desempenhar, com perfeição, uma daquelas tarefas. De tudo o que vira, o que achou mais complicado foi a engenharia de bordo - de como era traçada, nos mapas, a rota a seguir e se perdia entre latitudes, longitudes, etc. Naquele momento, Angelo passou-lhe o leme, e Giacomo pôde sentir por momentos, a gostosa sensação de pilotar o barco. Do alto da torre pôde ver as redes serem retiradas do mar repletas de peixes de várias cores, espécies e tamanhos. Desceu ao convés, e pôde apreciar de perto a técnica dos pescadores a retirar da água, por meio de arpões, os peixes maiores. Acompanhou, da proa, cardumes velozes que pareciam disputar com o barco uma corrida desigual. Recebeu sol e sal no rosto, e sentiu a pele repuxar. Bebeu muito vinho e adormeceu sobre um rolo de grossos cabos no chão da popa, depois de comer um saboroso peixe, rusticamente preparado pelo cozinheiro de bordo.
    Quando a tarde caiu ele estava no luxuoso camarote do cunhado, bebendo uísque escocês e jogando com ele  uma partida de xadrez.
    - Quando esta guerra imunda acabar eu voltarei e não vou querer outra vida. Perdi meu precioso tempo em terra e só deixarei de navegar se me for totalmente impossível.
    - Não fosse essa sua inadaptação ao fascismo e hoje você já poderia estar dando um grande passo em direção ao seu futuro.
    - Não o recrimino por aceitar passivamente a política vigente, pois na verdade você já estava bem situado na vida quando tudo começou, e agora goza de muito prestígio junto às autoridades. É normal que queira cuidar de seus interesses, mas não aceito as suas indiretas - falou Giacomo, em tom zangado.
    - Não se aborreça comigo, cunhado. Se não fosse seu amigo não estaria me arriscando em lhe ajudar, mesmo acreditando ser uma loucura o que está pretendendo fazer.
    - Se ter um ideal é ser louco, sou o louco mais lúcido do mundo. Estou certo de que estou dando um grande e decisivo passo. Não vou vencer a guerra sozinho, mas vou colaborar com todas as minhas forças e quero ser um dos primeiros a comemorar a vitória final.
    - Invejo a confiança que deposita em si próprio e esta sua certeza de vitória. Não posso lhe negar méritos por seu idealismo. Se estivesse na pior, não teria tanto valor mas, ao abdicar de tantas vantagens, deixando para trás o lar, a família, os amigos, trocando uma vida segura por uma aventura perigosa, passa a receber todo o meu respeito e admiração.
    - Muito breve estarei ao seu lado, e juntos muitas milhas iremos navegar. Quem sabe não faremos aquela volta ao mundo, tão sonhada por você, neste mesmo barco?
    - Seria ótimo, mas mesmo assim, preferiria que no último instante decidisse voltar atrás. Mas, se isso não suceder, quero que saiba que de uma coisa você pode realmente ter certeza: assim que regressar, estarei lhe esperando de braços abertos, aconteça o que acontecer.
    Fez-se um pequeno silêncio. Enquanto Angelo alimentava de fumo o seu cachimbo, Giacomo serviu-se de uma nova dose de uísque.
    - Como estamos indo? - perguntou Giacomo.
    - Até agora, tudo na mais perfeita ordem e sem novidades - respondeu Angelo, sem tirar o cachimbo da boca.
    - Qual a diferença da mulher italiana para a francesa? - perguntou Giacomo, mudando de assunto.
    - Cambial. Com a italiana você gasta liras, com a francesa francos.
    - Falo sério - sorriu Giacomo. Reformulo a pergunta então:- Qual a semelhança entre elas?
    - Ambas aceitam dólares - respondeu Angelo sorrindo.
    - Você está muito frio e materialista. Pare de brincar e me responda direito. Gostaria de saber as nuanças, a essência, o espírito enfim. Você conhece bem as duas e poderia me dar a sua opinião.
    - É claro que estou brincando, mas não deixo de ter um pouco de razão. Ninguém tem a capacidade de conhecer mulher alguma, a não ser outra mulher, é claro. Nós homens, pensamos apenas conhecer, mas se faz questão realmente de minha opinião, vou dar-lhe...
    - Claro, diga.
    - Se pudéssemos mesclar, fundir as qualidades e os defeitos das duas, na certa teríamos a melhor mulher do mundo. Ambas são maravilhosas! A mulher italiana é um vulcão e a francesa é um lago. Você pode explodir ao lado de um vulcão a primeira vista extinto, como pode se perder nas profundezas de um lago aparentemente sereno. Ambas são perigosas e belas, e o homem, explorador por natureza, gosta de sentir o gosto da aventura e o sabor do perigo.
    - Percebo agora o quanto esta viagem está lhe fazendo bem. Há tantos anos nos conhecemos e foi preciso que navegássemos juntos para que eu pudesse descobrir o seu lado lírico, romântico. Você não só externou sua opinião, como transmitiu uma visão poética sobre o assunto. Diante do que disse, cunhado, quero que saiba que meu corpo chamuscado de brasa está pronto para mergulhar no primeiro lago.
    O Gina D'Oro singrava veloz as águas do Mediterrâneo e passava agora por Sanremo, no mar Ligure. Da janela do camarote, Giacomo apreciava a bela vista. Podia-se ver ao longe o porto turístico com as suas primeiras luzes acesas. De repente, Giacomo voltou atrás quatro anos de sua vida, e se via cometendo a sua primeira travessura da fase adulta pois, ao completar 21 anos, passara toda uma noite de sábado no Casino Municipale de Sanremo, maravilhosa atração turística da Riviera dei Fiori. Ali deixara, naquela noite, todo o ordenado do mês e mais algumas economias. Na verdade, há muito tempo que ele vinha se preparando para seu début em cassino. Desde garoto, quando ouviu pela primeira vez histórias de fortunas mirabolantes feitas e destroçadas numa só noite nas mesas de pano verde, ele fez a si próprio a promessa de viver uma noite de emoção, junto à maior concentração humana de ricos, farsantes e sonhadores. Parte de suas economias gastou na indumentária. Mandou fazer um  smocking por um alfaiate de belo talho, amigo da família. Comprou um par de sapatos pretos de verniz e uma camisa de seda com bordados no peito. Conseguiu, emprestado com o pai, uma piteira, uma cigarreira e um par de abotoaduras, relíquias de família. Sem ter a imprudência do rico e o sorriso indecifrável do sonhador, atarraxou no rosto a máscara do farsante, e procurou viver, da melhor maneira possível, o seu papel. Entrou naquela noite nos salões do Casino Municipale com o ar de filho de pai milionário. Seu mais íntimo amigo, se o visse ali, jamais o reconheceria. Com os negros cabelos engomados por fina brilhantina de suave perfume, um cravo branco na lapela e um cigarro americano preso à ponta da longa piteira, desfilava serena e elegantemente. Mas, se a muitos conseguiu enganar, para os profissionais do jogo, que têm um aguçado faro pelo dinheiro, deixava-se trair, pois, por melhor que fosse seu disfarce, não conseguia ofuscar de seus olhos o brilho típico que tem o olhar de uma criança pobre ao entrar numa loja de brinquedos.
    Arriscou um pouco em cada mesa e perdeu tudo em poucas horas, mas jamais se arrependeu. Sempre achou que um homem, por mais sério, equilibrado e econômico que fosse, precisa e merece, vez por outra, uma noite de loucura, desde que isso não se torne um hábito em sua vida. Perdeu até a última ficha, mas manteve a pose. Embriagou-se e acordou, pela manhã, na suíte de um hotel de luxo, nos braços de uma baronesa Fulana de Tal - pois jamais conseguiu lembrar de seu nome - e que tinha idade para ser sua mãe. Refeito do pileque e do susto, logo voltou às origens, recusando um gordo envelope cheio de liras que a nobre senhora fazia questão de lhe presentear. Ao demonstrar escrúpulos, deixou cair a máscara, e por mais que tentasse contornar, inventando histórias desconexas e tentando conservar a pose da noite anterior, punha, cada vez mais a nu, a sua verdade de jovem orgulhoso e pobre soberbo. E quando articulou sua última frase, dizendo que não tivera sorte no jogo e perdera todo o seu dinheiro, ouviu da velha baronesa uma resposta que o marcou para sempre:
    - Quem perde dinheiro é rico. Pobre deixa de ganhar.
    Acabou chorando e aceitando, por empréstimo, o dinheiro apenas para a passagem de volta. Pouco tempo depois, naquele belo domingo de sol, estava dentro do ônibus, de retorno à Gênova, e lamentava apenas não poder ter no rosto a imagem que sempre sonhara: a de um milionário falido.
    Eram nove horas da noite quando o Gina D’Oro foi interceptado por um barco patrulha da marinha italiana. Navegavam bem próximo da costa, na altura de Mortola. O capitão-tenente que comandava a patrulha era um velho conhecido de Angelo e, por isso, examinando apenas a licença para navegar e o plano de viagem, fez cumprir, com indisfarçável desinteresse, parte de sua missão averiguadora. Não exigiu a documentação da tripulação, nem fez questão de examinar a carga. Foi mais uma visita de cortesia do que de inspeção. Depois de provar do puro uísque de Angelo, fez as recomendações de praxe:
    - Não se esqueçam que estamos em guerra e que vocês já estão bem próximos da fronteira com a França. Enquanto navegarem em águas italianas, poderão contar com nosso auxílio. Fora disso, estarão correndo sérios riscos.
    - Não se preocupe, Capitão. Conheço bem esta região e não pretendo arriscar nossas vidas nem meu precioso barco. Iremos um pouco mais à frente e logo retornaremos. Tivemos um dia muito movimentado e proveitoso, e já estamos para encerrar a nossa jornada. Meus homens trabalharam bem e estão fazendo jus a um bom repouso.
    - Quando pretendem voltar ao porto de Gênova?
        - Amanhã, se tudo correr tão bem como correu hoje, ao entardecer estaremos abarrotados de peixes e forçosamente teremos que regressar.
   - Espero que esta viagem seja muito proveitosa e sem incidentes - e olhando em torno, concluiu o capitão-tenente, antes de partir - apesar da noite escura, o mar está calmo e o tempo agradável.
    Depois de todas as tarefas do dia encerradas e de terem terminado de fazer uma pequena ceia, os pescadores e tripulantes que não estavam de serviço se reuniram no refeitório para cantar canções folclóricas ao som de um violão e uma harmônica de boca. Exatamente às 23 horas soou o sino, no toque de recolher. Aquelas badaladas indicavam também que fora cumprido mais um "quarto de hora", e que deveriam ser substituídos os marujos de serviço. Só três tripulantes deveriam ficar acordados: um, na casa de máquinas para controlar a velocidade do navio, um radiotelegrafista e um timoneiro. Os três deveriam ser substituídos de quatro em quatro horas. Naquele momento, na cabine da torre de comando, Angelo, ao timão, conversava com Giacomo:
    - Deixamos Vintimiglia para trás e já estamos navegando em águas francesas. Logo atingiremos o ponto exato em que você deverá saltar. De agora em diante, todo o cuidado será pouco. Os alemães são nossos aliados mas não vão entender um barco pesqueiro italiano a essas horas por aqui. Também o inimigo poderá estar rondando esta área, e o certo é que estamos na posição de um barco pirata entre dois fogos.
    - Como saberei quando será o momento exato em que terei que saltar?
    - Vou aproximar o barco o máximo que puder da costa, evitando os arrecifes. Quando eu começar a fazer a curva para retornar, será o sinal. Você deverá nadar em direção a uma pequena enseada que fica entre duas grandes rochas. Esta praia é totalmente desabitada, e do lado direito dela você terá menos dificuldade para subir a encosta. Logo depois encontrará uma estrada de acordo com o ponto marcado no mapa. Seu contato deverá estar aguardando. Acenda a lanterna três vezes seguidas e espere a resposta.
    Giacomo estudou pela última vez o mapa da região. Tomou um gole de café, fumou um cigarro, arrumou a sacola, despediu-se do cunhado com um forte abraço e, na ponta dos pés, desceu para o convés. O navio estava com todas as luzes apagadas e mergulhado no mais profundo silêncio. A temperatura caíra bastante. Se durante o dia chegara a fazer 20 graus, naquele momento estava um pouco abaixo de 10º. O vento frio cortava o rosto de Giacomo quando ele transpôs a amurada e começou a descer por uma escada de cabos entrelaçados. O Gina D'Oro já estava completando a curva quando Giacomo dava ritmadas braçadas em direção ao desconhecido.
    Angelo dormia em seu luxuoso camarote quando, na manhã seguinte, foi despertado pelo Imediato. O desaparecimento do cunhado lhe foi comunicado pela voz aflita do subalterno. O rosto do Comandante foi revestido por uma expressão de pesar e banhado por algumas lágrimas que, providencialmente, rolaram de seus olhos. Enxugou a face em silêncio, e diante de seu Imediato, registrou o trágico acidente no diário de bordo.


CAPÍTULO 17

O balanço final de um período marcante


    O período de dois anos em que esteve ligado à vida militar estava chegando ao fim e, em breve, Bill daria baixa da Aeronáutica. Ele sabia que nunca fora homem de fazer planos para o futuro e achava que só depois de voltar a vestir, definitivamente, as suas roupas civis é que deveria pensar sobre o que fazer de sua vida. Havia algumas opções, e uma delas seria a de concluir o científico que interrompera, depois de cursar o segundo ano, para servir às Forças Armadas. Abandonar os estudos e ir trabalhar com o pai seria uma outra alternativa. Poderia ainda, se o desejasse, trabalhar e estudar simultaneamente. Sobre sua vida sentimental, então, é que não queria esquentar a cabeça. Ao mesmo tempo em que sabia que deveria por um fim em seu caso com Margareth, tinha dúvidas quanto ao que fazer com Regina. Não tinha certeza ainda se a amava de verdade. Só o tempo, a ausência e a distância, enfim, é que poderiam responder. O certo é que ele já entendia que um caso amoroso só deveria ser esquecido por outro maior.
    Margareth o absorvia. Regina o asfixiava e ele sobrevivia. Com Margareth aprendia tudo da arte e da técnica do amor. Sentia a sensação do equilíbrio, do sexo bem saboreado e curtido, que só uma mulher madura e experiente pode transmitir. Pôde comprovar, tempos depois, mediante outros casos com mulheres na mesma faixa de idade de Margareth, a sensação que sentia quando as tinha em seus braços: era um momento tão glorioso e intenso, que elas sempre lhe deixavam a impressão de que seria aquele o último ato sexual que praticavam em suas vidas. Com Regina era totalmente diferente. Mais pela pouca idade e escassos conhecimentos do que por seu estado virginal e por sua falta de intimidade com o peso do tempo, com o mundo. Bill não só mantivera íntimos contatos com outras moças ainda invioladas, tal qual Regina, como também com jovens mulheres recém-iniciadas no maravilhoso mundo do sexo, e todas elas lhe deixaram a mesma impressão: - a virgem traz o sabor da fruta colhida ainda verde; a jovem mulher, o sabor da fruta amadurecida artificialmente e, só a mulher madura é capaz de apresentar a cor, a consistência e o sabor do fruto colhido no pé, na época certa. Valorizando o detalhe, sublinhando a ação, ampliando o movimento e estendendo o tempo, ela extrai do homem todo o sumo, a seiva e o vigor de que ele é capaz e, em troca, lhe oferece a confiança restabelecida, o orgulho fortalecido e a vaidade alimentada. Com a virgem, ou com a mulher imatura, as sensações causadas são outras. Depois de embates ferrenhos, de bolinagens, ou mesmo com a complementação do êxtase, fica no ar não a quietude e o silêncio respeitoso da paz, mas as atitudes irrequietas, os gritinhos, gemidos e risos nervosos, a aflição e a avidez. Elas raramente dão ao homem aquela sensação que os envaidece - a impressão de um desejo satisfeito. Costuma ficar flutuando no ar o espectro do ato inacabado, interrompido, adiado, com a promessa de ser completado numa outra oportunidade. Mas a juventude é mesmo incompleta. Os jovens, tanto o homem, quanto a mulher, na ânsia de receber, esquecem de se dar e, agindo desta forma, não conseguem atingir a satisfação plena. Muitos culpam o excesso de energia como veículo responsável direto por tal comportamento, e esquecem que este tipo de insatisfação é gerado pelo despreparo, pela falta de experiência e de equilíbrio.
    Era esta a visão que Bill começava a ter de um assunto tão delicado e controvertido. Sabia também que não devia generalizar, pois que, para toda a regra existia a exceção. O amor e o sexo independem de fórmulas e sistemas e só a matemática é uma ciência exata. Não só é possível se ter uma decepção com uma mulher madura, como se encontrar, numa jovem, a parceira ideal. Mas o fato é que Bill sentia-se um aparelho receptor-transmissor - recebia ensinamentos de Margareth e transmitia para Regina. A mãe usava o corpo de Bill, atravessando, para a filha, experiência e saber. Ele, tirando partido da situação, não só saboreava aquela fase de sua vida, que completava a primeira parte de seu aprendizado, como se sentia privilegiado em ser usado como ponte entre mãe e filha, para o transporte de aprendizado e emoções condensadas.
    Uma tarde, quando curtia o sublime momento do depois, Bill com a cabeça de Margareth pousada em seu peito, elogiava a arte e o equilíbrio daquela mulher fantástica:
    - Você é notável, Margareth! Jamais a esquecerei. Ficará comigo em meu corpo como uma cicatriz que me faça lembrar apenas um momento feliz de meu passado.
    - Se deixar em você só a lembrança de nossos momentos agradáveis e os frutos de minha experiência, sentir-me-ei gratificada. Sei que não devo alimentar ilusões e que nossa separação está cada vez mais próxima, mas não gostaria de falar nesse tom de despedida.
    - Provavelmente vamos ter que deixar de nos ver, mas será unicamente para seu próprio bem. Quando minha presença aqui não se fizer mais necessária e a Aeronáutica for apenas uma página do meu passado, devemos encerrar o nosso relacionamento, se não quisermos correr o risco de transformar em mentira o que foi um sentimento verdadeiro. Não posso, não devo, e não pretendo magoá-la.
    - Você está aprendendo muito depressa - falou Margareth, tentando disfarçar a emoção. Cavalheirismo e gentileza são coisa rara entre os homens de sua idade.
    - Você me ensinou muito mais que isso. Fez com que eu soubesse conter os meus impulsos e aprendesse a esperar. Aprendi a dosar as minhas emoções diante de seu perfeito equilíbrio e segurança, suas maiores virtudes. E você, com quem aprendeu tanta coisa?
    - Os alicerces foram fixados em mim por meus pais. Sou filha de militar e fui educada dentro dos mais rígidos princípios da ordem e da disciplina. Cedo aprendi a primeira lição: que existe sempre um lugar certo para cada objeto, e surge sempre o momento adequado para cada ação. Assim moldei o meu temperamento, a princípio impulsivo, e aprendi a esperar. Meu marido também tem sido muito útil. Com sua vida metódica e organizada, deu sequência a meu aprendizado e o resto decorei nas cartilhas da vida.
    - Muito bem, e por que eu? - perguntou Bill, de repente.
    - Por que você, o que?
    - Por que me escolheu e me deixou entrar na sua vida?
    - Por que não? Não quero negar suas qualidades e deixar de reconhecer seus méritos, mas se não fosse você agora, teria que ser outro. Toda a mulher que se casa quer estar sempre em primeiro plano. Eu sempre estive em segundo. Um bom soldado, antes de ser marido, é militar. Quando nossos filhos nasceram eu passei a terceiro plano. Amo o meu marido apesar de tudo, e o compreendo. Sinto até que ele ainda me ama, mas sei também que não se prova o amor com uma declaração passada em cartório e firma reconhecida. O amor livre, quando muito, pode ser uma expressão poética, mas na prática do dia a dia se distancia muito da verdade. O amor é um sentimento prisioneiro. É como um pássaro preso a uma gaiola, que para cantar precisa ter água e ração substituídas diariamente. Precisa de atenção e cuidados especiais. Se deixarmos a gaiola aberta o amor voa e vai cantar para outro alguém; se negligenciarmos o seu sustento ele morre.
    - Mas se o seu amor por seu marido ainda existe, você prova com isto que sempre recebeu dele água e alpiste...
    - Em doses homeopáticas - interrompeu Margareth. O suficiente apenas para não morrer, mas jamais para cantar. Em compensação a portinhola do meu cativeiro sempre esteve aberta. Para não perder o dom do canto, exercito minha voz, vez por outra, para ouvidos que escolho e que possam se interessar em ouvir-me.
    - E por que não voou para longe, de vez?
    - A rígida educação que recebi cortou minhas asas. Fiquei sem condições para voos maiores. O máximo que consegui foi cair da gaiola três vezes e você foi a minha terceira queda. De repente senti a necessidade de cantar e voar outra vez. Talvez o meu último canto... meu último voo. Um voo cego, rasante, em rumo errado. Curto, para não perder o caminho de volta. Senti a necessidade de provar a mim mesma de que seria ainda capaz de encantar um jovem com meu canto rouco e cansado.
    - Um canto suave, afinado e melodioso. Maravilhoso, enfim! - falou Bill, com emoção.
    Naquele instante Bill beijou Margareth com ternura, amor e respeito. Os dois ficaram ainda algum tempo em silêncio com os olhos embaçados. Gostariam de prolongar aquela tarde indefinidamente, mas o tempo se esgotara. De repente ele sentiu a necessidade de devolver aquela preciosa ave à sua gaiola de origem.
    No dia seguinte, Bill e Regina combinaram passar juntos o próximo domingo. Marcaram encontro na praia e lá então ele apresentaria Fernando a ela. Depois iriam conhecer o estúdio de seu maior amigo e "melhor fotógrafo do mundo"!

















CAPÍTULO 18
Um dia muito extenso
 
Giacomo estava em grande forma. Fizera a travessia a nado com relativa facilidade. Na praia escura e deserta, procurou um abrigo entre as rochas para se esconder do frio e descansar. Tudo, até ali, correra dentro do plano traçado. Ele era esperado entre onze da noite e uma hora da madrugada. Àquela hora, no local previamente estabelecido, seu contato já deveria estar lhe aguardando. Olhando para o seu relógio, Giacomo comprovou que ainda tinha a seu favor quarenta e poucos minutos, e achou que poderia dar-se ao luxo de fumar um cigarro para descarregar a tensão.
Subiu a encosta do morro com certa dificuldade, pois além da escuridão e de desconhecer o caminho, o local era íngreme e sinuoso. Já na estrada, acendeu três vezes seguidas sua lanterna e esperou. Não houve resposta e pela primeira vez, naquele dia, ele ficou preocupado. - "Estaria no lugar certo, ou teria errado o caminho?" - pensou. Aquela era a parte mais importante do plano, e se algo não desse certo ele ficaria irremediavelmente perdido. Voltar atrás seria arriscado e difícil; permanecer na França, sem a cobertura de uma pessoa amiga, seria praticamente impossível. Faltavam cinco minutos para uma hora da madrugada quando ouviu um ruído estranho. Tirou o punhal da bota e, sem fazer barulho, trocou rapidamente de lugar. Pensou em acender de novo a sua lanterna mas sentiu um frio a lhe correr pela espinha. De repente viu o sinal. Do outro lado da estrada, a uma certa distância, por trás de uns arbustos, pôde ver, por três vezes seguidas, a mesma luz como se fosse um grande vaga-lume. Respondeu e esperou. Logo em seguida percebeu que um pequeno vulto surgia detrás do mato rasteiro e caminhava em sua direção. Quando chegou bem perto dele, Giacomo pôde notar que se tratava de um homem idoso e baixote, vestido dentro de uma roupa escura como a noite, e com um gorro de lã azul marinho por sobre a cabeça. Seu rosto, parcialmente coberto por longas barbas brancas, apresentava uma pele queimada pelo sol, marcada pelo tempo e cansada de desilusões.
- Monsieur Spata? - perguntou o recém-chegado.
- Sim, quem é o senhor? - falou Giacomo, no mais puro francês.
- Vim a mando do Dr. Louch. Ele não pôde vir mas posso lhe garantir que o senhor estará seguro em minhas mãos.
- Ótimo! Já estava começando a duvidar de minha segurança. Quando vou ver o Dr. Louch?
- Talvez amanhã. Está aqui há muito tempo?
- Há uns quarenta minutos, mais ou menos, e não nego que já estava começando a me preocupar.
- Estive aqui antes mas tive que me afastar do local, pois dois motociclistas alemães estiveram rondando esta área durante algum tempo. Sabe andar de bicicleta?
- Sei, por que?
Trouxe duas. Moro a uns três quilômetros daqui e o senhor terá que pernoitar na minha casa.
- Só terei prazer com isso, e muito obrigado por ter vindo me receber.
- O senhor, a mim, não tem o que agradecer. Se alguma dívida tiver, será com o Dr. Louch. Vamos andando em direção de onde vim. Ali, por trás dos arbustos, deixei as duas bicicletas.
Ao olhar as bicicletas, Giacomo entendeu o ruído que ouvira momentos antes, e que não conseguira identificar.
Monsieur Rocheteau, seu anfitrião, era um homem amargurado, rústico, de poucas palavras, mas muito hospitaleiro. Vivia da pesca, humildemente. Tinha um pequeno barco nos fundos de casa e, ao lado dele, sobre um cavalete, um velho motor de popa quase obsoleto que raramente era usado ou por falta de peças, ou por ausência de combustível. O velho pescador tinha que buscar o sustento, seu e de sua família, com o auxílio dos remos.
A casa, de construção antiga, era pobre e estava mal conservada, mas, apesar disso, era agradável e simpática. Havia uma grande sala com uma pequena lareira no centro, uma cozinha, um banheiro e três pequenos quartos construídos em meia-água.
A esposa e cinco filhos, sem contar os dois que morreram, constituíam a família de Monsieur Rocheteau. Àquela hora estavam na casa, com eles, um casal de gêmeos de 7 anos, considerados temporãos, e a filha Ondine de 18. Da filha mais velha evitou comentar, dizendo apenas que não morava mais ali, e falou que tinham um filho homem que estava servindo ao exército e que por lá raramente aparecia.
O trabalho pesado e a pobreza embruteceram Ondine, que aparentava ter mais idade. Apesar das roupas grosseiras e da fisionomia cansada, podia-se notar que por trás de toda aquela aparência desleixada se escondia uma bonita moça, com seus olhos graúdos, claros e expressivos e uma pele morena, bem bronzeada pelo sol da região. Tinha um corpo aparentemente bem feito, mal realçado por um vestido comprido de fazenda pobre e pesada. Giacomo a observava enquanto ela, em silêncio, arrumava a mesa.
Madame Rocheteau na cozinha preparava alguma coisa, quando seu marido, que tinha se ausentado por instantes, retornava à sala.
- Suas roupas ainda estão molhadas - falou à Giacomo, ao entrar. Vista estas aqui; são de meu filho. Ele tem o seu corpo.
- "Merci, monsieur". Não precisava se incomodar.
Giacomo só se deu conta de que estava com fome, ao sentar-se à mesa. Tomou uma deliciosa sopa de cebola, comeu pão de centeio, queijo e bebeu uma caneca de vinho. Ondine serviu a mesa sem tirar seus olhos graúdos do visitante e, sempre que podia roçava seu corpo no dele. Monsieur Rocheteau lia jornal, sentado numa espreguiçadeira, enquanto fumava seu cachimbo. Ele usava um fumo muito ordinário que exalava pela sala um cheiro forte e desagradável. Ao seu lado, sentada numa poltrona esburacada, sua mulher cerzia meias de lã. As atitudes provocantes de Ondine, a princípio discretas, passaram a ser acintosas e Giacomo já não se sentia tão à vontade. Ele podia jurar que os pais da jovem também estavam notando. Ela insistia em lhe servir mais vinho e ele, por educação, acabava aceitando. Sempre que se debruçava para encher a caneca do visitante, Ondine roçava os fartos seios no ombro do rapaz. Este, ao perceber que seu anfitrião cochilava vez por outra em cima do jornal, resolveu falar:
- Não poderia ter melhor acolhida. Na verdade não encontro palavras para agradecer a farta refeição que me foi servida e tudo o mais que fizeram por mim até aqui.
Houve um silêncio constrangedor e, diante disso, Giacomo resolveu continuar falando, exercitando com isso o seu francês correto e fluente:
- Lamento o trabalho que estou dando e, se me permitem, gostaria agora de descansar e deixar que vocês descansem também.
- Um pedido de Dr. Louch para nós é uma ordem - falou por fim Monsieur Rocheteau. Seu quarto já está arrumado e daqui a poucas horas o céu estará clareando. Hoje o dia foi muito extenso e cansativo e todos nós estamos precisando de um bom sono - e falando para a filha, acrescentou: - Mostre a ele os aposentos, Ondine.
Ela o levou até o quarto do irmão, que ficava nos fundos da casa. Era o menor dos três e tinha uma pequena janela que dava para o quintal. Ondine ocupava o quarto do meio, com os irmãos gêmeos, e seus pais ficaram com o primeiro e mais espaçoso. Ela acendeu uma luz na cabeceira da cama, puxou as cobertas e entregou a Giacomo uma toalha limpa. Antes de sair falou pela primeira vez naquela noite:
- Se estiver precisando de mais alguma coisa é só falar - e acrescentou com malícia e voz suave - durmo no quarto ao lado e tenho o sono leve. Vou deixar a porta encostada para o caso de precisar de mim. Boa noite.
Aquele dia fora para Giacomo o mais longo e emocionante de toda a sua vida. Ainda excitado com tudo o que lhe ocorreu, exausto e tonto de vinho, não conseguia pegar no sono. Agitava-se sob as cobertas na tentativa inútil de ordenar os acontecimentos daquelas últimas 24 horas. Os fatos foram tirados da ordem por sua cabeça que rodava e embaralhava tudo. Entre uma imagem e outra surgia a de Ondine e ele só foi perceber que, dentre as várias aparições, uma delas era realmente verdadeira, quando a jovem se meteu por baixo das cobertas e tocou seu corpo no dele.
- O que está fazendo aqui? - perguntou Giacomo, como se estivesse falando a um fantasma.
- Vim completar as honras da casa - sussurrou Ondine.
- Você está louca? Volte já para o seu quarto. Preciso dormir...
- Eu sabia que você ainda estava acordado. Se não fosse esta certeza, não teria vindo.
- Como pôde ter certeza disso?
- Senti que você estava muito tenso, e sei que pessoas assim nesse estado precisam de algo para relaxar.
- Já imaginou o que será de mim se seus pais perceberem o que está acontecendo?
- Não se preocupe. Eles têm o sono muito pesado, e afinal nós não vamos fazer tanto barulho assim, não é?
- Que tal se deixarmos para discutir esse assunto amanhã, heim?
- Em tempo de guerra não se deve fazer planos para o futuro, mesmo que esse futuro esteja bem próximo. Cada momento deve ser vivido com a maior intensidade porque o amanhã é incerto.
- Hoje já vivi todos os momentos que tinha direito, e posso jurar que serei incapaz de viver mais alguma coisa sem antes dormir um pouco. Mas não se preocupe, pois posso lhe garantir que não permitirei que acabem o mundo antes de eu ver Paris, e de nos dar uma nova oportunidade.
- Não haverá uma nova oportunidade. Você deverá partir pela manhã e provavelmente eu jamais o verei. Só temos esta noite.
- Noite? Daqui a pouco amanhece e eu estou exausto!
- Sempre ouvi dizer que o homem italiano é o melhor amante do mundo e você não vai querer me decepcionar agora, não é?
- Não acredite em tudo que ouve. Nós exportamos esta imagem para o resto do mundo mas, creia, é pura propaganda... De mais a mais, na situação em que me encontro, não posso ser melhor do que ninguém em coisa alguma...
- Saberei dar os descontos necessários, "mon amour". Relaxe-se e deixe que eu faça tudo por nós dois.
Ondine não parou um só momento de acariciar suavemente o corpo de Giacomo, por sob as cobertas, enquanto falavam. Ela não usava nada por baixo do longo camisolão que vestia. O carinho e o efeito do vinho foram minando as suas já enfraquecidas resistências e ele acabou por se entregar passivamente, a princípio. Embora sabendo que estava abusando da confiança e da hospitalidade dos donos da casa achou que seria tolice resistir. Logo depois que se fez silêncio, Giacomo ficou fortemente excitado. Beijaram-se como se o amor fosse um sentimento capaz de surgir, em toda a sua plenitude, de um momento para o outro. Ondine rolou na cama e tomou posição de joelhos, por cima do corpo dele. Da pequena janela, através de um vidro partido, entrava o vento frio da madrugada. Ondine montou lentamente e fechou os olhos. Naquele momento imaginou estar na praia, cavalgando sobre um lindo corcel, com a forte brisa marítima a esvoaçar os seus longos cabelos. O roçar dos sexos e as respirações ofegantes povoavam o quarto de ruídos mas, para Ondine, o que ouvia, era o mar em fúria batendo contra os rochedos. De repente o corcel tropeçou num lençol de água e os dois corpos rolaram pela praia. Naquele momento ela confundia unhas afiadas com areia áspera, suor com água salitrosa, cheiro de sexo com maresia e orgasmo com espuma. E juntos, a um só tempo, soltaram um longo e abafado gemido.
Ondine acendeu dois cigarros, colocou um entre os lábios de Giacomo e falou:
- Estou feliz por dar a você a minha primeira noite de amor.
Sobressaltado, Giacomo sentou na cama, num movimento rápido.
- O que está tentando me dizer?
- A pura verdade...
- Quer dizer então que você era...
- Virgem? - completou Ondine a pergunta. Não seja tolinho “mon amour”, e não deixe que uma preocupação estrague esse nosso momento de felicidade...
- Você ainda não me respondeu...
- Só o fato de você não ter notado a diferença me surpreende e me envaidece. Claro que sou mulher. Os soldados nazistas me descobriram pouco tempo depois de chegarem por aqui. Fui violentada por três brutamontes arianos e consegui esconder de meus pais, até hoje, esse triste acontecimento. A partir do momento em que soube que estava para chegar, e do objetivo de sua viagem, comecei a me interessar por você. Confesso que tive medo ao me por em seus braços. Medo de que estivesse morta para o amor, mas você me fez vibrar de prazer e me proporcionou um momento de indescritível emoção. Jamais em minha vida poderei esquecer esta noite, "mon amour", e obrigada por me ter restituído à vida.
Sem dizer uma só palavra, Giacomo tomou Ondine em seus braços e a beijou. Foi um beijo despido de sexo e revestido da maior ternura. Ao mesmo tempo em que Ondine, em passadas curtas e macias, passava pela porta e deixava o quarto, o primeiro raio de sol da manhã penetrava pela janela, suavemente.
Para Giacomo aquele dia, além de longo e emocionante, tivera um final surpreendente.
Ele só foi acordar às dez horas da manhã, com alguém batendo em sua porta.
- Pode entrar - falou depois de bocejar e esfregar os olhos.
Num instante surgiu diante dele, imaculadamente de branco, a figura de Dr. Louch. Depois de um abraço, carregado de emoção, falou o doutor:
- Vim lhe buscar. Estou com uma ambulância estacionada aí fora e um pequeno problema...
- Qual é o problema?
- O motorista...
- O que tem ele?
- Não o conheço. O motorista que vinha comigo até aqui me era de inteira confiança, mas foi designado para um outro serviço de emergência e não pôde regressar ao hospital até a hora marcada. Na impossibilidade de esperá-lo por tempo indeterminado, devido a outros compromissos já assumidos por mim, peguei o primeiro que encontrei em disponibilidade e vim.
- Esse incidente pode alterar os nossos planos, não?
- Um pouco. A partir deste momento, você é um velho conhecido meu que está com uma forte crise de apendicite e mal pode se locomover.
Enquanto conversavam, Giacomo percebera que alguém já tinha estado ali em seu quarto, pois suas roupas estavam secas e passadas a ferro, sobre uma cadeira, e em cima de uma pequena mesa colocaram uma grande jarra de água e uma bacia. Enquanto ouvia Dr. Louch o instruindo a respeito de como deveria proceder, lavou o rosto, escovou os dentes e vestiu-se rapidamente. Só não se barbeou para não tirar do rosto aquela expressão abatida que sempre fica em quem tem a barba por fazer. Ao se olhar no espelho pôde comprovar: a aparência condizia com o tipo que teria que representar.
Naquela hora a família Rocheteau estava distribuída em atividades diversas. O velho, que saíra cedo para pescar, deveria estar na cidade comprando mantimentos para a casa; a mulher lavava roupas no quintal, depois de ter cuidado da pequena horta e da criação que era constituída de uma cabra de leite, um casal de porcos e algumas poucas galinhas; o casal de gêmeos, com a natural curiosidade infantil, rondava a ambulância na porta da rua e finalmente, Ondine, na cozinha, preparava o almoço. Giacomo estava acabando de passar o pente nos cabelos quando ela surgiu na porta do quarto, empunhando uma bandeja com o seu desjejum. Ele não conseguiu disfarçar o espanto diante de tamanha transformação. Não, aquela não era a mulher que estivera em seus braços a poucas horas atrás. Era uma menina! Ondine vestia uma saia rodada, de fazenda leve e florida. Usava uma blusa verde, de alças, com acentuado decote. Tinha os cabelos presos por uma fita também verde e um tom levemente rosado nos lábios. Além de toda aquela expressão de felicidade, ela trazia um brilho de vida em seus olhos.
- Dr. Louch me disse que você está muito doente e precisa de se alimentar - falou Ondine ao entrar, piscando os olhos para o doutor. Me parece que você teve um sono muito agitado esta noite...
- Por que?
- Do meu quarto ouvi muitos ruídos vindos daqui. Teve algum pesadelo?
- Não foi bem um pesadelo, foi um sonho. Um lindo sonho, por sinal - falou com malícia e um sorriso no olhar.
Sentindo que havia algo diferente no ar, Dr. Louch deixou os dois a sós e foi até os fundos da casa, para cumprimentar Madame Rocheteau. Enquanto tomava o café, Giacomo conversava com Ondine.
- Quase não a reconheci, há pouco, quando entrou aqui. A blusa, a saia, esta fita em seus cabelos, devolveram a você a juventude perdida. Você está linda!
- Pouco adiantaria as roupas e os cuidados que tive com a minha aparência, se não estivesse me sentindo bonita por dentro, como realmente estou.
- E por que então se arrumou desse jeito?
- Porque tive receio de que você não enxergasse o meu interior e quis que levasse de mim a melhor imagem. Quero que saiba que foi você quem me transformou, devolvendo-me a alegria de viver.
- Gostaria de lhe dizer, Ondine, que sempre que puder...
- Não me prometa nada, chéri - interrompeu Ondine. Você aqui já cumpriu com êxito sua missão. Será designado para outras, bem mais importantes e arriscadas. Provavelmente jamais nos veremos mas, se isto acontecer, devemos encarar o passado como se tivesse sido apenas um lindo sonho, pois só assim vamos ter condições de ser bons amigos no futuro.
Dr. Louch pigarreou da porta, interrompendo o beijo de despedida. Giacomo, contraindo o rosto para simular uma imagem de dor, caminhou até a ambulância com dificuldade, apoiando-se em Ondine e no velho amigo. À distância, Madame Rocheteau acompanhava a encenação. Os gêmeos, assustados, nada entenderam da situação.
- Adeus, chéri - falou Ondine.
- Adeus, mon amour - disse o rapaz.
O motorista ajudou a acomodar Giacomo no interior da ambulância, e ouviu do Dr. Louch algumas recomendações:
- Dirija com atenção redobrada. O estado dele merece cuidados especiais. Dei-lhe um sedativo e me parece que a dor já está cedendo. Talvez precise operar. Quando chegarmos ao centro da cidade use a sirene, se for necessário.
- Dr. Louch, sentado ao lado de Giacomo na parte de trás do veículo, falou baixinho:
- Sabe dirigir?
- Sei, por que?
- Então já está com um emprego garantido. Você vai ser motorista de ambulância e trabalhar para a Cruz Vermelha Internacional.


CAPÍTULO 19

O jantar de despedida


O domingo estava iluminado por um sol acanhado e o vento corria livre, levantando a areia, encrespando as águas e intimidando os banhistas. Poucos, naquela manhã, se aventuraram a um mergulho no frio mar de Copacabana. Os que ali se encontravam, na sua maioria, pertenciam aos grupos de frequentadores habituais, que costumam ir à praia estando ou não fazendo bom tempo. São os que vão para praticar esportes, fazer exercícios e manter o "papo" em dia.

Afastados do grupo de amigos comuns, Bill e Fernando conversavam com Regina, que acabara de chegar.

- Esta é Regina, de quem já lhe falei - disse Bill.

- Você não é o assunto predileto dele, é o único - falou Fernando pilheriando e sorrindo para a moça.

- Obrigada pela mentirinha agradável, mas se conheço Bill como penso, sei que ele é erudito e volúvel demais para se prender a um só assunto.

Todos riram. Regina tirou as sandálias, a calça comprida de jeans e a blusa de malha que vestia, e despontou dentro de um discreto maiô de duas peças. Resolveu dar um mergulho, no que foi acompanhada por Bill. Da areia, a uma certa distância, Fernando observava admirado a disposição dos dois que enfrentavam o frio e o mar agitado. Entre brincadeiras, mergulhos e troca de carícias, uma onda maior os pegou distraídos no quebra mar e, aquele beijo que trocavam, tão doce no início, teve um sabor de sal, espuma e areia. Os dois corpos rolaram juntos até a praia e, por momentos, ficaram entrelaçados. Aquela cena, que misturou a violência do mar com a ternura do amor, impressionou Fernando que ficou imaginando a bela sequência de fotos que poderia ter tirado se estivesse ali com sua câmera. Aqueles flagrantes, se tivessem sido registrados, ganhariam na certa o título de "sobreviventes do amor".

Novamente juntos, os três voltaram a conversar.

- Tomei a liberdade de convidar Regina para conhecer o seu estúdio, Fernando. Estou certo de que ela saberá apreciar a sua arte.

- Fez muito bem - disse o rapaz e, olhando para Regina perguntou: - Você gosta de fotografia?

- Muito, mas não creio que saiba distinguir uma foto perfeita de uma outra tirada com arte.

- É fácil. Uma fotografia tecnicamente perfeita é aquela em que o objetivo a ser focalizado aparece bem enquadrado, sem distorções, sombras ou claridade em demasia. Os modelos e objetos estão sempre estáticos à sua frente, em pose, esperando por você. Na fotografia artística é diferente, a pose é substituída pelo instantâneo. Você tem que registrar a ação, o momento, o fato, e só assim consegue captar os detalhes da vida, tais como felicidade, tragédia, miséria, dor, o absurdo inusitado. As curiosidades da vida vegetal e animal e toda a gama de sentimentos e emoções humanas. As posições se invertem. Enquanto na pose todos esperam por você, no instantâneo, você terá que esperar pelo momento adequado com a paciência de um espião. Afinal, um bom fotógrafo é aquele que espiona a vida, usando de todos os meios e artifícios de que dispõe para surpreender a surpresa: esconderijos, disfarces, teleobjetiva e etc. A emoção não para, não faz pose, ela acontece e se transforma e você terá que estar atento para captá-la no seu momento maior.

- Maravilhosa explicação, Fernando! Vou tentar atingir o sentido mais amplo desta arte. Até aqui só entendi a fotografia como o melhor veículo de que dispomos para nos ajudar a recordar uma pessoa querida ou um momento agradável.

- Você me parece uma moça inteligente e sensível e, se ainda não entende tanto do assunto assim como diz, ao lado de Bill, em pouco tempo, será uma "expert".

Chega, Fernando - falou Bill. Não precisa impressionar tanto a garota com sua lábia. Não esqueça que ela é minha namorada e eu posso ficar com ciúmes. Que tal se fôssemos agora até o seu estúdio ?

- Quando quiserem, ou melhor... eu empresto as chaves e vocês vão na frente. Tenho um probleminha ainda para resolver por aqui e, logo logo vou me juntar a vocês, ok?

- Se quiser, podemos esperar por você - disse Bill.

- Não há necessidade. Aproveitem o tempo livre e tirem algumas fotos. Tenho máquina e filmes por lá à disposição e espero que não façam cerimônias. Quero que se sintam à vontade, certo?

Logo que entraram no estúdio, Regina perguntou a Bill onde ficava o chuveiro. Precisava tirar o sal e a areia do corpo. Depois de mostrar a ela o caminho, ele ficou na sala admirando a aparelhagem. De repente, usando de sua fértil imaginação, passou a se sentir em "Hollywood", dentro de um grande estúdio cinematográfico. Imaginou-se na pele de um famoso diretor, pronto para rodar um importante filme. "Luz, câmera, ação" - pensou. Imediatamente iluminou o ambiente, pegou a câmera e espalhou as roupas de Regina pelo chão: calça, blusa e sandália, deixando a última peça próxima à porta do banheiro. Do lado de fora já se podia ouvir o barulho do chuveiro. Bill começou a disparar a máquina, focalizando as peças de roupa da moça, espalhadas pelo caminho. Com um leve toque, a porta que estava apenas encostada abriu-se e ele entrou. Em seguida, com o auxílio do "flash", voltou a disparar focalizando os contornos do corpo de Regina, desenhados na cortina plástica do boxe. Ao abrir a cortina Bill ficou extasiado diante do que viu. Ainda tentou tirar algumas fotos, mas já não sentia tanta firmeza nas mãos. Seria inútil insistir. Deixou a câmera de lado, despiu o calção e entrou no boxe. Mais feliz do que surpresa, Regina o recebeu de braços abertos sob a forte ducha. Bill pensou estar plagiando aquela cena, de um filme qualquer que vira, e só caiu na realidade quando se lembrou de Margareth. Cena parecida acontecera com eles e, ao lembrar dos detalhes, os repetiu. Momentos depois, inteiramente nus e ainda molhados, corriam pela sala e se atiravam nos almofadões. E ali, quase tudo que poderia acontecer, aconteceu num abrir e piscar de olhos. Afinal era aquela a primeira vez, em mais de um ano e meio de namoro, que podiam gozar de toda a privacidade, e estavam famintos de amor e segurança. Regina, entre gemidos de prazer, falava ao ouvido de Bill:

- Me guardei para você. Sou toda sua. Quero que me faça mulher.

- Não posso.

- Por que, você não me ama?

- Justamente por isso é que não posso. Podemos nos satisfazer de muitas maneiras sem que sintamos remorsos depois.

- Esta sua atitude é covarde. Você não me ama o suficiente.

- Pelo contrário. Covarde eu seria se me aproveitasse de sua fraqueza, se não me importasse com o que pudesse lhe acontecer depois...

- Espero que esteja falando a verdade. Se amanhã descobrir que você mentiu pra mim, jamais o perdoarei.

- Quero que este momento fique marcado em você pela ternura e não pelo arrependimento.

Antes que Regina dissesse mais alguma coisa, ele a beijou com emoção.

Bill atingiu três vezes o máximo do prazer, e Regina perdeu as contas de orgasmos que teve. Tudo acontecera muito rapidamente, sem pausas, sem intervalos. Extenuado, Bill levantou-se e, sob o chuveiro, procurou refazer as energias. De volta à sala, ele encontrou Regina deitada no sofá. Estava ainda despida e, em seu corpo, apenas uma corrente dourada em volta do pescoço, da qual pendia um vistoso medalhão. Foi aí que Bill teve consciência do corpo escultural que tivera em seus braços, e ao seu inteiro dispor, durante duas horas de aflição. Controlando seus instintos, retomando a calma e o equilíbrio, deu seqüência ao trabalho que interrompera. Segurando a câmera com mãos firmes, procurou o melhor ângulo. Regina, a cada disparo do "flash", mudava de posição como se fosse uma modelo profissional experiente. Assim ela fazia desfilar o seu corpo com sensualidade, graça e luxúria, ora realçando os seios fartos, redondos e rijos, ora mostrando as coxas roliças, pernas bem torneadas e os pés delicados. De bruços, exibia as nádegas divinas e suavemente empinadas e, virando-se de frente apresentava, abaixo da planície, a pequena elevação coberta por uma grama castanha e espessa, que cobria parcialmente e envolvia em segredos e mistérios, o caminho do tesouro proibido.

Bill sentia as pernas trêmulas. O esforço que fizera para manter intacta uma frágil membrana, o deixara naquele estado. Sabia que o que sentia não era um simples cansaço físico. Mas, diante das provocantes poses de Regina, novamente se excitou, suas reações invadiram suas reflexões e, aos poucos, lentamente, ele se sentiu ressuscitar das cinzas. Regina, ao perceber, concentrou toda a luxúria em seus próprios olhos, e seus lábios umedeceram. Mais uma vez a câmera foi abandonada, passando do plano principal para um outro sem importância. Jogada num canto qualquer da sala, ela se conformou em ser apenas uma testemunha cega de uma cena delirante. Bill tentou se mover mas foi Regina quem se antecipou e tomou as iniciativas. Levantando-se de um salto, atirou-se sobre Bill e o jogou em cima dos almofadões. Dobrou o corpo sobre seus joelhos, e com a ponta da língua percorreu todo aquele corpo moreno, atlético e musculoso. Bill, surpreso e embevecido, fechou os olhos e sentiu aqueles lábios macios a morder a sua carne, a lamber seus músculos, a beijar seus nervos e a sugar seu néctar. E depois, só restou o silêncio.

Deixaram o apartamento antes de Fernando aparecer. Na rua, Bill tranquilizou Regina:

- Não se preocupe com as fotos. Ninguém as verá. Eu mesmo as revelarei.

Em seu penúltimo dia no quartel as brincadeiras foram inevitáveis. No entanto, seus companheiros nada fizeram que o prejudicasse. Bill era muito querido e respeitado na tropa. Dias antes, fora convidado pelo Coronel Carneiro, para naquela noite jantar com ele em sua casa. Chamado ao gabinete do seu comandante, ouviu dele palavras elogiosas:

- Você foi um soldado exemplar e, em todo esse tempo em que sou militar, quero que saiba que não tive ordenança melhor. Vou sentir a sua falta, mas isso faz parte de nossa rotina. Cada ano transformamos crianças grandes em homens de verdade, dando-lhes noções de dever cívico e de amor à pátria. Transformamos gente raquítica em atletas fortes e bem nutridos. Cuidamos tanto do seu físico como de seu espírito. Se souberem usar, na vida civil, os ensinamentos que durante dois anos aqui adquiriram, estarão todos aptos para desenvolverem com eficiência qualquer tipo de atividade. O corpo são e a mente sã, aliados à disciplina, formam o maior conjunto de virtudes do homem, capazes de levar qualquer cidadão ao êxito. Você será um vitorioso, e eu aposto em seu sucesso.

Bill emocionou-se com aquele pequeno discurso e, ao mesmo tempo, sentiu-se um pouco envergonhado. Afinal ele não fizera por merecer tanta confiança assim.

O jantar não poderia ter sido melhor: um saboroso risoto de camarão com batata palha e salada, regado a vinho e refrigerante. A empregada serviu à mesa, de uniforme, e todos estavam vestidos como se fossem comer no mais fino dos restaurantes. Depois de servida a sobremesa, foram para a sala de estar esperar pelo café.  Em dado momento, Bill percebeu que o Coronel fazia um sinal qualquer para a filha. Esta, ao entender o pai, saiu da sala por instantes, retornando minutos depois, com um pequeno embrulho nas mãos.

- Queremos que receba esta lembrança como prova de nossa amizade e gratidão - falou Regina para Bill.

O rapaz desembrulhou com cuidado, mostrando-se surpreso com o valioso relógio folheado a ouro que recebeu, e logo o colocou no pulso.

- Esperamos que ele o acompanhe nos principais momentos de sua vida - continuou Regina - e assim tenha mais um motivo para se lembrar de nós.

- As atenções e o carinho que recebi durante todo esse tempo de convivência, amiga e afetuosa, seriam o bastante para me deixar grato pelo resto de minha vida. Se alguma coisa fiz, de bom, foi apenas para retribuir o muito que recebi. Agradeço de coração o presente, mas quero deixar bem claro que não precisaria ter um objeto tão valioso comigo para me lembrar de vocês.

No olhar de Regininha, o desejo de beijá-lo; no olhar de Margareth, o orgulho pelo desempenho hábil e cavalheiresco de seu aluno; no olhar do Coronel, a gratidão por tudo de bom que Bill fez por sua pequena família.

- Você merece, meu filho - falou o Coronel. Em todo o tempo que estive ocupado, ou viajando, você soube prestar diversos favores à minha esposa e à minha filha. Seus serviços foram eficientes. Seu apoio e companhia, nas horas difíceis, inestimáveis. Portanto, só temos o que agradecer. Além do mais, quero que saiba que estou a par de seu namoro com Regininha e faço muito gosto com isso. Dou minha permissão para que venha falar com ela nos fins de semana, e se já está pensando em cuidar de seu futuro imediatamente, procure o meu irmão nesse endereço - entregou a Bill um cartão. Já falei com ele a seu respeito e, estou certo de que não só vai empregá-lo, como lhe oferecer todas as condições para seu progresso na empresa. Tudo irá depender de você.

- Agradeço mais uma vez e quero que esteja certo de que, a qualquer momento que eu precisar, farei uso deste cartão com todo o prazer. Vou parar um pouco para pensar. Estou muito confuso, cheio de dúvidas, e não quero tomar uma decisão precipitada que faça com que eu venha a me arrepender depois.

- Bem pensado, meu rapaz - falou o Coronel.

- Meu pai deseja que eu vá trabalhar com ele - continuou Bill. Tenho ainda meus estudos para concluir. Vou pensar em tudo com muito carinho, Coronel, e pode estar certo de que decidirei pelo o que achar melhor.

- Ótimo! Assim é que se fala. E agora que me diz de esticarmos esta noite?

- Como assim? - perguntou Bill.

- Há muito tempo que não levo minha mulher para dançar, e se não se importa de dormir um pouco mais tarde, poderíamos ir a uma boate, que me diz?

Houve um momento de silêncio. Nos rostos de Margareth e Regina, uma radiante expectativa.

- Acho que não estou preparado para isso esta noite, senhor.

- Não se preocupe. As despesas correrão por minha conta. Você é meu convidado. Passamos por sua casa, e esperamos no carro que você suba e troque de roupa, se assim o desejar. Que tal?

- Está bem - falou Bill com convicção. Afinal, não é todo dia que se deixa a vida militar...

Na boate, Bill dançou com Regina e com Margareth e, pela última vez, sentiu a maciez e o calor daqueles corpos.
CAPÍTULO 20
Gênova
Era pouco mais de onze horas da manhã seguinte, quando o radiotelegrafista de bordo comunicou a Angelo, na torre de comando, ter recebido uma mensagem estranha:
- Comandante, acabo de captar uma mensagem que confesso não entendi...
- O que dizia? - perguntou Angelo, secamente.
- Apenas duas palavras que foram repetidas três vezes: MERCADORIA ENTREGUE.
- Também não entendi, mas não se preocupe. Quero crer ter havido um engano qualquer. Esta mensagem deve ter sido endereçada a outro barco. Na verdade isto está me cheirando a contrabando.
O assunto morreu ali e Angelo acabou sorrindo, assim que seu radiotelegrafista, com uma cara de idiota, deixou a torre.  O Gina D'Oro, naquela altura, estava em manobra de pesca próximo da localidade de Alassio. Tranquilizado pela mensagem recebida e satisfeito pela pesca realizada Angelo deu a ordem de regresso e, pouco tempo depois, seu belo pesqueiro atracava no porto de Gênova com seus porões abarrotados.
Dona Benedetta, que soubera momentos antes sobre a chegada do Gina D'Oro, já estava no escritório do genro quando este chegou. Ela, assim que soube das notícias, deixou cair duas lágrimas de seu rosto: uma de paz e a outra de saudade. Naquele momento, Angelo combinou com a sogra como dariam, em duas versões distintas, a notícia do desaparecimento de Giacomo:
- Para as autoridades italianas terei que comunicar o desaparecimento, conforme o meu registro no livro de bordo. Para o meu sogro, teremos que nos arriscar e contar uma parte da verdadeira história. Diremos que Giacomo fugiu sem que alguém visse e pudesse evitar, mas que já nos chegaram notícias de que ele está bem e em segurança. Pediremos ao velho Spata que nos prometa sigilo absoluto sobre o fato, pois caso contrário, poderá por em risco não só a nossa segurança como a de toda nossa família. Para todos os efeitos, a notícia do desaparecimento deverá prevalecer oficialmente. Deus queira que meu sogro entenda que esta é a melhor maneira de aceitarmos o fato - concluiu Angelo.
Dona Benedetta escolhera as palavras certas para contar ao marido o acontecido. Mesmo cercando a notícia de todo o cuidado, o velho não se conformou ao ouvi-la. O choque causado o levou à cama, deixando-o seriamente enfermo. Tempos depois, ao se recuperar, Giuseppino Spata não voltou a ser mais o mesmo homem. Deixou de sorrir e passou a falar pouco. Tinha os olhos sempre distantes e as palavras amargas.
- Preferiria que Giacomo tivesse morrido por nossos ideais, a estar vivo como um covarde ou um traidor - falou certo dia, ao ouvir o nome do filho.
Se para as autoridades italianas Giacomo estava oficialmente morto, para o velho Giuseppino Spata, seu pai, sentimentalmente Giacomo morrera também.
Paris
O prestígio de Dr. Louch era impressionante. Suas ligações com gente importante lhe davam condições de executar um trabalho eficiente em prol da Resistência. Poucos dias se passaram após a chegada de Giacomo à França, e já ele estava empregado como motorista da Cruz Vermelha. Mediante tal função, transitava livremente por todo o território francês. A bem da verdade, os riscos sempre existem em tempo de guerra, e surgem quando menos se espera, mas Giacomo tinha, a seu favor, não só a cobertura de uma famosa entidade internacional, como também a nova identidade que adotara, para lhe darem certa tranquilidade. A falsificação de seus documentos não poderia ter ficado mais perfeita. Constava em seus papéis ser ele francês, nascido em Paris, e filho de pais italianos. Aos quinze anos sua família mudou-se para a Itália, e lá ele completou a sua educação. Com a morte dos pais, há dois anos atrás, resolveu voltar e tentar a sorte na França, sua verdadeira pátria. Diante desses fatos, era fácil explicar porque falava bem os dois idiomas, e porque também esquecera o seu sotaque parisiense.
A pessoa encarregada de falsificar os documentos de Giacomo descobriu que, num bairro pobre de Gênova, um miserável casal tivera morte misteriosa e deixara um único filho que mais tarde foi dado como desaparecido. Assim surgiu Giacomo do desconhecido, com novo nome e parentesco. Existia ainda uma série de acontecimentos forjados, para justificar sua estada no país gaulês, há mais de ano e meio como, endereços, atividades, etc. De acordo com os seus documentos, Giacomo dera entrada na França muito tempo antes dela ter sido invadida, mas na verdade chegara há pouco mais de quinze dias.
O batismo de fogo de Giacomo se deu no pequeno sítio, em "Gréteil". Ali ele foi apresentado a Pierre e sua turma, por Dr. Louch.
- Podem confiar no rapaz - falou o velho médico. Esse eu conheço desde menino. É valente, inteligente e de toda a confiança. Está aqui para somar e reforçar nossas fileiras. Será mais uma peça importante para a nossa engrenagem.
Giacomo foi aprovado com louvor. Não poderia haver pessoa mais gabaritada para indicar alguém, ao grupo, que Dr. Louch. Pierre era o único ali que sabia de toda a verdade a respeito do italiano. Dr. Louch lhe contara tudo nos mínimos detalhes, e ele, Pierre, se impressionara favoravelmente com a história. Para o jovem líder, Giacomo já era um herói em potencial. Seu desprendimento, sua obstinação, sua renúncia, eram fatores decisivos para fazê-lo merecedor da admiração e do respeito de Pierre. A amizade entre os dois nasceu rapidamente. Pierre já estava restabelecido do ferimento no ombro e, ali, naquele momento, planejava novos atentados. Sugestões eram dadas, informações eram prestadas e todos participavam das discussões, exceto Giacomo e Dr. Louch, que sentados lado a lado, apenas observavam. Ouvindo os debates, Giacomo pôde compreender porque Pierre assumira a posição de liderança do grupo. Com que entusiasmo, determinação e objetividade ele falava. Com que facilidade ele transmitia, ao mesmo tempo, força e coragem, paciência e resignação. Pierre não se impôs ali pela força física, e sim por sua inteligência e comunicabilidade. Foi eleito líder democraticamente, por seus méritos pessoais.
Durante o período em que estivera se recuperando do ferimento, Pierre chegara a preocupar um pouco seus companheiros. Mudara a forma de comportamento. Adotara um olhar triste e ausente. Falava pouco e sem aquele  entusiasmo habitual. O afastamento temporário o deixara nostálgico e sentimental. Sentia saudades da família e dela há muito não recebia notícias. Nada sabia ainda do que acontecera à sua irmã Germaine, mas um pressentimento estranho, de que algo não ia bem, não o deixava em paz. Foi preciso que alguma coisa diferente, como aquela reunião, acontecesse, para tirá-lo da apatia em que se via possuído. Ali, diante do grupo, com a presença do Dr. Louch, seu grande amigo e confidente, e de um novo companheiro, ganhava alma nova, vibrante e entusiasmada. E, naquela noite, ao fim da reunião, falara olhando em direção a Giacomo:
- Vamos esmagar as cabeças desses "boches", uma a uma, até devolver a paz e a liberdade, não só à França, mas como ao resto do mundo!
E como faziam ao fim de cada reunião, ergueram todos as suas canecas de vinho num brinde à vitória.
Rio de Janeiro
Que faria o Coronel Carneiro, a ele, Bill, se visse aquele retrato? Aquela pergunta ficaria para sempre sem resposta.
Naquele momento Bill colava em seu álbum a última foto colorida de Regina. Deitada num sofá e inteiramente nua, tinha ela no rosto uma expressão de sexo inacabado. Um misto de êxtase, insatisfação e angústia.  Bill considerava aquela foto, além de erótica, uma pequena obra de arte. Ali, no álbum de retrato, como também no pequeno caderno de capa preta de couro, com o nome gravado em dourado, ele encerrava duas fases importantes de sua vida: os 17 anos no mundo do Encantado, e os dois anos de serviço militar.
Bill resolveu, de uma vez só, dois problemas que estavam pendentes: decidiu voltar aos estudos, e rompeu seu namoro com Regina. Enquanto estivesse estudando, os pais lhe garantiriam uma substancial mesada, e assim ele decidiu que só passaria a trabalhar no momento em que se interessasse por uma profissão.
Fernando, seu amigo fotógrafo, passou a usar tudo o que se relacionava com fotografia, como meio de vida. Com a ajuda dos pais montou uma bela e sortida loja no Leblon, onde vendia de tudo - de um simples filme ao mais sofisticado aparelho importado. Trabalhava em conjunto com os melhores laboratórios, aceitava qualquer tipo de serviço fotográfico e, para isso, mantinha a seu lado alguns bons profissionais. Bill, sempre que precisava de um dinheiro extra, aceitava um serviço e, assim, não só deixava de sobrecarregar os pais, como ia se especializando numa profissão.
Seu último contato com Regina deu-se duas semanas depois da data de sua baixa. O encontro aconteceu na praia, no lugar de costume, e foi uma despedida fria, sem um único beijo sequer. Regina chorou muito e não aceitou com facilidade a separação. Bill procurou adotar a atitude mais cavalheiresca possível no momento. Ao chegar em casa, depois, falou com Margareth pelo telefone. Ela entendeu os seus argumentos e lhe desejou muita sorte em seus novos empreendimentos. Ao Coronel Carneiro resolveu escrever uma carta repleta de agradecimentos, explicações e desculpas. Estava certo de que, com aquele gesto, poderia continuar a merecer a confiança e a amizade daquela família. Assim ele estava tentando ser não só honesto consigo mesmo, como procurando deixar aberta uma porta para voltar, um dia, se sentisse precisão.
Afinal Bill sentia-se livre. Livre das limitações da infância e de certo tipo de ignorância. Livre de compromissos rígidos que o escravizavam. Livre de elos sentimentais que o aprisionavam. Enfim, ele sentia-se imensamente livre para gozar, pela primeira vez com toda a liberdade, aquele maravilhoso mundo que se descortinava diante de seus olhos, da varanda do apartamento de Copacabana. Daquele dia em diante ele ia passar a curtir, intensamente, a sua nova vida na zona sul.
 
SEGUNDA PARTE – CAPÍTULO 21

O início da fase adulta


Bill, debruçado sobre a grade da varanda do apartamento de Copacabana, sorvia com prazer o uísque On the rocks, de boa procedência, enquanto admirava o trânsito agitado de carros e pedestres apressados, a oito andares abaixo de onde estava. Gostaria de saber para onde iriam, naquela noite de sábado, aquelas miniaturas de gente que se cruzavam em ritmo acelerado. Parecia que estavam todos fantasiados a procura de um grande baile de carnaval, fora de época própria. Aquela era uma das poucas fórmulas que o habitante da Zona Sul encontrava para exercer o seu direito democrático, abalar os costumes e agredir a sociedade. A agressão, consciente ou inconsciente, a falta de dinheiro e o mau gosto, eram ingredientes mais usados para fazer crescer aquele grande bolo de contrastes.

Copacabana é um bairro que vive em eterna vigília. Por ter uma vida intensa e contínua favorece os contrastes. Enquanto uma parte de sua população regressa ao lar a outra sai, à procura de prazer ou da sobrevivência. Diante desse eterno quadro de desencontros a moda, criada pelos grandes mestres da alta costura, nas ruas se desintegra e perde todo o seu sentido ditatorial. Assim, a moda imposta por seus criadores fica restrita a ambientes fechados e proibida de sair às ruas, sob pena de se desmoralizar e se tornar vulgar. Com isso a moda foi se individualizando cada vez mais e já se pode ver, a qualquer hora do dia ou da noite, uma profusão de tipos heterogêneos se cruzando a todo momento.

Naquele sábado, da varanda de seu apartamento, àquela hora da noite, Bill podia assistir e compreender aquele curioso desfile. Dali ele podia ver o encontro de um vestido longo com um biquíni mal disfarçado por uma toalha ou saída de praia. O esbarrão de um peito nu num outro engravatado e a pisadela que um chinelo recebeu de um salto alto.

Nas ruas, o movimento era intenso. Os carros pareciam um bando de gatos selvagens de várias cores e tamanhos com os grandes olhos acesos, fixos numa só direção, miando com estridência e angústia, diante de um grande olho vermelho retentor. Aos sons e aos ruídos constantes juntavam-se as chamadas nervosas dos luminosos de cores berrantes, que buscavam para si a atenção dos transeuntes. Grande parte do comércio permanecia aberto e suas vitrines bem iluminadas contribuíam, também, com o grande espetáculo noturno. Dois tipos de shows diferentes eram apresentados para plateias distintas. Para o público mais exigente e de maior poder aquisitivo, eram armados semanalmente, por mãos hábeis de artistas anônimos, espetáculos de classe, onde a arte e o bom gosto transformavam as vitrines em palcos a apresentavam poucos personagens bem distribuídos, vestindo uma ou duas cores combinadas. Os preços eram abstratos e ficavam na imaginação do espectador, como devem ficar os desfechos de todo espetáculo de arte.

Para os shows destinados ao grande público consumidor, as vitrines eram transformadas em autênticos picadeiros, e os sapatos, bolsas, meias, camisas, vestidos, saias, blusas, calças e cuecas, faziam as vezes dos palhaços, mágicos, equilibristas, trapezistas, domadores e animais amestrados. Todos empilhados, nos poucos metros quadrados de uma vitrine, numa profusão de cores berrantes e contrastantes, se apresentavam a um só tempo, como num autêntico espetáculo circense. Se numa loja a exclusividade era disputada a preço de ouro, na outra a quantidade era disputada pelo menor preço.

O apartamento de Bill ficava no último andar de um edifício de construção recente, localizado na Av. N.S. de Copacabana, na altura do Posto 4. Com apenas dois apartamentos por andar e um acabamento luxuoso, o prédio ficava quase na esquina de outra rua de grande movimento. Seus pais compraram o apartamento na planta, quando do lançamento do empreendimento, e aguardaram tão somente o término das obras para efetuarem a mudança. A localização não poderia ser melhor, pois ficava próximo do maior conjunto de lojas, restaurantes e cinemas do bairro, e, se cada bairro tivesse coração, era ali onde estavam que o coração de Copacabana pulsava mais forte.

Bill, debruçado sobre seu novo mundo, na varanda do oitavo andar, teve as divagações interrompidas pelo pai:

- Daqui a pouco os convidados estarão chegando... Você está animado para a festa?

- Muito pouco. Acho que deveria estar mais.

- Hoje você completa a maioridade, e esta data será marcante em sua vida. Descontraia-se e procure fazer este dia feliz.

- Vou fazer o possível, no entanto gostaria de descobrir antes o motivo que me fez ficar tenso e preocupado.

- O que você está sentindo é natural. Eu também me senti assim, quando fiz 21 anos. A partir de agora você será um adulto responsável por seus atos. Assim você se apresentará diante dos convidados. De repente parece que a gente perde toda a proteção, como um pinto fora da casca, e se atemoriza diante de um mundo de deveres e obrigações. Você está preocupado com a nova imagem que terá que mostrar aos parentes e amigos. Mas não se preocupe, tudo correrá bem e eu estarei ao seu lado para o apoiar. No seu copo só tem gelo. Vamos até a biblioteca que eu lhe prepararei uma dose dupla do meu melhor scotch.

Caminharam juntos para o interior do apartamento, com o pai passando o braço em torno do ombro do filho. Bill estava bem mais alto que o pai. Com 1,82 m de altura, corpo atlético e bem bronzeado, cabelos louros, olhos verdes e dentes perfeitos, poderia ser manequim, modelo publicitário ou até galã de cinema e televisão.

- Já decidiu o que fazer do seu futuro, profissionalmente, quero dizer, ou vai continuar apenas estudando?

- Vou continuar os estudos, mas pretendo ganhar dinheiro o mais rápido possível.

- Enquanto estiver estudando não precisa se preocupar com dinheiro.

- Sei disso, mas já não me sinto bem recebendo mesada. Acho que já tenho condições de me manter com meu próprio trabalho.

- Como fotógrafo? - perguntou o pai, com um pouco de descrença na voz.

- Para começar, dá pro gasto. Sou ambicioso e sei que em breve encontrarei algo que me dê muito dinheiro.

- Por que não vem trabalhar comigo, enquanto procura seu ideal? Não só me será útil, como ganhará bem e terá tempo suficiente para estudar.

- Se eu soubesse que lhe poderia ser útil há muito que já estava trabalhando a seu lado. Na verdade nunca acreditei nisso, pois não me sinto capaz de render bem, fazendo algo de que não gosto.

- Pois muito bem, não vou mais insistir. De qualquer forma aceite ao menos o que lhe vou oferecer...

- O que?

- As suas despesas com relação aos estudos, livros, roupas e alimentação, continuarão por minha conta e, os trocados que conseguir com fotografia, você os empregará nas suas pequenas despesas na rua, tais como divertimentos, garotas e gasolina para o carro.

- Que carro?

- O que comprei para você de presente de aniversário, e que já está na garagem do prédio. Aqui estão as chaves de seu "fusca" zerinho.

A surpresa foi grande e a emoção, maior. As chaves tilintaram nas mãos trêmulas de Bill. Ele beijou o rosto do pai e, sem dizer uma só palavra, saiu correndo do apartamento em direção à garagem do prédio. Bill examinou cada detalhe do presente, como uma criança embevecida. O carro era amarelo, sua cor favorita, e estava todo equipado. Sentado diante do volante, aspirou o ar e sentiu o inconfundível e agradável cheiro de carro novo.

De volta à varanda, e agora bem mais feliz, Bill aguardava a chegada dos convidados. Os pais elaboraram cuidadosamente uma lista onde nomes de pessoas importantes não podiam deixar de constar. Afinal era aquela a primeira grande festa no novo apartamento, e todo o cuidado seria pouco para o sucesso do evento. Até aquele momento tudo tinha corrido na mais perfeita ordem. Os garçons e os músicos contratados já tinham chegado e o fino buffet já estava pronto para ser servido. De tudo que fora providenciado, Bill só lamentava o reduzido número de convites que fora reservado para os seus amigos do Encantado.

Num abrir e fechar de olhos, todas as dependências do espaçoso apartamento foram tomadas. Entre os poucos parentes de Bill que podiam comparecer estavam presentes seus tios Giorgio e Natalina com os três filhos, dois dos quais já casados e, entre eles, Marcia, sua prima, cada dia mais bonita. Dr. Fagundes, competente pediatra que acompanhou seus passos até a puberdade, foi até lá com a esposa para abraçar o aniversariante que também era seu afilhado de batismo. A grande surpresa da noite, para Bill, foi a presença na festa da tia Carina. Ela viera da Itália, para conhecer o sobrinho e o Rio de Janeiro também. Entre os poucos que compareceram vindos do Encantado, incluía-se o Padre Marcelo, Dr. Demóstenes Bruno, eminente advogado e deputado cassado, e Joana, sua ex-namorada, agora em toda a plenitude de seus dezoito anos. Veio acompanhada pelo irmão que era um ano mais velho que ela.

A grande maioria dos presentes era composta por moradores da Zona Sul. Durante aqueles quatro anos, não só Bill, como também seus pais formaram um novo e vasto círculo social. Muitas das pessoas que estavam ali, Bill não as conhecia. Eram os legítimos representantes do mundo dos negócios. Todos ricos, importantes, influentes, vitoriosos enfim, dentro de suas atividades. E entre os prósperos comerciantes, industriais e banqueiros, haviam também militares, políticos e altos funcionários ligados à fiscalização e à segurança da cidade, verdadeiros guardiães da nossa sociedade.

Bill, apesar das várias doses de uísque que ingerira, não estava se sentindo tão à vontade como gostaria. Não fosse a presença em grande número de seus amigos de praia, e alguns poucos ex-companheiros de farda, aquela comemoração para ele seria enfadonha e sem sentido. Por mais que evitasse, Bill não podia deixar de traçar um paralelo e tecer comparações entre aquela festa e a última realizada em sua homenagem, na antiga casa do Encantado. A começar pela quantidade de pessoas presentes, em número infinitamente superior em vista do maior espaço, a festa realizada no longínquo subúrbio fora totalmente diferente. Lá, a alegria, a simplicidade e a espontaneidade se faziam sentir a cada momento. A mistura de raças, credos e condições sociais dera ao acontecimento uma atmosfera de autenticidade dentro de um arco-íris de sonho e poesia.

Ali, naquele momento, ao cruzar com aqueles tipos estranhos, Bill não conseguia sentir o calor humano. Era como se a pele de cada um tivesse recebido uma camada de verniz, como proteção e, impermeabilizados, tivessem perdido a sensibilidade. Tudo ali lhe parecia artificial, esnobe e mentiroso. A pompa e a exibição agressiva davam um ar irreal e falso, como falsas deveriam ser algumas joias ali exibidas, como falsos deveriam ser alguns títulos ali declarados e, efêmeros, alguns postos ali representados. Se num palco fora representada uma comédia alegre e feliz, no outro uma farsa medíocre e melancólica estava sendo mostrada. Ao ver seu amigo Fernando registrando com sua câmera alguns instantâneos daquele acontecimento, Bill comparou aquela festa com uma grande foto tirada em preto e branco e depois retocada a cores, artificialmente.

Bill só tinha dois desejos naquele momento: sumir ou se embriagar, mas sabia que jamais poderia fazer tais coisas. Notando que suportaria mais uma dose de uísque e sentindo a necessidade de bebê-la, correu avidamente os olhos pelo salão, a procura de um dos garçons. Mas o que seus olhos viram foi Joana, que ao lado do piano, na outra extremidade da sala, conversava animadamente com um rapaz, que a princípio não conseguiu identificar. Estava linda, num vistoso vestido branco que contrastava com sua pele morena jambo. Aquela visão o trouxe de volta de suas divagações e ele estremeceu. Um sentimento que não conhecia tomou seu corpo de assalto. Seria ciúmes? - pensou. Em toda a sua vida jamais sentira algo semelhante. De repente percebeu que toda a sua festa estava ali em Joana, e antes que roubassem o mais puro elo que o ligava ao seu passado feliz, Bill tomou-a pela mão e não a largou mais.

Fátima, a estonteante loura que fora caso amoroso de Bill e Fernando simultaneamente, estava desacompanhada e a todos os rapazes dava atenção. Fazia daquela festa seu pequeno reino, e já tinha uma boa quantidade de súditos a seus pés. Ela, atendendo a um aceno de Bill, foi juntar-se ao aniversariante.

- Preciso de um favor seu - disse o rapaz.

- Você manda, bonitão - respondeu Fátima, medindo Joana com os olhos.

- Aquele rapaz que está ali é irmão desta minha amiga, e por ser tímido e não conhecer quase ninguém aqui, precisa de auxílio. Noto que ele está muito deslocado e gostaria que você lhe dedicasse uma atenção toda especial. Garanto que não vai se arrepender em colaborar.

- Quanto a isso, não tenho a menor dúvida. Eu sei cobrar os meus favores - disse ela, piscando os olhos para Bill.

Fátima acabou se divertindo em encantar o pobre rapaz e em fazê-lo acreditar que estava caída por ele. Naquele instante tocava uma música romântica e ambos dançavam de rostos colados. Bill e Joana também dançavam, e divertiam-se com a cena à distância.

- Seu irmão entrou em órbita e vai demorar a por os pés no chão.

- Provavelmente ele irá se machucar, mas espero que saiba tirar proveito dessa nova experiência. Fátima é do tipo made in Zona Sul, totalmente diferente das moças com quem meu irmão se relaciona. É melhor que ele sofra desilusões agora do que mais tarde, quando pensar que já é homem suficiente para assumir compromissos maiores.

Bill concordou com um aceno de cabeça, no mesmo momento em que a música terminava.

- Venha - disse ele, segurando Joana pela mão - vou lhe mostrar os presentes que recebi.

Joana não pôde deixar de soltar uma exclamação, ao ver a cama do rapaz repleta de objetos valiosos. Não foi fácil descobrir, entre tantos presentes, o que ela dera a Bill.  Mas lá estava, entre uma câmera fotográfica e um barbeador elétrico, uma bonita agenda de capa de couro, com a seguinte dedicatória: "Não se esqueça de mim. Estou na letra J. Salve 25 de março de 1967, Joana."

- Nunca vi um aniversariante receber tantos presentes assim - comentou a moça.

- E não me pergunte de quem os recebi, pois, para ser sincero, da maioria aí eu já não me lembro quem deu.

- Isso é natural. Na certa você irá se lembrar das pessoas que lhe deram os presentes mais valiosos...

- Não acredito que me julgue assim - interrompeu Bill. Provavelmente irei me lembrar das pessoas que me presentearam por amor e amizade e não por dever social. Quer um exemplo?

Joana respondeu com um movimento de cabeça.

- Está vendo aquele barbeador elétrico ali? Pois bem, não sei quem me deu, ao passo que a câmera ao lado, foi presente de Fernando, meu melhor amigo.

Bill fez uma pausa, acendeu um cigarro, pôs a mão no ombro de Joana, e quando já ia saindo do quarto falou displicentemente:

- Ah... já ia me esquecendo. Gostei muito de uma agenda que ganhei. Foi presente de alguém muito especial para mim.

Joana sorriu encabulada.

- Agora venha. Vou lhe mostrar um presente que não deu para botar em cima da cama.

Na garagem do prédio, Bill mostrou orgulhoso o seu automóvel.

- Entre aí... Você terá o privilégio de ser a primeira pessoa a passear no meu carro.

Pouco tempo depois, Bill e Joana caminhavam de mãos dadas pelas areias de Copacabana. Ela tirou os sapatos de salto alto, e sentiu a fofura da areia sob seus pés. Em volta dos dois, só o sussurro do vento e das águas espraiadas. Acima deles, só a lua como guardiã e companheira.

- Você não deveria ter abandonado seus convidados...

- Tenho abandonado coisas muito mais importantes nestes últimos anos.

- O que, por exemplo?

- Você.

- Nunca me considerei abandonada. Não nego que no início fiquei magoada, mas logo compreendi que você não teve culpa.

- Não tente me defender. Eu sei que fui culpado. Lembro-me que lhe disse que a distância não mudaria a nossa situação, e naquele momento lhe prometi amor.

- Amor não se promete; amor se dá. Não, você não teve culpa. Mudaram o seu mundo de lugar e neste em que você vive, agora, eu não faço parte.

- Engana-se. Mesmo à distância você nunca deixou de estar presente. Em cada novo rosto de mulher buscava suas feições, em cada corpo buscava seus contornos, em cada coração buscava seus sentimentos. Foram buscas inúteis e frustrantes...

- Sabe porque você não me encontrou? Porque na verdade você nunca o desejou. E sabe porque lhe perdoei? Porque por um momento me coloquei em seu lugar. Estou certa de que teria agido da mesma forma, se tivéssemos invertido as nossas posições.

- Nisso eu não posso acreditar. Existe uma diferença fundamental entre nós: você é moça e eu sou homem.

- Mas somos feitos da mesma matéria: carne, osso e coração. Provavelmente eu teria passado por outros tipos de experiência, mas a ânsia de liberdade e a premência de novas emoções teria sido a mesma. Assim, foi muito normal que você tivesse sentido desejo de conhecer toda a gama do comportamento humano. Aqui, nesse seu mundo, você encontrará uma variedade de gente disponível para ser cobaia de seu laboratório de sentimentos.

- Não posso negar que tenha razão em muita coisa, mas acontece que eu amo você.

- Talvez até isso seja possível. O que não creio é que seja realmente capaz, no momento, de ter consciência desse amor. Você vive uma fase em que emprega todo o seu amor em si próprio. Só depois de adquirir toda experiência necessária para a vida adulta é que você se sentirá capaz de escolher o  melhor caminho.

- E quando você acha que estarei apto para isso?

- Só você poderá descobrir. As pessoas são como as frutas: umas amadurecem depressa, enquanto outras custam a amadurecer. Depende muito da qualidade da semente, da terra, dos cuidados, etc.

- E você, como se sente no momento?

- Com necessidade de aprender um pouco mais, mas consciente do que sou e do que quero. Pouca coisa mudei, da menina que você conheceu e viu crescer. Sou do tipo comum, sem segredos e subterfúgios. Daquelas pessoas que põem seus sentimentos a nu, sem serem propriamente ingênuas. Não possuo anticorpos e estou constantemente exposta aos vírus do mal, muito embora nada faça para mudar este meu comportamento.

- Você me surpreende! Como conseguiu amadurecer tanto, vivendo num mundo mais simples e limitado?

- Nós fazemos o nosso mundo. Ele está em nossa mente. Os que vivem limitadamente, como eu, não são obrigatoriamente ignorantes a respeito do que acontece nos outros mundos. A teoria às vezes surpreende a prática. Num mundo menor, e mais tranquilo, temos mais tempo para reflexões. As leis de Deus e as dos homens podem conter os nossos desejos, frear o nosso corpo, mas jamais conseguem deter a nossa imaginação.

- Perfeito. Mas, e eu, que posso fazer para provar que ainda a amo?

- Não faça nada. O amor é um sentimento simples, espontâneo. O que fizer para prová-lo será artificial, e perderá o seu valor. Vamos dar tempo ao tempo. Viva a sua vida e deixe que eu viva a minha.

- Sei que não tenho o direito de lhe pedir que me espere, mas gostaria de saber o que vou ter que fazer quando chegar à conclusão de que não posso viver sem você.

- Se o amor que sinto por você agora for verdadeiro, serei sempre sua. Por isso, não se preocupe nem com a distância nem com o tempo que irá nos separar mais uma vez.

- Eu sinto que estou mudando e tenho medo. Medo de que você não encontre, no dia em que eu a procurar, o Bill que você conheceu.

- Por mais que você tenha mudado, e por mais ainda que venha a se modificar, eu sempre o reconhecerei. Existem as "raízes", das quais nunca podemos nos livrar. Não conseguimos extirpar de nossas entranhas esta base que nos deu vida e nos fez crescer. Por pior que sejam os caminhos que tenhamos que trilhar, por maior que sejam as transformações pelas quais tenhamos que passar, a vida sempre nos reserva uma oportunidade para voltarmos às nossas origens. Cabe-nos descobrir o momento, e deixar que o bom senso aproveite a ocasião.

A brisa marítima esvoaçava os negros cabelos de Joana, e seus olhos graúdos e escuros brilhavam na escuridão. Fez-se silêncio entre os dois, e pararam de caminhar. De frente para Joana, com as mãos entrelaçadas nas dela, Bill puxou-a lentamente em sua direção. Pela primeira vez, naquela noite, seus lábios se encontraram. A princípio suavemente e, logo em seguida com volúpia. Em instantes Bill pôde sentir a potência de seu sexo e, ao notar um estremecimento no corpo de Joana, percebeu que ela já o tinha sentido. Teve desejos de rolar com aquele corpo macio e cheiroso pela areia, e descarregar nele toda a carga de seus sonhos eróticos suburbanos, mas se conteve. De repente envergonhou-se de seus pensamentos e interrompeu o beijo, afastando-se bruscamente daquela carne tenra e proibida. Pela primeira vez, em quatro anos, Bill pôde sentir a força de suas raízes. De mãos dadas, e ainda em silêncio, foram caminhando em direção ao carro, e poucos minutos depois estavam de volta à festa.

Ao entrar na sala Bill pôde notar que seus pais conversavam animadamente, numa roda de pessoas onde figuras importantes se destacavam, e ao passar pela varanda, deu de cara com Fátima e o irmão de Joana entre beijos e abraços. Discretamente abandonou o local e suspirou aliviado, mas quando já estava certo de que sua ausência e a da moça não tinham sido notadas, ouviu Fernando falar ao seu ouvido:

- Espero que amanhã me conte como foi a estreia do carro.

A festa terminou, para Bill, no exato momento em que Joana foi embora. Do alto da varanda ele assistiu a partida dos últimos convidados. Ele sabia que, para os pais, a festa fora um autêntico sucesso. Para ele fora um pouco nostálgica, mas soubera tirar um grande proveito. Há muito não tivera tanta oportunidade para divagar e refletir sobre seus dois mundos diversos. Bill sabia que pela segunda vez se despedira de Joana, mas não tinha ainda noção de quanto tempo duraria aquela última separação. Naquele momento ele só tinha duas certezas - que a amava e que não estava ainda preparado para fazê-la entrar em sua vida. Joana não cabia naquele mundo em que vivia, por maior que ele fosse. Sabia também que se no futuro o destino os unisse, ele teria que construir um mundo inteiramente novo para os dois. Não se sentia capaz de abdicar da liberdade sem fronteira que divisava a sua frente, nem tampouco estava disposto a viver duas vidas distintas. Para viver com Joana ele sabia que teria que voltar às suas raízes, ou então tentar fazer o possível para não se afastar muito delas.

O apartamento mergulhou no mais profundo silêncio, e Bill só conseguiu ouvir a voz de sua consciência. Mais tenso do que tonto, não conseguia sentir sono. De repente, sentindo medo da solidão, serviu-se de mais um drink, e embriagado, conseguiu desfalecer.


CAPÍTULO 22

Paris, dezembro de 1940


Às 4 horas da tarde de terça-feira, 24 de dezembro, véspera de natal, um caminhão de entregas de mercadoria parou em frente ao pequeno restaurante da família Fontaine. Uma grande caixa de madeira foi retirada do seu interior e levada por dois homens, pela entrada lateral, para os fundos do estabelecimento. Monsieur Fontaine, surpreso, falou para os carregadores:

- Deve estar havendo algum engano. Não estamos esperando nenhuma entrega para hoje.

- Nós sabemos disso, senhor - falou o mais alto, com nariz de boxer. Este é um pequeno presente de natal de um de seus fornecedores.

O velho Fontaine passou a mão pelos ralos cabelos e não pôde disfarçar sua expressão preocupada.

- Se for uma brincadeira de mau gosto, garanto-lhes que escolheram o pior dia para isso. Não posso identificar qual o fornecedor que poderia querer me presentear...

- Não se preocupe, senhor - falou o outro, baixote atarracado. Se abrir o caixote, logo verá quem lhe mandou o presente. O natal é uma data para a confraternização das pessoas e não para brincadeiras de mau gosto.

Monsieur Fontaine abriu cuidadosamente o caixote e ficou paralisado com o que viu. Surpresa e alegria contrairam suas faces e umedeceram seus olhos. Do interior da grande caixa surgiu Pierre, seu filho. No rosto do rapaz, além da estampada alegria, uma boa dose de preocupação pela emoção que causava ao velho pai. Os dois ficaram abraçados em silêncio por um bom pedaço de tempo.

- Onde está mamãe? Quero vê-la. Como estão as manas Germaine e Noelle? Nunca pensei que saudade doesse tanto. Perdoe-me a maneira como tive que entrar aqui, mas acontece que foi a maneira mais segura que encontramos. Sei que estou sendo procurado, não queria arriscar a minha vida e muito menos a de vocês...

Pierre falava sem parar e só interrompeu quando a mãe e a irmã caçula chegaram e se penduraram no seu pescoço.

- Onde está Germaine?

O silêncio foi constrangedor. Pierre insistiu na pergunta, e percebeu quando o pai fez um sinal para sua mãe. Madame Fontaine afastou-se da cozinha, levando Noelle pela mão. Em pouco tempo seu pai lhe narrara os últimos acontecimentos. Nos olhos de Pierre, chispas de ódio.

- Eu vou matá-lo! Prometo ao senhor que vou lhe devolver a nossa Germaine. Aquele Coronel de merda vai pagar caro a sua ousadia.

- Nós temos a proteção dele que também nos garantiu a sua vida, Pierre. Se o matar, todos nós pagaremos por isso. Germaine jamais poderá voltar para nós se o Coronel for assassinado. Seus passos estão sendo observados e você será o primeiro suspeito. Pense nisso, Pierre. Enquanto ela estiver com ele, todos nós estaremos seguros. O Coronel tem sido um inimigo útil.

- Parece-me que o senhor está achando cômoda esta situação.

- Os jovens, como você, usam demais o coração. Com o passar do tempo nós aprendemos a usar mais o cérebro, a razão. No dia em que o Coronel nos roubou Germaine, tive gana de matá-lo com minhas próprias mãos, mas se o tivesse feito, você hoje estaria provavelmente morto e toda a nossa família destruída. Acho bom darmos tempo ao tempo e esperarmos o momento oportuno para agirmos. Fique tranquilo. Conheço bem a minha filha e sei que todo o ouro do mundo não será capaz de mudar seus sentimentos. Como prisioneira, ela nunca se renderá e estará sempre mais livre que seu carcereiro. Ele sim, será um eterno prisioneiro de sua consciência.

- Mas só em pensar que a esta hora ela poderá estar em seus braços, me dá repulsa e vergonha.

- Repulsa, sim; vergonha, não. O espírito de Germaine continuará imaculado. Ela cedeu apenas a matéria em troca de sua vida, Pierre, e da nossa segurança. Foi um ato de coragem e desprendimento. Ela só poderá ser, para nós, um motivo de orgulho e um exemplo de dignidade. Sua irmã está nesta luta, tanto quanto você, com o mesmo patriotismo, com a mesma força, com o mesmo ideal. Não importa, para a França, com que tipo de arma tenhamos que lutar. Lutamos com a arma que temos nas mãos. O que importa, realmente, é que todo cidadão participe desta luta, porque o objetivo a alcançar é um só: a nossa liberdade, a nossa vitória.

Aquela era a maneira com que Monsieur Fontaine extravasava o seu patriotismo. Toda vez que tinha a oportunidade de usar da palavra, o fazia, inicialmente, em tom brando e pausado. Aos poucos, porém, ia se emocionando, e sempre acabava elevando a voz em tom de discurso. Com a sabedoria advinda da experiência que adquirira ao cabo dos longos anos vividos, ele orientava os mais jovens, e desta forma encontrava um jeito de participar.

- O que sabe Noelle a respeito do paradeiro de nossa irmã? - perguntou Pierre, preocupado.

- Para ela, Germaine foi morar num hospital. Foi requisitada pelo governo para servir ao seu país, cuidando dos enfermos.

- E o que Noelle diz disso?

- Embora sinta saudades, o que é perfeitamente natural, sente orgulho da irmã, e diz que quando crescer vai ser enfermeira também.

Os dois homens que serviam como carregadores eram operários de uma pequena indústria, no interior, e estavam de folga naquele dia. Eram pessoas de confiança e, sempre que podiam, colaboravam com os maquis. Naquele momento estavam no salão do restaurante degustando vinho e queijo, que a eles foi servido por Madame Fontaine. Ainda na cozinha Pierre tinha novamente toda a pequena família a sua volta. Surpreendeu a todos quando distribuiu presentes que trouxera, junto com ele, na grande caixa de madeira. Para o pai, charutos, para a mãe um lindo xale de lã; e para Noelle, sua irmã caçula, uma boneca de pano. Quando Noelle se afastou para brincar, Pierre aproveitou para falar, com entusiasmo, de suas atividades durante aqueles longos meses de afastamento. Falou da importância da participação de sua turma, da coragem e patriotismo de seus comandados, e dos futuros passos que pretendiam dar. Omitiu apenas os verdadeiros nomes daqueles que participavam do grupo, não só por princípio, como também por desconhecer a maioria deles. Era uma norma, dentro da organização dos maquis, que seus componentes usassem nomes falsos ou apelidos. Essa medida tinha como objetivo proteger a identidade de cada um. Se um dos participantes fosse capturado, por mais que sofresse pressões e torturas, jamais poderia revelar o que na verdade não sabia. De repente Pierre ouviu, vindo do salão, uma alegre e conhecida canção francesa cantada em dueto pelas desafinadas vozes dos falsos carregadores. Aquela era a senha combinada. Algo de errado deveria estar acontecendo. Mais que depressa entrou na grande caixa e pediu aos pais que a fechasse. Dois soldados da "SS" saltaram de um carro militar e, carregados de embrulhos, entraram no restaurante. Um deles, depois de pousar as caixas envoltas em fino papel de presente sobre uma das mesas, foi imediatamente em direção aos fundos do estabelecimento. Ao deparar com o casal, olhou de relance todo o interior da casa antes de falar, como se quisesse se certificar de que ninguém mais além dos proprietários, estava ali, naquele momento. Em seguida entregou um grande envelope timbrado com a cruz suástica, e falou num péssimo francês, como se tivesse decorado apenas aquelas palavras:

- Sou portador de encomendas de Fraulein Germaine e votos de Feliz Natal, do Alto Comando Alemão.

O mensageiro esperou apenas que o cartão fosse lido, para completar:

- Os embrulhos estão sobre a mesa da sala. Onde quer que os deixe?

- Não se preocupe - falou o velho Fontaine. Pode deixar lá mesmo.

O soldado, levantando a perna, apoiou o pé sobre o grande caixote de madeira que estava no centro da cozinha, e amarrou o cadarço de sua bota. No interior da caixa, Pierre se esforçava para manter presa a respiração. Naquele mesmo momento, no salão, o outro soldado aproveitava para examinar os documentos dos dois únicos fregueses da casa. Tentando disfarçar o medo, dentro daquele ambiente de angustiante tensão, Madame Fontaine falou para o marido:

- Vamos até a sala, meu velho. Estou louca para saber o que nossa filha nos mandou.

- Ótimo! - falou o soldado, retirando o pé da caixa. Só podemos partir depois que os senhores examinarem a encomenda. Estas foram as ordens que recebemos.

Em pouco tempo os embrulhos foram desfeitos, e por mais que tentassem demonstrar contentamento, a alegria e a felicidade não faziam parte do conjunto de sentimentos estampados nos semblantes dos pais da jovem prisioneira. Eram presentes caros, que só poderiam ter sido escolhidos por pessoa de requintado gosto. Provavelmente, Germaine nem teria participado da escolha de tais objetos. Na verdade, ela não fora preparada para o luxo e a ostentação.

Algum tempo depois dos soldados terem partido, Pierre também partiu. Saiu do restaurante da mesma forma como entrou, embalado, como mercadoria, dentro da grande caixa de madeira. Monsieur Fontaine ofereceu uma dose do mais puro cognac à mulher. Ambos sentiam a necessidade de beber algo que os restabelecesse de tantas emoções. No canto do salão, a nova boneca de pano que Pierre dera a Noelle estava recostada na parede com o ar triste do abandono. Nos braços da menina, com os olhos verdes e graúdos bem abertos, a linda boneca de porcelana, presente da mana Germaine, parecia entender a suave canção de ninar que Noelle cantava para ela.

Às 21h30min daquele mesmo dia Germaine, já penteada e vestida com um longo e finíssimo vestido que o Coronel Kurt Staden a presenteara, acabava de se maquilar, sentada em frente ao espelho da penteadeira, quando ele se aproximou e a beijou de leve no rosto. De pé, admirando a mulher através do espelho, o Coronel pôs em volta de seu pescoço uma valiosa gargantilha de esmeraldas.

- Feliz Natal, meu amor.

- Desejo a você também, Coronel.


CAPÍTULO 23

Um pouco de saudade e nostalgia


O Leblon se preparava para receber mais uma noite de sábado, quando Bill entrou na loja de Fernando.

- Aqui estão os filmes do casamento - disse Bill, entregando ao amigo um envelope pardo.

- Como foi o trabalho? - perguntou Fernando.

- Correu tudo bem. Acho que consegui tirar algumas fotos muito boas...

- Foi até bom você me dizer isso, pois quem olhar para essa sua cara fechada só vai poder pensar que você não gostou do serviço que realizou.

- Se estou mal humorado, na certa será por outro motivo.

- Qual? Posso saber?

- Quando eu descobrir, prometo lhe contar...

- Pois trate de descobrir logo, antes que este seu mal humor constante venha a lhe prejudicar.

- O que você quer dizer com isso?

- Quero dizer que você tem estado ultimamente assim, e talvez ainda não tenha se dado conta disso. A turma lá da praia já começou a falar. Alguns já vieram me perguntar o que está acontecendo com você.

- Eu não sabia que este meu mau humor já era de domínio público. O que é que você acha que está se passando comigo?

- Como eu vou poder saber? Só sei que desde a festa de aniversário para cá, você não tem sido o mesmo...

- Você acha isso?

- Acho, e só não encontro é um motivo que possa justificar sua mudança de atitude. A festa foi muito boa e bem concorrida. Todos os parentes e amigos que lhe querem bem, estiveram lá. Você ganhou uma infinidade de presentes, inclusive um carro novo... O que desejava mais?

- Talvez eu tenha recebido mais do que merecia, e isso me tenha trazido um problema de consciência...

- Não creio nessa hipótese. O mais provável é que você tenha feito uma descoberta que o esteja preocupando...

- Qual descoberta? - perguntou Bill, ao mesmo tempo em que nervosamente acendia um cigarro.

- Que você já está crescidinho, por exemplo, para fazer e dizer besteiras. Ou talvez, quem sabe, tenha descoberto algo bem mais importante...

- O que, por exemplo? - falou Bill, com irritação na voz.

Fernando fez uma pausa, coçou a cabeça e completou:

- Vai ver que você está apaixonado por alguém e não quer aceitar o fato...

Bill deu uma gargalhada forçada e falou:

- Eu, apaixonado? Só esta sua cabeça oca poderia pensar tal coisa. Pois fique sabendo que se eu estivesse me apaixonado por alguém, você seria o primeiro a saber. Nunca houve segredo entre nós, e não seria agora que eu iria esconder um problema dessa natureza...

- Nisso eu acredito, mas, suponhamos que você não tenha ainda se conscientizado do fato. Que não  esteja  acreditando  nele... Como poderia me falar a respeito de um óbvio que você ainda não aceitou, hem?

- Não sou nenhum retardado mental e não acredito que isso que você disse possa estar acontecendo comigo, mas já que você é o doutor sabe-tudo, poderia me dizer por quem estou apaixonado?

- Certeza eu não posso ter, mas quem sabe você não esteja amando aquela garotinha suburbana? - falou Fernando, com ironia na voz.

- Não admito que fale assim dela.

- Assim, como?

- Com desdém. Eu percebi com que desprezo você usou a palavra "suburbana"... Pois fique você sabendo que ela não se compara a essas piranhas que a gente tem fisgado por aí, não, ouviu? Joana é uma boa moça. Foi a minha primeira namorada e eu gosto muito dela. Não admito que você fale assim de alguém que mal conhece. É melhor pararmos por aqui.

- Claro. Não precisamos falar mais nada. Você já me disse tudo. Espero tê-lo ajudado, pois só foi essa a minha intenção. Talvez agora que você tenha encontrado o motivo que o tem perturbado tanto...

- Ora vá pro inferno! - interrompeu Bill, aborrecido, e virando-se caminhou em direção à porta da rua.

- Hei, espere um pouco... Aonde vai?

- Ainda não sei...

- Apareça mais tarde no bar do Antonio para tomar um chopinho com a turma. Aos sábados sempre surge por lá um convite para uma festinha. Você está precisando de diversão...

- Obrigado por me lembrar, mas já estou crescidinho para saber do que preciso. Se eu não aparecer mais tarde no "Antonio", me encontro com você amanhã na praia. Tchau - despediu-se Bill, saindo rápido, porta a fora.

As primeiras luzes do bairro já estavam acesas. O sol acabara de mergulhar no Atlântico, mas deixara o mormaço nas ruas envolvendo os passantes. Um bafo de ar quente saía da boca da noite.

Pelo primeiro bar que passou, Bill entrou e bebeu uma tulipa de chopp bem gelado, com um belo colarinho. Em seguida, caminhou até o local onde tinha deixado o carro estacionado. Abriu a porta, sentou-se ao volante, girou a chave na ignição, e quando o motor respondeu, arrancou sem saber pra onde ir. Perguntas e respostas, passado e presente, lembranças e reflexões atormentavam Bill, que dirigia como um autômato, perdido no tempo e no espaço, e só se encontrava quando tinha que frear abruptamente, diante de um sinal luminoso em vermelho.

Quatro anos passaram por Bill num abrir e fechar de olhos. Ele sentia desta forma, muito embora não tivesse ainda consciência de que esse fenômeno não atingia só a ele, e sim a todos os seres humanos que transitaram pelos doces caminhos da juventude. A criança não sente o tempo passar; o velho se arrasta com o tempo, e o jovem, querendo fazer tudo a um só tempo, quando desperta para a realidade já não é tão jovem. E quanto mais o mundo crescer e maior for a sua agitação, mais curtos e rápidos serão os anos da juventude. Os anos do bairro de Encantado ficaram para trás, como distante ficou deles aquele Bill, garoto suburbano.

Naquele momento, um Volks amarelo deslizava lentamente sem rumo certo, levando Bill ao volante. Passara pelo Leblon, Ipanema e Copacabana, e deixara pra trás uma infinidade de bares cheios de sons e luzes, onde comidas e bebidas com nomes sofisticados eram servidas a preços salgados. No momento em que colecionava estas imagens, Bill lembrou do "Cruz de Malta", o barzinho que ficava na esquina da rua em que tinham morado. Era o último, no Encantado, a cerrar suas portas, e o primeiro no gosto popular. Enquanto no seu interior os adultos se serviam de cerveja sempre bem gelada com uma deliciosa linguiça portuguesa como tira-gosto, nas mesinhas que ficavam na calçada, sob um velho toldo de lona desbotada, as crianças se deliciavam bebendo refresco de groselha e comendo sanduíche de mortadela. A velha guarda estava sempre presente para jogar dama, sueca ou pif-paf, enquanto a juventude por lá se reunia para discutir futebol e provocar o orgulho lusitano de Seu Manoel. Baixo, troncudo, careca e bigodudo, conhecido como Seu Manoel da Cruz, era o proprietário do bar uma figura tradicional do local. De sorriso largo e braços sempre abertos, sabia receber como ninguém. Com as crianças tinha um carinho todo especial e, vez por outra, para elas, distribuía balas gratuitamente. Não se importava em fiar aos fregueses costumeiros e só não dava crédito para cigarros e bebidas alcoólicas. Intransigente, neste ponto, costumava afirmar que não se devia sustentar o vício alheio. Só dois assuntos costumavam tirar o seu bom humor: críticas à sua pátria distante e ao Vasco da Gama, clube de seu coração. Ficava brabo e não media tamanho, chegando às vias de fato se a provocação partisse de um marmanjo. Como bom descendente de Camões, tinha uma coragem suicida e não admitia ser roubado. Nas poucas vezes em que tentaram assaltar seu botequim respondeu às ameaças com um grosso porrete, que tinha sempre escondido sob o balcão. Dessa forma, evitando os assaltos, punha ainda a correr os assaltantes. Em decorrência de tais fatos, seu prestígio aumentou, e sua coragem era decantada em verso e prosa pelos moradores das redondezas. Assim era o mundo do Seu Manoel da Cruz, no pequeno mundo do Encantado.

Lentamente, sem perceber, Bill foi pisando com mais força no acelerador e, de repente, como que por encanto, viu seu carro parado em frente ao "Cruz de Malta".

- Ó Lúcia - gritou Seu Manoel, em direção da cozinha - vem até aqui, mulher. Vem ver se o que eu estou vendo é verdade.

A recepção a Bill foi calorosa.

- Cresceste bastante, ó gajo. Estás um rapagão. Quase não te reconheci. Quando desceste do carro, pensei que fosses outro. Que era apenas parecido com um garoto que aqui vi crescer. O que vieste fazer por estas bandas?

- Vim para ver se encontro esse garoto.

Seu Manoel fez uma cara de quem não entendeu, coçou a careca e perguntou:

- O que queres beber?

Bill já ia pedindo um refresco de groselha quando lembrou que era maior de idade e que, aquela era a primeira oportunidade que tinha ali, para matar um desejo de infância.

- Manda uma cerveja estupidamente gelada e um pratinho com linguiça portuguesa - falou Bill, esbanjando prazer.

- O que está esperando, mulher? Pega lá a cerveja e prepara a linguiça no capricho que o freguês aqui merece. Traga dois copos em uma porção bem reforçada da linguiça, porque eu vou fazer companhia aqui ao amigo.

- Onde está a turma? - perguntou Bill.

- Ainda é um tanto cedo. Daqui a pouco eles começam a chegar, um a um.

- O movimento continua bom?

- Caiu um pouco. Só a velharia continua fiel. A rapaziada está mudada. Nos fins de semana os jovens não ficam mais por aqui, não. Passam apenas de raspão e seguem direto para a Zona Sul. Isto aqui, aos sábados, virou ponto de referência. Eles chegam como se viessem assinar o livro de ponto, se juntam, formam o grupo, e seguem em frente.

- E não fica mais ninguém da minha antiga turma?

- Ficam apenas os que porventura estiverem duros, com os bolsos furados, mas que sabem que têm crédito na casa. Mas a vida é assim mesmo. Tudo tem o seu tempo certo, sua época. Eu tive a minha e aproveitei enquanto pude. Como vou poder concorrer hoje, por aqui, com os bares da Zona Sul? Lá é que está o quente, como dizem os rapazes. É por lá que estão os cinemas, os inferninhos, as mulheres... A turma daqui custou a encontrar o caminho da mina, e agora que encontrou, tão cedo não vai querer largar o filão.

- E por que você não vende isto aqui e abre um barzinho na Zona Sul? Com esse seu jeito todo especial de servir, de agradar, tenho certeza de que faria o maior sucesso por lá.

Nos olhos do Seu Manoel surgiu um brilho indecifrável e, logo em seguida em seu rosto despontou um sorriso amargo.

- Eu já vivi bastante. Quando criança, em Portugal, eu já trabalhava para ajudar meus pais que eram muito pobres. Vim para o Brasil ao completar minha maioridade, e aqui fiz de tudo para ganhar a vida. O pouco que ganhava guardava, pois logo aprendi a economizar. Naquela época podia-se poupar, e eu colocava minhas economias dentro de uma caixa vazia de charutos, ou dentro do forro do colchão. O dinheiro podia ficar mofado, mas não perdia o seu valor. E o mais importante é que o dinheiro ficava em nossas mãos. Só nós poderíamos tocá-lo, e só a nós ele deveria beneficiar. Hoje eu sei que é diferente e, às custas do nosso dinheiro, os ricos vão ficando cada vez mais ricos. Bem, mas isto não importa agora, o que interessa é que pude juntar o suficiente para comprar esta casa, de sociedade com um patrício. No início ela era pequena, mas com o passar do tempo, nós a aumentamos. Mais tarde, meu sócio querendo entrar para outros negócios, me vendeu a parte dele e aqui eu fui ficando, e por aqui estou há quase trinta anos. Vi este bairro crescer e várias famílias por aqui chegarem, como os seus pais, por exemplo. Acompanhei o crescimento de muitas crianças e as vi tornarem-se adultas, assim como você. Aqui tive meus filhos e os criei com sacrifício, dando a eles todas as condições de se tornarem homens de bem. Hoje estão todos bem encaminhados na vida, graças a Deus, e já não precisam mais de mim. Aqui adquiri o hábito de conhecer pessoas. Saber como são, onde moram, como vivem e a que famílias pertencem. Conhecendo-as, aprendi a confiar nelas e a lhes dar crédito. Hoje, se quisesse, poderia parar de trabalhar e passaria então a viver de rendimentos, mas não o faço, pois sei que é o trabalho que me mantém vivo, e não o dinheiro. Hoje, com os recursos de que disponho e com a minha disposição, poderia me transferir para a Zona Sul e começar tudo de novo, mas pergunto: valeria a pena? Compensaria deixar aqui tudo o que plantei ao longo de todos esses anos? Iria me adaptar a uma nova vida, onde os hábitos e o comportamento das pessoas são totalmente diferentes? Poderia, por lá, fazer o que agora faço aqui a seu lado todo esse tempo? Não, meu rapaz, eu sei que não poderia, e por isso é que sei também que não valeria a pena. Por aqui eu já tive muitos fregueses. Hoje tenho alguns bons amigos, e não os troco por dinheiro nenhum deste mundo.

Os olhos de Bill brilhavam de admiração, quando falou:

- O senhor me convenceu. Este bairro é seu, e agora que o conquistou não poderia abandoná-lo. Seria traição. Não, não valeria a pena.

- E você, como está lá por Copacabana? - Seu Manoel fez a pergunta, depois de um breve silêncio, para tentar disfarçar a emoção.

Uma pergunta aparentemente fácil fez Bill pensar duas vezes antes de responder.

- Gosto de lá. Hoje não moraria aqui, se dependesse apenas de minha vontade. No entanto, se tivesse que viver minha infância, novamente, não trocaria o Encantado por qualquer outro lugar do mundo. Confesso que de início estranhei bastante a mudança. Custei a me adaptar. Sinto ainda hoje, vez por outra, que Copacabana me assusta, e isto sempre acontece quando olho pra dentro de mim, bem lá no fundo, e descubro que sou ainda um suburbano.

- Não tenha medo, meu rapaz. Vá em frente. Para os que têm a cabeça no lugar talvez não exista, no Brasil, melhor local para se morar que Copacabana. Principalmente para os jovens, como você. Não tanto pelas belezas aparentes que os olhos podem enxergar, mas pelo mundo de oportunidades que a mente pode descobrir.

De vez em quando a conversa entre os dois era interrompida, para que Seu Manoel pudesse atender um freguês que chegava. Naquela altura várias garrafas vazias de cerveja já se amontoavam sobre a pequena mesa em que estavam. Ao sentir a cabeça pesada, Bill pediu a conta:

- A conversa está muito agradável mas eu ainda pretendo dar uma volta pelo bairro. Quanto é minha despesa?

- Não me deve nada. Eu comi e bebi mais que você, e não seria justo cobrar por isso. É normal que uma pessoa pague para ter um prazer, mas é um absurdo que ela cobre por tê-lo sentido, e eu só tive prazer com sua visita.

Na despedida, depois dos abraços, a promessa de Bill em voltar breve para um novo "papo" e dar a Seu Manoel uma forra nas despesas.

Enquanto dirigia lentamente pelas tranquilas ruas do Encantado, Bill tentava organizar seus pensamentos. Durante o tempo em que estivera ali, no "Cruz de Malta", pôde rever alguns poucos amigos. Alguma coisa lhe dizia que Seu Manoel soubera, através de um deles, a respeito da sua festa de Copacabana. Se isso fosse verdade, nada o bom lusitano deixara transparecer enquanto conversaram, mas, na certa, deveria ter ficado magoado por não ter sido convidado. Bill errara por omissão, e não conseguia se perdoar por isso.

Bill estacionou o carro em frente à casa em que nascera. Havia movimento de gente no seu interior. A luz da varanda estava acesa e, de onde estava podia ver, por cima do baixo muro, o estado de abandono em que se encontrava o jardim. Pensou em sua mãe, e no quanto ela ficaria triste se visse aquilo. Afinal, foram tantos anos de cuidado e dedicação àquele pedaço de terra, que Bill podia ver naquele momento, à sua frente, a imagem de sua mãe podando a roseira usando grossas luvas. Ali estava ela regando a grama, revolvendo a terra com as delicadas mãos.

De repente Bill se viu tentando equilibrar o corpo sobre uma linha divisória imaginável. Uma linha que tinha o poder de separar dois mundos: 17 anos vividos num, e 4 anos vividos noutro. Foi aí que passou a comparar suas duas vidas. Teria realmente vivido duas vidas distintas, ou seria um homem de dupla personalidade? Um Bill não reconhecia o outro. Eram completamente estranhos. A semelhança física não era o bastante, e só a lembrança de fatos ocorridos em que apenas ele fora testemunha ocular, poderia lhe devolver a certeza de que ele era uma só pessoa. Mas não precisou esperar muito tempo para ter tal comprovação. Ao olhar para o quintal daquela casa, lembrou do dia em que subiu no último galho da frondosa mangueira, e de lá viu, por entre uma janela entreaberta da casa defronte, sua vizinha totalmente nua, no momento em que trocava de roupa. Extasiado, diante daquela visão, quase caiu da árvore. Guardou segredo sobre o fato pois não desejava ver sua mangueira desgalhada. Sim, agora ele podia ter certeza de que era o mesmo Bill do Encantado, só que totalmente modificado.

Mais uma vez pôs o carro em movimento e continuou a rodar pelo bairro. Passou pela ex-escola e lembrou dos tempos em que tinha a sua casa constantemente cheia de colegas que vinham para estudar com ele, e depois jogar bola no quintal. Ah! como era diferente, aquela vida, da que agora estava vivendo! Como era raro receber a visita de um colega em seu apartamento de Copacabana! - pensou.

A igreja já estava fechada, quando ele estacionou o carro em frente, e, não fosse isso, teria entrado. Igreja deveria ser como pronto-socorro: não deveria fechar nunca - pensou. Há quatro anos que não conseguia tempo para marcar um encontro com o seu Deus. Só em pensar que durante tantos anos fora assíduo frequentador das missas dominicais, estremeceu. Em silêncio, dentro do carro, fez uma prece.

Bill passou pela casa de Joana e teve vontade de entrar. Parou o carro um pouco adiante, saltou e caminhou de volta até o portão. A casa estava às escuras e ele ficou sem saber o que fazer. A rua estava deserta e ele não pôde compreender de onde saiu e de como apareceu, à sua frente, um rapaz, conhecido, que lhe falou:

- Oi, Bill. Como vai você? Está procurando a Joana?

- Sim, gostaria de vê-la, mas não é nada importante. Estou apenas visitando o bairro e revendo os amigos.

- Joana não está em casa. Foi com o irmão a uma festa em Piedade.

- Sabe o endereço? - perguntou Bill, apenas por perguntar.

- Não, não sei. Ouvi dizer que é numa casa que fica bem próxima da Faculdade.

- Não tem importância. Eu não iria mesmo lá.

- Quer deixar algum recado para ela?

- Não. Se quiser, diga apenas que eu estive por aqui.

Durante o tempo em que esteve rodando com seu carro por ali, Bill pôde notar alguns casais de namorados conversando de mãos dadas nos portões e varandas das casas. Ali, para se namorar, não bastavam aos rapazes a atração física, ou mesmo o amor. Era necessário bem mais que isso. Paciência, compreensão e, sobretudo, respeito, faziam parte de um conjunto de sentimentos. Também era verdade, e Bill não desconhecia, que haviam os casos dos namoros às escondidas, onde os rapazes conseguiam sempre ir um pouco além do permitido em suas investidas. Mas estes eram minoria, pois poucos queriam correr o risco de terem que enfrentar a fúria dos pais e dos irmãos mais velhos das moças. Elas, por sua vez, evitavam tal tipo de relacionamento com receio de ficarem mal faladas pelo bairro. Assim era o comportamento nos anos sessenta, não só nos subúrbios do Rio como, com mais rigidez, nas pequenas cidades do interior do país.

Bill não pôde deixar de sorrir quando lembrou que houvera tempo em que encarara o namoro como um sério compromisso, e o sexo como uma forma criada por Deus para dar à humanidade o meio da procriação e o sentido de família. Fora disso lhe ensinaram que o sexo era pecado e, nas poucas vezes que pecou, pediu perdão arrependido.

Lembrou de Joana e sentiu um forte desejo de estar com ela na tal festa, em Piedade. Bill sabia que isto seria impraticável, mas imaginou-se entrando na festa como penetra, e surpreendendo Joana nos braços de outro, ao compasso de uma música romântica. Tal imagem o perturbou tanto que, enciumado, arrancou com o carro fazendo cantar o pneu. Diminuiu a marcha ao passar de novo pelo "Cruz de Malta", e pôde ver Seu Manoel por trás do balcão, atendendo um freguês. Um sorriso de paz e amor aflorou em seu rosto. Como era bom comprovar - pensou ele - a existência daquela singela figura humana! Um homem crédulo e um comerciante honesto, capaz de fiar e de estar sempre pronto para dar um voto de confiança às pessoas, e, por isso mesmo, receber delas o respeito e a admiração. Como era bom saber também que poderia haver ainda, no mundo, lugares como aquele, onde pessoas como Seu Manoel ainda existiam. Copacabana era um bairro bem maior, e justamente por ser grande demais, ele lá não caberia. Na certa iria à falência em pouco tempo, caso não mudasse sua maneira de proceder.

As luzes do Encantado foram ficando para trás, enquanto Bill dirigia de volta à Zona Sul. Os quilômetros que ligavam um bairro ao outro não eram tantos, mas o abismo que os separava era imenso e profundo. Se de um lado Bill encontrava o luxo, o conforto e as facilidades, do outro podia sentir o calor humano, a confiança e o sentido comunitário. Qual dos dois mundos era o certo, o verdadeiro? Bill não sabia responder à pergunta que sua mente acabara de fazer. Sabia apenas que em Copacabana tivera que reformular todo o seu conceito sobre a moral vigente. O curioso era que entendia que, em ambos os bairros, as leis eram iguais para todos, mas o comportamento das pessoas é que era diferente. Se de um lado deixava-se de fazer alguma coisa por ser pecado, do outro, pecado seria deixar de se fazer. Se de um lado o recato do corpo humano era admirado, do outro, a exibição era exigida. Se de um lado a palavra de um cidadão teria que ser respeitada, do outro, deveria ser compreendida. E foi divagando sobre esse tema que Bill chegou à Zona Sul.

O bar do Antonio ficava em Ipanema, e quando Bill entrou não encontrou um só rosto conhecido. Dirigiu-se ao homem que ficava por trás da caixa registradora e perguntou:

- Sabe se a minha turma esteve hoje aqui, e se alguém deixou algum recado para mim?

O homem mastigava nervosamente um palito, enquanto que, com o olhar aguçado, fiscalizava garções e fregueses a um só tempo.

- Como é o seu nome? - perguntou ele, sem interesse, e sem se fixar no seu interlocutor.

- Todos me conhecem como Bill.

O homem passou rapidamente a vista por alguns bilhetes escritos em pedaços de papéis diversos, e respondeu:

- Não, para Bill não tem nada.

- Bem, é que minha turma costuma se reunir neste bar aos sábados e é possível que já tenha estado aqui. Será que...

- Fale com aquele garçom ali - interrompeu o homem bruscamente, apontando para um garçom baixote e calvo. Há uma hora atrás ele estava servindo a um grupo barulhento de rapazes e moças. Talvez ele saiba alguma coisa.

Por falta de uma informação concreta, Bill, desanimado, resolveu ir para casa dormir. Ah... se aquele bar fosse o "Cruz de Malta" - pensou - as coisas seriam bem diferentes.

 A decepção de não ter encontrado os amigos, e nem sequer um recado, logo se desfez. Bill sentia que aquela noite fora proveitosa, e que a visita ao Encantado lhe fizera bem. Além de ter matado a saudade do bairro e dos amigos, ouvira também algumas respostas a certas perguntas que há muito tempo fazia. Mas o que ele não sabia é que não tinha conseguido atingir o âmago da questão. Bill não tinha se dado conta ainda de uma verdade irretocável e definitiva. A verdade que diz que todo o ser humano passa pela fase da definição: o momento em que já é um pouco tarde para ser criança, e um tanto cedo para ser adulto. Bill foi uma vítima dessa fase. Se ele tivesse ido morar em Copacabana quando criança, teria se adaptado facilmente, e as diferenças que poderia sentir seriam de ordem geográfica, e nunca de ordens sociais. Se a mudança tivesse ocorrido depois dele ter atingido a fase adulta, provavelmente tais diferenças já lhe seriam familiares. Mas, ao se transferir na fase da definição, perdeu-se no emaranhado de acontecimentos inéditos do comportamento humano. Frente a tantas facilidades viu-se tentado e, diante de tantas encruzilhadas, viu-se perdido. Percebendo a grande diferença entre os seus dois mundos, passou a acreditar que durante 17 anos cuidara demais do espírito, e que era chegada a hora de dar vazão à matéria. A verdade é que em pouco tempo estava entregue às exigências prementes da carne. E foi substituindo certos valores morais que durante tanto tempo ditaram as normas de seu comportamento, que Bill passou a conviver com uma nova personalidade.

É verdade que o ingresso de Bill na Aeronáutica se deu pouco tempo depois dele ter se transferido para a Zona Sul, e isso fez com que ele fosse se acostumando aos poucos com o novo bairro. Não fosse este acontecimento, e na certa o impacto teria sido muito maior. Na verdade, ele só foi se dar conta do novo mundo que tinha pela frente quando deu baixa, dois anos depois, e passou a curtir com intensidade a total liberdade. Durante o tempo em que esteve servindo às Forças Armadas, Bill aprendeu muita coisa. De seus superiores recebeu orientações de civismo, assuntos aeronáuticos, rígida disciplina e severa educação física. Com seus companheiros de farda, gente oriunda de diversas camadas sociais, Bill aprendeu, não só para usar como para se defender, toda a sorte de molecagem e malandragem. Com a esposa e com a filha de seu Comandante aprendeu que o sexo é um saboroso e saudável passatempo, e que pecado, no caso, seria a procriação indébita.

Naquela noite, já em seu quarto, Bill buscava o sono através da leitura de um romance. De repente, pousou o livro sobre a mesinha de cabeceira e apagou a luz do abajur. E ao se ver envolvido pela mais negra escuridão, sentiu acender uma luz em sua memória, e antes de adormecer, recordou as últimas palavras ditas pelo Coronel Carneiro, um dia antes de sua baixa:

- Você será um vitorioso, e eu confio no seu sucesso.

 
CAPÍTULO 24

Paris, Primavera de 194l

A primavera espalhava flores pelos campos, nos arredores de Paris. Naquele ano ela chegara forte, explodindo de repente num cataclismo de cores. Cada flor que desabrochava parecia querer falar, parecia querer dizer que estava ali presente, independente da guerra e da ocupação do solo francês pelos alemães. Colorindo a paisagem, a primavera distribuía otimismo àquele povo oprimido. Em sua mensagem silenciosa, ela falava mais que as palavras vazias e as falsas promessas dos opressores e traidores da pátria. E dizia que por maior que fosse a força inimiga, insignificante ela seria diante da força da natureza. O homem poderia mudar o curso de um rio, mas jamais conseguiria destruir sua nascente.

Um velho Renault cinza atravessava o campo em direção à Paris. Dr. Louch dirigia em marcha moderada o pequeno veículo, tendo ao seu lado Giacomo que, absorvido pela paisagem, parecia sonhar acordado. A manhã estava radiosa naquele sábado de maio. Há pouco tinham passado por um grupo de camponesas que cantavam enquanto cuidavam da colheita. Giacomo acenara com a mão, e elas responderam alegremente. A estrada estava quase deserta e apenas alguns poucos veículos militares tinham cruzado com o carro de Dr. Louch, como que a lembrar que estavam em guerra. Tanto o doutor quanto Giacomo estavam vindo de Nancy, onde trabalhavam num hospital. Há muito que ambos não tiravam um dia de folga e estavam precisando de descanso e distração. O doutor conseguira para ele aquele fim de semana livre, e resolvera passear na Cidade Luz. Para Giacomo aquela viagem tinha um sabor todo especial, e talvez por isso ele estivesse sentindo a primavera com maior intensidade. Afinal ele não iria a Paris apenas para passar um fim de semana, e sim para ficar.  Dr. Louch, usando de todo o seu prestígio, conseguira para Giacomo a transferência tão sonhada pelo genovês, que já, a partir da próxima segunda-feira, dia 19, estaria a serviço de um dos maiores hospitais da capital francesa. Giacomo estava radiante. Tudo aquilo lhe parecia um sonho, e por isso permanecia calado por tanto tempo. Não queria partir a frágil imagem de felicidade que carregava no rosto com o som de suas palavras. Foi Dr. Louch quem primeiro quebrou o silêncio:

- Quer dirigir um pouco?

- O que disse? - perguntou distraído.

- Perguntei se não quer dirigir.

- Só se o senhor estiver cansado. Caso contrário...

- Cansado, eu? - interrompeu o doutor. Você não me conhece. Sou capaz de atravessar o país de norte a sul, leste a oeste, parando apenas para reabastecer... Gosto de dirigir nas estradas onde a liberdade se faz mais presente. Sou um homem do campo, e nada é melhor do que a gente sentir o cheiro da terra úmida, do mato, das flores. Ver um cavalo correndo pela campina, as aves soltas, o gado pastando na relva. Assim, em contato com a natureza, é que podemos sentir melhor a presença de Deus. Não sinto mais prazer em dirigir nas grandes cidades, onde o excesso de carros, sinais e pedestres já me põe nervoso. Quando esta guerra imunda terminar, vou comprar um pedaço de terra na região da Bourgogne e vou fazer o meu próprio vinho. Quero morrer cheirando a uva.

- Eu também gosto da natureza e da vida do campo. Entretanto, prefiro o mar...

- E por que está tão ansioso para chegar em Paris?

- Já imaginou Paris com um oceano a banhá-la? Penso que seria a única cidade no mundo perfeita...

- Provavelmente teria um outro espírito, outro tipo de gente, outros costumes. Não seria Paris. Não existe cidade perfeita, nem a mais bela. Vários ingredientes são indispensáveis para se fazer uma bela cidade, tais como sua localização e belezas naturais, a qualidade do clima, e, principalmente, o povo que nela vai habitar. O dinheiro e a mão do homem também se fazem necessários para completar a obra iniciada pela natureza. Juntar tudo o que há de melhor num só recanto da terra seria injusto para Deus, e impossível para o homem.

- O senhor já viajou muito, não?

- Adquiri de meu pai o seu espírito cigano, e posso dizer que além de ter viajado por toda a França, pude ainda conhecer algumas das mais importantes cidades do mundo.

- E o senhor nasceu aonde?

- Em Fixin, perto de Dijon, na região da Bourgogne. Foi lá que vivi os primeiros anos de minha infância, e depois não parei mais de viajar. Meu pai negociava com terras e com o que obtinha delas. Comprava sítios e fazendas mal cuidadas, fazia os melhoramentos necessários e, geralmente as vendia com um bom lucro. Ele costumava se dividir entre a criação de animais e a agricultura. Ora negociava com bovinos, suínos e ovinos, ora com trigo e uva, que eram suas especialidades. Suas atividades eram assim diversificadas porque elas dependiam muito da região que escolhia para morar. Meu pai sempre soube ganhar dinheiro, pois só se metia em negócios que conhecia profundamente, e este sempre foi seu maior segredo...

- Então seu pai fez uma grande fortuna, não?

- Poderia ter feito uma das maiores fortunas da França, não fosse o seu lado cigano, aventureiro e romântico. A mesma habilidade que possuía para ganhar muito dinheiro, tinha para gastá-lo. Nos períodos em que se dedicava ao trabalho, não poderia haver homem mais responsável, competente e trabalhador. Mas quando concluía um bom negócio, trocava de cidade e passava a viver como um milionário, sem se preocupar em ganhar dinheiro durante algum tempo. Porém, mesmo assim, enquanto se distraía e gastava, ia estudando as possibilidades de negócios daquela região.

- Mas se isso não fosse possível?

- Papai nos deixava ali e viajava antes que seu dinheiro acabasse de todo.

- E vocês ficavam desamparados? Abandonados à própria sorte?

- Isso nunca aconteceu. Papai jamais abriu mão de guardar algumas reservas. Antes de viajar ele deixava com mamãe uma quantia em dinheiro suficiente para vivermos, pelo menos seis meses, sem passarmos necessidades. Além disso, deixava também com ela um pequeno cofre com a recomendação de que só deveria ser aberto se ele morresse ou se não desse sinal de vida até que estivessem esgotados todos os nossos recursos.

Giacomo acendeu um cigarro. Ele estava tão absorto pela narrativa, que nem percebia a bela paisagem que se descortinava a sua frente. Esqueceu da guerra e até de que estava indo para Paris. Naquele momento descobrira que também ele tinha alma cigana, e muito se identificava com aquele rico personagem, pai do Dr. Louch. Curioso, fez novas perguntas, para não deixar morrer o assunto.

- Era sempre assim que acontecia? De que maneira seu pai gastava boa parte do dinheiro? Como ele conseguia depois se recuperar?

- Calma, meu rapaz. Vamos por partes...

Dr. Christian Louch fumava muito pouco, mas naquele momento aproveitou para acender também um cigarro. Depois da primeira tragada, continuou com a narrativa.

- Invariavelmente era assim que meu pai agia. Sempre que fechava um bom negócio, mudava de cidade e passava a gozar a vida intensamente. Aplicava tudo o que ficava em seu poder, nos três maiores vícios do homem: bebida, jogo e mulher. Com as bebidas e com as mulheres, sabia que não ia ter retorno de capital, mas com o jogo conseguia, às vezes, duplicar ou até triplicar a fortuna.

- E, quando isto acontecia, o que ele fazia?

- Ou ele comprava propriedades e ficava ali por algum tempo, ou aplicava parte dos lucros no melhor negócio da região e partia com a família para outras plagas...

- E se ele perdesse no jogo e não desse sorte nos negócios?

- Papai dizia que só dependia da sorte para o jogo. Para os negócios era uma questão de visão e competência. Recomeçar quase da estaca zero, parecia lhe dar prazer. Ele gostava do desafio. Quando perdia no jogo, se revestia de um poder de luta ainda maior. E o processo era sempre o mesmo: dinheiro e cofre nas mãos de mamãe, e partia sem nos dizer para onde. Quando não regressava antes de seis meses, mandava-nos algum dinheiro e notícias. O certo é que só voltava vitorioso, trazendo um mundo de presentes para todos nós, e era sempre assim que nós o víamos chegar...

- Para seu pai este tipo de vida deveria ser muito excitante, mas para sua mãe, como foi que ela conseguiu se adaptar?

- Eles cresceram juntos e mamãe não teve oportunidade de conhecer outro homem. Meu pai foi seu primeiro e único amor. Ela o aceitou como ele sempre foi. Um homem cheio de contrastes, onde as virtudes e os defeitos se chocavam violentamente mas não o impediam de ter uma personalidade forte e marcante. Antes de casar papai teve muitas aventuras amorosas, mas voltava sempre para mamãe. Quando conseguia juntar dinheiro, fruto de seu trabalho no campo, fugia de casa e só voltava quando estava sem tostão. Quando isto acontecia, vovô costumava surrá-lo e ouvia de papai sempre a mesma ameaça: - "um dia eu fujo pra valer, e só volto quando estiver rico!". Com receio de que papai um dia concretizasse tal ameaça, vovô procurou encontrar um meio de prendê-lo à terra. Certo dia fez a ele uma proposta que achou irrecusável: - "no dia em que você estiver certo de seu amor por uma mulher digna de seus sentimentos, e resolver casar e constituir família, terá de mim, como dote, o melhor pedaço de terra, capaz de produzir a melhor uva e o mais puro vinho da região". Apaixonado por mamãe, e cansado de perder o pouco dinheiro que ganhava depois de meses de árduo trabalho em suas viagens frustradas, papai aceitou a proposta e, pouco tempo depois estava casado. Durante sete anos ele viveu ali, cuidando da terra, colhendo a melhor uva e produzindo o mais puro vinho do local. Reconstruiu a casa, ampliando-a e modernizando-a. Comprou outras pequenas propriedades, duplicou os vinhedos e ali viu nascer os seus cinco filhos: dois homens e três mulheres. Pouco tempo depois do nascimento de Madelaine, minha irmã caçula, vovô morreu e tudo se modificou...

- Por que? O que aconteceu?

- Minha mãe teve um parto difícil e quase morreu por falta de maiores recursos, e esta foi a gota d'água que faltava para papai começar a sua vida errante. Impossibilitada de ter mais filhos, mamãe caiu em profunda depressão. Em vista disso, e sem ter a presença de vovô marcando seus passos, papai propôs mudarem-se para uma cidade maior, onde na certa teriam melhores condições de vida para educarem os filhos. Na verdade, era papai que há muito estava irrequieto, e já não se sentia satisfeito com o que conquistara, independente de seu crescente sucesso nos negócios. Quanto mais crescia, mais se sentia preso à terra e isso o incomodava. Mamãe, totalmente transtornada, acabou cedendo e papai aguardou a melhor oportunidade para vender tudo, obtendo um substancial lucro com a transação.

- E de Fixim, vocês foram pra onde?

- Fomos para Dijon. Lá meu pai comprou uma bela casa, pôs os filhos mais velhos no melhor colégio da cidade e iniciou um novo negócio. Mas, em menos de seis meses, sentindo que não se adaptava à vida da cidade, papai desfez o que começou, e passou a fazer pequenas viagens. Moramos apenas um ano em Dijon, e depois disso não paramos mais de viajar.

- E estas viagens constantes não prejudicavam os estudos das crianças?

- Prejudicaram muito, e era o que mamãe mais lamentava. Por ela, todos nós teríamos estudado e na verdade, só eu consegui concluir meus estudos.

- E como o conseguiu?

- Vendo que dos filhos era eu quem mais tinha  gosto pelos estudos, mamãe, pela primeira vez, fez valer a sua autoridade e conseguiu que fôssemos morar em Paris.

- E seu pai, não queria que vocês estudassem?

- Nunca se opôs, como também jamais fez muita questão. Bastava que um dos filhos se formasse em advocacia ou veterinária, dizia, para que ele pudesse morrer feliz.

- E como vocês foram se bater em Paris?

- Assim que duas de minhas irmãs se casaram e que meu irmão mais velho se tornou independente, mamãe começou a bater o pé. Discutiram muito, mas tanto a obstinação dela quanto seus argumentos foram mais fortes. Eu e Madelaine, precisávamos estudar, dizia mamãe. Nós éramos as últimas esperanças. Se concluíssemos nossos estudos, poderíamos ser de grande utilidade para cuidar e administrar o patrimônio da família. Este foi o argumento decisivo que pôs por terra as últimas resistências de papai e, pouco tempo depois, estávamos morando na Capital.

- E como foi feita a mudança de vocês para Paris?

- Um pouco diferente das demais. Naquele momento, papai estava muito bem de vida, com propriedades espalhadas pelos quatro cantos da França. Assim ele decidiu vender apenas uma parte do que tinha, apurando com isso o suficiente para comprar uma boa casa num subúrbio parisiense e começar por lá um novo negócio. Diga-se, de passagem, que antes disso papai já se desfizera de três propriedades. A maior delas, e mais rica, com vasta plantação de trigo, dera de presente a meu irmão mais velho, seu filho predileto. Essas terras ficavam em Combourg, na região da Bretagne. Para minhas irmãs que haviam se casado, papai dera como dote, para uma, um bom pedaço de terra em Fixin para cultivo de uva e, para a outra, terras em Mazamet para criação de ovinos.

- E como foi a estada de vocês em Paris?

- Ah... Maravilhosa, inquietante, surpreendente e imprevisível! Papai que conhecia Paris de passagem, nas poucas vezes que por lá teve que ir a negócio, ficou tão empolgado com a Cidade Luz, que comprou um automóvel e contratou um chofer. Passou a levar uma vida de milionário, que era o que sempre fazia quando trocava de cidade. Movida pelo entusiasmo de papai ou levada por seu braço, mamãe logo conheceu os melhores teatros, restaurantes e casas de modas. Mas, como sempre acontecia nas grandes cidades, os negócios de papai não foram bem, e em menos de dois anos já estava às portas da falência. Mamãe, eu e Madelaine nos demos muito bem em Paris e logo já estávamos bem ambientados. Papai, ao se conscientizar de seus fracassos profissionais na Capital, voltou a fazer as suas viagens pelo interior do país, e por lá passava a maior parte do tempo. Em algumas destas viagens, mamãe o acompanhava e, quando isso acontecia, ficávamos aos cuidados de uma governanta, que a esta altura, era por nós considerada uma amiga da família. Eficiente, dedicada e, principalmente, econômica, Louise, como era seu nome, fazia das tripas coração para poder equilibrar as despesas da casa. Às vezes ficava sem receber seu ordenado por vários meses sem se queixar. Logo ela aprendeu a confiar em nossa amizade, pois papai, sempre que seus negócios iam bem, fazia questão não só de acertar as contas com Louise como de gratificá-la com dinheiro extra e presentes caros. Os altos e baixos de nossas vidas logo fizeram por despertar o olhar curioso da vizinhança, que passou a nos ver como os mais ricos do local em determinados períodos, e os mais pobres em outros.

Mas, em tudo isto, um fato novo aconteceu: tanto os meus estudos quanto os de Madelaine jamais foram interrompidos e nossa casa em Paris nunca foi vendida. Um ano antes de concluir meu curso de veterinária, Madelaine começou a estudar advocacia. Na verdade, tanto eu quanto ela abdicávamos de nossos ideais para agradar papai. Pouco tempo depois de me formar papai morreu, e minha irmã interrompeu os seus estudos logo em seguida para tentar ser escritora, seu sonho maior. Começou por onde todo escritor principiante começa, colaborando para jornais e revistas de pouca expressão. Mais tarde, conseguiu publicar dois livros. Com o romance, obteve fracasso de crítica e de público, e com o de poesias, apesar de algumas críticas elogiosas de gente importante do mundo literário, não conseguiu atingir o público leitor. Madelaine, aceitando o fracasso, logo se desencorajou e, se ainda por algum tempo publicou seus trabalhos em jornais e revistas, foi em atenção a pessoas amigas que acreditavam no seu valor. Como esses trabalhos pouco lhe rendiam, conseguiu um emprego fixo numa editora e passou a se manter sem depender dos recursos da família. Nessa empresa ela fez de tudo, inclusiva tradução de livros...

- E hoje, o que faz ela? Ainda é viva, não? - perguntou Giacomo, aproveitando a pausa que fizera Dr. Louch para acender um cigarro.

- Sim, está viva, e me parece que sempre gozou de boa saúde, pois nunca parou de trabalhar. Hoje, bem conceituada, ela faz parte da diretoria da tal editora. Quero crer que, em virtude de seu temperamento muito autoritário e independente, Madelaine nunca tenha chegado a se casar, muito embora tenha tido um filho, fruto do grande amor de sua vida. Eles moram juntos em nossa casa em Paris, para onde estou indo agora, passar este fim de semana.

- Estou ansioso por conhecê-los!

- Ótimo! Você irá almoçar conosco amanhã. Estou certo de que irá gostar muito de Madelaine. Ela, apesar de muito culta, é uma criatura simples que adora receber e não despreza um boa conversa. Estou certo também que saberá apreciá-lo.

- E eu já a admiro pelo pouco que sei a seu respeito.

Dr. Louch ficou algum tempo em silêncio com o pensamento distante, como se estivesse compondo a figura da irmã, que há muito tempo não via. Giacomo acendeu um cigarro e, depois de uma longa tragada, puxou de novo a conversa.

- E os outros irmãos, como estão?

- Bem, minha irmã que morava em Mazamet faleceu ainda jovem, vítima de seu fraco coração, deixando três filhos pequenos, na ocasião. Seu marido casou de novo e ainda mora com a família no mesmo local. Pelo que soube, ele é hoje um próspero criador de cordeiros e ovelhas. Minha outra irmã, a que mora em Fixin, ficou viúva e depois da morte do marido vendeu parte da propriedade, comprou algumas casas por lá, e hoje vive da renda desses aluguéis. Ela teve cinco filhos: um morreu, três moram em Paris, e a caçula casou-se com um humilde lavrador da região e vive com uma certa dificuldade. Meu irmão mais velho, o que saiu mais parecido com papai, tentando imitá-lo se deu mal. Casou-se cedo e depois de conseguir juntar um bom dinheiro, fruto dos lucros com o trigo, tentou empregá-lo em outros negócios que não deram certo, e tão endividado ficou que teve de vender grande parte da propriedade. Com seu temperamento farrista e mulherengo criou um ambiente insustentável dentro de casa. Certo dia saiu para uma pequena viagem de negócios e não mais voltou. Minha cunhada ficou com a casa, um pedaço de terra que sobrou, e uma criança na barriga, que veio a falecer ao nascer. Foram golpes rudes que a fizeram sofrer e a passar por sérias dificuldades. Na verdade, ela só veio a ter sorte quando tempos depois encontrou num simples homem do campo, trabalhador e ambicioso, o companheiro ideal. Não se casaram mas vivem hoje muito felizes com os três filhos provenientes desta união. Financeiramente, também estão bem e negociam com peles e couros.

- E seu irmão, o que aconteceu com ele?

- Sabe-se muito pouco a seu respeito. Depois que vendeu suas terras em Combourg para pagar dívidas, e separou-se de minha cunhada, vagou por toda a França, fazendo bons e maus negócios. Na verdade, mais maus do que bons. Há mais de cinco anos que  nossa família não ouve falar dele. Não sabemos o seu paradeiro e nem ao menos se ainda está vivo. Sua última aparição se deu em Paris quando, aparentando estar doente e em grandes dificuldades, disse à Madelaine que estava prestes a fechar o melhor negócio de sua vida. Tomou dela algum dinheiro emprestado e desapareceu pelos caminhos de seus sonhos. Sua maior falha foi ter tentado imitar papai. Meu pai foi único. Viveu para vencer desafios e surpreender e, no entanto, tudo o que fez jamais foi surpresa para mamãe. Ela morreu de velhice e preocupação na nossa casa em Paris, nos braços de Madelaine, após um ano sem ter notícia de meu irmão. Suas últimas palavras foram de indagação pelo filho desaparecido e, sempre que se referia a ele, trocava o seu nome pelo de meu pai.

- E seu pai, de que morreu?

- Para explicar a sua morte, tenho que ir um pouco além. Quando a notícia chegou a Paris, através de seu capataz, amigo e confidente, mamãe pela primeira vez abriu o pequeno cofre que ele sempre deixava aos seus cuidados toda vez que viajava. No fundo deste pequeno objeto de metal, ela encontrou apenas três documentos: dois registros de propriedade devidamente quitados e uma carta para mim endereçada. As propriedades eram a nossa casa em Paris e a maior e mais rica fazenda entre todas que conseguiu possuir. Ficava localizada em Mirebeau, bem próximo de Dijon e da região da Bourgogne. As terras eram férteis e propícias tanto para a agricultura como para a pecuária. Assim que conheci estas terras, senti que papai tinha descoberto ali o local ideal em que pudesse unir tudo o que sempre fez. Lá ele plantava e criava. Colhia uva e engordava o gado. Além da casa sede, grande e confortável, muitas outras construções ficavam espalhadas por aquela imensidão de metros quadrados, podendo se destacar um abatedouro, um frigorífico, uma grande adega, galpões e currais. De um lado da fazenda ficavam os vinhedos e outras plantações menores, e do outro, as terras livres destinadas ao pasto. O capataz, quando nos levou a notícia, entregou-nos um pequeno testamento escrito por papai momentos antes de morrer. No tal papel podia-se ler, através de letras trêmulas, o último desejo de papai. Pedia ele que mantivéssemos em nosso poder, pelo maior espaço de tempo que nos fosse possível, aquelas duas propriedades que ficariam como herança, para mamãe a metade, e a outra parte para ser dividida comigo e Madelaine. Justificava ele, no documento, que os outros filhos já estavam bem encaminhados e que por isso não precisavam receber parte desses bens.

- Mas, afinal, de que morreu seu pai? - perguntou Giacomo, cheio de curiosidade.

- Na carta que ele me deixou, de certa forma deu a entender que previa como seria a sua morte. Ele esperava um dia ser vítima de uma vingança, e foi justamente o que ocorreu. No entanto, sua morte teve duas versões, pois para minha mãe e os demais parentes, o capataz de papai contou que ele fora vítima de uma bala perdida durante uma discussão numa mesa de jogo de cartas, dentro de um bar. Uma morte puramente acidental, frisou o capataz, pois que papai apenas assistia ao jogo e nada tinha a ver com a desavença. No entanto, mais tarde aquele homem enorme, de expressão abrutalhada e voz macia, a quem papai confiava os seus mais íntimos segredos, me revelou a verdadeira história. Tudo começou com a última conquista amorosa de papai, de início igual a tantas outras que terminavam de forma satisfatória para as partes envolvidas. Entretanto, para este derradeiro caso, não foi encontrada uma solução conciliatória, capaz de evitar a tragédia. Papai, como pude comprovar através da carta que me deixou, só se envolvia com mulheres jovens e virgens, verdadeiras ninfas. Ao morrer, aos quarenta e oito anos, aparentava ter muito menos, pois era do tipo atlético - alto e forte - e sabia cuidar da aparência. Tinha a pele bem bronzeada e os olhos azuis bem claros. Tinha ainda os dentes perfeitos, usava um grosso bigode e conservava uma vasta cabeleira levemente prateada. Além da boa aparência, era de temperamento alegre e comunicativo. Por ser muito viajado, não lhe faltava assunto para longas conversas. Para completar, vestia-se bem e era esbanjador, e com isso dava a impressão de estar sempre nadando em dinheiro. Que garota sonhadora e inexperiente, do interior, seria capaz de não se interessar por um tipo de homem assim? Meu pai tinha consciência disso e sabia usar todo os recursos de que dispunha. Só não usava a força física. Não, isso nunca. Jamais seria capaz de possuir uma mulher contra a sua vontade. Assim, as conquistas foram acontecendo e a cada caso consumado, presentes, promessas e por fim o abandono. Enquanto umas se conformavam com a sorte ou guardavam segredo por medo da reação dos pais, outras davam com a língua nos dentes, principalmente aquelas em que o volume do ventre era maior do que a necessidade de guardar o segredo. Por serem suas vítimas, na sua maioria, oriundas de famílias humildes, papai logo conseguia abafar o escândalo com indenizações, doando criações ou propriedades, ou ambas as coisas. Com isso, durante vinte anos, papai espalhou fortuna e filhos pelos quatro cantos do território francês...

- E por que não deu certo desta última vez? Qual o motivo que levou o pai ou os responsáveis pela moça a apelarem para a vingança extrema?

- Não foi bem pela defesa da honra, como se poderia pensar a princípio, e sim por ambição. O pai da moça em questão, segundo relato de papai ao seu capataz, não aceitou o que lhe foi oferecido em troca do seu silêncio. Exigiu muito mais. Papai subiu a oferta até achar que o que propunha era mais do que justo. O pai da moça, depois de não só aceitar as terras como tomar posse das mesmas, jurou vingança. O homem que atirou em papai era desconhecido por aquelas bandas, e foi visto, momentos antes, conversando com um dos irmãos da moça. Logo depois entrava no bar e no jogo de cartas com o firme propósito de provocar uma discussão e de atirar, covardemente, à queima-roupa, em papai.

- E que aconteceu logo a seguir? - perguntou Giacomo, interessado pelo desfecho da história.

- Agindo com eficiência e rapidez, o criminoso conseguiu fugir sem deixar rastro, e as poucas pessoas que presenciaram o fato não conseguiram depois identificá-lo. Papai foi socorrido ainda no local, mas veio a falecer na manhã do dia seguinte. Enquanto esteve lúcido preferiu não acusar ninguém, e pediu a seu capataz que guardasse segredo a respeito do que sabia. A todos, inclusive para a polícia, papai fez questão de dizer que fora vítima de um tiro acidental...

- E como tudo terminou?

- A polícia da região, deficiente e sem uma acusação ou dados capazes de ajudar na elucidação do ocorrido, pouco tempo depois dava o caso por encerrado, por falta de provas.

- E você, o que fez quando soube da verdadeira história?

- Viajei até lá, fiz perguntas. Estive também em lugarejos próximos, enfim, fiz tudo o que me era possível fazer para encontrar o homem que atirou em papai, pois só assim poderia chegar até o mandante, o verdadeiro criminoso. Todo o meu empenho foi em vão. Nem uma pista me foi dada, capaz de me levar até o matador de aluguel. Desesperançado acabei por desistir, e dias depois estava de novo em Paris.

- E sua mãe, chegou a saber da verdade?

- Nunca, como também, tenho certeza, jamais aceitou a versão que lhe foi contada.

- E você, o que fez depois?

- Durante pouco mais de um ano morei em nossa propriedade em Mirebeau, mas não fui feliz como agricultor, criador ou negociante. Na verdade, só consegui ser útil lá como veterinário. Mamãe e Madelaine continuaram em Paris e nos visitávamos sempre que podíamos. Mesmo bem assessorado pelo capataz de papai, que foi trabalhar comigo, um dia entendi que aquele não era meu negócio e que se insistisse acabaria pondo a perder todas aquelas terras. Para nossa sorte recebi uma oferta que considerei irrecusável e, de comum acordo com mamãe e Madelaine, vendemos as terras a aplicamos o dinheiro em negócios seguros, que nos podiam render o suficiente para vivermos durante muito tempo com relativa facilidade. Foi aí que ao voltar a Paris pude realizar o maior sonho de minha vida: estudar medicina.

- E quanto tempo você morou em Paris?

- Até me formar. Logo depois, seguindo em parte os passos de papai, fui exercer minha profissão em pequenas cidades do interior. Vivi trocando de cidade, sempre levado por motivos sentimentais, até que um dia ultrapassei fronteiras e me radiquei durante alguns anos em Gênova, sua terra natal e, o resto você já sabe.

- Nem tudo. Não sei, por exemplo, quando se casou...

- Nunca me casei.

- Mas o senhor tem dois filhos, não?

- É verdade. São frutos do único amor de minha vida.

- E por que não se casou, posso saber?

- Por covardia, por egoísmo. Por não querer abrir mão da minha individualidade, nem do meu jeito cigano. Não quis repetir os mesmos erros de meu pai e, sendo eu também um homem que nunca desejou viver muito tempo no mesmo lugar, não desejava fazer sofrer uma mulher com minhas andanças pelo mundo a fora, como quem cria raízes em pequenos jarros.

- E este seu grande amor, quando e onde aconteceu?

- Você tinha quatro anos e eu morava em Gênova na época, quando fui a Nice a passeio. Ela era uma mulher vivida, quando eu a conheci. Tivera uma amarga experiência com o primeiro homem de sua vida, um artista mambembe. Nosso amor foi imediato, inevitável e sem promessas.

Dr. Christian Louch interrompeu a narrativa. Pela primeira vez, naquele dia, emocionou-se ou, pelo menos, não conseguiu disfarçar a emoção. Parou o carro no acostamento com os olhos embaçados. Giacomo percebeu e procurou disfarçar.

- Quer que eu dirija um pouco? - perguntou o rapaz, quebrando o silêncio.

- Se não se incomodar - respondeu o doutor, esfregando os olhos na manga da camisa. Estou sentindo a vista cansada.

Assim que Giacomo repôs o carro na estrada, o doutor recomeçou a contar a sua história. Seus olhos ganhavam agora um intenso brilho. Era como se ele estivesse vendo nitidamente o que narrava.

- Margot era o seu nome. Era loura, do tipo mignon. Tinha um rosto meigo e as expressões cansadas. Era enfermeira e trabalhava no principal hospital de Nice. Embora tivesse um aspecto frágil, era uma mulher de uma força interior incrível. Eu, quarentão e experiente, fui tomado de surpresa por sua sensibilidade e compreensão. Margot, dez anos mais jovem que eu, me ensinou uma lição de vida que jamais esqueci. Ela dizia que as pessoas que vivem presas ao passado, ou as que se preocupam em demasia com o futuro, não conseguem viver o presente. Margot nada exigiu de mim a não ser o nosso momento juntos, quando ela me queria todo, inteiro, sem planos ou recordações. No dia em que tive de regressar a Gênova e nos despedimos pela primeira vez, ela não quis ouvir de mim uma só promessa, mas ficou muito feliz quando lhe disse que tinha vivido os melhores momentos de minha vida ao lado dela. Só pude voltar a vê-la um ano depois, e a encontrei com o nosso primeiro filho. Na verdade, ela já estava grávida quando parti, e escondeu de mim o fato. Depois disso, durante pouco mais de um ano, sempre que podia passava com ela os fins de semana. Na última vez que a deixei, Margot estava em princípios da segunda gravidez, e talvez por covardia passei muitos meses sem aparecer. Quando voltei a Nice, com o firme propósito de legalizar nossa situação, encontrei duas crianças órfãs de mãe. Foi aí que compreendi o quanto tinha vivido com medo de ser feliz. Arranjei emprego no mesmo hospital em que Margot trabalhara, comprei uma casinha em Nice, e por lá fiquei até criar meus filhos. Está aí a história de minha vida.

- Estou tão convencido de que ela daria um bom romance que, se eu tivesse queda para literatura, não hesitaria em escrevê-lo. Além de ter uma história envolvente, teria também fascinantes personagens para descrever como o seu pai, por exemplo. Vamos admitir que eu estivesse escrevendo um livro sobre sua vida, como acha que deveria concluí-lo?

- Bem, como estamos em guerra, e muita coisa ainda poderá acontecer, visualizar agora um final seria um tanto prematuro. No momento só posso falar sobre minhas preocupações com meus filhos que vivem correndo sérios riscos. Tanto o mais velho, que vive prestando relevantes serviços à Resistência como bombeiro em Paris, como o caçula, que ao lado de Pierre luta pelos maquis. Ambos podem ser descobertos e presos a qualquer momento...

- Mas se tudo acabar bem, como pretende o senhor terminar seus dias?

Dr. Louch ficou algum tempo em silêncio com um sorriso nos olhos como se estivesse sonhando com um final feliz, e depois falou:

- Estou preparado para a solidão e a morte, e sei que elas me esperam. Vou me manter no celibato, pois não faria mais sentido me casar. Sempre vi na mulher uma companheira e nunca uma apólice de seguro. Dinheiro não consegui juntar, mas tenho quatro propriedades nos lugares em que mais tempo vivi. Casas em Gênova, Nice e Nancy, e um pequeno apartamento em Paris. Assim que esta guerra imunda acabar, venderei tudo. Uma parte do dinheiro arrecadado será destinada para meus filhos, e com o que me sobrar comprarei um bom pedaço de terra em Fixin e lá, entre uvas e vinho, terminarei meus dias. Eis aí o final do romance. Sem originalidade como a maioria dos romances, mas verdadeiro.

- Naturalmente, toda história romanceada tende a sofrer alterações, mas o final bem que poderia ser esse, pois não existe nada mais comovente do que o reencontro do homem com suas origens.

Naquele dia, antes de chegarem a Paris, eles ainda passaram no pequeno sítio em Creteil, onde puderam comer, rever os amigos e recolher informações. No rumo da Capital, já com o Dr. Louch de volta ao volante do seu pequeno automóvel, tiveram seus documentos minuciosamente examinados nas duas barreiras que encontraram pela frente. Ao cair da tarde entravam em Paris sem mais incidentes. À noite jantaram no restaurante da família Fontaine em Saint-Germain-des-Prés.

 

CAPÍTULO 25

Rio de Janeiro, Primavera de 1967


- Por que sua mãe não promove um desfile de modas para lançar os novos modelos primavera-verão lá da butique? - perguntou Bill, de surpresa.

Mariinha, não acreditando no que acabara de ouvir, respondeu com outra pergunta:

- Como é que é?

- Foi o que eu disse. Um big desfile cairia muito bem. Além de dar categoria à casa, promoveria os modelos exclusivos. Sua mãe trabalha com modelos exclusivos, não?

- Uma boa parte costuma ser. Mas do que é que você está falando? Quando foi que começou a se interessar por moda?

- Você sabe que eu não ligo muito para esse tipo de coisa, mas entendo um pouco do negócio. Minha mãe tem assinatura das melhores revistas francesas especializadas no assunto. Estar por dentro da moda para ela é como respirar ar puro todos os dias. Sempre arranjo um tempinho para dar umas folheadas nas tais revistas, só para ter o prazer de discutir com mamãe sobre o assunto.

- E como ela reage?

- Fica feliz, muito embora já tenha percebido que eu discuto este assunto com ela apenas para agradá-la. O interessante é que, quando em francês discorro sobre os meus pontos de vista a respeito da moda, procurando dar à minha voz um tom afetado ela sorri e costuma dizer que prefere me ver sentindo a moda do  que ditando-a.

- Mas afinal você ainda não me explicou o porquê deste seu súbito interesse...

- Porque estou farto de trabalhar em festinhas e recepções e gostaria agora de realizar um trabalho fotográfico diferente...

- E quando você teve esta ideia?

- Agora mesmo, aqui. Enquanto conversávamos, passou por nós uma mulher com um andar tão afetado, que conseguiu monopolizar as atenções. Você não percebeu porque estava de costas para ela. Alta, esguia, até certo ponto elegante, ela passou por nós vestindo uma saída de praia longa, em tecido acetinado, e me deu a impressão de estar deslizando e não, caminhando simplesmente. E olha que fazer desta fofa areia uma passarela, não deve ser fácil...

- Não creio que mamãe aceite esta sua ideia facilmente. Afinal um desfile de modas é muito dispendioso e trabalhoso também. Estou quase certa de que ela irá lhe dizer que nunca precisou lançar mão de tal expediente para vender os seus modelos, e que está muito contente com a pequena mas fiel e seleta clientela já conquistada...

- Se você achar melhor que eu fale direto com ela sobre o assunto, é só esperarmos o momento certo. Argumentos eu os tenho de sobra, e acredito em meu poder de persuasão, não se preocupe...

- Eu sei que você tem lábia e charme suficientes, mas suponhamos que ela aceite a ideia e não tenha o dinheiro para o empreendimento.

- O importante é que ela me dê um crédito de confiança, pois estou certo de que dinheiro não será o problema. Afinal, ela não irá gastar nem a metade do que qualquer outra pessoa teria que dispor para realizar este tipo de promoção.

Mariinha olhando os guarda-sóis de praia ao vento, em diversificadas estamparias, imaginou saias rodadas desfilando na passarela. Por alguns instantes ficaram em silêncio.

- Pronto - falou Bill - já estou com todo o esquema montado. Confie em mim.

Há muito que a praia do Leblon não recebia tantos banhistas como naquele domingo de sol aberto. Mariinha voltou de um novo mergulho e encontrou Bill com o olhar vago. Sacudiu seus longos e lisos cabelos castanhos, sentou-se sobre uma grande toalha estampada com florões e, em silêncio, começou a passar mais uma vez pelo corpo seu óleo bronzeador. “- Como Bill já poderia ter todo um esquema montado para realizar um desfile de modas, se a ideia lhe ocorrera há poucos minutos atrás?" - pensou ela.

Mariinha possuía uma altura acima da média para uma mulher brasileira. Embora magra, de quadris estreitos e pouco busto, tinha um rosto de boneca de porcelana, com um incrível par de olhos verdes. Aparentava mais idade do que os seus reais 19 anos. Era ela a mais recente conquista de Bill, e há quase 4 meses eram vistos juntos diariamente. Mariinha morava com a mãe, que era viúva, num luxuoso apartamento, que ocupava todo um quinto andar de um edifício no Leblon. Muito compenetrada e responsável, Mariinha dividia seu tempo entre seus estudos de Direito e a butique de D. Dulce, sua mãe. A loja, decorada com muito bom gosto, ficava na parte térrea do prédio em que moravam e, foi justamente lá que Bill a conheceu. Numa tarde de maio, véspera do dia das mães, Bill, ao passar pela butique, bateu com os olhos numa vistosa bolsa preta de couro e desejou comprá-la. Ao mesmo tempo em que examinava a bolsa, viu através da vitrine o rosto de Mariinha e pensou estar vendo uma boneca de porcelana, tal a delicadeza dos traços fisionômicos da moça, e a pureza de sua cútis que brilhava, ajudada por suave maquilagem. Quando Bill entrou na loja já não sabia se era pela bolsa que pensara comprar para sua mãe, ou pela dona daquele rosto que o encantara.

Dois dias depois de ter conversado com Mariinha sobre sua ideia, Bill encontrou a oportunidade para apresentar à D. Dulce sua sugestão e planos para o desfile. No fim do expediente daquela terça-feira a loja estava vazia, e D. Dulce vestia um manequim quando Bill entrou. Depois dos cumprimentos habituais, o rapaz perguntou:

- E Mariinha, onde está?

- Lá nos fundos, no escritório. Está fazendo um servicinho pra mim, mas já deve estar acabando...

- Como vão os negócios?

- Sem grandes novidades e com os altos e baixos normais do comércio de roupas...

- E como foi o movimento hoje?

- Normalmente às terças-feiras o movimento costuma ser pequeno, mas não posso me queixar, pois o que conta realmente é o saldo favorável no final de cada mês. Até aqui a loja tem dado um lucro suficiente para nos manter.

- Com a chegada agora da Primavera e, logo em seguida, do Verão, creio que a tendência será aumentar as vendas consideravelmente, não?

- De um modo geral, o comércio do vestuário aqui no Rio costuma faturar bem mais no verão. As roupas leves têm preço menor, e o desgaste com o uso no calor é maior. No entanto, não é exatamente isto que acontece neste meu tipo de negócio. O aquecimento das vendas nesta época do ano, aqui na minha butique, é quase imperceptível...

- E por que ocorre este fenômeno?

- Porque existem dois tipos de clientes: a que compra roupa para vestir e a que compra roupa para exibir, e as minhas clientes, na sua maioria, estão classificadas no segundo grupo. Como as roupas de verão são confeccionadas em tecidos mais leves e menos resistentes, costumam durar menos. Além disso, suja-se mais roupa com o calor e, vem daí a necessidade de se comprar mais. Junte-se a isso que as roupas de verão costumam apresentar uma vasta variedade de modelos e de preços, oferecendo à cliente uma maior opção. Eis aí os principais motivos que fazem crescer o volume das vendas no comércio do vestuário nas estações quentes do ano.

- Mas não no seu tipo de negócio, não é isso que quer dizer?

- Sim, porque minhas clientes são especiais. Para elas, o preço e a durabilidade das roupas não contam, pois para quem tem o costume de cobrir o corpo com a vaidade, tudo o mais é consequência...

- Pelo que pude deduzir, suas clientes sentem necessidade de estrear um vestido novo a cada vez que saem, não fazendo por isso diferença para elas a época do ano em que estão, não é?

- Certo, e se vendo um pouco mais no verão, é porque elas saem um pouco menos no inverno... E assim, enquanto outras butiques concorrentes entram em crise, e algumas são obrigadas a fechar, eu vou conseguindo manter o equilíbrio de minhas vendas. Entra ano e sai ano, e minha posição se mantém inalterada. Minha clientela não é grande mas é constante e fiel.

- Mas creio que se possa fazer algo capaz de mudar o rumo das coisas para melhor, não?

- E porque mudar, se as coisas como estão me satisfazem plenamente?

- Pela ambição natural do ser humano. Para fugir da estagnação. Só os fracos e pobres de espírito não conseguem encontrar forças para lutar pelo que têm direito. Só as criaturas passivas e conformadas não ambicionam chegar ao topo da fama e do sucesso, e não creio que a senhora esteja incluída neste tipo de gente...

- Por que diz isso

- Falo assim em função da natureza de seu negócio...

- Onde você quer chegar?

- Em seu caso, por exemplo. Quem, como a senhora, se propõe a negociar com a vaidade alheia, por certo deverá ser uma pessoa ambiciosa. Sua ambição existe, isto é um fato. Ela está adormecida e possivelmente a senhora não se deu conta disso.

- Se sou ou não ambiciosa, não sei. O que sei é que não permito que a ambição sobrepuje minha paz de espírito.

- Bem mais importante que a ambição e a paz de espírito é o equilíbrio, pois é através dele que se poderá conviver com a paz e a ambição amigavelmente, sem que uma interfira na outra. Para cada ser humano uma escada lhe é reservada. Muitos não sobem por medo ou incompetência. Outros sobem sem estar preparados para isso, e caem ou ficam pelo caminho. Só alguns poucos conseguem chegar ao topo. Mas é fundamental que todos tentem sempre, quantas vezes se fizer necessário, enquanto tiverem vida. O importante é saber onde a escada poderá nos levar. Sabendo isso, o resto é ter paciência, determinação e cuidado. Deve-se subir cada degrau por vez, experimentando-o antes. Em seguida pisa-se firme e não se deve olhar para baixo...

- E onde eu estou em tudo isso?

- Parada no meio da escada. Acredito até que saiba a que ponto sua escada poderá levá-la, mas acontece que sua ambição está adormecida e precisa de alguém que a desperte...

- E por acaso você seria este alguém?

- E por que não?

- E o que é que você entende do comércio de roupas e da moda, enfim?

- Bem menos que a senhora, quero crer, mas o suficiente para poder ajudá-la.

- E de que forma você poderia me ser útil?

- Promovendo a casa, procurando envolvê-la numa atmosfera de mistério e sofisticação. Estou certo de que, com isso, traria novas clientes para a sua butique e despertaria maior interesse nas habituais, sem com isso baixar o nível ou ferir a classe e o estilo da casa.

- E como isso seria possível?

- Organizando, para começar, um grande desfile de modas com o objetivo de lançar os novos modelos exclusivos para Primavera-Verão.

- Que original! Nunca ouvi falar em coisa igual. Jamais uma butique lançou mão de tal expediente para tentar fazer aumentar suas vendas. Como teve esta brilhante ideia? - falou de forma irônica.

- Aceito a ironia, mas pode estar certa de que nunca falei tão sério em toda a minha vida...

- Quanto a isso não tenho a menor dúvida.

- A ideia em si pode não ser original, eu sei, mas funciona. As mais sofisticadas butiques que já fizeram uso deste tipo de promoção obtiveram resultados positivos, na maioria dos casos...

- Eu sei, mas o que você desconhece é que essas casas trabalham de uma forma diferente da minha. Normalmente fazem parceria com nomes da alta costura, ou com pequenas indústrias que trabalham com modelos exclusivos. De mais a mais, vários interesses entram em jogo num desfile de modas, tais como marcas, etiquetas, assinaturas famosas e etc. O dinheiro gasto, apesar de alto, costuma ser dividido. Se eu entrar numa jogada destas, entrarei sozinha. O risco será todo e unicamente meu. Além disso, não basta que se tenha o dinheiro para investir, faz-se necessário também que se tenha uma pessoa capaz de organizar e promover o desfile, ou até uma firma especializada no assunto, de preferência...

- Pois muito bem, vou procurar ser mais objetivo. Eu me proponho a organizar o desfile e estou tão certo de seu sucesso, que estou pronto também a assinar um termo de garantia responsabilizando-me por um eventual prejuízo. Assim a senhora não correrá risco de espécie alguma pois, se eu fracassar, terei que reembolsá-la tostão por tostão.

- E se conseguir êxito, o que pretende de mim?

- Não quero nada em troca, a não ser o prazer de alcançar uma grande vitória!

- Mas isto não seria justo...

- Mas é unicamente o que desejo.

- Sejamos honestos. Não creio que esteja querendo apenas me ajudar, ou que esteja tentando com isso dar uma satisfação ao seu ego. Teria este desfile para você um sabor de desafio? A quem quer provar sua capacidade, a mim ou a você próprio?

- Quem somos nós diante da moda, se não ínfimas partículas? Não, isto seria muito pouco para me dar satisfação. Eu quero bem mais que isto. Eu desejo, entre outras coisas, que meu trabalho seja visto e comentado pelo alto mundo da moda...

- Pois muito bem, se é isto o que deseja, já deve pelo menos ter um esboço sobre quando, como e onde pretende realizar o desfile, não?

- Já tenho todo o esquema montado, é só acioná-lo.

- Admitamos que eu tope a parada... De quanto vou ter que dispor em dinheiro?

- Creio que devo gastar apenas a quarta parte do que uma casa como essa necessitaria...

- E de quanto seria esta quarta parte? - Interrompeu D. Dulce.

- É a única coisa que ainda não posso precisar mas, dentro de quinze dias, na máximo, poderei responder-lhe.

- E o que pode me adiantar a respeito de seus planos?

- Conhece Jean Louis Marchand?

- Nunca ouvi falar...

- Pois bem, dentro de pouco tempo ele será um grande nome da alta costura, badalado e cortejado pela imprensa, e os modelos que vamos lançar levarão a sua assinatura...

- Isto não será possível pois já tenho Magda, uma excelente modista.

- Este foi o seu primeiro erro - interrompeu Bill. De um modo geral, a mulher não confia noutra mulher, principalmente quando se trata de assuntos ligados diretamente a ela, mulher, como sua saúde íntima e sua beleza. É na figura do homem que a mulher vê seu médico ginecologista, seu massagista, seu cabeleireiro e etc. Assim também é na moda, que através dos séculos vem sendo ditada pelo homem.

- Você não está me dizendo nada de novo... Esta tese é antiga e sempre foi bem defendida...

- Eu seria ingênuo - interrompeu Bill - se pensasse estar levantando uma tese nova, mas me vi obrigado a fazê-lo pois me parece que a senhora não crê no assunto, muito embora não o desconheça. Mas a estatística não mente, e os números estão aí mesmo para comprovar o que digo.

- Não se trata disso, nem minha opinião sobre o assunto está em jogo. O que quero dizer é que não posso substituir Magda. Não seria justo. Cometeria uma das maiores ingratidões de minha vida com uma pessoa amiga, fiel, e antes de tudo capaz. Magda foi quem melhor costurou pra mim, e foi daí que me veio a idéia de abrir a butique. Devo a ela grande parte do que até aqui consegui...

- Mas quem foi que falou que terá que despedi-la. E é bom que seja mesmo muito competente, pois se foi de vital importância até aqui, de agora em diante será imprescindível, só que de uma maneira diferente. No mundo nada se cria e tudo se transforma. Chegou a hora da senhora fazer por Magda o que penso que ainda não fez. De recompensá-la por todos esses anos de luta e dedicação...

- Como assim? Não estou lhe entendendo...

- Para começar, dê a ela um substancial aumento em seu ordenado e, em seguida, lhe ofereça participação no que ela produzir.

- Mas como posso fazer isso, e ao mesmo tempo contratar um costureiro famoso? Você ficou maluco?

- Mas quem falou aqui em contratar um costureiro famoso? O que a senhora terá que fazer é arranjar uma promoção para Magda. A partir de agora ela será Jean Louis Marchand, e só poucas pessoas poderão saber disso...

- Quer dizer que Jean Louis Marchand não existe?

- Nunca existiu, a não ser na minha imaginação.

- Ah, já começo a entender... Mas isso é uma loucura!

- E o que é a moda?

- Mas como poderemos guardar este segredo por muito tempo? E se esta farsa for descoberta, como ficarei? Provavelmente arruinada!

- Absolutamente. Se posso fazer nascer um personagem, saberei também como ocultá-lo. Confie em mim, pois sei perfeitamente como e quando fazer com que o nome de Jean Louis Marchand venha a público.

- Não posso negar que seu plano me excita ao mesmo tempo que me apavora. Eu sei que as pessoas não gostam de se sentir ludibriadas, e é por isso que receio correr tamanho risco...

- A vida é feita de riscos, e o primeiro, corremos logo ao nascer. E é a partir daquele momento que passamos a correr toda a sorte de riscos, em quase tudo que fazemos, e isto é um fato. E por que somos obrigados a passar por tantos riscos assim? Porque a vida é um jogo permanente no qual temos sempre que apostar. E se a aposta é um risco, quanto mais arriscamos, mais chances teremos de ganhar. E isto é mais que um fato, é uma proporção aritmética. Do risco não vamos poder fugir, mas estou certo de que se alguma perda tivermos, ela será coberta pelo inusitado da promoção. Imagine uma personalidade autossuficiente, irreverente e que, embora extremamente vaidosa, prefira se manter oculta enquanto muitos escrevem sobre ela. Pense no que a opinião pública irá dizer, quando, sacudida pela curiosidade que este tipo, envolto em mistério, por certo despertará. Reflita e me diga se vale ou não vale a pena tentar.

Por algum tempo fizeram silêncio. Enquanto ele, em pensamento, criava situações, ela imaginava-as. Foi D. Dulce quem voltou a falar:

- Se você tivesse acabado de me apresentar uma proposta para realizar apenas um desfile, simplesmente eu a teria recusado. No entanto, diante do absurdo, de um plano aparentemente louco, prometo que vou pensar sobre o  assunto.

- E quando acha que pode me dar sua resposta?

- Assim que você estiver de posse do orçamento definitivo, e em condições de me adiantar os demais detalhes do plano.

- Perfeito, ficamos assim combinados.

Mariinha, que tinha se juntado aos dois quase no fim da conversa, pouco pôde entender do que ouviu, mas logo depois teve sua curiosidade saciada por Bill, enquanto passeavam de mãos dadas próximo da orla marítima. Mariinha vibrou com o plano do namorado, e a ele prometeu irrestrita colaboração. No fim, falou com entusiasmo:

- Estou confiante de que mamãe irá aceitar a sua ideia, meu amor, e acredito plenamente em seu sucesso.

Bill estava eufórico demais. Assim que chegou em casa telefonou para Fernando e combinou com ele um encontro para aquela noite. Precisava contar a novidade para o amigo.

- Você me surpreende - falou Fernando, depois de ouvir sobre a conversa que Bill tivera com D. Dulce, e sobre algumas providências que o amigo pretendia tomar imediatamente: - Quanto você espera ganhar se tudo der certo?  Sim, porque é por dinheiro que você vai fazer isso, não?

- Não - respondeu Bill, secamente.

- Se não é por dinheiro, por qual motivo então? Nunca ouvi você falar em moda...  Ah, já sei. Você está tentando impressionar mãe e filha ao mesmo tempo, não é? Claro, só poderia ser isso. Você está apaixonado por Mariinha e pretende conquistar D. Dulce também, não? Quer formar um novo triângulo amoroso para reviver um outro que tanto marcou sua vida, não é verdade?

- Por ser meu melhor amigo, pensei que me conhecesse melhor. Não diga tantas tolices e nem faça com que eu me arrependa de ter vindo lhe falar - disse Bill, num tom aborrecido. Nada do que falou faz sentido. É Mariinha quem está apaixonada por mim, e não eu por ela, logo nada preciso fazer para impressioná-la e D. Dulce, acredite ou não, não faz meu tipo...

- Pombas! Se não é por dinheiro nem por mulher, desisto. Juro que não estou mais entendendo você.

- Quer dizer que é só sexo e dinheiro que contam? É só nessas coisas que sua cabeça consegue pensar?

- Mas você já pensou assim também, não? Ou eu estou enganado? Estou queimando de curiosidade. O que você descobriu de tão importante como sexo e dinheiro para motivá-lo?

- Eu ainda acredito que tanto o sexo quanto o dinheiro são imprescindíveis e que caminham juntos, mas não podemos nos limitar a isso. Não devemos viver restritos a este círculo vicioso de dinheiro para o sexo, e sexo para o dinheiro...

- Mais uma vez, repito, você me surpreende! Nunca pensei que fosse encontrar tão depressa uma nova filosofia de vida. Talvez até a razão esteja com você, e eu vou esperar para ver.

- Os cientistas afirmam que o sexo já nasce com a criança, mas é um sexo inconsciente, instintivo. Lentamente ele vai sendo desenvolvido até que a criança dele tenha percepção. A criança continua crescendo, e neste segundo estágio ela vai recebendo dos pais, dos educadores e da própria vida, enfim, o aprendizado teórico sobre a matéria. E é só quando atinge o terceiro estágio, a puberdade, é que o indivíduo está apto para por em prática o que começou a aprender desde o primeiro momento de sua vida.

- E por que está me dizendo tudo isso? Me julga um imbecil?

- Estou tentando demonstrar com que cuidado a natureza prepara o ser humano para o sexo, e, se não fosse assim, se alguém de repente, abruptamente, fosse despertado para o sexo, receberia tal impacto, que seu cérebro seria afetado e poderia sofrer danos irreparáveis.

- E daí, professor, aonde pretende chegar?

- Até a idade adulta, quando paramos de crescer externamente e nos deparamos com duas opções...

- Que opções?

- Ou paramos no tempo e no espaço, ou continuamos a crescer, só que agora, internamente. E, ao optarmos pelo segundo caso, passamos a descortinar novos horizontes e a descobrir novos interesses que não sejam apenas sexo e dinheiro.

- Sensacional! - exclamou Fernando, com ironia. Procure exemplificar, por favor.

- Pois muito bem. Você já tentou fazer algo grandioso, diferente de tudo o que habitualmente faz e do que se julga capaz? Sim, um desafio puro e simples, sem subterfúgios e segundas intenções, onde a vaidade e a exibição cederão lugar ao simples desejo de ver sobrepujada a própria força? Pois bem, o desfile que pretendo realizar, será para mim um grande desafio. Você ainda há pouco disse que nunca me ouviu falar em moda, logo, em sã consciência, não deverá apostar em mim. Se o fizer será por amizade, por conhecer minha determinação e confiar na minha capacidade de trabalho, mas jamais por dar crédito aos meus conhecimentos no assunto, estou certo?

- Sim, está, mas continuo a acreditar que por trás de tudo isso existe algo mais que você ainda não me revelou, e volto a afirmar que todos os caminhos nos levam à Roma.

- O que você quer dizer com isso?

- Quero dizer que se você for bem sucedido ganhará prestígio, que o prestígio lhe trará dinheiro e não creio que você desconheça que são esses dois predicados no homem que mais atraem as mulheres. Elas gostam de andar ao lado do homem que tem prestígio e do homem que tem dinheiro. Juntando a isso a sua juventude e boa aparência, você será um alvo perfeito.

- Mas assim você está desprezando o intelecto. A mulher também sabe apreciar um homem culto e...

- Sim, eu sei - interrompeu - mas se ele for pobre e desconhecido terá dela apenas tempo suficiente para demonstrar seu valor durante um prosa agradável, sem maiores implicações sentimentais que possam depois comprometer a mulher...

- Então você desconhece o fato de que a história registrou, através dos tempos, casos de mulheres belas, ricas e famosas que se envolveram com homens, até então desconhecidos, apenas por amor...

- Não, não desconheço, mas sempre achei injusto e desleal. O amor, embora inocente, sempre foi o suspeito número um de casos desta natureza. O amor sempre foi a vítima, enquanto que a frustração e a vaidade feminina foram sempre os verdadeiros culpados. Estas mulheres que fizeram história eram criaturas sexualmente insatisfeitas que, ao descobrir num novo amante potencialidades também no campo artístico-cultural, investiam neles seu prestígio, na esperança de torná-los ricos e famosos para tê-los depois no mesmo pé de igualdade.

- Assim você está negando a história...

- Não, apenas interpretando-a a meu modo. Desde que o mundo é mundo que a mulher espera que a cultura no homem venha acompanhada de algo mais visível, como a fama, a fortuna, ou ambas as coisas. Para a mulher, cultura no homem é um acessório de luxo, como uma forração de couro num "Jaguar". De pouco vale para ela um homem culto escondido no anonimato ou atolado em dívidas. Este tipo de homem a mulher costuma desprezar porque, apesar de ser um intelectual, não teve inteligência suficiente para comercializar sua cultura e com isso se tornar um vitorioso. As pessoas costumam confundir cultura com inteligência.

- Mas então, para você, a mulher não passa de uma mercenária.

- Não chego a afirmar tanto, mas acredito que por ser a mulher muito prática, sabe usar a razão bem mais que a emoção. Ela sabe, por exemplo, que cultura é um bem adquirido, e que a inteligência é um dom desenvolvível...

- Você está generalizando perigosamente. Existem mulheres desinteressadas que...

- Perdoe-me - interrompeu - se não fui feliz e lhe dei a impressão de estar generalizando. É claro que existe um outro tipo de mulher, mas não a desinteressada como diz, pois esta não creio que exista. O que existe realmente, é a mulher acomodada, conformada. Aquela que ao se sentir inferior por se julgar pobre, feia e sem atrativos, não encontra forças para lutar e assim se torna incapaz de escolher, de exigir da vida o melhor. Para essas não importa que o homem seja feio, burro e pobre, ela até o prefere assim, pois é na obscuridade e na insignificância desse homem que ela se sente mais protegida. Mas quando eu ainda há pouco falava da mulher, estava me referindo a mulher com "M" maiúsculo. A mulher símbolo, a mulher outdoor, a mulher mito. Aquela que consegue reunir beleza e inteligência, cultura e sofisticação, elegância e simpatia. Que saiba ser sexy sem ser vulgar. Enfim, a mulher que todos nós homens desejamos.

- Dentre os predicados que enumerou, você não falou na honestidade. Foi proposital ou foi por esquecimento? Ou você não acredita também que haja mulher honesta?

- Claro que acredito, e se não falei em honestidade, é porque não acho que seja um predicado fundamental. Para a mulher, a honestidade não deve ser dever ou qualidade, e sim uma opção. Ela será honesta enquanto a honestidade lhe convier ou lhe favorecer, e deixará de sê-lo pelo mesmo motivo. Bem, mas do que estávamos falando mesmo, heim?

Os dois acabaram rindo, e logo depois era Bill quem voltava a falar:

- Se não me engano, eu estava tentando falar sobre os meus planos para o desfile, quando você atacou com este tratado sobre a mulher.

- É verdade, e eu estou curioso para ouvir o que você tem a me dizer. Mas me diga antes uma coisa, para encerrarmos este assunto. Existe ou não uma mulher por trás de tudo isso?

- Existe.

- Eu sabia... Claro que teria que existir, ou você já não seria mais o Bill, meu amigo de tanto tempo...

- Bem, mas esta mulher que vi apenas uma vez, e de uma certa distância, não é o motivo principal. Quando muito poderá ser a motivação maior para que eu realize algo diferente. Para mim, o objetivo principal é organizar um desfile de modas, mas será também um desafio que me propus a enfrentar e vencer desde o dia em que conheci Estela.

- Estela!? E onde foi que você conheceu esta mulher que tanto o impressionou?

- Num desfile de modas no Copacabana Palace Hotel, promovido por uma grande fábrica de São Paulo. Fui acompanhando Mariinha, que por sua vez foi lá comprar alguns modelos para a butique de sua mãe.

- Já sei, e Estela era uma dessas granfinas cheias de dinheiro...

- Nada disso - interrompeu Bill.

- Um manequim elegante, então? - arriscou Fernando mais uma vez.

- Errou de novo. Estela estava lá para fazer a cobertura do acontecimento para a mais importante revista do país onde trabalha como editora de moda. E acredite, foi a mulher com mais charme, classe e elegância que eu já vi em toda a minha vida!

- E ela o viu?

- Nem me notou, o que eu achei ótimo, pois só assim me deu tempo de arquitetar meu plano.

- Você tentou se aproximar dela?

- Não, mas pude descobrir depois quase tudo a seu respeito. Agora não será interessante para mim que eu me apresente a ela, e sim, que ela venha a me conhecer. Pretendo me colocar como um alvo, pois sei que assim poderei lutar em igualdade de condições.

- Já sei, você será o responsável direto pelo desfile e ela a convidada. Se tudo der certo, você terá todos os méritos e assim espera que ela venha a se interessar por você, e por seu trabalho, não é assim?

- Perfeito! E aí então é que vamos ver quem tem mais charme...

- E se você fracassar?

- O fracasso nunca fez parte dos meus planos, mas se isso acontecer, eu terei de esquecer que um dia vi uma mulher interessante e irresistível - e Bill foi saindo de fininho, com um sorriso de segurança em seu rosto.          

 











CAPÍTULO 26

Paris, Verão de 1942


Para Giacomo o tempo em Paris passara depressa. A ocupação nazista não conseguiu destruir de todo o espírito da Capital francesa. A beleza da grande metrópole era indestrutível, e até o frenesi que ela costuma despertar nas pessoas que a visitam, ainda era sentido. O perfume incomparável e o fino vinho continuavam a ser apreciados, respectivamente, nas mulheres e nas mesas. Por ser uma cidade eminentemente feminina, Paris continuava a distribuir aroma e teimosia. Se a guerra impunha restrições e racionamentos, logo era encontrado um substituto para os artigos escassos. Se os veículos motorizados rareavam, as bicicletas proliferavam; se a alegria espontânea era suprimida, os espetáculos cômicos se multiplicavam. Nos cinemas, nos teatros e nas tradicionais casas de espetáculos de variedades, a afluência de público era cada vez maior. Assim, boa parte da população encontrava como e onde se distrair, e tais divertimentos tinham para a dor do povo um efeito anestésico.

Um pouco mais de um ano já tinha se passado sem que Giacomo se desse conta. Trabalhava em sistema de rodízio, dava plantões e ainda, devido a um pedido de seu superior, resolveu fazer um curso intensivo de enfermagem para melhor atender as necessidades da Cruz Vermelha. Seu ritmo de vida era intenso e, quando estava de folga no hospital podia ser encontrado nos melhores centros noturnos de diversão onde, além de se divertir, servia à Resistência mantendo contatos, conhecendo pessoas, recolhendo e passando informações. Por ser muito comunicativo e por ter vindo bem recomendado, logo conseguiu fazer um bom relacionamento com os novos companheiros de trabalho, apesar de sua origem italiana despertar reservas. Marcel Martinelli era o nome que constava nos documentos pelo qual era conhecido. Assim que chegou soube do quanto estava sendo aguardado, e isso, para quem passou boa parte da adolescência sonhando um dia conhecer a Capital da França, fez com que Giacomo se sentisse gratificado.

Seu primeiro fim de semana em Paris, ao lado do Dr. Louch, não poderia ter sido melhor. O aroma do campo parecia ter chegado à cidade junto com eles, ao cair da tarde daquele sábado primaveril. Depois de atravessar as principais avenidas, o carro de Dr. Louch parou em frente a um prédio antigo de três andares, numa rua estreita e de pouco movimento. A partir daquele momento, ali seria o endereço de Giacomo enquanto estivesse em Paris. A "Organização" se incumbira de reservar para ele as acomodações, depois de um estudo prévio do local, que além de discreto era acessível.  Ficava a poucas quadras do centro da cidade e era servido pelo Metrô. No prédio não havia elevador. O quarto, de frente para a rua, ficava no último pavimento e era bem espaçoso. Havia nele ainda, camuflada pelo forro, uma saída de emergência que poderia permitir a Giacomo sua fuga pelos telhados do prédio. O mobiliário era simples, mas suficiente para um rapaz solteiro: cama, guarda-roupa, mesa de cabeceira, pia com espelho e um pequeno fogão. O banheiro ficava nos fundos do corredor, e os hóspedes ainda podiam usar o telefone que ficava no hall do prédio.

Giacomo desfez as malas, barbeou-se, tomou banho, e ficou na janela apreciando a vista enquanto aguardava a chegada do Dr. Louch que tinha ido visitar a irmã. Às oito horas da noite estavam eles dois em Saint-Germais-des-Prés, jantando com os Fontaines. Comeram e beberam muito, e assim que as portas do restaurante foram fechadas, puderam conversar mais à vontade. Logo que soube que Giacomo fora membro do grupo liderado por seu filho Pierre, Monsieur Fontaine passou a dedicar ao rapaz um carinho todo especial.

Passava de meia-noite quando deixaram o restaurante e Dr. Louch, embora cansado, não se negou a servir de guia turístico a Giacomo que ainda encontrava disposição para uma ronda pelos principais bares daquele bairro boêmio. Lá pelas tantas entraram num cabaré onde o vozerio, aliado ao som dos metais, era ensurdecedor. Mal podendo escutar o que eles próprios diziam, passaram a se comunicar por sinais. Uma nuvem espessa de fumaça transformava as pessoas em vultos trêmulos à distância. Apesar do ambiente sufocante, a música era de primeira qualidade e o show que estava sendo apresentado naquele momento parecia ser interessante. Espremidos numa mesa de canto conseguida com dificuldade, pediram conhaque e ficaram apreciando os movimentos exóticos de uma casal de dançarinos. A certa altura, Dr. Louch pousou a cabeça sobre a mesa para descansar a vista e adormeceu. Ao ser despertado por uma nota aguda do pistão, percebeu que Giacomo não estava mais ali a seu lado, e ficou preocupado. Depois de indagar a um e a outro e de distribuir gorjetas entre os garçons, foi encontrar o amigo num hotelzinho barato, a poucos metros de onde estavam. Giacomo dormia um sono profundo e roncava com o nariz enfiado entre dois fartos seios de uma profissional de strip-tease.

O tom marinho já não reinava absoluto no azul do céu quando o pequeno Renault do Dr. Louch deixou o bairro boêmio. Os tons celeste e turquesa já se faziam presentes e, interpondo-se entre eles, alguns filetes de maravilha. Tudo levava a crer que aquelas cores no céu eram prenúncio de um domingo de sol radioso dentro da Primavera parisiense. Devido ao adiantado da hora, o Dr. Louch resolveu levar o amigo direto para a casa de sua irmã Madelaine. Afinal o domingo já estava amanhecendo, e Giacomo fora convidado para almoçar naquele dia com os Louchs.

Os primeiros raios de sol já tinham penetrado no quarto, através da cortina, quando os dois conseguiram adormecer. Às dez horas da manhã, vendo que o irmão não levantava, Madelaine apareceu trazendo café e brioches numa bandeja e se surpreendeu com a presença do amigo do doutor. Às duas da tarde o almoço foi servido e logo Giacomo se embevecia com a hospitalidade e o carinho da anfitriã.

- Sou um privilegiado - disse ele - pois em menos de 24 horas tive a oportunidade de conhecer duas famílias maravilhosas! Desde que deixei a casa de meus pais não me sentia tão à vontade.

- Qual é a sua impressão de Paris? - perguntou Madelaine.

- Do pouco que pude ver, só posso ter palavras elogiosas, e fico imaginando como seria esta cidade se estivesse gozando de plena liberdade...

- Muito em breve você a verá livre. Assim como nunca imaginávamos ser possível ver nossa cidade tomada por outro povo, não acreditamos que esta ocupação perdure por muito tempo. A invasão inimiga não nos surpreendeu tanto quanto a traição de alguns compatriotas, e foi por isso que capitulamos sem luta. Vejamos a Inglaterra. O que é a Inglaterra, senão uma grande ilha? Mas não é uma ilha que possa ser descrita como um simples acidente geográfico, não. A Inglaterra é um pedaço de terra cercada de orgulho por todos os lados. O povo inglês não se entrega, e se um dia o poderio alemão conseguir varrer a Inglaterra do mapa, restará o orgulho britânico boiando à flor d'água ao lado dos destroços.

- Mas o povo francês já se refez do impacto surpresa e já despertou para a realidade - falou Giacomo.

- Sim, já lutamos bravamente - comentou Dr. Louch - e todas as nossas forças estão sendo mobilizadas.

- Sim, é verdade. Estávamos adormecidos como um vulcão extinto, mas já iniciamos lentamente o processo de erupção. Nossa luta é subterrânea. Vem de baixo pra cima. E quando as lavas do patriotismo se espalharem pela superfície, transformaremos em cinzas os nossos inimigos - falou Madelaine, dando maior ênfase às últimas palavras.

- A índole do nosso povo é pacífica - comentou Dr. Louch. Nós cultuamos a arte e a liberdade por serem elas formas primordiais de vida e, por isso, não temos intimidade com a violência. Mas que não se iludam os nossos inimigos, e não confundam um pacifista com um covarde...

- Sim, porque quanto mais livre e pacífico for um povo, mais valente ele poderá se tornar ao ver tolhida a sua liberdade. Quem sempre foi livre e de repente passa a ser escravo, pode ver na morte uma forma de liberdade. E quando isto acontece a um cidadão comum, ele adquire uma coragem suicida e passa a ser um herói em potencial.

A cultura, a eloquência, o orgulho, o patriotismo e sobretudo a simplicidade de Madelaine cativavam Giacomo cada vez mais. Durante muito tempo ainda conversaram sobre a guerra e suas consequências. Ela sabia muito a respeito de Giacomo e por isso ele pouco precisou falar sobre sua vida.

- Sempre defendi a tese de que os destinos dos povos estão traçados - disse ela. Assim como teríamos que passar por estas provações, você teria que vir lutar por nossa liberdade. Você, Giacomo, é um exemplo típico do que pretendo provar. Quis o destino que meu irmão fosse morar em Gênova, que conhecesse sua família, e que em parte fosse ele o responsável por sua cura. Adveio daí em você, talvez até subconscientemente como forma de gratidão, uma amizade por nossa terra, por nosso povo e um desejo que durante muito tempo acalentou de um dia vir até aqui para nos conhecer. Livre do mal que poderia lhe tirar a vida, ou aprisioná-lo para sempre numa cadeira de rodas, você cresceu dentro de um dos primordiais princípios da liberdade - o direito de se locomover, de ir e vir livremente. Quando a guerra sacudiu o mundo e nazismo e fascismo passaram a formar o mesmo bloco, você sentiu pela segunda vez sua liberdade ameaçada. Ao ver seus pais adeptos de um regime de força, você se sentiu tolhido em mais um de seus direitos - o direito da palavra, e logo entendeu que nem dentro de sua própria casa poderia expressar seus sentimentos. E antes que lhe roubassem o direito de pensar, você decidiu fugir. E para onde deveria ir se não para a França de seu amigo Christian Louch, o homem que você conheceu e aprendeu a admirar, e que sabia ser tão livre quanto você? Mas como poderia se sentir livre, aqui, se a França já tinha sido ocupada quando por ela se decidiu? Foi aí que você fez a descoberta mais importante de toda a sua vida, e compreendeu que a liberdade pode ser como a felicidade, um estado de espírito. E foi sabendo que aqui não estaria livre, mas se sentiria como tal, que resolveu vir para nos ajudar a recuperar a nossa liberdade.

Mais de um ano separava Giacomo daquele seu primeiro fim de semana em Paris, e durante todo aquele tempo fez por merecer a confiança que nele foi depositada. O verão de 1942 chegara trazendo novas esperanças e, naquela quarta-feira ensolarada, ele estava de folga. Chegou exausto do hospital, depois de ter dado 48 horas de plantão. Após um banho reconfortante, recostou-se na cama para ler um jornal e acabou adormecendo. Acordou sobressaltado com alguém batendo na porta.

- Sou um bom gourmet, posso entrar?

Para Giacomo, aquelas palavras representavam uma senha, e era um meio seguro que tinha para identificar alguém ligado à Resistência. Ainda sonolento, ele deu passagem a um homem baixo, muito magro, e que aparentava ter mais de sessenta anos.

- Entre e fique à vontade. O que deseja, senhor?

- Sou proprietário desse prédio e, como já deve ter notado, não moro aqui. A partir desse momento, serei seu principal contato em Paris...

- Muito prazer, senhor...

- Mauriac.  Pode me chamar de Mauriac.

- Marcel Martinelli, às suas ordens.

- Não se preocupe. Sei tudo a seu respeito. Você é parisiense, mas teve que morar muito tempo na Itália por causa de seus pais, e logo que eles morreram você resolveu voltar para sua pátria, não é verdade?

- Perfeito - disse Giacomo, engolindo o riso.

- Entre outras coisas, estou aqui para trocarmos informações. Fale-me do que tem feito ultimamente e me de notícias de Pierre e seu grupo.

Durante algum tempo conversaram e, depois de um instante de silêncio, voltou a falar o senhor Mauriac:

- Sabe por que está em Paris?

- Bem, durante muito tempo tentei minha transferência para cá...

- E pensa que foi Dr. Louch que a conseguiu, não?

- Sim, é o que penso.

- Bem, o doutor goza de muito prestígio, e você foi bem recomendado por ele, mas na verdade você está aqui por seus próprios méritos e porque entendemos que em Paris nos seria de maior utilidade. Você passou em todos os testes a que foi submetido durante todo o tempo em que esteve vigiado, e posso lhe dizer que até aqui não anotamos um só deslize. Espero que não fique ofendido com o que vou lhe dizer, mas sua origem italiana fez despertar suspeitas, e fomos obrigados a tomar todas as precauções.

- Não estou ofendido, muito pelo contrário. Suas palavras conseguiram aliviar o peso que carrego no meu nome de família. Só posso dizer que estou feliz de merecer agora a confiança de vocês...

- Em tempo de guerra todos são suspeitos. Assim como é possível descobrir um traidor entre os amigos, podemos encontrar um cooperador entre os inimigos. Por isso vivemos a espionar uns aos outros. É bom não esquecer que confiança tem limite. Você até aqui só foi testado por nossos amigos, e não sabe ainda o que vem a ser uma tentação inimiga. Os nazistas nem sempre usam a força como meio de persuasão para recrutar aliados à sua causa ou para obter informações. Só os burros e os desesperados é que costumam agir sempre com violência. Um dia você poderá ser tentado a trocar o que sabe por muito dinheiro e proteção, e aí então é que seu caráter, coragem e patriotismo poderão ter um melhor julgamento.

- Espero que esta ocasião, se chegar, responda por mim. Dou mais valor à liberdade do que a minha própria vida, que é a única coisa que pela liberdade posso trocar...

- Pois bem, quero que saiba que até aqui você tem sido muito importante para nós. O bom relacionamento que vem conseguindo manter com pessoas influentes faz com que esteja sempre a par dos principais acontecimentos da cidade. Com isso tem conseguido enviar preciosas informações para o interior do país. Só posso dizer que até aqui estamos satisfeitos por ter sido você, entre tantos, o escolhido para desempenhar tal função.

- E por que acha realmente que preferiram a mim?

- Além da coragem e sangue frio que já nos tinha provado, a sua ficha foi a mais completa que nos foi apresentada, e certos requisitos pesaram muito a seu favor tais como saber nadar, dirigir, atirar, dominar bem os idiomas francês, inglês e italiano, além das noções que possui da língua alemã. E, o mais importante de tudo, é o acesso que tem a certas áreas e o trânsito livre, por servir à Cruz Vermelha Internacional. Por esse conjunto de predicados você foi o escolhido, e por estar se saindo muito bem, é que mandaram-me até aqui para comunicar-lhe que acaba de ser designado para uma missão especial...

- Que tipo de missão? Estou ansioso para fazer algo diferente...

- Chegamos à conclusão de que estamos sendo traídos. Alguém do nosso grupo ou ligado a ele é um agente duplo, e você terá que descobri-lo para nós...

- E como chegaram a esta conclusão?

- Vários indícios nos levaram a esse raciocínio, sendo que o mais importante é que percebemos que algumas mensagens codificadas foram cair em mãos inimigas...

- Não teria o inimigo escutado as conversas através de um aparelho telefônico grampeado, ou mesmo captado transmissões de um rádio amador, e depois decifrado as mensagens?

- Estas hipóteses foram afastadas, pois as mensagens as quais nos referimos, foram passadas ao pé do ouvido de um agente para outro, e nem mesmo foram escritas.

- Bem, neste caso, penso que tudo fica mais fácil. É só investigarmos as pessoas envolvidas no circuito...

- Parece simples, mas não é. O número de agentes e informantes que costumam formar esta corrente é bem maior do que se possa imaginar, e são  pessoas que, por nos terem prestado relevantes serviços, fizeram por merecer nossa inteira confiança. Como vê, esta será uma missão delicada que irá exigir de você muito mais do que tudo que fez até aqui. Você terá que pôr em ação todo o potencial de que dispõe. Ponha em evidência o seu poder de persuasão, e mostre-se ao mesmo tempo frio, sutil, paciente e obstinado. Não se deixe levar por aparências, pois se seguir uma pista falsa poderá destruir um dos nossos homens, e fará com que o verdadeiro traidor jamais seja descoberto. E agora que está a par de tudo, eu pergunto, podemos contar com você?

- Perfeitamente, mas antes gostaria de saber como vocês descobriram que algumas de nossas mensagens foram parar em mãos inimigas.

- O mais evidente dos fatos é que lamentavelmente alguns de nossos homens foram capturados das maneiras mais estranhas possíveis, inclusive um garoto de quinze anos, e em todos estes casos estas pessoas eram receptadoras das tais mensagens. Tem mais alguma pergunta a fazer?

- Sim, quando e por onde devo começar?

- O mais rápido possível. Você receberá nomes e endereços de pessoas para investigar, e , toda vez que isto acontecer, procure logo gravar na memória os dados para não ter que manter em seu poder listas comprometedoras. E lembre-se bem, só use a violência em caso extremo. Sua missão é descobrir quem está nos traindo, que tanto pode ser um homem como uma mulher. Mas é importante que nos entregue esta pessoa viva, pois nós sabemos o que fazer com ela. Assim que descobrir algo concreto, ou sempre que precisar de auxílio, procure-me.

- E como devo fazer para encontrá-lo?

- Na esquina desta rua, como você já deve saber, há uma tabacaria. Vá até lá e compre um maço de cigarros desta marca - mostrou um maço de cigarros a Giacomo. Em seguida, atravesse a rua e deixe os cigarros com o dono da loja de consertos de bicicletas. Não precisará dizer uma só palavra, pois ele saberá que os cigarros são para mim, e eu saberei que é você que quer falar comigo. Assim que puder, entro em contato com você.

Assim que Monsieur Mauriac saiu, Giacomo tentou dormir e não conseguiu. Exausto e tenso ao mesmo tempo, ficou rolando na cama na tentativa inútil de recuperar o sono perdido. Levantou-se, trocou de roupa e saiu. Usou o Metrô para ir até o centro. Parou para olhar algumas vitrines, almoçou num pequeno restaurante e, em seguida, entrou num cinema. Não conseguiu ver o filme porque dormiu até terminar a sessão. 

"Em tempo de guerra todos são suspeitos" - dissera o velho Mauriac. Será que recebi a árdua missão para investigar nomes, para poder ser investigado melhor? - pensou Giacomo.
 
CAPÍTULO 27

O desfile


Bill fez o levantamento das despesas em menos de duas semanas e o apresentou a D. Dulce antes do prazo combinado. Ela não só concordou com o orçamento, como com todos os itens do plano, dando ao rapaz carta branca para trabalhar. E ele trabalhou como um mouro. Com determinação e constância incríveis, a ponto de abdicar de tudo que lhe poderia desviar da meta a atingir. Seu primeiro passo foi levantar nomes e endereços de pessoas da alta sociedade que não poderiam deixar de fazer parte da lista de convidados. Além de alguns parentes e amigos de Bill terem colaborado com ele nesta tarefa, um cronista social também foi mobilizado, e sua participação foi de grande valia.

Os pais de Bill tinham amigos influentes e bem relacionados e, desta forma, não foi difícil ao rapaz conseguir um bom local para o desfile. Um dos principais clubes da Zona Sul concordara em ceder sem ônus suas instalações, e um de seus salões, amplo e confortável, ficara reservado e pronto para ser usado no momento oportuno.

Bill fez questão de desenhar o convite, impresso na gráfica do pai de um de seus amigos. Em sua confecção foi usado papel de primeira e Bill só teve que pagar o custo do material empregado.

Tomadas as primeiras providências, Bill passou à segunda etapa que seria a da escolha dos profissionais capazes de desenvolver tudo o que ele já havia projetado. E assim foram contratados um cenógrafo, um técnico de som e outro de iluminação, 3 manequins e um quinteto musical. Bill pretendia que seu desfile se constituísse num marco, e para isso seria preciso que fosse diferente de tudo que já havia sido apresentado no gênero. Um verdadeiro show de luzes, cores, sons e ritmos, que pudesse proporcionar uma atmosfera capaz de valorizar cada detalhe dos modelos a serem ali apresentados, pois estes sim é que deveriam ser os verdadeiros astros do grande espetáculo. E foi assim, dentro desse espírito criativo, que ele passou a interferir em todos os setores da produção, apresentando sugestões para efeitos de luz, para a composição do palco e da passarela e para a escolha do repertório musical.

Além das três manequins profissionais contratadas com a finalidade de apresentarem os modelos clássicos da coleção, cinco belas garotas, todas com invejável plástica e muito ritmo, comporiam o desfile, e a elas caberia a apresentação dos modelos jovens e esportivos. Tinham sido selecionadas entre tantas outras que, como elas, faziam parte das amizades de Bill e sua turma. Como não eram profissionais e nem sequer tinham tido experiências anteriores, bastaria que se apresentassem da maneira mais informal possível. Ao invés de desfilar teriam apenas que dançar com a graça e o charme os sucessos musicais do momento, como sempre faziam nas festas e boates que costumavam frequentar. Para que isso fosse possível, Bill providenciara uma trilha sonora, e a gravação das músicas em fita seria projetada pela moderna aparelhagem de som que o clube dispunha.

Um conhecido locutor de rádio, de voz suave e bem impostada, que costumava jogar voleibol na praia com a rapaziada, quando soube a respeito do desfile ficou tão empolgado com as ideias de Bill, que se propôs a fazer a apresentação sem cobrar um só níquel por seu trabalho. Seu entusiasmo ficou evidenciado quando declarou que, para um artista, nem sempre o dinheiro é o fundamental e participar daquele desfile poderia ser para ele promocionalmente um bom negócio.

Simultaneamente a estas providências, D. Magda trabalhava arduamente com sua equipe na confecção dos modelos, na sua maioria de sua própria criação. Mas, para surpresa de todos, Bill resolveu participar também deste setor, ajudando a selecionar os modelos, desenhando alguns e recriando outros, todos inspirados nas revistas francesas de sua mãe.

Mas Bill sabia que ainda estava faltando o principal. Mais importante que as partes técnicas e artísticas era o lado promocional, e era neste último que ele iria investir a maior parte do seu potencial imaginativo. A partir daquele momento ele sabia que teria que concentrar todas as suas forças no serviço de relações públicas, pois a verba de que dispunha para a publicidade era quase nenhuma. Chegara a hora de seu contato com a imprensa, de acionar a máquina publicitária - jornais, revistas, rádio, cinema e televisão. Bill desejava uma cobertura completa, maciça, mas sem ter prestígio pessoal e dinheiro para tanto, entendeu que para ter o apoio dos veículos de comunicação, teria que oferecer a eles algo em troca. Bill já tinha pensado nisso antes mesmo de tomar qualquer providência para o desfile. A ideia fecundara o ventre de sua imaginação e ganhara forma. Chegara a hora de fazer nascer Jean Louis Marchand, o costureiro francês que começava a revolucionar a moda na Europa.

A primeira nota, publicada num jornal de médio porte, foi o suficiente para fazer levantar a poeira da curiosidade. Saiu numa seção dedicada à mulher, na edição de domingo, e dizia assim o título da matéria: "VEM AO RIO FAMOSO COSTUREIRO FRANCÊS". E em seguida, dizia o texto: "Desembarcará no Galeão, no próximo dia 15, o costureiro francês Jean Louis Marchand, que está conseguindo revolucionar a moda na Europa. Jean Louis, que já esteve algumas vezes no Rio a passeio, é amigo pessoal de D. Dulce Heemann de Castro, proprietária de famosa butique no Leblon. Profissionalmente, esta é a primeira vez que vem ao Brasil, pois aqui irá lançar a coleção primavera-verão criada por ele especialmente para o nosso país. Depois do grandioso desfile que será realizado nos salões de um conhecido clube da Zona Sul, os modelos de Jean Louis serão colocados à venda, com exclusividade, pela butique Blanche-Noir."

Esta nota serviu como ponto de partida para a grande campanha que Bill pretendia desencadear. Ela não fora endereçada ao grande público, e sim à própria imprensa especializada, que logo mordeu a isca e passou a se interessar pela figura do costureiro. O telefone da butique de D. Dulce chamou algumas vezes em busca de novas informações. Ela, instruída por Bill, limitou-se a dizer que realmente era amiga de Jean Louis, e que tal amizade nascera em Paris quando de uma de suas primeiras visitas à Capital da moda. Naquela época - acrescentou D. Dulce - Jean Louis era um ilustre desconhecido que acabara de ganhar um importante concurso e seu talento começava a ser apreciado no universo da alta costura. E para concluir, informou com certo orgulho que Jean Louis ficara hospedado em sua casa de campo em Friburgo quando de sua última estada no Brasil. Mais informações não poderia prestar, já que a organização do desfile estava a cargo de um profissional competente, e , portanto, a única pessoa gabaritada e indicada a fornecer maiores esclarecimentos.

Assim, desta forma, foi construída a ponte que fez ligar Bill aos meios de comunicação, e a partir do momento em que passou a ser procurado, ele não se fez de rogado. De sua cabeça fluíam dados e informações curiosas que logo se transformavam em notícia. Como uma bola de neve, o noticiário cresceu e, tanto a expectativa da chegada do costureiro quanto os preparativos para o desfile, passaram a ser comentados quase que diariamente pela imprensa. Para que determinada emissora de televisão noticiasse o assunto num de seus programas vespertinos, Bill prometeu a presença do costureiro, logo que este chegasse ao Brasil, no citado programa, para uma entrevista exclusiva.

Jean Louis Marchand já era uma realidade, e aos poucos o grande público passava a tomar conhecimento de sua existência. Mas para Bill, tudo isso era apenas o começo. Ele sabia que ia ter um grande problema pela frente, e já começava a se preparar para enfrentá-lo. Em certos casos, a imprensa prefere desmentir determinadas notícias do que perder a oportunidade de divulgá-las, e foi imaginando a imprensa em forma de um grande peixe, que Bill jogou sua isca certo de vê-la abocanhada. O imediatismo dos órgãos de divulgação faz com que certas notícias sejam divulgadas antes mesmo de verificada sua procedência. Quando não desperta interesse e não é contestada, a notícia morre no esquecimento sem que se possa ter certeza sobre sua autenticidade. Mas no caso inverso, quando o fato divulgado tem boa repercussão, os principais órgãos da imprensa sentem-se na obrigação de investigar a origem do que apressadamente foi publicado. E assim aconteceu no caso do costureiro francês, pois logo o principal jornal da cidade, com correspondente em Paris, publicava uma matéria, acusando Jean Louis Marchand de embusteiro, já que seu nome era totalmente desconhecido entre os "papas" da alta costura francesa. Logo em seguida chegava a vez de um famoso colunista social aproveitar a oportunidade para demonstrar seu perfeito conhecimento do grand mond, publicando em sua coluna uma nota irônica, na qual afirmava que jamais ouvira falar no nome do tal costureiro.

A comédia estava sendo bem representada, pois até a desconfiança que começava a desabar sobre o personagem central, fazia parte do enredo. Este era um risco que Bill contava correr, e se preparara para ele. Um problema para o qual a solução já havia sido encontrada. O certo é que ele não poderia permitir que o nome de Jean Louis fosse riscado do noticiário, e isso fatalmente ocorreria se o descrédito sobre seu valor ou até mesmo sobre sua existência tomasse conta de toda a imprensa. E para evitar que isso acontecesse, Bill voltou a acionar aquele que foi o responsável pela primeira nota publicada, e que viria a ser seu grande aliado naquela campanha. Seria ele, portanto, a mola mestra que comandaria toda aquela engrenagem. Um jornalista capaz de saber de toda verdade e guardar o mais absoluto sigilo. Sua missão seria a de dar credibilidade ao costureiro, apresentando provas concretas e capazes de não deixar dúvidas quanto ao valor de Jean Louis e de sua vinda ao Brasil. Depois de pesquisas preliminares, Bill descobriu em Mário Jordão o jornalista talhado para desempenhar tal papel. Mário Jordão era um jovem e ambicioso repórter, inescrupuloso como a maioria dos ambiciosos. Seus trabalhos na imprensa já tinham chamado a atenção para o seu nome. De uma feita, ao escrever uma série de reportagens sobre um médium capaz de curar qualquer tipo de doença através de operações espirituais, fez por promover sobremaneira um Cento Espírita de Nova Iguaçu, antes obscuro, levando até lá uma multidão de fanáticos em busca de soluções para as suas mazelas. O sucesso foi tão grande que em pouco tempo a caridade estava sendo comercializada através de plásticos adesivos para automóveis e outros objetos vendáveis. Não passou muito tempo e o mesmo repórter fazia vir a público um grande trabalho comunitário realizado por um padre italiano, em sua paróquia, num subúrbio do Rio. E foi dessa forma que Mário Jordão conseguiu ficar de bem com Deus e com o Diabo. Outras reportagens dele também dariam grandes manchetes, como a que fez sobre um vôo rasante de um disco voador sobre a Barra da Tijuca. As fotos ficaram tão perfeitas que por pouco não se via o rosto de um dos tripulantes da nave através das escotilhas. A filosofia do jornal para o qual Mário Jordão vinha trabalhando era de que a notícia verdadeira deveria ser aquela que fizesse vender mais jornais e Bill logo compreendeu que não poderia ter feito melhor escolha. Sim, Jordão seria aliado na imprensa e Bill poderia confiar a ele seu segredo, pois descobrira o seu preço. Além das vantagens financeiras, Bill prometeu-lhe muito mais. Ele seria o repórter eleito para dar os grandes furos. Só a ele as informações principais seriam prestadas e, desta forma, o contrato entre os dois foi selado. Na verdade, o que firmaram não foi um simples contrato e sim uma parceria com pacto de honra. Ficou combinado entre os dois que o repórter jamais revelaria a verdade e Bill, por sua vez, jamais contaria às autoridades o que descobrira sobre a maior das fraquezas daquele profissional da imprensa, a respeito de entorpecentes.

A primeira bomba não se fez por esperar. Numa manhã de terça-feira estava nas bancas, no canto da primeira página do matutino, uma foto de um desenho de vestido com a seguinte legenda: "Um furo na moda". O pequeno texto, logo abaixo da fotografia, dizia: "Nossa reportagem, conseguindo antecipar-se ao desfile do famoso estilista francês da alta costura Jean Louis Marchand, fotografou um de seus desenhos, num descuido dos responsáveis por sua vinda ao Brasil. No momento em que D. Dulce voltava a atenção para uma de suas mais famosas clientes, nosso fotógrafo percebeu que sobre o balcão da butique patrocinadora do desfile repousava um grande envelope pardo recém chegado de Paris. Dele foi retirado o modelo acima, sendo este fotografado logo em seguida".

O objetivo foi alcançado, e neste mesmo dia vários repórteres procuraram Bill, que aproveitou para se queixar, num tom de voz revoltado:

- O repórter responsável pela publicação desta foto - apontou o jornal - fez um serviço sujo, antiético, e abusou de nossa confiança. Violar correspondência é crime! Podem escrever aí, arrematou Bill de forma exaltada, estamos pensando em processar este jornal. O modelo fotografado não mais fará parte de nossa coleção.

O mesmo cronista social, que dias antes publicara em sua coluna uma nota irônica demonstrando descrédito sobre as qualidades de Jean Louis Marchand, e até pondo em dúvida a sua existência, foi sacudido por um telefonema de alguém que se dizia empregado do Copacabana Palace Hotel. A partir do dia 15 do corrente, o estilista francês estaria hospedado lá - garantia uma voz masculina através do fio - e, para isso, uma suíte já tinha sido reservada em nome de Jean Louis. Imediatamente o cronista procurou apurar o fato junto à direção do Hotel e, assim que o viu confirmado, não teve dúvida de dar a notícia em primeira mão em sua coluna. E foi assim que um humilde empregado do Copacabana Palace conseguiu receber duas boas gorjetas.

Sempre que uma notícia sobre determinado assunto, ao ser divulgada, faz despertar interesse, toda a imprensa sai em campo em busca de novas notícias. Cada órgão - jornal, rádio e televisão - busca descobrir um fato novo para ser o primeiro a informar. E foi assim que as companhias aéreas que costumam fazer a linha Paris-Rio foram procuradas por repórteres ávidos de saber se o nome de Jean Louis Marchand constava de alguma lista de passageiros. Como as empresas tivessem afirmado que tal nome não constava em nenhuma relação, várias hipóteses foram aventadas, e entre elas a de que Jean Louis pudesse vir a ser um nome fictício, e que o estilista tivesse comprado a passagem em seu verdadeiro nome.

Cada povo costuma ter as notícias que merece. No Brasil, o futebol, o crime e os escândalos com corrupção envolvendo figuras de grande expressão popular costumam ser, entre outros, os assuntos preferidos. A moda internacional sempre foi um privilégio de poucos, e fazer dela notícia de real interesse foi para Bill uma tarefa das mais difíceis. Mas a fórmula para isso já havia sido descoberta há muito tempo, e foi assim que ele conseguiu transformar em contagioso um assunto que jamais seria contagiante. Como quem  estivesse espalhando vírus, Bill espalhou notícias que logo tomaram conta da cidade como um surto epidêmico. Numa delas ele especificou a data, a hora, o número do vôo e o nome da Companhia que traria Jean Louis Marchand ao Brasil. Assim todos ficariam sabendo que no próximo dia l5 de corrente, o costureiro desembarcaria no Galeão e, àquela altura, toda a imprensa já estaria de prontidão para dar cobertura ao evento. Por sugestão de Bill, Mário Jordão entrevistou uma nova rica, emergente da sociedade, e ela não se furtou a falar sobre o estilista francês. Por vaidade procurou demonstrar que deveria ter sido uma das primeiras brasileiras a conhecer, pessoalmente, o costureiro:

- "Jean é uma gracinha! Não consigo imaginar como um homem franzino e miúdo consegue guardar tanto talento e energia. As francesas o adoram, e nós vamos adorá-lo também, tenho certeza. Comprei um modelito básico dele que é um encanto! É um vestidinho leve, porém muito original. Pretendo ir ao aeroporto com ele para recepcioná-lo. Serei a primeira a abraçá-lo após o desfile" - completou.

Bill não contava com essa e ficou surpreso com a descrição que a emergente fizera sobre o costureiro. Na manhã do dia 14 uma nova bomba explodiu no noticiário. Mário Jordão, no maior furo de reportagem sobre a matéria, fazia publicar, com grande destaque na primeira página de seu jornal uma foto de Jean Louis desembarcando no Galeão. A foto mostrava o costureiro sendo beijado por D. Dulce e, em segundo plano, podia-se ver ainda Bill e um carregador empurrando um carrinho atulhado de malas. Jean Louis era, realmente, um homem franzino e de baixa estatura. Estava elegantemente vestido, usando sobretudo e chapéu, e tinha o rosto parcialmente encoberto por um grande óculos escuro. A foto não poderia ter saído melhor, e Bill sorriu de satisfação ao vê-la publicada. Todos os detalhes que deveriam ser mostrados estavam ali nitidamente, e se Bill não conseguira reconhecer seu amigo Baraúna no papel do costureiro, por aquela foto Jean Louis jamais seria identificado.

O alvoroço na imprensa foi total. Uma romaria de repórteres passou a andar de um lado para outro, em busca de informações. Prevendo a invasão, a butique Blanche-Noir fechara as portas e toda a imprensa acabou por se concentrar na recepção do Copacabana Palace Hotel. Por sua vez, tentando evitar um tumulto maior, a direção do Hotel resolveu distribuir uma nota, na qual confirmava a reserva da suíte de número ll7 para Jean Louis Marchand, e que a mesma só teria validade a partir do dia seguinte. Adiantava a referida nota que a bagagem do costureiro já havia chegado e que estava no depósito do hotel, mas que ele por lá não havia aparecido. Com isso os repórteres foram se dispersando, exceto um, que resolveu dar plantão na portaria. Aventando sobre essa hipótese, Bill tomara as devidas precauções e, foi assim que lá pelas 2 horas da madrugada do dia 15 um táxi parou na entrada principal do hotel, e de seu interior saltaram Bill e Baraúna. Trôpego, com a barba por fazer, e vestido da mesma maneira como havia aparecido na fotografia do jornal, porém com o sobretudo sob o braço devido ao calor, Baraúna, representando o costureiro francês, apoiava-se em Bill, fazendo crer que estava totalmente embriagado. O assédio e as fotos começaram a partir do instante em que Bill foi reconhecido pelo repórter, quando solicitou as chaves da suíte ao funcionário que estava por trás do balcão da recepção. Ao mesmo tempo em que tentava explicar a situação, Bill pedia desculpas ao repórter em virtude do estado em que se encontrava o costureiro.

- Estávamos numa festinha íntima quando Jean Louis resolveu de repente vir para o hotel. Não encontrando meios de demovê-lo de tal decisão, acabei por ceder. No momento ele está inconsciente e nada poderá dizer. Se evitar que estas fotos saiam publicadas, prometo-lhe um entrevista exclusiva.

A suíte 117 não havia sido ainda desocupada, e para contemporizar o problema, a gerência do hotel acomodou o costureiro num apartamento de luxo que estava vago, a fim de que ele pudesse repousar até que suas acomodações estivessem prontas para recebê-lo.

A frustração da imprensa ficou evidenciada pela manhã, quando apenas dois jornais noticiaram sobre Jean Louis. Enquanto uma nota da Mário Jordão comentava a respeito da festa que fora preparada para o costureiro num apartamento de cobertura da Av. Vieira Souto, o jornal do repórter que ficara de plantão no hotel, publicava foto e matéria da chegada do costureiro embriagado ao Copacabana Palace.

A partir daquele dia até a hora do desfile, Bill não teve mais um minuto de sossego. Nada do que prometeu em nome de Jean Louis ele pôde cumprir, e assim, nem a entrevista coletiva nem o aparecimento do costureiro num programa de televisão aconteceram. Bill se desmanchava em desculpas, explicando que Jean Louis não gostara de alguns modelos depois de confeccionados, e resolveu refazer os desenhos. Era por isso que se mantinha isolado em sua suíte, não admitindo ser incomodado enquanto criava.

A suíte 117 ficava de esquina, no corredor, com vistas para o mar e para a piscina. Foi de lá que durante três dias Bill coordenou a maior parte da divulgação, redigindo, assinando e distribuindo para toda a imprensa notas em nome de Jean Louis. Enquanto isso, seu amigo Baraúna comia e bebia do bom e do melhor, e de binóculo apreciava o desfile constante de mulheres lindas em torno da piscina, num autêntico mercado de carne de primeira qualidade. Da janela, enquanto saboreava um coctail de lagosta, parcialmente encoberto pela cortina para não ser notado, Baraúna não perdia um só detalhe e parecia perceber o que estava se passando a poucos metros abaixo de onde estava. Com sua fértil imaginação, ele comparava algumas mulheres ali expostas como verdadeiros objetos de arte prontos para serem leiloados. E tão viva lhe era esta imagem que podia ouvir, vez por outra, o bater do martelo. Ah... como ele gostaria de estar tomando parte daquele leilão, lado a lado com aqueles homens maduros de aspecto senhoril. E enquanto pensava nessa possibilidade, Baraúna sonhava sonhos curtos. Se num determinado sonho ele se via de posse de uma carteira de notas do mais puro crocodilo recheada de dólares, no outro ele podia usar o talão de cheques sem preocupação, pois sua conta no Banco era ilimitada. Embora curtos, os sonhos se interligavam e, se num momento ele se via possuidor de um título de nobreza, no sonho seguinte ele traficava influências. O fato é que naquele momento Baraúna daria o que pudesse para ter o direito de apresentar o lance maior e arrebatar a mulher mais valiosa daquele leilão imaginário. Abriria mão do pouco que a natureza lhe dera e não hesitaria em trocar sua esbeltez, como também sua vasta cabeleira, pelas protuberantes barrigas e reluzentes carecas que naquele momento ornamentavam a pérgula da piscina. Mas de onde estava, nem o cheiro do perfume daquelas carnes frescas, algumas importadas, podia sentir..

Baraúna interrompeu seus sonhos e divagações para limpar a lente com a ponta da cortina e, ao recolocar o binóculo diante dos olhos, pôde enxergar o que sua mente se negava a acreditar: a mulher mais exuberante que vira em toda a vida! Baraúna quis gritar seu lance, mas o grito morreu na garganta. Se pudesse, escancararia a janela e gritaria a plenos pulmões: "Eh, vocês aí... eu sou Jean Louis Marchand, o famoso costureiro francês, mas não sou bicha não. O que eu sou mesmo é tarado por mulher". Ao se agitar, Baraúna fez mover a cortina e com isso despertou a curiosidade de olhares que se voltaram em direção à janela da suíte onde presumia-se estar o costureiro. Naquele momento ele teve a impressão de que seu hipotético grito fora ouvido em toda a pérgula. Mas mesmo sabendo que tudo aquilo não passava de uma ilusão, pois as mulheres que estavam no hotel não faziam parte da mordomia a que tinha direito, Baraúna negava-se a abandonar seu sonho e, em pensamento, ia possuindo uma a uma, numa autêntica masturbação mental. E como dizem que o sexo frustrado faz gerar a fome, em represália ao que lhe era negado, Baraúna pedia a Bill mais comida. Este, por sua vez, ao fazer o pedido através do telefone, falava em francês num tom afrescalhado. Mesmo sem ser visto durante o tempo em que esteve hospedado, Jean Louis Marchand teve sua voz reconhecida por boa parte dos empregados do hotel.

Ao cair da tarde do terceiro dia, Baraúna deixava o hotel em roupas comuns, sem óculos escuros ou chapéu que pudessem identificá-lo como Jean Louis Marchand, passando por entre repórteres e fotógrafos sem ser notado. Desta forma fora preparada a fuga do costureiro, pois horas depois, Bill, da suíte, telefonava para a recepção pedindo que encerrassem a conta e mandassem apanhar a bagagem do hóspede, explicando que o costureiro abandonara o hotel cansado que estava com o assédio da imprensa. Para os repórteres Bill deu uma outra versão, dizendo que Jean Louis optara por um isolamento maior, capaz de lhe proporcionar a paz e a tranquilidade necessárias para que pudesse concluir as suas criações.  A casa de campo de D. Dulce, em Friburgo, fora o local escolhido e era por lá que ele deveria ficar até as vésperas do desfile.

Decepcionada com as atitudes de Jean Louis Marchand a imprensa, depois de fazer acusações diversas ao costureiro, resolveu silenciar como uma forma de boicote ao seu desfile. Mesmo achando que o objetivo já havia sido alcançado, pois a curiosidade pela figura do costureiro e pelo seu desfile já havia sido despertada, Bill começou a se preocupar com a ausência de notícias, e aproveitando-se de uma declaração feita por um dos mais famosos estilista tupiniquins, na qual Jean Louis era acusado de impostor, irresponsável e grosseiro, Bill resolveu tirar o último coelho da cartola. A resposta de Jean Louis não se fez tardar, e com isso a guerra entre os dois foi declarada. Enquanto o brasileiro teimava em afirmar que o francês não passava de um embusteiro, farsante e impostor, Jean Louis respondia que no Brasil só havia um costureiro que era um autêntico estilista criador, com seu nome reconhecido internacionalmente, e que os demais, como aquele que o estava acusando, não passavam de insignificantes cortadores de pano sem nenhum poder de criação - verdadeiros macacos de imitação da alta costura europeia. Com essa explosiva e, ao mesmo tempo, hábil declaração, Bill fez com que a ira de 99% dos costureiros brasileiros fosse toda descarregada em cima de Jean Louis, e que o nome mais expressivo de nossa alta costura se tornasse o maior aliado do francês. As acusações e os insultos foram tornando-se cada vez mais agressivos a ponto de um famoso programa de debates pela televisão propor um encontro, para logo após o desfile, entre os dois maiores rivais, diante das câmeras da TV. Bill, o criador e responsável único por toda aquela agitação, divertia-se enquanto ajudava a espalhar plumas e paetês pra tudo quanto era lado. Era ele o portador das palavras do francês, distribuindo notas assinadas pelo costureiro nas redações dos jornais e das revistas, e fitas gravadas com a voz de Jean Louis para as emissoras de rádio. Assim conseguiu que o noticiário se mantivesse aceso até a véspera do desfile.

Chegou finalmente o grande dia. Era o primeiro sábado de novembro e o início do desfile estava marcado para 17 horas. Bill saiu cedo de casa depois de um reforçado café da manhã, e só foi visto pela primeira vez quando chegou ao clube Caiçaras, na Lagoa Rodrigo de Freitas, uma hora antes do desfile começar. Estava elegantemente vestido num terno de colete, feito sob encomenda, em finíssimo tergal quadriculado num tom azul céu e com um cravo vermelho na lapela. Chamavam ainda a atenção a gravata Pierre Cardin de seda pura, em três tonalidades de azul, e os sapatos pretos de cromo italiano. Mas o que surpreendeu a todos foi a sua fisionomia descansada, jovial e alegre, pois no dia anterior chegara a preocupar os amigos e familiares com seu estado de exaustão. Para quem, há mais de sessenta dias vinha trabalhando incessantemente, um milagre havia sido operado. Só que Bill não comungava desta opinião. Gozava de boa saúde e era jovem demais para apelar para milagres. Bastou a ele um pequeno truque para apresentar-se com tão boa aparência. Resolveu que no dia do desfile desligar-se-ia de todos os problemas e só os enfrentaria no momento certo. Para isso buscou refúgio numa Academia de Cultura Física e por lá passou grande parte do dia. Tomou massagem, banho turco, ducha escocesa, fez o cabelo, a barba e as unhas e, o que é mais importante, repousou o corpo e a mente. Algumas horas apenas foram suficientes para devolver a Bill a energia gasta durante 60 dias. Milagre? Não, pois a juventude em si já é o grande milagre da vida.

Para a maioria das mulheres, o rosto de Bill era uma autêntica vitrine de joias: o ouro, nos cabelos; nos olhos, duas esmeraldas e na boca, um colar de pérolas. Ao lado de D. Dulce, na entrada principal do salão, Bill ia recebendo um por um dos convidados. A afluência foi maciça e todos os veículos da comunicação se fizeram presentes. Um verdadeiro batalhão de fotógrafos, cinegrafistas, repórteres, locutores, camera-men e etc. De todas as bocas saíam uma só pergunta, e para ela Bill tinha a mesma resposta: "Jean Louis será apresentado a todos no fim do desfile. Estamos aguardando sua presença a qualquer momento".

O amplo salão foi pequeno para abrigar a imprensa, os convidados e os penetras que conseguiram burlar o forte esquema de segurança. Quase todos os amigos de Bill estavam a seu lado, colaborando de uma forma ou de outra. Sufocado por um colarinho apertado, Baraúna coordenava a segurança particular do amigo. Apesar de franzino e baixote, era faixa preta de judô e campeão em sua categoria. Fernando, o fotógrafo, ao lado de Mariinha, colaborava no serviço de relações públicas e, entre todos, o espírito de equipe ficou evidenciado.

Mesmo sabendo que tinha exigido demais de seus contratados durante os cansativos ensaios, Bill não esperava um entrosamento tão perfeito entre os setores como o que ocorreu antes, durante e ao término do desfile. No som, na luz, na música, na apresentação dos modelos, na classe das manequins profissionais, na graça e no ritmo das garotas, na decoração do salão, palco e passarela e, por fim, na originalidade e na beleza das roupas apresentadas, não foi notada uma falha sequer. Sentindo a reação favorável e imediata no público e na imprensa, Bill começou a calcular o volume das encomendas e o teor dos comentários que sairiam publicados no dia seguinte.

Assim que o último modelo acabou de desfilar o público prorrompeu em palmas e gritos de bravo. No primeiro momento de silêncio, o locutor, mestre de cerimônia, tomou a palavra para agradecer a todos que direta ou indiretamente tinham colaborado para o sucesso do desfile, e aproveitou também a oportunidade para tecer elogios a toda a equipe, não só aos que se apresentaram diante do público, como também àqueles que nos bastidores trabalharam no anonimato com tanta eficiência e, antes de encerrar a sua participação, acrescentou:

- Gostaria agora de chamar ao palco os três maiores responsáveis por este desfile. Inicialmente trago até vocês a pessoa que com coragem e desprendimento acreditou na possibilidade de sua realização: Senhora Dulce Hermann de Castro, proprietária da butique Blanche-Noir, patrocinadora do desfile.

D. Dulce subiu ao palco e foi muita aplaudida.

- Em seguida vamos receber - continuou o mestre de cerimônia - um jovem de grande valor. Estou certo de que a partir deste momento, seu nome será lembrado sempre que se fizer um desfile de modas em nossa terra. Foi ele quem idealizou, coordenou e comandou todo este desfile. Para receber os nossos aplausos, chamo agora o jovem Bill Morrison...

Os aplausos foram calorosos e demorados.

- E para finalizar - voltou a falar - espero apresentar neste momento, a todos os presentes, a figura mais discutida e controvertida dos últimos tempos no mundo da moda. Aquele que, por sua arte hoje aqui comprovada, por sua irreverência, seu dinamismo e inteligência, conseguiu monopolizar a opinião pública, acirrando os ânimos e dividindo opiniões desde o momento que desembarcou no Brasil. Sua participação foi tão importante na criação dos modelos como na divulgação do desfile. Depois de impor seu nome por toda a Europa, veio até nós para lançar sua coleção primavera-verão, certo de que aqui também terá seu nome consagrado.

Um murmurinho crescente falava bem sobre a expectativa do público.

- Com os nossos aplausos vamos receber Jean Louis Marchand - completou.

Todos prenderam a respiração. Silêncio igual só se poderia comparar com o de um funeral de um grande ídolo popular. No início todos os olhos correram para uma só direção: o palco. Em seguida, os olhos vagavam em todas as direções, como se quisessem adivinhar de onde deveria surgir a figura do costureiro, já que ninguém ali o tinha visto chegar ao clube. Bill, o responsável por toda aquela farsa, esfregava as mãos nervosamente enquanto corria os olhos pelos quatro cantos do salão como se tivesse ele também a esperança de encontrar a figura de Jean Louis entre os presentes. A expectativa era tão contagiante que até Bill viu-se envolvido por ela. O silêncio não durou mais de 30 segundos e logo um murmúrio de vozes crescia ameaçadoramente. E antes que a expectativa gerasse indignação, o repórter Mário Jordão subiu ao palco e entregou a Bill um pequeno envelope. Este, depois de correr os olhos pelo papel, solicitou silêncio a fim de fazer um comunicado. Antes, explicou a presença ali no palco do dinâmico repórter Mário Jordão, o único no Brasil que conseguiu entrevistar o estilista francês e a última pessoa a estar com ele, sendo por isso portador daquela mensagem do costureiro. No momento em que o murmúrio diminuiu de intensidade, Bill começou a ler a nota, frisando antes, que embora o texto estivesse escrito em francês, o traduziria para o público presente:

- "Lamento não poder estar aí compartilhando com todos vocês do sucesso que tenho certeza foi alcançado. Em momento algum duvidei disso, pois jamais havia trabalhado ao lado de uma equipe tão maravilhosa e capaz. Quando, num trabalho em conjunto, consegue-se unir competência, amor, dedicação e profissionalismo, o resultado não poderia ser outro. À você, Dulce querida amiga, primeira pessoa no Brasil a confiar em mim, o meu muito obrigado. À você, Bill, que com invejável talento criou todas as condições para a realização de um trabalho correto, o meu muito obrigado. À você Magda, e sua eficiente e maravilhosa equipe de costureiras, sem a qual seria impossível dar forma às minhas criações, meu muito obrigado. À toda a equipe, do mais humilde ao mais graduado técnico, o meu obrigado. E, finalmente, aos homens da imprensa que, fazendo uso do prestígio de seus órgãos de divulgação, ajudaram de maneira decisiva a transformar numa grande realidade um audacioso projeto, o meu muito obrigado. A respeito de minha ausência, posso dizer que conto com a compreensão e o perdão de todos vocês, pois ao receber um telegrama informando-me de que minha mãe fora acometida de um mal súbito, não hesitei em regressar a Paris, pois é a ela que devo dizer o meu primeiro muito obrigado".

Bill emocionou-se com o que ele próprio escrevera e concluiu a leitura daquela mensagem com a voz embargada. Sabia que a frustração de todos ali presentes, com a ausência da polêmica figura do costureiro, poderia gerar uma ação incontrolável de revolta e, em silêncio fez uma prece à Deus pedindo proteção.

O silêncio que se fez a seguir foi dramático. Foram segundos que duraram uma eternidade. Bill podia ver o silêncio que para ele era um grande monstro sem rosto, com o dedo indicador apontado em sua direção. Podia ouvir o som da respiração da plateia, como se um só peito estivesse para explodir. Acuado e parado no tempo ele ficou entre o fracasso e a consagração.  E foi quando os entusiásticos aplausos puseram o monstro a correr, que Bill pôde perceber que a frustração do público pela ausência do costureiro francês fora abafada pela beleza do espetáculo.

Enquanto a plateia, com entusiasmo, respondia favoravelmente ao que acabara de assistir, a imprensa ficava dividida em suas opiniões e parte dela achava que não só fora vítima como também coautora de uma grande farsa.

Ao final de tudo deu-se um fato curioso e digno de registro. Aconteceu próximo ao portão principal do Clube, quando imprensa e público juntos comprimiam-se diante da saída. Naquele momento, Baraúna e seu pessoal ajudavam a escoar a pequena multidão, enquanto a polícia procurava manter a ordem, quando alguém ao seu lado comentou em tom de desabafo: - "Esse tal de Jean Louis não passa de um  grandissíssimo veado!"  Tomando para si o insulto, Baraúna partiu para a agressão e, não fosse a pronta interferência dos policiais, ajudados pela turma do deixa-disso, aquele incidente teria gerado um tumulto de grandes proporções. Seguro pelos policiais, mas ainda indignado, Baraúna gritava a plenos pulmões: - "Veado é a puta que o pariu". Foi a nota desabonadora do espetáculo.

Certa de que o desfile seria um sucesso, D. Dulce providenciara um coquetel em sua residência para alguns poucos convidados. E lá, diante de uma euforia coletiva, no ápice das comemorações, Bill mostrava-se apático, indiferente mesmo às homenagens que lhe estavam sendo prestadas. Bill não parava de beber, e enquanto alguns atribuíam a sua apatia à grande quantidade de álcool ingerida por ele, outros viam na estafa o motivo principal.

E ali, entre aqueles que circundavam Bill, buscando encontrar uma justificativa capaz de desculpar seu estranho procedimento, só Fernando, seu maior amigo, estava próximo de descobrir a verdadeira razão. E foi justamente com ele que Bill logo depois desabafou:

- São todos uns tolos, uns idiotas. Pensam que sou um vitorioso quando na verdade, pela primeira vez em toda a minha vida, sinto-me derrotado. Você me conhece, meu amigo, e sabe porque estou assim. Tanto trabalho inútil... tudo em vão. Fiz tudo isso por ela e para ela, e ela não veio. E sabe o que fez aquela vaca? Mandou um foca, um principiante que nem sequer se fez acompanhar de um fotógrafo. Estela jamais poderá julgar o meu desfile mesmo que amanhã a imprensa se desmanche em elogios. A beleza tem que ser vista para ser sentida. Ela fez pouco caso de mim, Fernando, e vai me pagar por isso. Vou me vingar. Mesmo que viva mil anos eu jamais a perdoarei...

Fernando ainda tentou confortá-lo, mas Bill estava distante demais para ouvir o que o amigo dizia.

Bill tinha uma parte de seu corpo submersa na espuma macia. O sofá era confortável e ele parecia estar flutuando, sentado em cima de uma grande nuvem. Em seus sonhos, procurava encontrar o rosto de Estela, entre tantos a sua frente. Quando pensou ter encontrado o rosto que tanto buscava, tentou levantar-se, e ao fazê-lo, entornou a taça de champanhe sobre o peito.

Naquele momento Bill estava de volta ao grande salão do apartamento de D. Dulce, e quando percebeu onde estava, chorou.


CAPÍTULO 28


Paris, Outono de 1943


Durante aqueles três longos anos, apenas por duas vezes a família Fontaine tivera permissão para visitar a filha Germaine na luxuosa suíte do hotel em que estava, na Av. Marceau. Como uma prisioneira de luxo, ela assim se apresentou nessas duas oportunidades na presença dos pais. Estava com uma aparência muito bem cuidada e um pouco mais gorda e, em ambas as vezes, vestiu caros vestidos e ostentou jóias de grande valor. Desta forma, Germaine atendia às imposições do Coronel Kurt Staden, para que ela pudesse rever seus pais. Suas palavras otimistas e tranquilizadoras foram ditas num tom de voz extremamente falso. O olhar opaco chamou mais a atenção que o brilho das jóias, e assim ficou patente, a cada minuto, a profunda dor que sentia. Em nenhuma das duas vezes Germaine tivera oportunidade de ficar a sós com os pais. Uma mulher do Serviço Secreto Alemão, disfarçada em arrumadeira, esteve presente o tempo todo.

Previa-se, para aquele ano, um inverno rigoroso. Os intermitentes ventos de outono eram fortes e frios. Corria o mês de novembro e há quase um ano que a família Fontaine não visitava a filha, nem dela sabia notícia. Numa tarde em que os fortes ventos espalhavam folhas e temores pelas ruas da cidade, algo de novo aconteceu. Saint-Germain-des-Prés estava deserta. No restaurante da família Fontaine, as providências contra o vento já haviam sido tomadas. A porta principal estava fechada apenas no trinco e as três grandes janelas corrediças, com os seus vidros quadriculados e coloridos, estavam descidas. Do lado de fora da casa, o toldo de lona gasta e as mesas e cadeiras de vime já tinham sido recolhidos. Enquanto na cozinha Madame Fontaine preparava o jantar para os poucos fregueses que por lá costumavam aparecer à noite, seu marido, no salão, trocava as toalhas das mesas. De repente, urrando como um animal ferido, o vento passava pela porta que fora aberta, e derrubava cadeiras com sua fúria. Precedido pelo vento, surgia no interior da casa a figura do Coronal Kurt Staden. Ele estava só e à paisana. Dentro da Mercedes preta, estacionada na porta, ficara o motorista. Depois dos cumprimentos formais e do conhaque que ambos beberam, falou Monsieur Fontaine:

- Como está a minha filha? Quando vamos vê-la? O que o trouxe aqui?

- Acalme-se, monsieur - falou o Coronel, num tom frio de voz. Ela está bem, mas ainda não sei quando poderão vê-la. É justamente sobre sua filha que vim aqui lhe falar.

- Algum problema com ela?

- De certa forma, sim. Meus superiores não estão satisfeitos com a situação, e eu tenho sido alvo de críticas. Fui transferido para Berlim, e devo embarcar dentro de uma semana... O senhor já ouviu falar de um homem conhecido como Prescot ?

- Não, nunca ouvi - falou com insegurança, depois de alguma hesitação.

- Bem, isto agora não importa - continuou o Coronel. O fato é que este homem foi um dos nossos melhores informantes, e através dele vários inimigos nossos foram presos. Prescot foi brutalmente assassinado no início deste ano, e o prazo que me deram para capturar os responsáveis pelo atentado há muito se esgotou. Muita gente tive que mandar prender e torturar, e alguns, provavelmente inocentes, acabaram morrendo. E o mais grave nisso tudo é que, de concreto sobre o caso, nada ficou provado...

O tom da voz do Coronel era de certa forma surpreendente e, pela primeira vez, Monsieur Fontaine pôde perceber algum sentimento em suas palavras.

- E o que tem a ver minha filha com o caso?

- Muito, monsieur, muito... Nosso Serviço Secreto tanto sabe a respeito do parentesco dela com Pierre como está certo de que tal atentado foi praticado por seu filho ou membros de seu grupo. Estando Germaine sob minha proteção, fiquei em situação extremamente delicada. Assim que eu deixar Paris terei que entregá-la ao "SS" e não poderei mais ser responsável por seu destino. Por isso estou aqui, para lhe comunicar que por motivo de força maior deixo de cumprir minha palavra empenhada. A partir do momento de meu embarque vocês deixarão de ter a minha proteção.

- Apesar de nossas divergências e de estarmos lutando em campos opostos, sinto em suas palavras o homem de bem que o senhor é. E agora, o que posso fazer para lhe pagar este favor, e qual a solução para resolver este problema? - perguntou o velho, com voz aflita.

- Em primeiro lugar, não estou lhe fazendo favor algum, e sim, tentando aliviar o peso de minha consciência. Em segundo lugar, quero que saiba que não sou eu quem estipula os preços e sim o meu governo, mas posso lhe assegurar que o preço cobrado por ele para solucionar tal problema é muito alto, e não creio que o senhor esteja disposto a pagá-lo...

- Assim mesmo fale, Coronel. Quem sabe a gente não encontra uma solução para tudo isso?

- Pois bem, é a vida e a segurança de todos vocês, por Pierre. Não vejo outra solução.

- Mas isso é pedir demais a um pai, Coronel. Eu jamais seria capaz de entregar meu filho...

- Já lhe pedi que fizesse isso há algum tempo, monsieur, mas hoje não estou aqui com este objetivo. No entanto, não vejo como resolver o problema de vocês de outra forma...

- Deve haver outra solução...

- Pois encontre-a, monsieur. Tem uma semana para pensar no assunto, e faço votos que encontre uma saída.

Mais uma vez, as palavras do Coronel surpreenderam o velho Fontaine.

- Se o senhor soubesse como nos ajudar, faria isso?  - arriscou Monsieur Fontaine.

- Não. Não faria - falou o Coronel, com decisão. Se assim agisse estaria traindo o meu país, e eu prefiro a morte a isso. Mas posso lhe assegurar, mais uma vez, que vocês só poderão ter um pouco de paz quando nós capturarmos Pierre. E olha que faltou pouco para tê-lo em nosso poder. Não fosse meu coração ter me traído, e a esta hora Pierre já estaria preso...

- O que o senhor quer dizer com isso?

- Que há algum tempo atrás, tive duas pistas para capturá-lo e escolhi conscientemente a mais difícil e improvável..

- Por que fez isso?

- Por sua filha, e pelo grande amor que sinto por ela. Germaine jamais me perdoaria se eu fosse o responsável pela captura de seu irmão. É a primeira vez que falo sobre isso, e conto com seu silêncio. Germaine desconhece esse fato e espero que continue a ignorá-lo. Tudo tenho feito para conquistar o amor de sua filha e, se nunca o conseguir, não quero dela apenas gratidão. O que fiz me custou muitas horas de insônia. Durante muito tempo vivi imprensado entre o prazer e a vergonha de ter falhado. E agora volto a repetir, o senhor tem uma semana para se decidir. Ou entrega Pierre, ou descobre uma fórmula mágica capaz de resolver o problema. Agora, se não for capaz de uma coisa nem outra, aconselho-o a se preparar para o pior. Provavelmente o senhor não voltará a me ver; portanto, Monsieur Fontaine, adeus e boa sorte. Gostaria de lhe ter conhecido, e a sua família, em tempo de paz. Tenho certeza que seríamos bons amigos...

- Tenho certeza. Adeus, Coronel - falou Fontaine emocionado. Deus me ajudará a encontrar uma solução.

- Se isto acontecer, agradeça a Ele por mim.

Antes de ultrapassar a porta o Coronel voltou a falar. Seus olhos permaneciam frios, mas sua voz ganhava uma modulação suave e até um tanto doce:

- Pense, monsieur, pense. E por favor, salve nossa Germaine.

O caso Prescot começou no fim do verão do ano anterior. Era uma bela manhã de sol e Giacomo tinha um encontro marcado no último andar da Torre Eiffel, com um desconhecido. Estava ali há mais de uma hora sem que nada lhe acontecesse. Olhou o relógio, encostou-se na grade, e quando já estava começando a se impacientar, ouviu uma voz feminina a sussurrar em seu ouvido:

- Beije-me logo, depressa.

Virou-se rápido e deu de frente com uma jovem e bela mulher, que sem lhe dar tempo agarrou-se ao seu pescoço e beijou-o na boca. Passado o impacto inicial, mas ainda um tanto atônito, Giacomo correspondeu ao beijo. Aquela boca desconhecida era doce e tinha o hálito de hortelã.

- Não precisa exagerar - disse ela baixinho, para logo depois completar num tom de voz bem mais alto. Me perdoe o atraso, mon amour.

- Quem é você? - perguntou, sussurrando.

- Um bom gourmet - respondeu baixinho.

Daí em diante, passaram a falar alternadamente, ora em tom de voz alto, ora em sussurros.

- O que tem para me dizer? - perguntou Giacomo.

- Eu te amo, e estava saudosa - disse ela, sorrindo, e a seguir acrescentou: Estamos sendo observados. Precisamos despistar. Temos que representar um casal apaixonado. Lamento ter que obrigá-lo a isso.

- Por mim, tudo bem - falou com malícia. Se for pelo bem da pátria,  não me aborreço - completou sorrindo.

- Que acha de me convidar para almoçar?

- Seria uma boa ideia se hoje eu não estivesse com pouco dinheiro...

- Dinheiro não será problema, afinal não é o meu que vou gastar.

- Posso saber, onde pretende me levar?

- Ao restaurante, no primeiro andar. Conhece?

- Não, mas se a comida for boa como é a vista da paisagem... Sabe que esta é a primeira vez que uma bela jovem me convida para pagar o almoço?

- Em tempos de guerra tudo pode acontecer. Por isso é bom não se acostumar, pois a paz logo virá.

Ainda era um tanto cedo, e talvez por isso o movimento no restaurante era pequeno. Assim, puderam conversar mais à vontade, numa mesa discreta, enquanto almoçavam.

- Por que escolheram a Torre Eiffel? - perguntou Giacomo.

- Por ser um local público com grande movimento de turistas, apesar da guerra, onde as pessoas chegam e se vão a todo instante, e por ser bem apropriado para um encontro de casais.

- É, reconheço que não podiam ter escolhido melhor, tanto o local como meu contato...

- Sem romantismo, por favor.

- Mesmo depois daquele beijo ardente?

- Sei que lhe mandaram procurar um vulto sem rosto - falou ela, mudando de assunto - e que ainda não o encontrou.

- Sim, é verdade. Deram-me uma extensa lista com nomes de várias pessoas sob suspeição e eu as investiguei, uma a uma, e nada encontrei contra elas.

- Estas pessoas eram suspeitas demais e este foi o nosso maior erro. Perdemos tempo com isso. Agora você terá que investigar apenas cinco nomes. Todos eles de pessoas aparentemente insuspeitas e que nos têm prestado relevantes serviços. Já ouviu falar em espião duplo? Aquele que fornece informações para ambos os lados? Estes são os mais perigosos. Guarde esta lista com muito cuidado - disse ela, entregando um folha de papel dobrada. Assim que decorar nomes e endereços, destrua este papel.

Assim que deixaram a Torre Eiffel, seguiram a pé, de mãos dadas, pela Av.de la Bourdonnais. A todo instante, a jovem mulher olhava em torno como que para certificar-se de que não estavam sendo seguidos.

- Como é o seu nome? - perguntou Giacomo, quebrando o silêncio entre os dois.

- Por que devo dizer meu nome, se não sei o seu?

- Não seja por isso, eu me chamo...

- Não diga, prefiro não saber...

- Não acredito que não saiba. Como pôde me reconhecer quando nos encontramos?

- Apenas pelos dados físicos que recebi a seu respeito, e pela maneira como vinha vestido para o nosso encontro.

- Mentira. Como pôde saber com que roupa eu viria, se nem mesmo eu sabia como iria me vestir antes de sair de casa?

- Recebi um telefonema de alguém que viu você saindo. Satisfeito agora?

- Começo a acreditar que  vamos vencer esta guerra. Não sabia que estávamos tão organizados...

- E eu não sei como foram escolher um amador para missões tão importantes. Espero ao menos que você saiba o quanto são organizados os alemães, e com que facilidade os "SS" têm chegado até nós. Tome cuidado, bonitão, senão você não vai estar vivo para ver nossa vitória.

- Ah, como eu gostaria que sua preocupação por mim fosse sincera. Desculpe se a decepciono, mas devo lhe fazer mais uma pergunta...

- Faça.

- Quando vamos nos separar?

- Já se cansou de mim?

- Não é bem isso, mas penso que o que tínhamos a dizer um ao outro já foi dito e então...

- Esqueceu que estamos namorando? Para manter as aparências, quero dizer. Vê, quantas tolices ainda podemos falar? Se quiser, podemos conversar sobre amenidades. Falaremos sobre o tempo, a natureza, as artes, os esportes... ou se preferir, podemos caminhar de mãos dadas, em silêncio...

- Quando foi que fez sexo pela última vez?

- Não é da sua conta.

- As únicas coisas que poderiam me fazer lembrar que somos namorados, são estas rixas tolas que temos tido. Que tal uma trégua e começarmos tudo de novo?

- Podemos tentar...

- Ótimo, assim é que se fala, e bom seria se pudéssemos aproveitar melhor esta linda tarde de sol...

- Como, por exemplo?

- Poderíamos ir ao meu ou ao seu apartamento, mas se preferir conheço um hotelzinho discreto aqui perto que...

- Chega de tolices - interrompeu a jovem. Espero apenas que me acompanhe em silêncio, e quando chegar o momento exato de nos separarmos, eu o avisarei.

Ainda caminharam algum tempo, e quando passaram pela primeira estação do Metrô que encontraram, ela o fez entrar. O vagão em que entraram estava superlotado e, por isso, tiveram que ficar colados um no outro. Estavam muito tempo em silêncio, olhos nos olhos, quando ela sussurrou:

- Lamento ter tomado tanto o seu tempo, mas tive que seguir as instruções. Em determinado momento desconfiei que estávamos sendo observados e por isso tive que despistar. Vou descer na próxima estação e você poderá saltar na outra. Estou certa de que saberá encontrar o caminho de casa. Espero que tenha cuidado e boa sorte...

- Quando acredita que podemos nos ver novamente? Gostaria, como retribuição, de lhe pagar um jantar.

- A não ser por intermédio de nossa organização, o que não creio que venha a acontecer, não vejo como nos reencontrarmos.

- Pois vou lamentar muito. Apesar de tudo, passei momentos agradáveis. Você me atrai, e estou certo de que se a visse mais vezes, acabaria por me apaixonar e fazê-la apaixonar-se por mim.

- E este é um dos motivos pelo qual nunca me mandam contatar duas vezes com o mesmo homem. Não devemos correr este tipo de risco. As pessoas apaixonadas cometem erros primários. Esqueça que me conheceu, para o nosso bem. Pensar em mim seria a maior tolice...

- E se não estivéssemos em guerra, eu teria chance?

Ela sorriu de forma enigmática. E no momento em que o trem ia parando na estação, Giacomo tomou a jovem bruscamente em seus braços e sussurrou em seu ouvido:

- Se passamos boa parte do dia como namorados, é como tal que devemos nos despedir - e a beijou na boca com ternura e desejo.

O trem partiu vagarosamente enquanto, na plataforma, a jovem andava em sentido contrário e, no último instante ela voltou-se e acenou com um lindo sorriso. Giacomo podia jurar que a havia atingido. Porém, esta foi a última vez que a viu.

Seguindo as instruções à risca, Giacomo só leu a lista quando chegou em casa. Ao bater com os olhos no papel, sentiu um calafrio na espinha. Dos cinco nomes e endereços ali escritos, quatro lhe eram muito familiares, e entre esses estava o do Dr. Christian Louch. Indignado, ao ver o nome do amigo na lista dos prováveis traidores, afastou imediatamente de sua cabeça a idéia de ter que investigá-lo. Entre os seus conhecidos estavam, além do doutor, o dono de uma livraria, o barman de um cabaré e uma atriz famosa. Prescot era o quinto nome da lista, e a respeito desta pessoa ele nada sabia e nem sequer a conhecia de vista. Talvez por este motivo, ou levado por sua intuição, foi que Giacomo resolveu investigar Prescot em primeiro lugar.

Em pouco tempo Giacomo fez um levantamento completo a respeito de Prescot e nada descobriu que o desabonasse, muito pelo contrário. Todas as informações que recebeu e o que pôde constatar, é que se tratava de um homem um tanto rude mas de imenso coração. Era natural de Marselle e estava morando em Paris há dois anos. Estava aposentado. Passara a maior parte de sua vida na Marinha Mercante e, através dela, conhecera o mundo todo. Tinha o nariz grande e achatado e os olhos miúdos. Era baixo, calvo, gordo, tinha uma barriga avantajada, mas conservava ainda os braços musculosos. Vivia de pequenos biscates, mas distribuía o pouco que ganhava com as crianças do bairro pobre em que morava, e com velhas e decadentes prostitutas. Era um homem de temperamento alegre e muito guloso por doces e bolos. Bebia muito conhaque e, quando embriagado, adorava cantar. Raramente era visto pela manhã, mas todos os dias, ao cair da tarde, podia ser encontrado cercado de crianças, no jardim público próximo de sua casa. Costumava passar as noites em bares com música alegre e mulheres fáceis. Habitualmente regressava à casa pela madrugada sempre em companhia de uma decaída em fim de carreira, e quem estivesse mais embriagado apoiava-se no outro. Como colaborador da Resistência, encontrara uma maneira sui-generis de trabalhar. Costumava incluir, no meio das histórias encantadas que contava às crianças, as informações que recebia e as crianças, por sua vez, passavam adiante as mensagens que conseguiam captar. Desta forma, Prescot passou a ser de grande utilidade, não só por sua eficiência como também por ser uma pessoa insuspeita aos olhos e aos ouvidos do inimigo.

Assim era Prescot aos olhos das pessoas que orbitavam em torno do seu pequeno mundo, e assim ele foi visto também por Giacomo que, procurando ganhar tempo, passou a concentrar as suas atenções nos outros nomes de sua lista. Afastando definitivamente o nome do Dr. Louch, e o de Prescot temporariamente, como suspeitos, Giacomo passou a investigar simultaneamente as três pessoas restantes, sendo que a atriz famosa era a que mais lhe chamava a atenção, por suas estreitas ligações com os alemães.

O verão se fora e o outono de 1942 já estava quase chegando ao fim sem que Giacomo visse progressos em suas investigações, quando um fato novo aconteceu. Eram nove horas da noite quando Giacomo chegou em casa depois de mais um dia de trabalho no hospital. Tomou um banho, vestiu um pijama e deitou-se. Como estava sem sono, pegou um livro pra ler e o silêncio era tanto que o simples desfolhar de páginas o incomodou. Repôs o livro sobre a banca de cabeceira e foi até a janela. Enquanto sua vista se perdia na rua deserta, a mente rebuscava imagens passadas numa tentativa angustiante de encontrar um ponto de partida. Uma sombra se fez presente em algumas dessas imagens revividas, e era como se Giacomo se desse conta de que por algumas vezes tivesse sido seguido. De repente, um impulso o fez vestir-se e em poucos minutos acordava as esquinas com o ruído de seus sapatos.

O cabaré que Prescot mais freqüentava estava quase deserto e naquela noite ele não se fazia presente. No momento em que Giacomo escolhia uma mesa entre tantas desocupadas, percebeu que num canto escuro da casa, uma mulher solitária soluçava. Naquele instante ele pensou em sua família distante e na namorada que deixara em Gênova. Sim, ele também estava imensamente só, e levado por aquela sensação de abandono, foi em direção daquela mulher na esperança de juntar com a dela, sua solidão.

- Posso me sentar com você?

- Não costumo trabalhar no dia do meu aniversário - falou ela sem olhar, mantendo o rosto escondido entre as mãos.

- Eu me chamo Marcel, e gostaria de lhe oferecer uma bebida.

- Não insista, merda! Escolha outra. Já disse que não estou de serviço - e olhando para Giacomo, pela primeira vez, acrescentou: - Eh! Você é jovem e bonito! Pode arranjar coisa melhor... Não quero sua piedade nem seu dinheiro... Você tem dinheiro, não tem?

- Sim, algum, mas...

- Só os velhos, bêbedos e porcos costumam me procurar, ou então os homens que estão na mesma merda em que estou...

- Você falou sério?

- Falei sério, o que?

- Hoje é mesmo seu aniversário?

- Claro que é, por que? Duvida? Por eu ser uma prostituta não tenho a obrigação de ser mentirosa, tenho? Prostituta também comemora aniversário, pois quando ela nasce é tão pura como qualquer outro bebê.

- Calma, não estou duvidando, é que pensei que fosse uma desculpa que você me deu para não aceitar minha companhia...

- Tenho ódio da mentira e só minto quando forçada, assim mesmo para beneficiar alguém ou alguma coisa.

- Você é uma pessoa honesta e eu fico contente com isto.

- Eu, honesta? - deu uma risada. Por que diz isso?

- Porque apesar de alugar seu corpo, você não vende sua verdade... Posso me sentar?

- A cadeira está vazia e você não vai pagar nada por isso...

- Acho justo que não queira trabalhar no seu aniversário - falou Giacomo, ao sentar. É um direito seu, e ninguém pode lhe obrigar. Por isso, peço apenas que me deixe lhe pagar uma bebida...

- A troco de que?

- De sua companhia, simplesmente...

- Você é ingênuo, maluco ou quer gozar com minha cara? Nos tempos de hoje, onde dinheiro é difícil de se ganhar, você quer gastar o seu comigo, sem mais nem menos, quando mulheres jovens e bonitas estão se trocando por um bom prato de comida... Custo a acreditar.

- Não vim aqui a procura de sexo. Estou me sentindo hoje muito solitário e gostaria apenas de ter alguém com quem pudesse conversar. Só isso.

- E por que eu?

- E por que a guerra, a fome, a miséria e a solidão? Por que tem que ter sempre um porquê para tudo? Escolhi você porque estava chorando e eu vi na sua dor a minha solidão. Depois, quando disse que era seu aniversário, senti desejo de comemorá-lo.

- Sabe quando foi a última vez que um homem me procurou que não fosse para sexo?

- Não.

- Nem eu também. Faz tanto tempo, que não me lembro. Bem, já que faz tanta questão de me pagar uma bebida, gostaria de beber champagne, pode ser?

Giacomo providenciara tudo com o gerente do Cabaret, e a surpresa não poderia ser maior. No momento em que os músicos tocavam algo apropriado, fez-se escuro total e um garçom entrou com uma vela acesa sobre um pequeno bolo. Giacomo foi até o palco e falou ao microfone:

- Gostaria de oferecer aos presentes uma taça de champagne e que todos ergam-na num brinde à nossa amiga Danielle, hoje aniversariante.

Durante algum tempo a emoção de Danielle contagiou as demais mulheres presentes que a beijaram e a abraçaram entre lágrimas. Houve um trégua na rivalidade, na competição e ficou mais uma vez patente o quão intensa é a solidariedade nesse tipo de gente em determinados momentos da vida. Até o maitre, homem habitualmente frio por dever de ofício, falou com a voz um pouco embargada:

- Há muito que não se via nada parecido por aqui.

No auge da comemoração, quando todas as luzes foram acesas, Giacomo pôde notar no rosto da aniversariante as marcas do tempo e da vida que levava, além de um grande hematoma sobre a vista esquerda. Se calcular a idade de uma mulher já é difícil, de uma prostituta torna-se quase impossível.

Depois que os músicos ofereceram uma música para a aniversariante, o ambiente da casa voltou ao normal, dentro da penumbra habitual. E por tudo que ali acontecera, Giacomo fizera por conquistar a admiração dos presentes e a gratidão de Danielle.

- Agora que somos amigos, você pode me contar por que estava chorando quando eu aqui cheguei?

- Você já tinha conseguido me fazer esquecer o motivo...

- Me perdoe, então. Não perguntei por mal, nem por indiscrição. Pensei que quisesse desabafar com alguém, mas se prefere não falar sobre o assunto...

- Não tem importância. Talvez seja até bom falar. Há muito que não tenho com quem desabafar e você já conquistou minha confiança.

- Desabafe. Pode falar à vontade.

- De um modo geral, os homens se acham no direito de nos bater só por levarmos a vida que levamos. Isto não é justo. Não gosto de violência, e em toda minha vida só admiti apanhar dos homens que amei.

- Está amando alguém, no momento?

- Não. Ninguém mais se interessa por mim...

- Então quem foi o responsável por este hematoma no seu olho?

    - Um velho bêbedo e miserável, do qual vou me vingar, como me vinguei de todos que me espancaram sem ter direito...

- Quem é ele, posso saber?

- De que adianta dizer seu nome? Ele é muito querido e goza de bastante prestígio por aqui. Ninguém vai acreditar em mim...

- Eu acredito, e gostaria de saber quem e por que pôde lhe fazer mal.

- Já ouviu falar em Prescot?

Não existe coincidência - pensou Giacomo. O que existe é um fio condutor invisível de energia que nos faz unir a fatos e pessoas que buscamos descobrir. Se não fosse um outro Prescot, aquilo teria sido um aviso. Procurou disfarçar sua angústia, falando com naturalidade.

- Veja, este nome não me é estranho. Talvez o conheça de vista...

- Pois bem, éramos amigos. Sempre que eu não tinha o que comer e onde dormir, ele me levava para sua casa, dava-me um prato de sopa, me deixava ficar por lá e eu, em troca, lhe dava meu corpo, deixava a casa limpa e a roupa lavada...

- E o que aconteceu? - perguntou Giacomo, procurando disfarçar seu real interesse.

- De uns tempos para cá ele tem me evitado, como a outras também que como eu não têm onde cair morta. Parece que ficou rico de repente. Tem sido visto com mulheres jovens e bonitas. Um dia destes, uma delas passou por mim e disse: - "Desculpe Danielle, mas precisei roubar o seu homem. "A princípio não entendi a piada, mas quando soube mais tarde que era Prescot o homem a qual ela se referia, fiquei indignada e a procurei com o intuito de provocá-la: - "Não sabia que você estava tão decadente. Não precisava me roubar Prescot para ter um prato de sopa e um cobertor velho para se cobrir..."  Ao que ela me respondeu: - "Se é com um prato de sopa que ele paga por suas rugas e pelancas, fique sabendo que pelo meu lindo e jovem corpo ele tem pago muito dinheiro. Até joias tem me dado. Olhe, veja este anel..." Não suportando tanta humilhação, reuni todas as minhas forças e me atraquei com aquela mulher que julgava ser falsa e mentirosa, e gritava enquanto cravava minhas unhas em seu rosto: - "Puta! Cadela, falsa e mentirosa! Como pode um velho pobre gastar dinheiro com uma vagabunda como você. Como quer que eu acredite numa mentira dessas, sua ordinária imunda!, disse eu". Mas, depois de muito lhe bater, acabei por me convencer de que algo do que ouvia podia ter um fundo de verdade, quando ela entre lágrimas me falou: - "Você pode até me matar, mas o que eu estou lhe dizendo é verdade. Prescot tem dinheiro escondido naquela casa velha. Onde, eu não descobri ainda, mas tem. Outro dia, ao me dar todo o dinheiro de sua carteira, pedi-lhe mais. Ele entrou num pequeno cubículo que faz de escritório e, pouco tempo depois voltava, trazendo mais dinheiro para mim." Deixei-a ir, e fiquei esperando uma oportunidade para me certificar do que acabara de ouvir.

- Descobriu alguma coisa? - perguntou Giacomo, curioso.

- Ontem Prescot apareceu por aqui, e eu aproveitei para chorar minhas mágoas. Disse-lhe que hoje seria meu aniversário e que gostaria de comprar um vestido novo. Acabamos a noite em sua casa. Depois de me usar, Prescot me deu algum dinheiro. - "Tome isto aqui, é o que eu posso lhe dar. Não como  pagamento, pois bem sabe que não tenho condições para isso, mas para que  compre alguma coisa pelo seu aniversário" - falou ele, em tom paternal. Usando de toda a minha arte, chorei o quanto pude dizendo que, embora compreendesse a sua situação, de muito pouco poderia me adiantar aquela quantia, pois não daria para comprar uma blusa sequer. Prescot entrou no pequeno compartimento, tendo o cuidado de fechar a porta ao passar. Esperei um instante e logo depois rodava a maçaneta cuidadosamente, procurando não fazer ruído. Ouvi um rangido estranho. Assim que introduzi minha cabeça no cubículo, deparei com a figura de Prescot de costas, agachado no chão. Curiosa para saber o que ele fazia naquela posição, dei dois passos e tentei olhar por sobre a sua cabeça. O assoalho rangeu forte e ele voltou-se em minha direção. Com um salto felino pôs-se de pé e, ao mesmo tempo em que gritava, acertava-me um forte soco no rosto, atirando-me de encontro à porta. - "Saia já daqui, sua decaída velha! Se pensa que vai tomar o meu dinheiro, está muito enganada. Tenho ódio de gente bisbilhoteira. Ponha-se já na rua antes que eu lhe bata com mais força." Refeita do susto, ainda tentei argumentar: "Eu sei que você tem dinheiro escondido, pois até jóias tem dado a outras mulheres, portanto, não custava nada me dar o suficiente para um vestido. "Ao que ele me respondeu: "O dinheiro que eu tenho é para gastar com mulheres jovens, limpas e bonitas, e não com um trapo sujo e velho como você." Aquelas palavras me encheram de ódio e me fizeram avançar nele com todo o meu ímpeto, gritando: "Pois se quer meu silêncio, é bom me dar mais dinheiro." Prescot apesar de velho é muito forte e, depois de me dominar, acertou-me um violento soco no olho, atirando-me longe. Caída no chão e ainda tonta, gritei com todas as forças do meu pulmão: "Você vai me pagar, velho frouxo e covarde! Vou contar a todo mundo que tem dinheiro escondido sob o assoalho da casa. Todo mundo vai lhe querer roubar e até lhe matar para ficar com seu dinheiro!" Prescot me levantou do chão pelos cabelos e sussurrou, entre dentes: "Se você contar a alguém o que viu aqui será o mesmo que assinar o seu próprio atestado de óbito. Eu não tocarei num só fio de seu cabelo, mas meus amigos farão um serviço tão limpo que nem seu corpo pelancudo será encontrado. Estou tão certo do seu silêncio, que agora vou lhe deixar ir à vontade. Não me procure nunca mais e não fale do meu nome a ninguém. Faça de conta que jamais me conheceu." Estas foram as últimas palavras que ouvi de Prescot e que eu jamais pensei contar a alguém, não fosse você ter me inspirado hoje tanta confiança. Não espero que acredite, mas quero que esteja certo de que mais cedo ou mais tarde eu me vingarei dele. Gostaria que guardasse segredo de tudo o que lhe contei. Prescot tem muitos amigos e poderia realmente encontrar alguém capaz de me matar...

- Em primeiro lugar, quero que saiba que acredito em tudo o que me disse - falou Giacomo. Em segundo lugar, peço-lhe que não conte isso a mais ninguém e que não faça nada, por hora, contra Prescot. No momento não posso lhe dizer mais nada, mas quero que acredite em mim e deixe este caso por minha conta. Se puder, procure descobrir mais coisas sobre Prescot, mas aja com muita prudência e discrição. Breve você terá notícias minhas.

Por hora Prescot era o maior suspeito, e merecedor de maiores investigações. Mas o que Giacomo havia apurado, até então, era pouco para incriminá-lo. Precisava de provas contundentes. Assim, começou a agir. Com a ajuda de seu contato, Monsieur Mauriac, uma cilada foi armada para tentar fisgar o peixe. Giacomo elaborara um plano simples e eficaz, capaz de não deixar dúvidas quanto ao envolvimento de Prescot com os nazistas. Uma mensagem foi entregue a ele, dentro de um envelope lacrado, por um dos ouvintes assíduos de suas histórias, um garoto de quinze anos, ao cair de uma tarde no banco da pracinha. O garoto lhe dissera apenas:

- "Leia, decore e depois destrua. Daqui a duas horas alguém passará por aqui numa bicicleta pintada com as cores da França. Transmita a essa pessoa a mensagem e é só."

Já em casa, Prescot abriu o envelope com as mãos trêmulas e leu o que estava escrito: "A festa será amanhã, e as quatro cabeças deverão ir." A hora e o local completavam a mensagem meio codificada. Duas horas depois Prescot transmitia o que gravara na memória a um homem de meia idade que passara pela praça montado na bicicleta que tinha as cores indicadas.

Prescot só foi visto ao fim da tarde do dia seguinte. Estava mais bem disposto e alegre do que de costume e pródigo em sorrisos e presentes, distribuindo balas e doces com as crianças da praça. Com a aproximação da noite as crianças foram abandonando o local e, exatamente às 19 horas, Prescot estava de volta à sua casa. Ele ocupava a parte dos fundos de um prédio antigo de dois pavimentos. Com uma cortina, dividira um grande salão em duas partes. A primeira usava como sala de estar e cozinha ao mesmo tempo, pois a um canto tinha um pequeno fogão, pia e um armário com panelas, pratos e mantimentos. Do outro lado da cortina ficava o seu quarto, que tinha ainda duas portas internas, que davam uma para um banheiro e para o pequeno cubículo que usava como escritório. Naquela noite ele arrumara tudo com muito capricho, e até velas colocara num antigo castiçal de prata. O jantar também seria especial e, entre outras coisas, conseguira arranjar costeletas de porco. Dias antes Prescot conhecera uma bela e jovem mulher que o impressionara bastante. Era uma profissional especial, habituada a escolher seus clientes. O assédio a ela foi tão direto e constante que a jovem acabou por ceder diante, afinal, de uma proposta que achou irrecusável. Naquela noite ela estaria ali para jantar com ele, e Prescot não cabia de ansiedade e desejo. Embora o encontro estivesse marcado para as 20 horas eram mais de 21 quando a mulher apareceu. Assim que ela ultrapassou a porta, Prescot teve o cuidado de passar a chave e os grossos trincos. Estava preocupado e contrariado com a demora e mostrava-se por demais impaciente. Assim que terminaram o jantar Prescot disse à mulher:

- Vou tomar um banho rápido. Tire toda a sua roupa, puxe as cobertas e deite-se ali. Infelizmente, por causa de seu atraso, teremos que deixar o romance para outra ocasião. Hoje já perdemos muito tempo, e daqui a pouco tenho um compromisso com uns amigos que vêm aqui me buscar.

Prescot era um homem regido mais pelo instinto do que pelo intelecto e, se comia e bebia demais, mais bloqueada ficava sua mente. Na verdade ele não conseguia entender porque aquela mulher ainda estava vestida a sua frente. Por que ela estava tentando ganhar tempo, desde que chegara?  Enfurecido, gritou:

- Vai tirar logo esta roupa, ou quer que eu mesmo as tire?

- Estava esperando você sair do banheiro. Não costumo me deitar com um homem, sem antes me assear - respondeu, calmamente.

- E o que está esperando? Vá logo, não temos mais tempo a perder - gritou Prescot, completamente nu, parado no centro do quarto.

Algum tempo se passou sem que a mulher saísse do banheiro, quando Prescot, enfurecido, socava a porta enquanto gritava:

- Saia já daí, ou irá se arrepender...

Prescot já não sabia mais o que sentia, se fúria ou excitação, quando ouviu a voz suave da mulher:

- Só saio daqui quando você estiver deitado e com os olhos fechados. Quero lhe fazer uma surpresa...

- Diabo de mulher maluca que fui arranjar - resmungou ele, enquanto deitava. Pronto, pode vir. Já estou com os olhos fechados.

A mulher saiu enrolada numa toalha e com as mãos para trás. Ajoelhou-se diante da cama, soltou a toalha e começou a acariciar Prescot que até aquele momento mantinha os olhos fechados. De repente, num  movimento brusco, puxou a mulher para a cama, e quando já ia penetrá-la ouviu um estrondo. Deu um salto, correu até a janela, e do ângulo em que estava só pôde ver um clarão. Instintivamente, começou a se vestir. A mulher também se assustou, mas ainda teve sangue frio para tirar um pequeno revólver da bolsa que pousara ao lado da cama ao sair do banheiro.

- Fique onde está - disse ela, apontando-lhe a arma. Não dê nem mais um passo senão eu atiro.

Prescot começou a compreender o que estava acontecendo, mas sua surpresa só ficou completa quando viu quatro homens armados passarem pela porta que ele jurara que havia trancado. Um dos homens sangrava muito e apoiava-se num outro. O mais alto de todos, falou primeiro:

- Os alemães acabaram de cercar e destruir o local onde íamos nos encontrar, por isso resolvemos fazer a nossa festinha aqui. Parece que alguém deu a eles o nosso endereço...

O Serviço Secreto Alemão investigara a mensagem que Prescot lhe entregara nos mínimos detalhes. Se para um idiota como Prescot aquela mensagem podia parecer em código, para os alemães estava tão óbvio, que logo desconfiaram de sua autenticidade. Eles sabiam que a Resistência dividira o Distrito de Paris em quatro partes, e que cada uma delas era supervisionada por um membro da Organização. Logo, se as quatro principais cabeças estivessem presentes, o encontro, se fosse verdadeiro, seria de grande importância. Baseando-se nisso, os alemães cercaram o local. Antes da hora marcada ficaram ocultos, vigiando à distância. Às 22h10min surgiam de todos os lados e invadiam o prédio abandonado, usando metralhadoras "Schmeisser MP 40" de 9 mm e bombas de gás. No final de toda a ação militar apenas duas mortes como saldo: um mendigo que morrera mais intoxicado pelo gás do que da bala perdida que o atingira, e um enorme gato preto. Mas os alemães, por sua vez, já tinham tomado outras providências e, momentos antes de invadirem o prédio, mandavam para a residência de Prescot quatro agentes fortemente armados numa Mercedes cinza, com a missão de retirá-lo da circulação por algum tempo, ou de eliminá-lo, caso tivesse sido Prescot, vítima de uma cilada. Mas os homens da Resistência que, próximo à casa de Prescot, aguardavam apenas o comunicado de que os alemães tinham mordido a isca, tiveram tempo de agir na frente. A Mercedes cinza chegara ao local minutos depois de confirmada a traição de Prescot e os franceses, que escondidos viram o carro chegar, fizeram-no em pedaços.

Prescot, dizendo-se vítima, negou a traição. A casa foi vasculhada por inteiro, e quando o dinheiro foi encontrado - parte dele em marcos alemães de ocupação - sob o assoalho do cubículo, não teve mais como negar sua culpa. Os homens da Resistência ficaram impressionados com o montante encontrado. Ali mesmo ele foi rapidamente julgado, condenado e executado. Um dos presentes, pai de um rapaz que Prescot entregara aos nazistas, foi o seu carrasco. Prescot foi morto por enforcamento e seu corpo foi encontrado estendido na cama, com as marcas da corda no pescoço. A barriga fora aberta à faca e, na abertura, junto às vísceras, uma nota de um marco alemão da ocupação.

Giacomo solidificara seu prestígio, com o caso "Prescot", que teve fim numa noite de janeiro de 1943, em pleno inverno europeu. A primavera e o verão daquele ano já se tinham ido e agora que os ventos de outono começavam a açoitar Paris, nova missão, tão importante quanto delicada, lhe fora entregue. Giacomo teria uma semana para esconder, de preferência fora de Paris, a família Fontaine, e libertar Germaine das mãos de seu carcereiro, o Coronel Kurt Staden.

CAPÍTULO 29

O preço


A estafa se fazia presente em todos os rostos, mas ninguém ali estava disposto a se entregar ao sono antes do veredicto final. Das quase 30 pessoas presentes àquela recepção, 7 resolveram permanecer em vigília ao lado da anfitriã: Mariinha, D. Magda, a costureira-estilista, o Sr. Antenor, despachante da butique, Mário Jordão, que fora à redação do jornal entregar sua matéria sobre o desfile e já estava de volta e Bill, com seus amigos Fernando e Baraúna. O domingo estava amanhecendo quando Maria, a criada da casa, entrou no grande salão trazendo pães quentes e notícias frescas. Enquanto um café bem forte estava sendo providenciado, os jornais espalhados pelo tapete iam sendo devorados por todos os presentes.

Houve unanimidade da crítica quanto ao desfile. Em todos os jornais havia elogios, mas poucos perdoaram a ausência do costureiro e, apenas um, o de Mário Jordão, reafirmava tudo o que já tinha publicado antes sobre Jean Louis.

"A elegância e o bom gosto estão em lua de mel." "Foi criada uma nova moda para apresentar a Moda." "Espetáculo inolvidável." "Bill foi o astro maior." "Procura-se um costureiro foragido." Estas, entre outras, foram as principais manchetes publicadas.

Quem mais se aproximou da verdade foi a articulista do "O Globo", uma das mais bem informadas a respeito de moda e sociedade, que entre outras coisas, escreveu: "Mas afinal quem será este Jean Louis Marchand que aqui chegou antes do dia e que acabou partindo antes da hora? Quem será este famoso estilista francês que em seu país ninguém dele tem conhecimento? Não será Jean Louis fruto de uma fértil imaginação? Não terá ele saído da mesma cabeça que com capacidade soube criar um desfile tão original? Não estamos propensos a acreditar que a França nos tenha mandado um costureiro, e sim apenas um nome para que pudéssemos com ele rebatizar um João Luiz da Silva qualquer, tão brasileiro quanto o nosso Pelé, e tão bom costureiro quanto os melhores do mundo. Até que nos provem o contrário, é esta a versão que damos para esclarecer o que sempre acreditamos ter sido uma grande farsa. Esperamos que muito em breve possamos dirigir os nossos aplausos para o verdadeiro criador de tão belos modelos. Os responsáveis pelo desfile ficarão nos devendo a verdade e ela será descoberta, custe o que custar, pois só assim, retirando do anonimato aquele que é hoje a mais grata revelação da alta costura, estaremos reparando uma grande injustiça."

Bill chegou em casa exausto, atirou-se na cama e passou o domingo inteiro dormindo.

Bem antes das 8 horas da manhã de segunda-feira Estela já estava trabalhando. Assim que entrou em seu gabinete particular, ficou surpresa com o que viu. Tudo o que havia sido publicado pela imprensa no domingo a respeito de Jean Louis Marchand e seu desfile estava espalhado sobre sua mesa, e no meio de todos aqueles recortes havia um bilhete escrito a lápis vermelho: "ESTOU A SUA ESPERA" - Ass. A. Fernandes. Ela não precisaria ser muito esperta para adivinhar sobre qual assunto deveriam falar. Enquanto mentalmente preparava sua defesa, Estela fazia movimentos circulares em sua cadeira giratória. A vida e a morte trocavam de posição a cada instante diante de seus olhos. Eram duas imagens que se intercalavam enquanto Estela girava seu corpo sem parar. Diante da janela ela deparava com a vida que fluía no movimento crescente de veículos que rodavam apressados pelas pistas do Aterro. E era quando ficava de frente para a porta de seu gabinete que ela podia ver a morte, através do vidro, na Redação vazia, abandonada, onde as máquinas de escrever, vestidas por mantos escuros, guardavam o mais respeitoso silêncio.

"Editores Unidos S/A", uma das maiores empresas gráficas do país, responsável por uma infinidade de publicações, ocupava vários andares de um moderno edifício na Esplanada do Castelo, e era ali, no penúltimo andar, que a revista "Vitrine", uma das mais importantes da Organização, estava instalada.

Pintada por tinta preta sobre o quadrilátero de vidro da porta, estava a inscrição: CHEFE DE REPORTAGEM - Estela Ravache. Parecia que a tinta ainda estava fresca, tal o brilho e a nitidez das letras. Na verdade aquela inscrição fora feita há menos de 30 dias.

Estela sorriu ao ler seu nome de trás para frente, e lembrou com que emoção o viu pela primeira vez fixado sobre o vidro. Há oito anos que ela estava trabalhando para a revista "Vitrine", e aquela era a sua segunda promoção. Começara como repórter e há mais de três anos vinha ocupando o cargo de editora de moda. Abordando assuntos de interesse da mulher, a revista dividia-se em 5 editoriais: Saúde e Beleza, Arte, Moda, Decoração e Culinária, tendo um responsável para cada setor.

Culta, inteligente e extremamente dedicada, Estela fez por merecer a promoção e agora, como Chefe de Reportagem, ela iria usar a experiência que adquiriu ao longo do tempo em que, como repórter, pôde cobrir os diversos assuntos. A indicação de seu nome aconteceu numa reunião de diretoria e naquela oportunidade A. Fernandes, um dos Diretores da revista fora contrário, mas tivera que se conformar em ser voto vencido. Não podendo revelar o verdadeiro motivo que o levava a não ver com bons olhos a indicação do nome de Estela para o cargo, não teve argumentos capazes de evitar que fosse ela a escolhida. Estela conhecia o fato e o motivo, e estava pronta para lutar por sua posição. Ela sabia que não podia falhar e, não ter ido, pessoalmente, ao desfile de Jean Louis fora o seu primeiro erro. Como Chefe de Reportagem Estela ficava subordinada ao Diretor e, naquele momento, ela estava reunindo forças e argumentos para enfrentá-lo.

Dentro do horário habitual o contínuo entrou e lhe serviu um cafezinho, e ela só percebeu que não tinha agradecido quando o rapaz já havia deixado o gabinete. Levantou-se e foi ao encontro do seu chefe.

- Leu os recortes que deixei sobre sua mesa, D. Estela? - perguntou o Sr. Fernandes, num tom de voz pouco amistoso, ao recebê-la em sua sala.

- Não - respondeu ela secamente.

- E por que, posso saber?

- Porque costumo comprar todos os jornais que saem aos domingos e desde ontem que estou a par de tudo o que foi publicado sobre a matéria...

- E já tem opinião formada sobre o assunto, não é verdade?

- Fiquei surpresa com o que li...

- Não foi exatamente isto que perguntei...

- Honestamente, não posso ter ainda uma opinião formada. O que eu disser agora, direi baseada no que foi escrito e...

- Vê onde pretendo chegar? Nós, que fazemos parte da maior e melhor revista do país, no gênero, estamos impossibilitados de opinar...

- Não é bem assim - interrompeu Estela. Afinal houve unanimidade de opinião. A crítica foi toda favorável...

- Não estou me importando com que os outros disseram - interrompeu o Sr. Fernandes, bruscamente. Para mim, todas as coisas que foram escritas não passam de simples comentários. Temos uma equipe especializada sobre o assunto e entendo que só a nós cabe o direito de opinar. Temos este compromisso com os nossos leitores e não podemos enganá-los.

- Mas eu mandei um de nossos repórteres fazer a cobertura do desfile e ele voltou entusiasmado com o que viu...

- A senhora mandou até lá um jovem inexperiente que nem sequer é contratado da empresa. Um estagiário deslumbrado que ainda confunde moda com frescura. Não pude deixar de rir ao ler o que ele escreveu. Além do mais, ele ficou tão empolgado e surpreso por ter sido o escolhido, que esqueceu de levar um fotógrafo...

- Não foi bem assim - interrompeu Estela. O que houve foi um desencontro. Eu era quem ia...

- Pelo que eu soube o convite foi pessoal e intransferível. Veio em seu nome - continuou falando o Sr. Fernandes, como se não estivesse ouvindo o que Estela tentava explicar. Por que a desatenção? O que fez a senhora de tão importante durante o sábado que não pôde comparecer ao desfile?

- É o que eu estou tentando explicar. Como não poderia deixar de ser, a cobertura do desfile já havia sido providenciada com a devida antecedência, e não só eu mesma tinha decidido fazê-la, como já havia escalado o fotógrafo Justino para me acompanhar. Entretanto, no sábado, dois contratempos mudaram o rumo dos acontecimentos. Justino, que ao sair de casa pela manhã deixara sua filha doente, foi liberado por mim na hora do almoço para que pudesse tomar as providências que se faziam necessárias. Combinamos que eu passaria por sua casa para apanhá-lo, na hora que fosse para o clube. Pouco tempo depois do Justino ter deixado a Redação fui surpreendida com a chegada do material enviado por nossos correspondentes na Europa, e que já não estávamos contando para a nossa edição deste mês. Acontece que, ao constatar a excelente qualidade do material, resolvi trabalhar nele, procurando selecionar o que havia de melhor entre fotos e reportagens para a imediata apreciação dos senhores. Foi aí que, envolvida pelo entusiasmo do que estava fazendo, esqueci-me do tempo e só fui dar conta do desfile momentos antes da hora marcada para seu início. Naquele instante achei que não deveria interromper o que estava fazendo, por julgar ser um trabalho de mais urgência e relevância e, assim, convoquei o Carlinhos, único repórter disponível na ocasião, para me substituir. Na pressa, esqueci-me de avisá-lo quanto ao Justino.

- A senhora acaba de me apresentar uma sequência imperdoável de erros e equívocos. Ao julgar a importância de suas obrigações não poderia ter sido mais infeliz. Já passei uma vista pelo que selecionou e a matéria, apesar de boa, só deverá ser aproveitada na edição do próximo mês. Em contraposição, Jean Louis vem ocupando o noticiário há quase dois meses e por isso entendo que o desfile fazia por merecer uma maior atenção de sua parte, já que era uma matéria fresca e em ebulição. O material que nos chegou da Europa é bom, mas é requentado. Houve, no mínimo, um erro de avaliação. E agora, como ficamos? Suas desculpas não bastam para resolver o problema...

- Em momento algum pensei em me desculpar - interrompeu, Estela. Vim aqui para relatar fatos e assumir total responsabilidade pelo que ocorreu. Chego até a admitir meu erro, mas se isto se deu foi porque, em parte, eu nunca dei crédito a esse tal de Jean Louis Marchand. Aliás, este assunto sempre me cheirou mal. Continuo a defender a tese de que o que houve foi uma trama muito bem urdida e que a imprensa, de um modo geral, por seu imediatismo, embarcou nela de forma ingênua. Um jornal pode se precipitar, mas uma revista, não. Temos o tempo a nos obrigar a lidar com a verdade dos fatos...

- Me parece que a senhora desconhece a teoria da relatividade. Pois bem, depois que Einstein a criou, tudo passou a ser muito relativo, até a verdade. Jean Louis Marchand existe. A coleção Primavera-Verão, assinada por ele, e mostrada com sucesso diante do público e da crítica, é uma prova evidente de que Jean é hoje uma realidade. Não importa se ele é francês, se veio de Paris ou de Nilópolis, ou se usa um nome falso. Tudo isso poderemos investigar posteriormente, pois o que nos cabe agora é reparar um grande erro. Como se diz na gíria jornalística: "comemos barriga". A senhora, D. Estela, deixou-se levar por uma antipatia gratuita e com isso acabou por negligenciar...

- A meu ver deveríamos usar detetives em lugar de jornalistas especializados em alta costura para tratar deste assunto, que é mais policial do que de Moda. Mas não se preocupe, Sr. Fernandes, creio ter um bom crédito e assim espero ainda estar fazendo por merecer a confiança da Empresa; portanto, estou pronta para consertar meu erro.

- Conto com isso, D. Estela, e desejo que o conserto não venha em forma de remendo. Espero que seja feito um cerzido capaz de tornar esta falha imperceptível.

Estela sabia que tinha que agir depressa e, em menos de uma hora, estava na butique Blanche-Noir. O movimento na loja era intenso e ela teve que aguardar algum tempo até que pudesse ser atendida por D. Dulce em seu pequeno escritório.

- Em primeiro lugar quero parabenizá-la pelo sucesso - falou Estela, procurando ser gentil. Vim também para agradecer o amável convite em meu nome, e me desculpar por não ter podido comparecer. Um compromisso de última hora me prendeu à Redação da revista, e por este motivo fui obrigada a mandar alguém para me representar...

- Compreendo, falou D. Dulce, afinal ninguém está livre de um imprevisto. O importante é que um representante de sua revista esteve lá e pôde testemunhar a beleza de nosso espetáculo...

- Sim, é claro, mas acontece que somos muito exigentes quando temos que cobrir um acontecimento tão importante e posso adiantar que não ficamos nada satisfeitos com a matéria que nos foi apresentada. O repórter que fez a cobertura do desfile não era a pessoa mais indicada para o serviço, e sim a única que dispúnhamos, no momento, para me substituir. Ele é um jovem de futuro, mas ainda um tanto inexperiente e, entre a surpresa de ter sido convocado e a pressa em atender tal convocação, afobou-se e saiu sem se fazer acompanhar de um fotógrafo. Agora estamos com um grande problema, e esperamos que a senhora nos ajude a resolver...

- Estão precisando de algumas fotos do desfile, não é isso?

- Exatamente, e com a máxima urgência. Como já deve saber, a nossa revista é mensal e costuma estar nas bancas até o dia 10 de cada mês. Estamos na dependência destas fotos para fecharmos nossa edição. Ficamos assim num grande dilema: ou dedicamos 6 páginas para uma reportagem ilustrada, com chamada na capa, sobre a matéria, ou seremos forçados a ignorar o assunto. É verdade que tenho alguns bons amigos na imprensa e poderia a eles pedir socorro, mas isto eu jamais faria, pois se o fizesse estaria passando um atestado de incompetência, não só a mim própria, como à revista para qual trabalho. Portanto, D. Dulce, não vejo outra pessoa senão a senhora, para nos dizer qual solução devemos dar ao problema...

- Bem, todo o produto de consumo vive de sua divulgação e nada seria tão promocional, para nossa butique, como 6 páginas de reportagem ilustrada em tão conceituada revista mas, embora interessada em que isso venha a acontecer, nada mais posso prometer que meu total empenho...

- E a quem, além da senhora, eu poderia recorrer? Bill Morrison, seria a pessoa certa?

- Bem, foi ele o único responsável por toda a organização do desfile, inclusive por todo o contato direto com os órgãos de divulgação...

- E como eu poderia chegar até ele? - interrompeu Estela, procurando ser objetiva.

- Hoje isto seria impossível. Ele embarcou pela manhã para São Paulo e não sabemos quando vai voltar.

- Não sabe de alguém que tenha tirado fotos do desfile e possa estar interessado em vendê-las... Um fotógrafo amador, por exemplo?

- A não ser os profissionais da imprensa que foram credenciados e os fotógrafos da equipe de produção do desfile, ninguém mais teve permissão para entrar portando câmeras fotográficas.

- Então o que acha que eu devo fazer?

- Diga como podemos localizá-la a qualquer hora. Se Bill não entrar em contato comigo, de São Paulo, ele o fará assim que chegar aqui, e estou certa de que seu tempo de permanência lá será o menor possível.

Estela entregou a D. Dulce um cartão de visitas com números de telefones profissionais e particulares.

- Peça a Bill para entrar em contato comigo. Só nos interessamos por fotos exclusivas que ainda não foram publicadas na imprensa, acompanhadas dos respectivos negativos. Para isso estamos prontos a pagar o que for preciso e olhando para o relógio em seu pulso, Estela acrescentou: - Tenho menos de 24 horas para dar uma solução a este problema. Se até amanhã às 10 horas estas fotos não estiverem sobre a minha mesa, serei forçada a desistir da reportagem.

- Não se preocupe. Se eu conseguir falar com Bill a tempo, estou certa de que ele encontrará um meio de nos atender.

Procurando falar da forma mais casual possível, Estela perguntou:

- Como posso obter o endereço ou o número do telefone de Jean Louis Marchand em Paris? Gostaria de, em nome da revista Vitrine, parabenizá-lo.

- Impossível. Apesar de toda a badalação, Jean é uma pessoa extremamente reservada, para não dizer tímida. Como amiga particular dele, não nego que sei como localizá-lo. Porém não estou autorizada a fornecer endereço ou o número de seu telefone. Lamento.

- Compreendo - respondeu Estela, deixando escapar um pouco de ironia.

Estela estendeu sua visita o tempo suficiente para admirar alguns modelos que fizeram parte do desfile, e todos os croquis assinados por Jean Louis. Conseguiu ainda dados suplementares a respeito do estilista, sobre Bill, e da história da Blanche-Noir. Ao voltar para a Redação já estava com toda a reportagem escrita em sua cabeça e agora era só esperar pelas fotos.

Ansiosa para contar a Bill as novidades, D. Dulce tentou comunicar-se com ele. Como não conseguiu localizá-lo, espalhou recados por todos os cantos possíveis e imagináveis. Ao cair da tarde Bill entrou em contato com ela, por telefone, e ficou surpreso com o que ouviu. Na verdade ele não esperava ter tão cedo uma oportunidade tão boa para vingar-se.

Já eram mais de 5 horas da tarde daquela segunda-feira, quando o telefone tocou e uma voz feminina atendeu:

- Alô! Borges e Castro, Detetives Associados às suas ordens.

- Gostaria de falar com o Sr. Castro...

- Quem deseja falar com ele?

- Estela Ravache.

- Um momentinho, por favor. Vou ver se ele pode atender.

Alguns segundos depois a voz nasal de Castro feria os ouvidos de Estela.

- Alô, querida! A que devo a honra?

- Preciso de um favor seu com a máxima urgência...

- Você manda...

- Já ouviu falar de um costureiro chamado Jean Louis Marchand?

- Li pouca coisa a respeito...

- Pois bem, vou mandar-lhe tudo o que publicaram sobre ele, e desejo que você investigue toda a história. Para mim esse cara nunca existiu, mas preciso ter certeza... Provas.

- Pra você eu só não farei o que for impossível. Deixe comigo, boneca, que eu vou tratar do caso, pessoalmente, com todo o empenho.

Às 9h50min da manhã do dia seguinte Estela já estava sem esperanças. Todas as tentativas que fizera para entrar em contato com Bill foram frustradas. No momento em que passava uma escova nos cabelos para ir até a sala do Sr. Fernandes foi surpreendida com a chegada de uma encomenda. Um grosso envelope pardo lhe foi entregue por um rapaz que trabalhava como boy para a butique Blanche-Noir. Dentro do envelope haviam 12 fotos do desfile e seus respectivos negativos. Acompanhava a encomenda um cartão de visitas de Bill, com a seguinte inscrição: "Se estiver disposta a pagar o preço que exijo pelas fotos, use-as como desejar. Quero que jante comigo esta noite e nem um centavo a menos”. Ass. Bill.



CAPÍTULO 30

Paris, Inverno de 1944


Giacomo estava de volta do interior. Chegava ele à Capital Francesa na véspera do Natal de 1944. Durante o tempo em que esteve fora, muitas coisas aconteceram não só a ele, mas à Paris, à França, ao mundo todo. O mundo envelhecera depressa e ele também. Estava bem mais magro, com o rosto fino e os olhos fundos. Tinha a barba por fazer e as forças por refazer. Há dias atrás percebeu, ao olhar-se diante do espelho, que em suas têmporas alguns fios de cabelo tinham se banhado de prata. Giacomo havia lutado por toda a parte - nas aldeias, no campo, nas montanhas. Passara frio, fome e sede. Sujara as mãos de sangue, tirando vidas para poder preservar a sua. Ele e a morte ficaram íntimos, tantas foram as vezes em que estivera diante dela. A primeira vez aconteceu durante um cerrado tiroteio. Uma bala inimiga o atingiu, alojando-se em seu pulmão direito. Mal refeito da operação e ainda com o organismo enfraquecido, foi vítima de pneumonia e esteve entre a vida e a morte. Fora de perigo, mas ainda convalescente, foi o único do grupo por ele comandado a cair prisioneiro durante uma batalha. Giacomo resistiu heroicamente às torturas e por milagre escapou de ser fuzilado. Germaine, liderando um grupo de camponesas, foi o veículo que fez operar tal milagre. O Capitão Von Erich, vaidoso e mulherengo, aniversariava e Germaine fora avisada do fato. O Capitão proclamara, para quem quisesse ouvir, que a execução de Giacomo seria adiada por um dia. - "Eu sou um incorrigível sentimental - dizia - e quando aniversario costumo ser benevolente e generoso".

Os alemães ocupavam provisoriamente uma fazendola da região de Provins e eram em número de 30, aproximadamente. Germaine passara o dia reunindo camponesas e à noite apareceu por lá acompanhada de uma dúzia delas e muitas garrafas de vinho. A festa improvisada degenerou em bacanal e antes da meia-noite a maioria dos soldados ou estavam embriagados ou envolvidos por aquele ambiente pecaminoso e, em ambos os casos, pouco poderiam fazer para repelir um ataque de surpresa.

Os maquis, fortemente armados, mas em número bastante inferior, chegaram rastejando por entre as folhagens e envoltos pelo manto negro da noite. As sentinelas foram dominadas antes que pudessem dar um tiro sequer. Em qualquer luta o fator surpresa é uma das armas mais eficientes. Depois de uma pequena troca de tiros, 5 baixas foram registradas: 3 soldados alemães, um jovem francês e uma camponesa. As armas nazistas foram apreendidas, as viaturas destruídas, as fardas queimadas e os soldados, todos nus, foram amarrados uns pelos outros, exceto o Capitão Von Erich.  Giacomo aproveitou o momento para fazer um pequeno discurso antes de abandonar o local:

- Vamos conservá-los vivos. Não é nosso costume executar prisioneiros, pois sabemos que isto seria um assassínio e não sentimos prazer em matar. E você, Capitão, por ser aniversariante, permanecerá fardado e terá apenas as mãos amarradas. Afinal, eu sou também um incorrigível sentimental. Se você sobreviver a esta guerra, o que espero que aconteça, terá como castigo, a atormentar-lhe até o fim de seus dias, a lembrança deste seu aniversário.

Agora estava Giacomo de volta a Paris depois de tão prolongada ausência. Amava aquela cidade como se fosse sua e achava que parte dela realmente lhe pertencia. Giacomo era filho de Gênova, mas tinha Paris como sua mãe adotiva. Era véspera de Natal e a Cidade vivia momentos de euforia. Os alemães tinham sido expulsos de lá em agosto. Antes, em junho, as tropas aliadas haviam invadido a Normandia no que fora depois considerada como a maior e mais importante batalha da Segunda Guerra Mundial.

Paris viu-se mais uma vez obrigada a mudar seus hábitos e costumes. Teve que substituir o chucrute pela goma de mascar, o chá e o uísque. E ao livrar-se da arrogância nazista, passou a conviver com a fleuma britânica misturada à descontração americana. A língua inglesa era aprendida e a germânica logo esquecida. Paris era uma cidade livre e ao mesmo tempo ocupada.

Anoiteceu e o frio nas ruas era intenso. Giacomo buscava um meio de transporte que o levasse a Saint-Germain-des-Prés. Ali estava ele, caminhando entre a multidão sem ser notado. Um herói anônimo, sem condecorações, igual a tantos outros que, como ele, tinham arriscado a vida em favor de um ideal de liberdade e justiça. Agora, no restaurante da família Fontaine, seus amigos o aguardavam para a ceia de Natal. Três ausências seriam muito sentidas em torno da mesa: a do Dr. Christian Louch, de seu filho mais velho Eugene e de Monsieur Raymond Fontaine.

Há um pouco mais de um ano atrás, exatamente na última semana de outono de 1943, Giacomo recebeu em seu quarto a visita de Monsieur Mauriac.

- O plano aí está - falou Mauriac. Não podemos perder mais tempo. Hoje mesmo você dará fuga ao casal Fontaine e à sua filha Noelle e, daqui a três dias, libertará Germaine. Vá direto agora ao hospital, pois lá você encontrará uma ambulância a sua disposição.

O plano, bem elaborado, estava dividido em duas etapas. Em primeiro lugar se fazia necessário esconder a família Fontaine, procurando dar um destino diferente a cada membro. Quando todos estivessem bem protegidos, seria então acionada a segunda etapa: a fuga de Germaine.

O plano foi executado à risca. Madame Fontaine foi transportada de ambulância para o hospital, simulando graves problemas cardíacos. Um falso atestado de óbito já tinha sido preparado, pois ela deveria falecer pela madrugada e ser sepultada na tarde do dia seguinte, como realmente ocorreu, só que alguém ou alguma coisa foi dentro do caixão em seu lugar. Noelle, filha caçula, passaria uns tempos com uma família amiga residente num bairro granfino de Paris. Madame Fontaine, que adquirira nova identidade, ficaria morando na casa de Madelaine, irmã de Dr. Louch, e seu marido, Monsieur Raymond Fontaine, de posse de um visto concedido pelas autoridades alemães, iria passar uns dias no campo para se restabelecer do choque, a conselho médico. Assim estava traçado e assim aconteceu. Entre segunda e quarta-feira a primeira parte do plano foi executada.

Na quinta-feira, pela manhã, o Coronel Kurt Staden cantarolava embaixo do chuveiro. Estava feliz. Germaine proporcionara-lhe uma inesquecível noite de amor. Exatamente às 7h30min, como estava previsto, ele deixava o hotel na Av. Marceau. Às 10 horas a arrumadeira entrava na suíte, reservada em nome do Coronel, empurrando um grande cesto de vime sobre quatro pequenas rodas de metal. Estava ali para trocar as toalhas e roupas de cama como sempre fazia naquele dia e hora da semana. Momentos depois, ao deixar a suíte, a arrumadeira sorriu para o soldado que estava de sentinela no corredor ao lado da porta e este, tão embevecido ficou com o sorriso da moça, que não percebeu o gemido angustiado das rodas de metal que giravam estranguladas com o peso acima do que habitualmente estavam acostumadas a suportar. O elevador, em frente à suíte, ficava no centro do prédio, num vão cercado por um gradil. O soldado ajudou gentilmente a arrumadeira a colocar o cesto dentro do elevador. Ela por sua vez, sem se perturbar, exibiu-lhe um novo sorriso agora em forma de agradecimento. Dentro do cesto, envolvida por lençóis e toalhas, Germaine foi obrigada a prender por segundos a respiração. Tudo ia correndo bem quando, de repente, o elevador enguiçou entre o primeiro andar e o térreo. Foram momentos de grande tensão, angústia e suspense. A presença do mecânico ali foi logo providenciada pela direção do hotel mas, como este custou a aparecer, uma nova medida teve que ser adotada - a retirada da arrumadeira e do cesto de roupas do interior do elevador pela passagem que ficou aberta entre um andar e outro. O problema criado chamou a atenção das pessoas que estavam no saguão, entre estas, dois oficiais da Gestapo. Dois empregados do hotel estavam tentando retirar o cesto quando um deles sugeriu à arrumadeira que parte da roupa suja fosse retirada, a fim de aliviar o peso. Pela primeira vez a jovem começou a sentir medo. O suor escorria-lhe pelas faces ao iniciar a tarefa que lhe foi sugerida. Estava a ponto de entrar em pânico quando ocorreu um milagre. Ouviu-se um estalido e em seguida o elevador estremeceu. A arrumadeira lembrou-se de puxar a porta sanfonada, fechando-a de novo e pediu que fizessem o mesmo com a porta que ficava no térreo. Ao acionar novamente o botão de emergência viu, com alívio, o elevador se mover. E como se nada lhe tivesse acontecido ele desceu lentamente, garboso e indiferente aos olhares curiosos.

O velho furgão da Tinturaria que servia ao hotel estava estacionado em frente à porta de serviço, com Giacomo ao volante. Ele teria em torno de 9 horas para retirar Germaine de Paris, pois o Coronel Kurt Staden só deveria regressar ao hotel por volta das 7 horas da noite, quando então jantaria com sua amante. Para ela uma documentação falsa já havia sido preparada. Germaine teria de passar por uma camponesa que tinha vindo a Paris a passeio e que agora precisava regressar à sua terra de origem.

O Coronel Kurt Staden estava feliz e nem de longe poderia desconfiar que Germaine fora pródiga em carinhos, na noite anterior, como uma forma de gratidão por tudo de bom que ele fizera para ela e sua família. E assim, com o espírito renovado, sentindo-se como se fosse um jovem amante apaixonado, o Coronel conseguiu desvencilhar-se de certos deveres militares e resolveu surpreender sua bela mulher com a presença, no hotel, na hora do almoço. Entrou na suíte cantarolando uma canção francesa e trazendo nas mãos uma braçada de flores. Encontrou o bilhete sobre a penteadeira e leu emocionado: "Kurt, querido - por mais paradoxal que lhe possa parecer, desejo que a paz se faça breve sem que haja vencido ou vencedor. Por tudo de bom que você tem e pelo ser humano que você é, não merece passar pela humilhação da derrota. Se não me foi possível amá-lo, por estarmos em campos opostos, e pelas circunstâncias que nos fizeram ficar juntos, aprendi com o correr do tempo a admirá-lo e a respeitar suas convicções e o direito de tê-las. Espero que sobreviva a esta catástrofe e que encontre a felicidade que merece. Um abraço afetuoso de Germaine". O Coronel leu várias vezes o bilhete imaginando que uma mensagem de amor verdadeiro estivesse ali, em forma codificada. Depois o destruiu. Em seguida olhou para o telefone. Chegou a tocá-lo com a ponta dos dedos. Ele sabia que bastaria um só telefonema seu e todas as saídas de Paris seriam bloqueadas. Todos os veículos seriam minuciosamente vistoriados. Ele sabia que se a Gestapo fosse mobilizada a tempo, Germaine seria recuperada. Lembrou da morte da Madame Fontaine e da viagem de seu marido Raymond e começou a juntar as peças do quebra-cabeça. Claro, tudo não passara de um blefe, uma forma de protegê-los para que Germaine pudesse ter um caminho livre para a fuga. Sim, ele fora enganado e, pela primeira vez na vida sentiu prazer com isso. Tirou o fone do gancho e ao invés de ligar para o Quartel-General, ligou para a recepção e pediu que lhe mandassem três garrafas de champanhe. Tomou várias taças da borbulhante bebida enquanto ouvia a quarta sinfonia de Bethoven, sua peça musical favorita. Embriagou-se. Ria e chorava ao mesmo tempo, numa alegria triste. Seus risos e soluços estavam sendo agora abafados pela música de Wagner. O relógio de pulso marcava 4 horas da tarde. No Quartel-General, alguns oficiais o aguardavam para uma importante reunião. O Coronel Kurt sabia que já havia tempo suficiente para que Germaine fosse colocada fora do alcance das autoridades nazistas. Alguma coisa lhe dizia que naquele momento ela deveria estar distante de Paris e bem protegida. O soldado que estava de sentinela no corredor, ao lado da porta da suíte, que já havia substituído o outro que ficara de serviço na parte da manhã, foi sacudido pelo som de um disparo de arma de fogo. Imediatamente entrou nos aposentos, com o fuzil engatilhado, e ficou estupefato com o quadro que viu. O Coronel, impecavelmente fardado, estava morto estendido na cama. O sangue ainda escorria de sua fronte, tingindo de vermelho a fronha branca de linho que vestia o travesseiro. A mão direita ainda segurava uma pistola Luger PST, semi-automática, de 9mm, que ele próprio disparara contra sua fronte. Nos lábios repousava um breve sorriso. Afinal ele fora de encontro à sua paz.

O alerta foi dado tardiamente. Mais de uma centena de pessoas foi detida e houve de tudo - prisões, interrogatórios, torturas, traições e fuzilamentos. Houve exumação do cadáver de Madame Fontaine por ordem da Gestapo, que assim logo pôde comprovar a farsa de que fora vítima. Os alemães conseguiram apurar que houve uma troca de identificação: Madame Fontaine assumira a identidade de uma pobre senhora encontrada morta sem que parentes ou responsáveis reclamassem seu corpo e que acabou sendo sepultada em lugar da outra. A partir deste momento todos que, direta ou indiretamente participaram do caso, foram considerados possíveis culpados, recaindo no motorista da ambulância a suspeita maior por não ter sido encontrado em parte alguma. Para a Direção do hospital, Giacomo, ou melhor, Marcel Martinelli, havia entrado de férias. Por tudo isso, foi em Marcel que a Gestapo resolveu concentrar suas investigações, descobrindo fatos curiosos de sua vida pregressa. Francês mas sem parentes na França, filho de pais italianos já falecidos, etc., etc. Podia fazer sentido, podia ser verdadeira, mas aos desconfiados olhos dos homens da Gestapo o excesso de conveniências os levava a crer que um plano bem elaborado havia sido executado. Enquanto na Itália as investigações tinham início, na França, precisamente em Paris, um dado novo foi apurado através de denúncia de um traidor - dizia das ligações de Marcel Martinelli com o Dr. Christian Louch. O doutor, homem de muito prestígio, havia colocado Marcel a serviço da Cruz Vermelha Internacional. Imediatamente uma ordem de prisão foi enviada à Nancy, mas o doutor, avisado a tempo, já havia desaparecido. Os nazistas vasculharam sua casa em Paris, mas nada encontraram. Tanto sua irmã Madelaine quanto Madame Fontaine já tinham abandonado o local e, escondidas, estavam agora sob a proteção de Monsieur Mauriac.

As coincidências e ligações das pessoas investigadas eram tantas, que a Gestapo não tinha mais dúvidas de que estava diante de uma grande rede, organizada e eficiente, de revolucionários atuantes. Desta forma, ao apertar o cerco em torno das famílias Louch e Fontaine três preciosas vidas acabaram sendo sacrificadas. Eugene Louch, o filho mais velho do doutor, foi o único a cair prisioneiro e a primeira vítima. Morreu por não suportar as torturas, mas não disse uma só palavra.

Monsieur Raymond Fontaine foi a segunda vítima. Os nazistas começaram a caçá-lo a partir do momento em que descobriram que seu restaurante havia sido abandonado, e que ele deixara Paris para se recuperar da pseudo  morte de sua mulher. Ao deixar a Capital, Monsieur Fontaine foi hospedar-se numa pequena estalagem nas cercanias de Coulommiers e por lá permaneceu mais de 48 horas. Na manhã do terceiro dia, ao mesmo tempo em que Germaine em Paris deveria estar sendo libertada, ele saiu para dar um passeio pelo campo e não mais foi visto naquelas redondezas. O que ele fez foi ir ao encontro do filho Pierre no pequeno sítio em Creteil, seguindo assim o plano que havia sido traçado. Fazia um pouco mais de um mês que estava lá, quando os alemães chegaram. Não houve resistência, pois Pierre e seus comandados haviam saído momentos antes para mais uma missão. Durante três dias e três noites os nazistas permaneceram por lá, camuflados, na esperança de por as mãos em Pierre e em seus seguidores, mas acabaram por se impacientar. A carnificina aconteceu na manhã do quarto dia quando mulheres, velhos e crianças arderam em chamas dentro do pequeno celeiro, junto com o feno estocado. Quando os soldados partiram o sítio todo era uma só fogueira.

A terceira vítima foi o Dr. Christian Louch. Foi encontrado perto das terras de sua irmã, em Fixim. Depois que soube da morte de seu filho Eugene o doutor entrou em forte depressão e jamais voltou a ser o que era antes. Vivia alternando momentos de lucidez com outros de desequilíbrio total mas, tanto num estado quanto no outro, ele só tinha um desejo: matar alemão. E foi assim que, ao se ver cercado pelos soldados nazistas, lutou até morrer. Recebeu uma rajada de metralhadora e tombou sobre um grande tacho usado para a preparação de vinho. Teve assim o Dr. Louch um de seus desejos atendido - morreu cheirando à uva, e levou consigo 5 soldados alemães.

Havia alegria em torno da mesa. Afinal aquele era o primeiro Natal, depois de quatro anos, em que podiam estar reunidos sem que estivessem sendo espionados pelos vigilantes olhos do inimigo. Pierre ocupava a cabeceira da mesa e junto dele estava sua mãe. Logo a seguir estavam as irmãs Germaine e Noelle. Do outro lado da mesa estavam Madelaine e seu sobrinho, o filho mais novo do Dr. Louch e, na outra extremidade, Giacomo ou melhor, Marcel Martinelli. À meia-noite em ponto todos rezaram agradecendo a Deus por estarem vivos, com saúde e gozando de liberdade. Pierre rezou uma prece pela alma dos três ausentes queridos.

Foi o momento de maior emoção.


 
CAPÍTULO 31


O jantar


Bill passou a terça-feira inteira na loja de artigos fotográficos de seu amigo Fernando. A cada vez que o telefone chamava ele estremecia.

- Agora que a poeira da euforia assentou nos fundos dos seus sapatos, quero que me responda: quanto o desfile lhe rendeu? - perguntou Fernando, com ironia.

- Você sabe que eu não ganhei um centavo por meu trabalho.

- E quanto pagou por ele?

- Nada. D. Dulce não aceitou meu cheque...

- Por que? Não tinha fundos?

- Não me provoque... Você sabe muito bem que os gastos com o desfile foram um pouco além do orçamento previsto e, pelo que ficou combinado...

- Você se responsabilizaria pelo que ultrapassasse - completou Fernando. E sendo você um homem íntegro não poderia faltar com sua palavra, não é mesmo?

- Não entendo você, ô cara... Vive dizendo que é o meu melhor amigo, e escolhe os piores momentos para me sacanear... Por que toda essa provocação agora?

- Justamente por me considerar seu melhor amigo... Não gosto de vê-lo cometer tolices. Estamos no começo do mês e você ainda há pouco se queixou de já estar sem dinheiro, e isto depois de ter feito um trabalho estafante e maravilhoso, pelo qual não cobrou nada. E agora, para completar, acaba de perder uma ótima oportunidade de ganhar um bom dinheiro...

- Você está se referindo às fotos?

- Claro. Eu as revelei e vi que ficaram ótimas. Você escolheu as 12 melhores e ainda enviou-as acompanhadas dos negativos. Você sabia do quanto estas fotos eram importantes para a revista "Vitrine" e, portanto, poderia ter cobrado um bom preço por elas. Eu cheguei a abrir mão da minha parte para o favorecer, e o que fez você? Cedeu os direitos sobre as fotos em troca de um jantar que não vai acontecer, perdendo assim uma grande oportunidade de se vingar de Estela e ainda faturar em cima dela... Por que você fez isso?  Por vaidade, cavalheirismo ou burrice?

- Vou responder por partes. Em primeiro lugar quero lhe dizer que o desfile vai me render bem mais do que eu esperava. Recebi várias propostas de trabalho e estou escolhendo a melhor. Sobre as fotos, posso lhe garantir que existem várias formas de vingança, e eu optei pela que melhor se enquadra à minha personalidade. As fotos foram vendidas, não se iluda. Eu apenas não cheguei a fixar o preço exato por elas, mas estou certo de que receberei de Estela muito mais do que realmente as fotos valem.

- Não estou tão certo disso não, afinal já estamos quase na hora de fechar e ela ainda não lhe telefonou...

- A impaciência é um de seus maiores defeitos, Fernando. Você precisa aprender a esperar. Eu fiz Estela esperar pelas fotos até o último instante, e estou certo de que ela pretende usar para comigo as mesmas regras do jogo. Não creio que ela esteja disposta a aproveitar as fotografias sem me dar uma satisfação...

- Você não conhece as mulheres...

- E você as conhece? Eu sempre adotei um princípio de que todas merecem um crédito de confiança, e posso lhe assegurar que lucrei com isso na maioria das vezes. Este é um risco, eu sei, que temos que correr. Estela tem o número do telefone daqui e o de minha casa - estavam no cartão que eu lhe enviei. Talvez ela prefira falar para a minha residência...

Depois de uma pequena pausa, Bill falou com decisão:

- Que tal uma aposta? Estou tão certo de que Estela aceitará jantar comigo, como de que acabarei por conquistá-la.

- Aceito a aposta e proponho os seguintes valores: 500 cruzeiros pelo jantar e 1000 pelo complemento, concorda?

- Concordo. Qual o prazo que me dá?

- O que você me diz de 30 dias?

- É mais do que suficiente...

Os dois já estavam na calçada e antes que as portas corrediças fossem baixadas por Fernando, o telefone tocou no interior da loja. Bill correu para atender. Voltou depois de alguns minutos com uma expressão enigmática no rosto. Tocou com a mão no ombro do amigo e falou:

- Que tal dar-me 500 cruzeiros por conta?

Não só as palavras como a tonalidade da voz de Estela chegaram frias aos ouvidos de Bill. Ela procurou demonstrar-lhe que estavam tratando de negócios. A princípio tentou falar em cifras, insinuando que preferiria comprar as fotos por uma boa quantia a aceitar o convite para jantar. E só concordou com a proposta de Bill quando não viu outra saída. Estela explicou que estava tendo um trabalho muito estafante e que só poderia aceitar um compromisso noturno quando a revista já estivesse nas bancas. Bill, delicadamente, forçou uma data, e Estela acabou por concordar em marcar para o próximo sábado. Para ouvir a confirmação e acertar os detalhes, Bill ligaria para ela no dia do jantar.

Aquela semana trouxe a Bill grandes alegrias e uma intensa ansiedade. O seu tempo foi dividido entre a loja de Fernando e a butique Blanche-Noir pois, afinal, era nesses dois lugares que ele esperava receber propostas para bons negócios.

Não se podia dizer que Bill estivesse triste ou alegre, mas era fácil notar que ele estava diferente e quem mais percebeu isso foi Mariinha.

- Você parece um picolé - falou ela, depois de beijá-lo.

- De que sabor? - perguntou Bill, procurando disfarçar.

- Metade limão, metade chuchu...

- Por que limão e chuchu?

- Frio, azedo e sem paladar. Posso saber porque está assim?

- Como posso lhe responder se é agora que estou sabendo por você como estou?

- Não brinque... Estou falando sério. O que é que está acontecendo com você?

- Talvez eu ainda não tenha me recuperado de todo do grande desgaste que tive. Talvez esteja ansioso demais por um bom negócio, e ainda não tenha conseguido me decidir por qual deles. O certo é que quando estou cheio de dúvidas não consigo ser o mesmo. Mas não se preocupe, isto logo vai passar. Afinal, nada tenho contra você...

- Nem a favor, eu acho.

As dúvidas de Mariinha se dissiparam quando, ao se despedir de Bill, ele a beijou com desejo.

Bill teve que concentrar seu pensamento em Estela para conseguir o efeito desejado.

A sexta-feira chegou com novidades. A revista "Vitrine" apareceu nas bancas e Bill, logo pela manhã, ficou muito satisfeito com o que viu e leu. A reportagem ocupava 6 páginas. Seis fotos, uma grande e 5 menores, ilustravam o excelente texto. Uma pequena caixa com orquídeas foi enviada por Bill a Estela. "Parabéns pela qualidade da matéria e pelo bom aproveitamento das fotos. Ass. Bill". Estes dizeres estavam no cartão que seguiu com as flores.

À tardinha, um fato novo mereceu registro. No outro lado da cidade, próximo ao Cais do Porto, num bar mal cheiroso e frequentado por tipos suspeitos, aconteceu um encontro aparentemente inesperado. Mário Jordão, o repórter, que trabalhava num jornal perto dali, estava junto ao balcão bebendo sua habitual dose de uísque quando alguém esbarrou nele e o fez entornar parte da bebida no chão.

- Desculpe-me, distinto... Não foi por mal, é que eu tropecei. Não se preocupe... Eu faço questão de lhe pagar outra dose...

- Não precisa se incomodar, eu...

- É um prazer - interrompeu o estranho e, virando-se para o homem que estava do outro lado do balcão, pediu: Por favor, distinto, sirva-nos duas doses do melhor uísque que tiver aí.

Mário Jordão não sabia mais o que dizer quando o homem que estava a sua frente voltou a surpreendê-lo.

- Eh... Eu acho que o conheço. Eu sou o Cardosinho, amigo de infância de Bill. Lembra de mim?

- Desculpe, mas não consigo me lembrar...

- Não tem importância... Também, com aquela confusão toda...

- Aonde foi que nos conhecemos? - perguntou o repórter, fixando os olhos no estranho.

- Bem, nós não chegamos a ser apresentados um ao outro, mas estivemos juntos algumas vezes lá no clube Caiçaras, durante o desfile...

- Ah... Você está se referindo a Bill Morrison?

- É claro, amigão, e de quem mais poderia ser? Minha memória para nomes é um pouco falha, mas sou bom fisionomista. Eu sei que você é um grande jornalista e que esteve lá no desfile. Bill, ao apontá-lo pra mim, falou-me que você foi de grande utilidade. O maior colaborador de todos. O responsável mesmo por toda aquela história a respeito do tal costureiro francês que o Bill inventou...

- Eh... espere aí. Eu não sei o que é que está querendo dizer...

- Não se preocupe - falou o estranho, baixando a voz. Ele também me pediu segredo. Eu sei que poucas pessoas, como eu e você, sabem da verdade. Mas agora, que tudo já acabou, penso que não tem importância comentarmos o que passou, não é verdade?

- Sinceramente, eu não sei do que você está falando...

- De Bill e de suas estórias. Ele sempre foi assim criativo. Quando garoto, era considerado o mentiroso número um do Encantado. Mas com essa estória sobre um tal de Jean... Jean não sei de que... O costureiro francês de mentira, quero dizer, ele conseguiu superar todas as outras e fazer sucesso. Eu me orgulho de ser amigo de Bill. Ele merece o cartaz que fez, pois sempre foi um cara muito bacana...

- Olhe aqui, senhor...

- Geraldo Cardoso dos Anjos. Cardosinho às suas ordens...

- Pois bem, Sr. Cardosinho, se Bill lhe contou esta estória fantástica a respeito de Jean Louis Marchand, o estilista francês sobre o qual você está tentando se referir, saiba que foi uma tremenda gozação de Bill pra cima de você.  Para mim ele existe. É verdadeiro. Eu o vi desembarcar no Galeão, entrevistei-o e com ele estive algumas vezes mais. Agora, se ele nasceu na França, não posso lhe assegurar, pois não fui indiscreto ao ponto de lhe pedir que mostrasse-me seu passaporte. O que sei é que Jean Louis fala francês com sotaque parisiense, descreve a França como filho da terra e cria maravilhosos modelos de roupas, pois o vi desenhando, também. O que quer mais que eu diga?

- Pois bem, amigão, continuo a afirmar que Bill é o maior mentiroso que eu já conheci, pois se ele não mentiu pra você, mentiu pra mim.

Às sete horas da noite Bill chegou em casa. Tomou uma ducha morna e recostou-se em sua cama. O quarto, mergulhado no mais profundo silêncio e iluminado por uma tênue luz de abajur, criava o ambiente propício para o relaxamento e a descontração de que Bill tanto precisava. E ali, na penumbra, ele começou a analisar todas as propostas que havia recebido desde o momento em que dera por encerrado o desfile.

O primeiro convite partira de D. Dulce que, entusiasmada com o trabalho de Bill e diante do sucesso obtido, propôs ao rapaz que ficasse como relações-públicas da casa, com um razoável ordenado fixo e mais comissões nas vendas. Um diretor de uma conceituada agência de publicidade dera-lhe seu cartão de visita e na oportunidade dissera-lhe que o aguardava para uma entrevista. Uma fábrica de roupas de São Paulo também mostrou-se interessada em tê-lo como organizador dos desfiles de lançamento de suas criações. Cinco butiques do Rio encomendaram a Bill desfiles tão originais quanto aquele que acabara de apresentar, e uma infinidade de oferecimentos menores. Entretanto, a proposta que lhe pareceu ser a mais vantajosa, partira de uma fábrica de tecidos localizada num longínquo subúrbio carioca. Para esta fábrica ele deveria trabalhar apenas 6 meses durante o ano, sob contrato de exclusividade, sendo que noventa dias antes do inverno e noventa dias antes do verão. O objetivo da fábrica era o de lançar, através de desfiles de roupas, as novas padronagens de tecidos criados para as duas principais estações do ano. Dos seis meses, dois seriam de preparativos e quatro de viagens pelas principais cidades do Brasil, com possibilidades de apresentações também no exterior. O salário era compensador e, a Bill, pareceu ser a proposta que lhe possibilitaria um futuro mais que promissor.

De repente, como se a luz de uma estrela tivesse penetrado em seu quarto, Bill pôde ver à frente um novo caminho, iluminado. Entusiasmado, levantou-se e foi à procura da mãe para contar a ela a sua nova ideia. Obtendo aprovação para o que pretendia realizar, Bill fez duas ligações telefônicas e, às 9 horas da noite daquela sexta-feira, uma importante reunião teve início no apartamento de D. Dulce, com a presença de Bill, sua mãe, Fernando e a dona da casa, naturalmente. Em menos de duas horas Bill pôde ver a proposta aprovada e, ao final da reunião, uma nova sociedade formada por quatro pessoas com igual participação: Palco & Passarela Empreendimentos Artísticos Ltda." A firma teria como objetivo a organização de festas, recepções, vernissage, desfiles e etc. E, para completar, ministraria ainda um curso para a formação de manequins profissionais.

O acordo foi selado com champanhe francês.

O sábado amanheceu com um sol radioso e Bill foi à praia.

No final do expediente, na redação da revista "Vitrine", Estela recebeu uma visita.

- O senhor Castro deseja falar-lhe - disse a secretária.

- Mande-o entrar, por favor - respondeu Estela.

- Alô querida, como está? - falou Castro, com intimidade exagerada e voz anasalada.

- Ansiosa por novidades... O que você já conseguiu apurar?

- Bem, antes de tudo quero que saiba que ainda não dei por terminado meu trabalho, mas, como você me pediu urgência, vim para prestar contas do que já fiz.

- Ótimo! Vamos direto ao assunto. Não poderia ter escolhido um dia melhor...

- Depois de me inteirar de tudo o que saiu publicado pela imprensa a respeito de Jean Louis, procurei visitar todos os locais onde pudesse apurar a veracidade do noticiário. E o que foi que eu descobri, hein?

- Não faça suspense por favor, diga logo...

- Pois bem, as pedras do jogo de armar se encaixaram perfeitamente. No Copacabana Palace apurei que Jean Louis esteve lá hospedado durante três dias. Cheguei mesmo a ver a reserva feita em seu nome, e notas de despesas rubricadas por ele. Um empregado me garantiu que o viu chegar embriagado, certa madrugada. Outros disseram-me que ouviram sua voz através do telefone interno. Uma das arrumadeiras que trocou a roupa de cama, por sinal uma jovem muito graciosa, disse-me que Jean, apesar de magro e baixote, era muito simpático. Deu-lhe uma boa gorjeta e repetiu, três vezes: Mercy, mon amour. Uma funcionária da Air France afirmou que foi feita uma reserva em nome de Jean Louis, e que a passagem foi naturalmente tirada em seu verdadeiro nome, e que este ela não poderia revelar por se tratar de informação sigilosa. No Galeão, consegui falar com o carregador que transportou a bagagem de Jean Louis. Disse-me ele que ficou contente de ver, no dia seguinte, sua foto no jornal, ao lado do costureiro, e que por este motivo jamais se esquecerá dos detalhes. Contou-me que colocou as malas do costureiro num carro marrom, particular, modelo Itamaraty do ano, e que recebeu de um jovem rapaz, alto e louro, uma boa gorjeta. Depois de descobrir o endereço, em Friburgo, da dona da butique, fui até lá e consegui apurar, com os vizinhos, que alguém esteve realmente hospedado na casa, com as mesmas características atribuídas ao costureiro. Durante todo o tempo em que esteve lá, apenas por duas vezes foi visto na varanda, tomando sol. Os vizinhos não sabiam de quem se tratava e foram unânimes em afirmar que Jean Louis era uma criatura misteriosa e desconfiada. Manteve-se todo o tempo confinado no interior da casa, como se estivesse evitando qualquer contato com o mundo exterior. Propositadamente, deixei para investigar por último o repórter Mário Jordão, por considerá-lo cúmplice do que penso ser uma farsa. Usando de falsa identidade passei-me por um amigo de infância de Bill. Joguei verde na esperança de colher maduro e acabei esbarrando numa podre. O Mário ratificou tudo o que escreveu e acrescentou detalhes de suas ligações e com Jean Louis quando de sua última estada aqui no Rio. E isto é tudo o que até aqui consegui apurar...

- Então quer dizer que o homem existe realmente?

- Meu aguçado faro me diz que não, e é por este motivo que pretendo continuar com as minhas investigações...

- Mas por que? Se tudo se encaixa tão bem...

- Justamente por isso. Sempre desconfiei das coisas muito certinhas. Está tudo perfeito demais e, se eu algum dia chegar à conclusão de que minhas desconfianças tiveram fundamento, serei forçado a prestar reverência a uma certa pessoa...

E antes que Castro completasse o que pretendia dizer, o telefone tocou e logo em seguida a voz da secretária de Estela se fez ouvir através do interfone:

- D. Estela, o senhor Morrison está na linha três.

Castro sentiu um frio a percorrer-lhe a espinha.

- Aonde deseja que a apanhe? - perguntou Bill, depois dos cumprimentos normais.

- Não precisa se incomodar, basta que me diga aonde quer que o encontre - falou Estela, procurando ser bem formal.

- Já ouviu falar no restaurante "Napoleão Bonaparte"?

- Nunca estive lá, mas sei onde fica. Entre 20 e 21 horas está bem pra você?

- Pode ser... Sendo assim, quem chegar primeiro espera pelo outro, certo?

- Combinado. Até mais tarde - falou Estela e desligou sem esperar pela resposta.

- Perdoe minha curiosidade, mas foi com Bill Morrison que acabou de marcar um encontro? - perguntou Castro.

- Foi, por que?

- Incrível coincidência! Era justamente sobre Bill que ainda há pouco eu estava tentando me referir quando o telefone tocou...

- Conhece-o pessoalmente?

- Não, só por retrato e por algumas informações que recebi.

- O que acha dele?

- Ou ele é apenas um jovem dinâmico, ambicioso e com um bom faro para negócio, ou é simplesmente um pequeno gênio. Se Jean Louis for fruto de sua imaginação, como penso, fico com a segunda hipótese. E antes que eu me vá, escute o que vou lhe dizer: se está pretendendo manter qualquer tipo de relacionamento com Bill Morrison, cuidado! Procure não confiar muito na sua própria experiência ou nos seus inegáveis encantos, pois, se assim fizer, poderá acabar sendo envolvida por uma mente jovem mas diabólica.

- Até certo ponto já fui envolvida... De tudo o que você me disse, hoje, foram estes conselhos o que mais gostei de ouvir. Mas não se preocupe, pois estarei alerta como um escoteiro. Jantarei com Bill, esta noite, mas farei ver a ele que esse nosso encontro não terá outra finalidade a não ser a de proporcionar-nos uma oportunidade para concluirmos um negócio que havia ficado pendente. Estou certa de que após o jantar nada mais teremos a dizer um ao outro.

O táxi parou em frente ao "Napoleão Bonaparte" exatamente às 20h30min. O porteiro abriu a porta do carro para Estela e, assim que ela entrou no restaurante, o maitre veio em sua direção.

- Em que posso servi-la, madame?

- Vim encontrar-me com o Sr. Bill Morrison, que espero tenha reservado uma mesa...

- Queira seguir-me, por favor.

A mesa, reservada por Bill, não poderia ter localização melhor e, assim que Estela sentou, o maitre voltou a falar:

- O Sr. Morrison acabou de telefonar e pediu-nos para avisá-la de que já está a caminho e não deve demorar-se. Não gostaria de tomar um drinque enquanto espera, madame ?

- Seria ótimo. Obrigada.

- Pedirei um garçom para servi-la.

Estela gostou do que viu e passou a imaginar o porquê de Bill ter escolhido aquele restaurante já que, antes dele, ninguém mais tivera a ideia de levá-la até lá.

O luxo não era ostensivo, mas se fazia presente a cada detalhe. As paredes eram revestidas por madeira escura e havia réplicas de quadros de pintores famosos decorando-as. Não tendo o objetivo de ofuscar, nem de esconder, a iluminação da casa era repousante.

Bill chegou 15 minutos depois.

- Desculpe fazê-la esperar - falou Bill, depois de se apresentar.

- Não precisa se desculpar - respondeu Estela, consultando o seu relógio. Estamos ambos dentro do horário.

- Eu sei, mas eu deveria ter chegado primeiro. Um cavalheiro não deve fazer uma dama esperar...

- Estamos em pleno século XX, lembra-se? Certas atitudes hoje em dia são perfeitamente dispensáveis...

- Já ouvi isso algumas vezes, mas quem, como eu, foi educado nos mais rígidos princípios de cavalheirismo à moda antiga, tem uma certa dificuldade em se adaptar...

Estavam esgrimindo entre si e ambos sabiam disso, só que em vez de floretes, usavam palavras. O garçom aproximou-se, atendendo a um aceno de Bill e interrompeu o duelo com sua presença.

- Aceita mais um drinque? - perguntou Bill a Estela.

- Não, obrigada.

- Para mim, um Martine seco, por favor. E assim que o garçom se afastou, Bill dirigiu-se à Estela - Apreciei muito o seu estilo...Gostei da maneira como escreveu a reportagem. Se eu não tivesse notado sua ausência, seria capaz de jurar que você esteve presente ao desfile.

- Esta é uma vantagem de quem trabalha para revistas. Temos mais tempo pra criar e, quando não somos testemunhas oculares de um fato, misturamos pesquisa com imaginação e às vezes conseguimos obter bons resultados. E depois de uma pequena pausa, completou: E antes que me esqueça, obrigada pelas orquídeas...

- Você as mereceu... E em seguida, acrescentou: Importa-se que eu peça agora o jantar?

- À vontade.

Salvatore, o maitre, apresentou as sugestões e Bill chamou-o pelo nome. Foi servido um prato da cozinha italiana. O vinho, apropriado para a ocasião, Bill fez questão de escolher. Era de uma marca francesa famosa e de um ano de boa safra.

Admiração e respeito foram os primeiros sentimentos que se fizeram presentes entre os dois. Durante o jantar pouco falaram, mas houve uma significativa troca de olhares. Vez por outra, um flagrava o outro olhando e, quando olharam-se ao mesmo tempo, sorriram sutilmente.

Enquanto Estela apreciava a elegância de Bill, que vestia a mesma roupa que mandara fazer para ir ao desfile, ele, por sua vez, esforçava-se para esconder a sua admiração. Naquele momento Estela lhe pareceu mais bonita do que da primeira vez que a tinha visto. Usava um vestido verde vaporoso, com um pequeno decote na frente e um outro mais acentuado nas costas, que destacava a pele morena sedosa e levemente bronzeada pelo sol. Esbelta, sem ser magra, Estela media aproximadamente 1,70m. Os cabelos eram castanhos escuros, lisos e caiam-lhe nos ombros. Os olhos amendoados eram de tonalidade castanho-esverdeados, o nariz tinha um traço delicado e a boca era pequena. Havia um brilho róseo, discreto, sobre os lábios carnudos.

Podia-se sentir sensualidade em cada detalhe, mas foi nos lábios que Bill se fixou mais tempo. Sua imaginação disparou e ele não encontrou meios de freá-la. Naquele momento ele se imaginou alvo de todas as atenções e era como se estivesse completamente nu a exibir o seu estado de excitação.

Para a sobremesa Bill havia pedido morangos com creme, e Estela, torta de chocolate. E assim que provou da torta ela comentou:

- Você hoje me fez perder o controle...

- Por que? - perguntou Bill, sem entender direito.

- Acabei por liberar minha gula e estou comendo mais do que deveria. Há tempos que evito doces após as refeições.

- Bem, como eu nunca consigo me privar do que gosto de fazer, não tenho ideia do que possa estar sentindo, mas espero que seja uma sensação agradável. Você costuma fazer dieta?

- É a única maneira de que disponho para me manter em forma. Gostaria de fazer ginástica e praticar esportes, mas não tenho tempo para isso.  Mas não me importo, já me acostumei ao ritmo de vida que levo. Além do mais, minha força de vontade tem me ajudado bastante. É com facilidade que eu me privo de certas coisas que gosto. Basta que eu entenda que elas poderão ser prejudiciais a mim. Entre uma satisfação perigosa, e o complexo de culpa, livro-me dos dois.

- Por exemplo? Além da gastronomia, naturalmente...

- O hábito de fumar... Eu sei que o fumo faz mal à saúde, mas eu não me importo. Eu domino meu hábito, fumo pouco, controlo meus cigarros e sei que posso parar no momento que desejar...

- E por que não faz isso?

- Porque fiz uma vez e engordei... Dos males, o menor.

- Bem, já que descobrimos uma de nossas diferenças, que tal tentarmos agora algo em comum?

O garçom apareceu naquele momento e Bill aproveitou para pedir dois cafezinhos.

- Pelo jeito, você costuma vir aqui muitas vezes, não?

- Nem tanto quanto possa parecer - só quando desejo impressionar alguém...

- E porque pretende me impressionar?

- Porque gosto de manter boas relações com a imprensa...

- Foi bom eu saber disso. Vou lhe apresentar ao Sr. Fernandes, o Diretor da Revista. Ele vai gostar de jantar com você...

Com um largo sorriso, Bill exibiu seus dentes perfeitos. Estela sorriu logo a seguir. Embora espontâneos os sorrisos, parecia que ambos participavam de um comercial de pasta de dentes.

Do lado direito, sobre um tablado, um quarteto executava músicas suaves em surdina. No centro da mesa, entre Bill e Estela, havia um castiçal de prata e a chama da vela parecia acompanhar os compassos da melodia. A atmosfera estava propícia para o romance. Foi Bill quem voltou a falar:

- O jornalismo sempre foi sua vocação?

- Não, foi apenas uma opção. Minha mãe chegou a ser uma boa modista e eu, quando menina, desejava ser manequim. Cheguei a tomar parte de alguns desfiles...

- E por que não continuou?

- Depois que meu pai ficou bem de vida, não admitiu mais que nós trabalhássemos. Muito tempo depois, quando precisei trabalhar, já não tinha idade para ser manequim. Quando surgiu uma oportunidade para trabalhar na revista "Vitrine", resolvi aceitar o desafio. Logo aprendi a profissão de repórter e hoje estou muito contente com o que faço. E você, é fotógrafo profissional?

- Não. Faço da fotografia um hobby...

- É pena, você poderia fazer bela carreira na profissão. Gostei muito das fotos que me mandou...

- E quanto acha que elas valem?

- Agora quase nada, pois já foram publicadas... E na verdade eu nem precisei avaliá-las, pois você, quando as mandou, já foi com o preço estipulado, lembra-se?

- Mas foi um preço simbólico...

- E que eu estou tendo prazer em pagar... Mas agora me diga - o que aconteceria se eu não tivesse concordado com o que me pediu pelas fotos?

- Eu as teria dado do mesmo jeito, e depois procuraria descobrir uma nova maneira para que nos conhecêssemos...

De repente Antonino, um dos músicos, parou ao lado dos dois. Durante alguns momentos ele teceu, nas cordas de seu violino, uma colcha de retalhos de músicas francesas e italianas.

- Bravo Antonino! E obrigado pela deferência - disse Bill, gratificando-o em seguida.

Aproveitando um momento de silêncio entre os dois, Bill chamou o garçom e pediu a conta. Em seguida foi Estela quem falou:

- Perdoe a minha curiosidade, mas posso saber qual é a sua verdadeira vocação?

- Ser rico... Muitos querem enriquecer por ambição, mas eu não. Desde criança que sinto vocação para ser rico.

- E como pretende ficar rico?

- Ganhando muito dinheiro, é claro.

Estela sorriu.

- Explorando a vaidade da mulher - continuou ele.  Fui bem sucedido com o desfile, como sabe, e por este motivo tenho recebido excelentes ofertas de emprego. No entanto, decidi trabalhar por conta própria. Estou iniciando um novo negócio que envolve desfiles e outras coisas mais. Quero ser meu próprio patrão, pois sei que esta é uma regra básica para quem deseja enriquecer.

Bill pagou a conta e ficou esperando o troco. No momento em que o garçom dirigia-se ao Caixa, Estela comentou:

- Durante todo o tempo em que estivemos aqui, aquele senhor que está no Caixa não tirou os olhos de nossa mesa...

- Também notei. Eu, no lugar dele, teria feito o mesmo. Sua beleza já deve estar íntima de olhares indiscretos. Por isso, espero que o perdoe.

Bill deixou uma boa gorjeta para o garçom e gratificou também o maitre Salvatore que trouxe uma rosa vermelha em botão para Estela e os acompanhou até a porta. Já do lado de fora Bill teve que dar mais uma gorjeta. Desta vez foi para o porteiro-manobrista que lhe entregou o carro, depois de abrir a porta para Estela.

Bill deu a partida no Itamaraty marrom de seu pai, depois de convencer Estela a esticar a noite num barzinho, na Barra da Tijuca, onde poderiam dançar e ouvir boa música. O bar, muito simples e rústico, contrastava violentamente com o "Napoleão Bonaparte". A maior parte das mesas ficava ao ar livre e o salão reservado para dança era coberto por palhas de coqueiro. Um grupo de sambistas se apresentava, no momento em que Bill entrou com Estela, e fazia com que todos ali participassem, cantando e dançando junto com eles. O ambiente descontraído contagiou Estela que depois da segunda dose de uísque com água de coco sentiu-se perfeitamente à vontade.

Orquestras famosas, em gravações, substituíram a música ao vivo e, ao apresentarem uma sequência de melodias românticas, Bill tirou Estela para dançar. Ao sentir o contato daquele corpo macio, e o suave perfume que dele emanava, Bill ficou excitado. Ele percebeu que ela sentira a sua ereção e que também estava a ponto de explodir, e antes que isso acontecesse Bill foi se afastando aos poucos, discretamente.

Ao deixarem o bar, Estela fez um pedido inusitado - queria caminhar descalça pelas areias da praia e molhar os pés nas águas do mar. Sua cabeça estava rodando um pouco, mas os pensamentos estavam ordenados. Estela esperava terminar a noite nos braços de Bill. Não era só desejo que ela sentia e sim uma necessidade premente de ser possuída por ele. Seria só aquela vez e depois ela o esqueceria como fizera com tantos outros homens.

Estela estava certa de que Bill conseguira ler seus pensamentos, mas, se ele os leu, tentou ignorá-los.

Bill estacionou o carro na porta do edifício em que Estela estava morando. Trocaram rápidas palavras e só no último instante foi que ele a beijou.  Foi um beijo longo, molhado, carregado de amor e sexo. E antes que Estela o convidasse para ir até o seu apartamento, ele falou:

- Ligo pra você amanhã.

CAPÍTULO 32

Paris, Primavera de 1945


Era um domingo de maio, de sol aberto e temperatura agradável. Como de hábito, o restaurante da família Fontaine não abria naquele dia e Germaine aproveitara para passear com Giacomo pela cidade. A vida em Paris voltara à normalidade, e a paz já reinava em toda a Europa. Descontraídos, curiosos, trajando roupas esportivas e portando uma câmera fotográfica, davam, a todos a impressão de serem um casal de turistas recém-chegados à Cidade. E assim, reforçando o que aparentavam ser, resolveram percorrer um verdadeiro itinerário turístico. De Sant-Germain-des-Prés foram até a Catedral de Notre-Dame para admirar aquela maravilhosa arte gótica. Passaram pelo Musée de Cluny, Sorbonne, Palais e Jardin Du Luxembourg. Seguiram pelo Boul. de Montparnasse em direção à Ecole Militaire, Tour Eiffel, Palais de Chaillot e, seguindo a Av.Kleber foram até o Arc de Triomphe. Giacomo e Germaine terminaram o dia numa pequena embarcação sobre o rio Seine e, enlaçados, pareciam navegar em direção ao crepúsculo. Era um momento de indescritível ternura para aqueles dois seres marcados por profundas cicatrizes da guerra. Giacomo não parecia mais o homem magro e abatido que chegara a Paris há cinco meses atrás. Estava morando e trabalhando com a família Fontaine e em pouco tempo dominara os segredos de sua nova profissão. Aprendera um pouco de arte culinária e de como abastecer de gêneros alimentícios um restaurante, mas era no contato direto com os fregueses que ele demonstrava seu maior valor. Podia-se dizer que já estava sendo um substituto à altura de Monsieur Raymond Fontaine, já que Pierre, o filho mais velho da família, resolvera aceitar um emprego numa pequena indústria eletrônica, e se preparava para voltar aos estudos de engenharia.

O barco deslizava sereno nas tranqüilas águas do rio, enquanto Giacomo e Germaine procuravam falar a respeito dos fatos que marcaram suas vidas a partir do momento em que se conheceram. O amor entre os dois nasceu na primeira troca de olhar, mas ambos procuraram esconder seus sentimentos. O amor sempre foi uma arma de dois gumes. Assim como pode tornar uma pessoa extremamente forte, pode fazê-la irremediavelmente fraca, e em tempo de guerra a fraqueza é um pecado imperdoável. Giacomo fugiu do amor por medo de ser traído por ele. Germaine, por medo, também fugiu, muito embora suas razões tivessem sido outras. Não vendo como separar o sexo do amor, teve receio de falhar e já estava cansada para continuar fingindo. Mas o amor é um sentimento teimoso que, quando contrariado, torna-se mais forte e, fortalecido, derruba barreiras, vence qualquer tipo de resistência e acaba sendo um mal ou um bem inevitável. E assim ele explodiu, chamuscando de desejo e ternura, unindo dois corações carentes. Juntos, há mais de um ano e meio, eles podiam recordar agora os momentos agradáveis, felizes, dramáticos mas extremamente compensadores que tinham tido oportunidade de passar lado a lado. E tudo começou naquela manhã de outubro de 1943, quando Giacomo tirou Germaine das mãos do Coronel Kurt Staden. O percurso do hotel à tinturaria fora feito sem maiores problemas. O grande portão de madeira foi fechado assim que o "furgão" entrou no corredor lateral que servia como garagem do estabelecimento. O veículo foi rapidamente descarregado e momentos depois Germaine saía do interior de um dos cestos de vime. Giacomo ficou extasiado com a imagem. Ao que lhe foi dado a ver, pareceu-lhe uma cena de um história encantada. Alguma fada na certa passara por ali e tocara, com a ponta de seu bastão mágico, fazendo transformar panos sujos numa princesa. Os dois se olharam por instantes e a apresentação foi feita logo em seguida:

- Esta é a mulher que fará com que toda a Gestapo, dentro de poucas horas, se volte contra nós - falou um dos homens e, apontando para Giacomo, completou - e este é Marcel Martinelli. Foi ele que idealizou o plano para sua fuga e quem a trouxe até aqui.

Nos olhos de Germaine havia algo mais que admiração.

- Não sei como agradecer - falou ela. Soube, pela arrumadeira do hotel, que a estas horas minha família já não corre perigo...

- Não tenha tantas ilusões assim - falou Giacomo, procurando dar um tom frio à voz. A segurança que procuramos oferecer é um tanto relativa nos dias de hoje. De pouco valem planejamento e audácia se não contarmos com boa dose de sorte e a proteção divina. Vencemos a primeira etapa, mas ainda teremos muitos perigos pela frente. E quero que fique bem claro que o que estamos fazendo não é um favor específico a você ou à sua família e sim a uma causa, portanto nada tem a agradecer...

Giacomo estava sendo um tanto rude. Era evidente a necessidade que sentia de proteger-se daqueles olhos verde-esmeralda que o olhavam tão fixamente. Nervoso, amedrontado, procurou transformar suas rudes palavras numa couraça capaz de torná-lo invulnerável àquela tentação loura. Germaine, sem entender o que se passava, falou em tom magoado:

- Se o que está fazendo é pela libertação de nosso país, causa mais nobre não pode haver e mais motivos tenho para agradecer. E como eu e minha família fomos envolvidos neste episódio, quero que saiba que somos gratos e que em breve encontrarei meios de retribuir o bem que estamos recebendo...

- Estamos perdendo tempo com conversa inútil. Se não estivermos longe de Paris quando o Coronel descobrir que você o deixou, estaremos fritos. Em menos de duas horas nosso trem sairá da Gare de Lyon. Iremos para Bourgogne. Em Beaune, sua nova família espera por você. Tire estas roupas caras, cubra os cabelos com um lenço e não use maquilagem. Você agora é uma mulher do campo e como tal deve se comportar. Aquela maleta ali é sua. Nela você encontrará roupas adequadas, sua nova documentação, passagem e visto de embarque. Eu embarcarei no mesmo trem e estarei no mesmo vagão, mas não devemos ficar juntos. Você, com sua nova identificação, estará mais protegida do que eu que poderei ser alvo de investigações por ter transportado sua família para o hospital. Provavelmente terei que abandonar o trem antes de chegar ao destino marcado em minha passagem. Esta é a maneira que vou ter para despistar os alemães, mas não se preocupe pois logo me juntarei a você em Beaune.

O trem partiu com uma hora de atraso mas já estava bem distante de Paris quando a Gestapo foi notificada do suicídio do Coronel e do desaparecimento de sua amante francesa. No momento em que o nome de Marcel Martinelli começou a ser investigado, Giacomo já não estava mais como passageiro no trem. Durante três dias ele e Germaine ficaram separados e, em todo esse tempo, só fizeram pensar um no outro. Ao se reencontrarem, ambos tentaram disfarçar a emoção que sentiam mas a cada instante eram traídos por tal sentimento.

- Você está abatida... Não estão lhe tratando bem? - perguntou Giacomo.

- Melhor do que podia esperar, mas acontece que há três noites não consigo dormir direito, pois já estava me sentindo responsável pelo que de mal pudesse lhe ter acontecido...

- Se alguém tem que ser responsável por alguém, esta pessoa sou eu. Prometi entregar você a seus pais em perfeito estado e espero cumprir com minha palavra.

Durante dez meses ficaram juntos e juntos viveram os mais diversos tipos de experiência, dos mais felizes aos mais dramáticos. Em duas oportunidades Germaine servira à Giacomo como enfermeira e, em ambas as vezes, demonstrou eficiência e cuidados incomuns. Com isso o amor ficou fortalecido e já não conseguiam esconder um do outro o que sentiam, muito embora ainda não tivessem se tocado ou sequer falado sobre o assunto. Foi ele quem tomou a primeira iniciativa quando estava se restabelecendo da pneumonia que por pouco não lhe tirou a vida. A cena foi rápida e inesperada. Germaine estava ao lado da cabeceira da cama onde Giacomo se encontrava e acabara de lhe servir um xarope. Ele, aproveitando-se da proximidade do rosto da jovem, tentou beijá-la ao mesmo tempo em que falava:

- Esta é a única maneira que disponho, no momento, para agradecer tudo o que tem feito por mim.

Germaine, inexplicavelmente, desviou os lábios e o beijo tocou-lhe as faces.

- Você ainda está um tanto enfraquecido para sentir grandes emoções - falou ela, tentando amenizar seu gesto.

Giacomo não conseguiu esconder sua decepção e resolveu, intimamente, que dele não partiria uma outra atitude semelhante. Para isso tentou evitar estar a sós com Germaine que, sempre que podia, provocava-o. Mas uma armadilha preparada pelo destino fez com que o inevitável acontecesse e acabasse por unir os dois definitivamente. E tudo aconteceu pouco tempo depois de Giacomo ter conseguido livrar-se do Capitão Von Erich que o mantivera preso durante quatro dias. A participação de Germaine nesse episódio fora decisiva. Sua coragem e frieza foram dignas dos maiores elogios. Ao apresentar-se aos olhos do inimigo dentro de suas humildes vestes de camponesa, ela sabia que na verdade estava ali inteiramente nua, pois acabara de se despir de toda a sua vaidade, orgulho e amor próprio. Com a incumbência de promover uma noite de orgia capaz de distrair as atenções dos soldados inimigos, reuniu um grupo de camponesas, que como ela estavam dispostas ao sacrifício de se entregarem àquelas bestas humanas famintas de sexo. E o que aconteceu foi, antes de tudo, um ato conjunto de suprema renúncia.

Novamente integrado ao grupo que tinha sob seu comando, Giacomo recebeu ordens para dinamitar uma ponte por onde deveria passar um comboio alemão com um grande carregamento de armas. Todo o grupo foi mobilizado para executar a missão, ficando Giacomo e Germaine a uma certa distância da ponte, abrigados num pequeno celeiro. Enquanto ele, ao lado de um aparelho transmissor-receptor, recebia informações sobre a posição inimiga, ela preparava uma pequena refeição para os rapazes. O ambiente era de grande tensão quando ele falou:

- Cuidado com este fogo. Temos que evitar que o inimigo perceba qualquer sinal de vida por aqui...

- Não se preocupe. Aprendi uma técnica especial capaz de fazer com que a fumaça não ganhe proporções perigosas, e os rapazes estão precisando de comer uma comida quente, o que já não fazem há alguns dias.

- É melhor que comam comida fria do que deixem de comer para sempre...

- Confie em mim, na minha técnica. Por tudo que fiz até aqui não creio que possa negar a minha eficiência... Este fogo que acabei de acender é parecido com o que estamos carregando dentro de nós. Ele será capaz de cozinhar os alimentos da mesma forma como os nossos sentimentos estão sendo cozinhados - sem fumaça...

- Não posso negar que você tem aprendido técnicas especiais e as tem usado nas ocasiões mais diversas com grande êxito. Esta guerra tem lhe ensinado bastante...

- Não o suficiente, pois não aprendi ainda uma técnica capaz de fazer com que o homem que eu amo me deseje sem restrições...

- Não se lamente por isso... Não se pode usar apenas a técnica, para casos do coração, e por isso a culpa não cabe só a você. O amor envolve outros sentimentos, tais como coragem, desprendimento e até renúncia...

- E por que só temos feito renunciar ao que sentimos um pelo outro?

- Talvez até em nome do próprio amor... Por acharmos inoportuno o momento que vivemos...

- Você saberá distinguir o momento certo?

Giacomo começou a captar uma mensagem pelo rádio e a pergunta de Germaine ficou no ar. O trem inimigo aproximava-se rapidamente do local e as providências finais tinham que ser tomadas de imediato. Usando o rádio, Giacomo transmitiu a seus comandados as últimas instruções. Todos tinham que abandonar a ponte e procurar proteção. Quando o comboio atingisse o vão central era o momento certo para que toda a carga de dinamite fosse acionada.

O estrondo abalou a terra e fez tremer o celeiro. O impacto violento fez com que Germaine se atirasse sobre Giacomo e os dois caíssem em cima de um monte de feno. Enquanto dois corações ali batiam forte, do lado de fora se fez silêncio. Germaine deitada sobre o corpo de Giacomo olhava-o nos olhos. Ele mantinha-se imóvel enquanto ela, com as pontas dos dedos, tocava em seus cabelos para em seguida roçar de leve os seus lábios nos dele. Giacomo tentou dizer alguma coisa, mas ela pousou sua mão sobre a boca do rapaz impedindo-o de falar. Ele ainda tentou se mover mas não encontrou forças. Era como se estivesse hipnotizado. Germaine era uma serpente deslizando sobre um corpo inerte. Ao movimentar suavemente os quadris, ela fazia com que toda a rígida musculatura de Giacomo fosse tocada pela maciez das carnes de suas coxas e seios. Era como se uma esponja estivesse ali absorvendo um sabonete. E quando ela começou a sentir que Giacomo crescia sob seu ventre, sussurrou em seu ouvido:

- Pode não ser este o momento certo, mas talvez seja o último.

Estas palavras fizeram acender o estopim e Giacomo explodiu como a dinamite. Os corpos sedentos rolaram pelo feno, esqueceram do tempo e não ouviram as metralhadoras que lá fora, vez por outra, cuspiam fogo. Tão alheios a tudo estavam que não notaram quando o primeiro guerrilheiro chegou de volta ao celeiro e os viu ali. O rapaz, compreendendo o que se passava, respeitosamente virou-se de costas para a cena e ficou montando guarda na porta do pequeno galpão. E, quando os outros companheiros chegaram, ele falou:

- Não entrem agora. O chefe está comemorando a nossa vitória.

Germaine logo compreendeu que para o amor ela já estava apta, mas para o sexo ainda lhe faltava algo. Por mais que tivesse se esforçado não conseguira atingir o orgasmo. Seu maior prazer residiu na satisfação plena que acabara de proporcionar ao homem que tanto amava. O Coronel Kurt Staden esteve ali presente entre os dois todo o tempo, mas só Germaine pôde vê-lo. Aquela imagem indesejada, inoportuna e fria estava ali para puni-la e impedi-la de sentir prazer. Aquele fantasma intruso estava ali para dizer-lhe que o sexo podia ser um ato indecoroso e sujo. E quanto mais Germaine tentou lutar para expulsar de sua mente as amargas recordações que tanto marcaram o seu recente passado, mais ela se afastou do presente e do momento supremo do êxtase.

O tempo, bálsamo incomparável para curar certos males, foi o remédio que Germaine usou para cicatrizar as feridas. Ela entendeu que a imagem do Coronel não podia ser apagada de um momento para outro como se faz com uma lâmpada. A partir do instante em que começou a entender desta forma, Germaine mudou de tática e, ao invés de lutar desesperadamente contra aquela presença incômoda que tanto a inibia, passou a enfrentá-la corajosamente, e assim agindo percebeu que estava no caminho certo. O relacionamento íntimo entre Giacomo e Germaine intensificava-se à medida em que o tempo passava, enquanto a imagem do Coronel surgia diante dela cada vez mais desbotada. Descolorida, transformou-se numa sombra sem rosto. Foi diminuindo de tamanho até virar um ponto escuro, distante e acabar por diluir-se totalmente. No dia em que isto aconteceu, Germaine não conseguiu encontrar palavras que pudessem exprimir o gozo intenso que sentiu. Na quietude serena do depois, entendeu que estava curada e que como mulher se completara.

Estavam em junho de 1943 e logo depois que a Primavera cedesse lugar ao Verão, Giacomo e Germaine completariam oito meses juntos. Entretanto, fato bem mais importante aconteceu antes disso. Na manhã do dia 6, domingo, com um tempo tenebroso, as tropas aliadas invadiram a Normandia. O mundo acabava de tomar conhecimento do segredo mais bem guardado de todas as guerras. Giacomo fora informado de que algo grandioso estava sendo preparado, mas não sabia onde e quando deveria acontecer. Aquela invasão traz novos rumos para a guerra. Batalhas ferozes vão sendo travadas numa luta cada vez mais encarniçada. Giacomo participa dos combates com seu grupo e vê de perto a decisão, o ímpeto e o poderio das tropas aliadas. Passa a acreditar na vitória ao invés de sonhar com ela. Sua crença é fortalecida dois meses depois, com a retomada de Paris pelos aliados. Essa auspiciosa notícia faz com que ele decida enviar Germaine de volta à sua terra e aos braços de sua família. Ela reluta e pede para ficar ao seu lado até o fim mas Giacomo não concorda e, nos últimos dias de agosto, Germaine chega à capital francesa. Com a separação, Giacomo se descontrola. Perde a habitual frieza e expõe-se ao perigo a toda hora. Pensa em resolver tudo sozinho como se dependesse dele e de sua coragem o fim da guerra. Procurava ir sempre além do que lhe era designado para fazer. Era preciso expulsar os alemães do território francês urgentemente, ou eliminá-los um a um - pensava ele - pois só assim teria Germaine em seus braços novamente. De nada lhe valeria a vida sem ela. Se para os companheiros Giacomo representava um exemplo de bravura, para os seus superiores era um motivo de preocupação. Sem perceber que estava sendo vigiado, de perto, não soube disfarçar o seu desequilíbrio e, ao cometer mais um desatino, foi recolhido a um hospital para tratamento mental. Durante 30 dias ficou internado e na noite do dia 24, véspera de Natal, chegava a Paris parcialmente curado. Trazia em sua pequena bagagem cicatrizes no lugar de medalhas e que com ele ficariam até o fim de seus dias. Sua participação na guerra tinha sido encerrada com louvor. Agora, longe dos campos de batalha, teria ele que aguardar pela paz que em breve seria anunciada, e era Paris o lugar mais apropriado para o seu pronto restabelecimento. Os medicamentos tinham sido suspensos pelos médicos, mas, na receita que trazia no bolso do surrado casaco, havia uma recomendação expressa que dizia: - repouse à noite, distraia-se de dia e ame o tempo todo.

A Europa era um corpo humano doente que, de repente, passava a respirar melhor como se em Paris estivesse o seu pulmão. O dia "D" fora o ponto de partida para a libertação da capital francesa e outras tantas vitórias retumbantes. A imprensa livre começou a se repetir, narrando os feitos aliados em quase todas as frentes de batalha. No início da Primavera de l945 já se podia ver desenhado o fim do III "Reich". Em Berlim, em seu bunker, fortaleza inexpugnável construída no subsolo do prédio da Chancelaria, Hitler comandava suas tropas e, entre gráficos e mapas, procurava descobrir posições dos exércitos espalhados pelos quatro cantos da Europa. A cada instante era ele informado do recuo das tropas, das perdas irreparáveis, da capitulação de divisões inteiras que, cercadas, desarmadas e esfomeadas, não tinham como escapar ou reagir. O grande Führer viveu seus últimos dias entre róseos sonhos e negros pesadelos. Alternava momentos de total desespero com a expectativa risonha de um milagre e, na verdade, tinha ele o direito de sonhar. E era nos cérebros privilegiados dos cientistas que repousavam suas últimas esperanças. Novas armas criadas já estavam sendo usadas com grande êxito mas o mais ambicioso dos projetos estava prestes a ser concluído. Uma arma mortífera que, se fabricada a tempo, na certa mudaria os rumos da guerra. Mas afinal o que faltou para que tão poderosa arma fosse fabricada? Tempo útil? Matéria prima? Ou teria sido Hitler vítima de traição? Para os historiadores o que vale é o fato e não a hipótese e, sendo assim, o que ficou registrado diz que os alemães, ou por um motivo ou por outro, não chegaram a fazer uso de seu mais poderoso invento militar.

A Primavera avançava e com ela as tropas aliadas. Primeiro foi o cerco, depois a invasão e logo em seguida a destruição quase que total. Poeira, fuligem e fumaça na Alemanha que ardia em chamas. No solo bastante castigado por bombardeios maciços e ininterruptos, os botões não tinham tempo de desabrochar na estação das flores. A arma secreta de Hitler deixava de ser sonho para ser miragem. O tempo se esgotara e nada mais restava a ele e à Alemanha. E para completar seu desespero, fora o Führer informado de que estava sendo traído por homens de sua inteira confiança, entre eles Goering e Himmler. Durante anos Hitler espalhara ambição e vaidade a seus comandados e agora estava sendo vítima de suas próprias armas. Parecia incrível que ainda houvesse alguém capaz de se interessar pelo poder supremo de uma pátria arrasada. Alimentado pelo ódio, como sempre foi, Hitler procura vingar-se. Do bunker expede suas últimas ordens. Manda prender e fuzilar os traidores mas acaba resolvendo poupar a vida de Goering, rebaixando-o apenas. Hitler não pensa em rendição e não admite passar pela humilhação de cair prisioneiro. Assim sendo, resolve programar a própria morte. Antes porém, nomeia o Grande-Almirante Donitz para  seu sucessor e em seguida dita para a secretária particular seu testamento.

Na manhã de 29 de abril de 1945, enquanto o sol tenta inutilmente romper a espessa nuvem de poeira que cobre Berlim, Adolf Hitler casa-se com Eva Braun e às l5h30min do dia seguinte já estavam mortos. Ele dera um tiro na boca e ela tomara uma cápsula de veneno. Nos jardins da Chancelaria, l80 litros de gasolina haviam sido estocados e serviriam para carbonizar os corpos do casal. Este desfecho um tanto shakespeariano fez precipitar uma série de acontecimentos. A notícia da morte de Führer divulgada em forma de boato - sem confirmação ou desmentidos - desmotivou as tropas e, poucos dias depois, a rendição começava a ser negociada. Por motivos políticos ela foi feita em duas etapas - dia 7 de maio em Reims, na França, e dois dias depois em Berlim.

Os idealismos políticos e religiosos nunca passaram de uma cortina de fumaça para encobrir o objetivo real de todas as guerras - a conquista do poderio econômico. Enquanto o ser humano é dotado de inteligência, a multidão é burra. Os grandes líderes, baseados nesta verdade histórica, espalharam o fanatismo no povo e o conduziram às guerras.

Se nem todo louco é gênio, diz-se que todo gênio é louco e Hitler foi o maior gênio militar que a história até aqui registrou. Possuindo uma mente doentia, mas dotada de uma inteligência superior, por pouco não teve em suas mãos o destino do mundo. Tivesse Hitler podido prolongar a guerra por mais algum tempo, hoje seríamos forçados a contar uma história diferente.

O crepúsculo cedia lugar à noite, e o céu, antes alaranjado, ganhava agora um tom violáceo. O barco já não deslizava tão suavemente sobre as calmas águas do Seine. Pesadamente arrastava-se, carregado que estava por tantas recordações. A Pont Neuf estava próxima e era naquele local que os finais se encontrariam: o final do dia, o final do passeio e o final de tantas recordações.

- Marcel, de que tamanho é o amor que você sente por mim? - perguntou Germaine.

Giacomo não sabia onde estava, perdido em tantas divagações.

Germaine insistiu na pergunta, procurando consertar um pequeno erro.

- Agora entendo porque você não me respondeu... Chamei-o por Marcel. É a força do hábito... Desculpe-me Giacomo querido, mas me responda - qual é o tamanho de seu amor por mim?

- Teria valido a pena? - falou ele.

- Teria valido o que? - perguntou Germaine, sem entender o que ele estava querendo dizer.

- A morte de um ideal, de um sonho... a guerra enfim.

- Lembre-se que se não fosse pela guerra nós não teríamos nos conhecido...

- O amor que sinto por você é infinito, por isso não posso medi-lo, mas jamais seria capaz de atravessar uma guerra como essa que acabamos de enfrentar, com a finalidade de encontrar meu amor e minha felicidade, misturados entre escombros e ruínas.


A história continua na página "Romance Parte 3"


A cada dia um novo capítulo para você continuar aqui!

Um comentário:

  1. Por motivos de viagem não li os últimos capítulos, mas vou logo encontrar o tempinho para lê-los. A trama é emocionante e, para quem é uma internauta assumida, ler aqui no blog, tem um gostinho especial!
    Eu gostaria de saber a opinião de quem está acompanhando Da Cama à Fama comigo. Vamos compartilhar?

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