O VESTIDO
Um conto de Angelo Romero
Jurema, ao
acordar, fez tudo o que estava acostumada a fazer. Sempre foi muito metódica.
Bebeu um copo d´água, em jejum, que deixara de véspera sobre a mesinha de
cabeceira. Espreguiçou-se e esfregou os olhos com as costas das mãos. Benzeu-se
e agradeceu a Deus por uma boa noite de sono e por um novo dia a viver. No
banheiro lavou o rosto, escovou os dentes e passou uma escova nos cabelos. Foi
aí que não reconheceu a imagem que viu através do espelho. Aquele rosto não
poderia ser o dela. Parecido, talvez. As olheiras estavam fundas, como se
tivesse tido uma noite mal dormida e os olhos inflamados como se tivesse
chorado a noite inteira. Não lembrou de ter tido pesadelo. Preocupou-se. Passou
uma loção nacional própria para limpeza
da pele, no rosto, e um caríssimo creme importado, contra rugas. Esperou alguns
segundos por um resultado melhor. Nada adiantou. A manhã, primaveril, estava
radiosa. Era seu primeiro dia das férias tão esperadas. Se tivesse dinheiro
sobrando, faria uma pequena viagem. As férias passadas nos mesmos lugares de
sempre, parecem que não fazem o efeito desejado. O espírito sugere um novo
cenário e a matéria agradece. Colocaria o supérfluo na poupança e economizaria
para as próximas férias.
Estava nua
como um ponto de interrogação. Não sabia o que colocar no lugar da camisola que
atirou sobre a cama. A interrogação cabia, pois não sabia se sairia ou não. Se
resolvesse passar o dia em casa, teria muitas coisas para por em ordem. Teria trabalho
e o trabalho não seria condizente com o primeiro dia de férias. Mas sair com
aquela cara de missa de velório, não lhe agradava. Um vestido novo poderia ser
uma solução. Mas, com que dinheiro? Se comprasse um vestido, sobraria pouco
para se divertir nos próximos 29 dias. Foi aí que ela se lembrou de Mara, sua
melhor amiga. Aquele vestido azul turquesa, de alcinhas e estampado com
delicadas flores do campo, poderia lhe cair bem. Em Mara ficava ótimo. O bom
caimento dependeria, talvez, do tamanho do busto. O de Mara era maior. Será que
o dela preencheria o espaço, sem prejudicar a forma? No manequim o vestido tem
um caimento e no corpo da cliente costuma ter outro. É para isso que se
experimenta antes de se realizar a compra. E num empréstimo? É a mesma coisa –
concluiu. Lembrou-se que não via Mara por aquele vestido a um bom tempo.
Estaria em boas condições de uso, ou melhor, daria a impressão de vestido novo,
saído da loja? Mara o emprestaria? Jurema cobriu a nudez com aquelas perguntas.
Ainda nua, abriu a porta do guarda-roupa e colocou-se diante do espelho.
Imaginou-se dentro do vestido azul turquesa. Coisa de mulher com imaginação
fértil. Pela primeira vez, naquele dia, sentiu-se bem. O poder da imaginação é
imensurável! O primeiro passo para solucionar o problema poderia estar no
telefone celular. Se Mara atendesse a ligação, todas as suas interrogações
teriam respostas. Mas seu aparelho estava descarregado. Se fosse colocar para
carregar, perderia tempo e, o pior, poderia perder o interesse. Será que
encontraria Mara em casa? – pensou e logo respondeu para si mesma: - claro que
está cozinhando. O marido trabalha em meio expediente e só sai de casa depois de
almoçar. Depois que adquiriu o aparelho celular, Jurema passou a não comprar
mais fichas de telefone. Será que ainda tinha alguma em seu cofre de moedas? E
se não tivesse, o bar que vende fichas estaria aberto naquele feriado? Na
literatura da vida feminina não é o ponto parágrafo que conduz a mulher a trocar
de linha, é o ponto de interrogação. Este é que é o ponto que a faz perder
tempo. Revirou a casa para encontrar o cofrinho e uma ficha já enferrujada para
o orelhão da esquina. Mara atendeu ao chamado em seu telefone fixo, instalado
na parede da cozinha. Jurema conseguiu ouvir o barulho de tampas e panelas. O
tal vestido estava praticamente novo, afirmou Mara, depois de dizer que só o
usara uma duas ou três vezes. O emprestaria com prazer e só não o daria para a
amiga, por ter sido presente de aniversário do marido.
Jurema
constatou que o vestido estava praticamente novo e limpo e que bastaria
passá-lo a ferro para tirar o amarrotado. Foi o que fez logo que chegou de
volta a casa. Vestiu o vestido e olhou-se diante do espelho. O caimento estava perfeito, mas não combinava
com as expressões abatidas. De pouco lhe adiantaria um vestido novo, num rosto
envelhecido. Este sim é que se pudesse, o passaria a ferro para alisá-lo e
eliminar as rugas. Optou por um banho morno, sabonete sedoso e uma leve
maquiagem para a manhã ensolarada. Suas formas eram perfeitas e tudo em Jurema
era fruto da natureza. Apenas os cílios eram postiços, já que os seus eram
curtos e ralos. Antes de sair, postou-se diante do espelho para se certificar
de que não precisaria de retoques.
Saiu cantarolando
“Garota de Ipanema” e decidiu que era para a praia que Jobim a tornou famosa,
que iria almoçar e passar o resto do dia. Jurema era de Câncer, cujo signo é
água. O ar marinho sempre lhe fez bem. Como havia poucos passageiros no ônibus,
ela pode escolher para sentar em seu lugar favorito: junto à janela, no banco
do meio do carro, no lado oposto ao do motorista. No banco, do lado oposto,
dois jovens, carregando livros e revistas, conversavam animadamente sobre literatura.
O que estava na ponta, olhou para ela e
esboçou um leve sorriso. Depois, comentou qualquer coisa com o companheiro que
a olhou também, mas não sorriu. Jurema corou. Retirou o espelho da bolsa,
imediatamente, para conferir o rosto. Logo a seguir, puxou a saia para baixo,
tentando cobrir os joelhos. Depois, pensou: É normal. Os homens sempre olham
quando a mulher está desacompanhada. Teria tido som o que acabara de pensar?
Foi o que imaginou, pois foi logo em seguida que os dois rapazes sorriram para
ela e o que estava na ponta do banco, falou: - Não se preocupe. Não há nada errado
com você. Aquilo poderia ser um elogio, mas ela fez o que as mulheres costumam
fazer quando ouvem um galanteio na rua: fecha a cara, para não demonstrar que
gostou.
Tanto ela,
quanto os rapazes, saltaram no fim da linha. Novamente ouve troca de olhares
entre os três. Porém, desta vez Jurema percebeu que o olhar do rapaz que havia
feito o comentário lhe pareceu mais intenso e profundo, do tipo de quem
gostaria de conhecê-la melhor, mas era tímido ou estava com pressa. Embora o
sinal para atravessar a rua estivesse aberto, Jurema parou. Custou a entender
seu gesto. Talvez tenha parado para dar tempo de uma abordagem direta. Corou
mais uma vez, envergonhada. O fato é que ao entrar no restaurante, sentia-se
bem mais segura.
- Quer
escolher a mesa, senhorita? – Perguntou o maitre, com uma mesura. O fato de ser
tratada por senhorita, já lhe fez bem ao ego.
- Deixo a
seu critério – respondeu. - Como está desacompanhada, sugiro aquela mesinha do
canto – e apontou. Ficará mais à vontade, tem boa claridade, é fresca e não
fica tão próxima ao ar condicionado.
Depois de
lhe entregar o cardápio, o maitre bateu palmas para chamar o garçom. Jurema se
sentiu aplaudida e sorriu pela primeira vez.
Durante o
tempo em que almoçou, pode perceber alguns olhares de admiração. Uns discretos;
outros reveladores. Principalmente o olhar de um senhor de têmporas grisalhas
que lhe caiam bem no rosto de belas feições, mas que estava acompanhado de uma
senhora, também de boa aparência e que deveria ser sua esposa. Foi o único
olhar que a incomodou. O homem, quando cavalheiro, deve respeitar sua
acompanhante, seja ela quem for. Quem age assim com uma, agirá com qualquer
outra – pensou, recriminando-o.
Sabia que
os garçons são instruídos para servir bem e sempre com um sorriso estampado no
rosto. Entretanto, o garçom que a servia, sorria de forma diferente, como se
estivesse encantado, ou melhor, como se estivesse atraído por sua beleza. Jurema
pagou pela atenção e pelos sorrisos, deixando-o uma boa gorjeta. E, ao
ultrapassar a porta do restaurante, para a rua, esbarrou num rapaz que estava
ali parado, remexendo os bolsos. Ambos se desculparam e o rapaz falou: - A
jovem fuma?
Surpresa,
Jurema hesitou e apenas balbuciou: - Por quê?
Nós,
fumantes, fomos excluídos da sociedade. Quando estamos em lugar público,
fechado, temos que sair para fumar e eu estou sem fósforos.
E já com o
maço de cigarros na mão, voltou a perguntar: - Você por acaso tem fósforos ou
isqueiro? - Não, lamento – respondeu ela.
Imediatamente
o rapaz lhe ofereceu um cigarro, revirou mais uma vez os bolsos e encontrou um
isqueiro. Uma luz se acendeu e Jurema lembrou que ele foi um dos rapazes que a
tinha olhado durante o jantar. Sorriu e, automaticamente, aceitou o cigarro.
- Gosta de
um bom café? – voltou ele a perguntar. E sem esperar pela resposta, segurou-a
levemente pelo braço e indicou um bar na esquina do outro lado da rua. – Ali
servem um café de primeira! Vou lhe acender o cigarro após tomarmos o café. O
sabor do cigarro ficará melhor.
Não era
exatamente um bar. Era uma cafeteria com mesinhas para que o café expresso
fosse degustado com maior prazer. E o melhor, oferecia uma área exclusiva para
fumantes.
E foi ao
sentar na cafeteria que Jurema se deu conta de que agira como um autômato e que
jamais havia passado por igual situação. Estava magnetizada por inteiro. Imaginou-se
um barquinho, sem tripulante, ao sabor dos ventos e das ondas, a procura de um
porto seguro. Que o porto seja seguro – voltou a pensar na imagem – mas,
enquanto for agradável a viagem, que o tal porto esteja bem distante.
- Você
é... Ele a interrompeu: Julio César, mas pode me tratar por César. – Você é
amante de um bom café? – completou a pergunta. – Sou amante da vida e de tudo
de bom que a vida pode nos oferecer. O som da palavra “amante” é muito forte.
Parece reverberar. Jurema sentiu arrepios.
Ao
chegarem ao terceiro café e ao terceiro cigarro, pareciam íntimos como se há
muito tempo se conhecessem. Vez por outra ela sorria. César era publicitário,
culto, envolvente e bem humorado.
A vida
deveria parar ali, ou melhor, deveria ser sempre assim, repetida como o
primeiro encontro de pessoas ávidas por se conhecerem e atraídas uma pela
outra. Jamais deveriam mudar o roteiro para que não se conhecessem por
completo. A busca pelo conhecimento proporciona a felicidade; já o conhecimento
completo, acomoda uma intimidade exagerada, causa danos, torna a vida enfadonha,
destruindo a surpresa. Este, provavelmente, deveria ser o pensamento dos dois.
Não houve
beijos na despedida. Ficaram no quase. Prolongar o desejo aviva a memória. Mas
trocaram tudo o que tinham direito: endereços, e-mails e telefones.
Na manhã
seguinte Jurema foi acordada por uma encomenda que lhe foi entregue: Uma dúzia
de rosas chá e um cartão com convite para jantar.
Ao cair da
tarde foi devolver o vestido à amiga. Ao entregá-lo, agradeceu e perguntou,
simplesmente: - O que lhe acontece, Mara, quando você usa este vestido?
UM CORPO SOB O
PLÁSTICO CINZA
(Um conto de
Angelo Romero)
Ele passou
cambaleando pela porta da boate. O porteiro da casa noturna chegou a comentar
com um motorista de táxi:
- Poxa
esse cara que passou por aqui tá muito chumbado! Ou bebeu demais, ou se drogou
além da conta...
A noite
estava escura, chuvosa e o porteiro não conseguiu ver a expressão de dor estampada
no rosto do transeunte. Este, por sua vez, cambaleou mais alguns passos e foi
cair a uns dez metros da porta da boate. O último gemido foi quase um urro. O
som angustiante ecoou na rua semi-deserta. O porteiro e o motorista acorreram
ao local e assistiram ao derradeiro suspiro.
Ele era
jovem. Aparentava ter uns vinte e poucos anos. Era mulato claro, alto, forte e
de traços finos. Trajava calça jeans, camisa de malha vermelha e um par de
tênis azul. O projétil que lhe perfurara o tórax fora fatal.
Em pouco
tempo formou-se uma pequena multidão em volta do morto. Ninguém viu de onde,
quando ou quem o trouxe, mas o fato é que ali já estavam um plástico cinza e
uma vela acesa. Agora o corpo estava coberto e a alma velada.
O porteiro
da boate comunicou o fato ao Distrito Policial da área, e quinze minutos após a
ligação telefônica chegou um carro “patrulhinha”. Imediatamente os policiais
iniciaram as diligenciais. Como a vitima não havia sido baleada naquele local,
e com ela nada havia sido encontrado que pudesse identificá-la, resolveram
providenciar a remoção do corpo para o Instituto Médico Legal. Se o corpo não
fosse reclamado em tempo hábil, após ser periciado, aquele seria mais um
indigente a ser sepultado em cova rasa e, provavelmente seria mais um caso de
crime arquivado e sem solução.
O vozerio
na calçada fez despertar um casal de velhinhos que morava no primeiro andar do
prédio em frente. A
janela de correr foi puxada, parcialmente, com todo o cuidado. A indecisão
durou poucos segundos e mais uma vez a curiosidade sobrepujou o medo. Ela
chegou primeiro à janela, e ele, logo a seguir. Agora juntos, lado a lado,
estavam aqueles rostos massacrados pelo tempo, em busca da imagem violenta do
cotidiano. O murmúrio não era nada esclarecedor, mas a vela acesa junto ao
cadáver explicava parte do acontecido. Apesar do desejo dos dois em sair à rua,
o bom senso acabou prevalecendo.
- A noite
está muito fria meu velho – disse ela. Amanhã, por certo, nosso porteiro nos
dirá o que aconteceu.
E depois
de uma pequena pausa, perguntou:
- Coitado,
de que será que ele morreu?
- Como
sabe que é ele se o corpo está coberto? – perguntou o marido.
- Presumo.
Falei por falar. Se for uma mulher andando sozinha na rua, pela madrugada, não
deve ser flor que se cheire...
O marido
não gostou da observação, mas preferiu não dizer nada. Pouco tampo depois, um
dos policiais, a pretexto de inquirir um transeunte, descobriu o corpo do
morto.
- Não
disse que deveria ser um homem? Comentou ela com o marido.
- Um
marginal – disse ele secamente.
- Como
você pode afirmar isso?
- Não
posso, mas é fácil de deduzir. Não vê que ele é escuro e tem cara de bandido?
Na rua, em
volta do corpo, a multidão foi crescendo, apesar do adiantado da hora. Não há
nada como uma tragédia capaz de povoar uma rua pela madrugada. Uma senhora
gorda, com os cabelos enrolados em bobs, e com a fisionomia de quem já havia
dormido, perguntou:
- Posso
ver o rosto dele, seu guarda?
- Por que
a senhora quer ver? – perguntou num tom áspero.
- É que
meu filho ainda não chegou em casa e eu estou preocupada...
- Seu
filho é de cor parda?
- Não –
respondeu num tom mais para alívio que para indignação.
- Então
pode ficar descansada – completou o policial.
Do bar da
esquina saiu um homem embriagado. Levado pela curiosidade e por suas pernas
trôpegas, foi juntar-se à multidão. Depois de empurrar algumas pessoas, foi
empurrado também e quase caiu sobre o morto. No canto da boca trazia um cigarro
apagado e amassado. Agachou-se com dificuldade e tentou acender o cigarro na
chama da vela. Logo uma voz na multidão se fez ouvir:
- Isso é
falta de respeito! Tirem esse bêbado daí.
- Ao que o
bêbado retrucou:
-
Chiuuuu... Quem tinha que reclamar, não reclamou.
Ouviram-se
risos abafados. Um homem magro, alto e bem vestido, levantou o bêbado com uma
das mãos e, gentilmente, acendeu seu cigarro.
-
Obrigado, distinto – agradeceu.
Depois,
puxou uma tragada com sofreguidão, olhou em direção do morto e logo a seguir
para um dos policiais e perguntou:
- Alguém
já avisou a mãe dele?
- Ele não
tem documentos – respondeu o policial, irritado.
E daí? Não
tem nada a ver – replicou o bêbado. Eu perdi meus documentos e tenho mãe.
Foi uma
gargalhada geral.
- Você já
está ficando inconveniente. Mais uma piadinha e eu te levo em cana...
- Só
porque estou bêbado, ou porque estou sem documentos? - Pelas duas coisas.
- Essa
não! Seria uma medida arbitrária e inconstitucional – falou com voz enrolada.
Depois reclamam que as cadeias andam cheias. Pudera... Quem vocês devem
prender, não prendem...
Houve um
murmúrio de aprovação, murmúrio esse que deixou irado o policial. Este,
possesso, segurou o bêbado pela gola do paletó e o sacudiu várias vezes,
gritando:
- Cala
essa boca aí, bêbado maluco! Vou já te botar dentro da patrulhinha e te levar
pro Distrito...
O homem
magro e bem vestido voltou a interceder e, com muito custo, conseguiu afastar o
bêbado do local, que saiu resmungando:
- Deixa
ele comigo.... Vou falar com meu tio que é general. Esse cara aí ainda vai
responder por abuso de autoridade. Vocês vão ver...
O casal de
velhinhos acompanhou toda cena através da janela, agora totalmente aberta.
- Boa
coisa ele não deve ter feito – comentou o velho.
- Quem, o
bêbado? – perguntou a mulher.
- Não, o
bandido – respondeu ele. No mínimo tentou assaltar alguém que reagiu...
- Bem,
agora já não poderá fazer mal a ninguém. E mesmo que tenha sido o pior dos
bandidos, sua alma merece uma oração.
- Merece
só, não. Precisa. – disse ele.
- Vamos
rezar juntos, meu velho?
-E que
mais podemos fazer?
E fecharam
à janela.
A tal
senhora com bobs nos cabelos encontrou uma vizinha na porta do prédio em que
ambas moravam.
- Homem ou
mulher? – perguntou a vizinha.
- Homem.
- Bonito?
- Não sei.
Não me deixaram ver o rosto...
- Por que
será que mataram ele?
- Ouvi
dizer que transava tóxico e que não pagou a última entrega do bagulho...
A
madrugada foi ficando cada vez mais fria, mas ninguém arredava o pé de onde
estava. O murmúrio de vozes era cada vez mais intenso.
- Vamos
tomar uma quentinha para comemorar – perguntou um jovem motoqueiro ao amigo.
-
Comemorar o quê? – perguntou o outro.
- A morte
do marginal.
- Como
sabe que o cara é um marginal?
- Tu não
se ligou no buchicho, cara? Disseram que o filho da puta do mulato assaltou um
casal que namorava num carro. Depois tentou currar a gatinha. Uma louraça! Um
avião! Aí ele começou a gritar por socorro e alguém de outro carro que ia
passando pelo local, atirou no tarado. É a lei do cão, cara. A lei do cão.
- É isso
aí, mano...
Em volta
do corpo as vozes não cessavam.
- Ouviu o
que aquele policial falou? – perguntou o executivo que acabara de sair da boate
com a amante.
- Não –
respondeu ela.
- Bem –
continuou o executivo – ele disse que não podia afirmar, mas que desconfiava
que esse mulato fora um dos que havia tomado parte do assalto daquela agência
bancária do Leblon...
-
Assaltaram o banco a essa hora? – perguntou com cara de idiota.
- Não,
bobinha. O assalto foi ontem à tarde. Agora ele deveria estar gastando o
dinheiro que roubou...
- Ladrão
de banco, é? – Perguntou ao casal um senhor gordo e careca que ia passando e
que escutou o diálogo.
- E
fichado – respondeu a mulher, prontamente.
Conjecturas
mil, e várias estórias diferentes rolaram de boca em boca, pela boca da
madrugada. Apesar das diversas versões, houve um só veredicto: CULPADO.
Ali,
estendido sobre o cimento frio, coberto por um plástico cinza, orvalhado, não
estava uma vítima da violência urbana e, sim, a própria violência. O céu
começava a ficar vermelho, como de vermelho estava manchada a calçada quando o
carro rabecão chegou, levou o corpo e desfez a multidão. Naquela manhã os
jornais nada noticiaram. Não houve tempo útil entre a apuração e a publicação
da matéria. Um dia depois, no entanto, a verdade, com todas as tintas, estampou
os jornais. Não as verdades daqueles que haviam participado da vigília noturna,
já que cada um pensava estar de posse da versão verdadeira. Mas a verdade pura
e simples, sem retoques. E todos, sem exceção, acabaram lendo o que os jornais
publicaram. Uns deram um maior destaque, exibindo foto ampliada. Já outros
resumiram a matéria. Entretanto, os principais dados do trágico acontecimento não
foram omitidos e ali estavam impressos:
“José
Azevedo dos Anjos, de 23anos, de cor parda, casado, pai de três filhos, morador
na Rua das Flores, s/nº, em Vilar dos Teles, foi baleado e morto na madrugada
passada ao sair da gráfica em que trabalhava em Copacabana. Na
noite do crime, José resolvera fazer serão. Precisava ganhar um dinheiro extra
para comprar remédios para sua mãe enferma que residia com ele. Dona Joselina,
de 73 anos e cardíaca, ao tomar conhecimento da tragédia que acabou por vitimar
seu filho caçula, passou muito mal e foi medicada no Hospital Souza Aguiar.
Maria Aparecida dos Anjos, de 21 anos, esposa da vítima e grávida de sete
meses, perdeu a criança ao saber da notícia. O GRAFICO José era um excelente
profissional e muito querido por seus superiores e colegas de trabalho. Momento
antes de ser assaltado e baleado mortalmente, ao sair da farmácia, recebera seu
ordenado do mês, acrescido do extra que acabara de fazer. A polícia presume que
ele tenha reagido ao assalto. Seu corpo será sepultado hoje, às 14 horas, no
Cemitério do Caju.
José
Azevedo dos Anjos foi mais uma vítima da violência que assola a cidade do Rio
de Janeiro”.
Imagem do Google
DIRLA
Um conto de Angelo Romero
Para o ser humano os “quases” sempre preocupa,
causa dúvidas. É o momento intermediário e das indefinições da vida. É quando a
pessoa é quase adolescente ou é ainda criança; quase adulto ou ainda
adolescente, etc. Mauro vivia esse momento. Não sabia se já poderia se
considerar adulto, ou ainda estava flanando nos anos dourados da adolescência.
E para complicar, aos dezenove anos de idade atravessava um momento crucial de
sua vida: seus pais estavam se separando.
Tinha decidido abandonar definitivamente os estudos e, por conseguinte,
não sabia que rumo tomar. Quando criança, cansou de ouvir dos adultos a
tradicional e imbecil pergunta: -“O que o neném quer ser quando crescer?” Como
se uma criança tivesse alguma noção de responsabilidade. Geralmente, nessas
oportunidades, a criança responde baseada na ocupação do pai ou dos seus heróis
dos filmes e das histórias em quadrinho. Mauro, por exemplo, gostaria de ser o
super-homem, pois poderia voar e resistir aos tiros das armas de fogo e, ainda
por cima, exercer a profissão de seu pai: jornalista.
Aos
dezenove anos ele queria ser artista, mas, além de não estar preparado para o
ofício, não sabia como começar. Longe dos bancos escolares, o jovem só se
ocupava com as namoradas e com os jogos de futebol com os amigos do bairro. Tal
situação passou a preocupar o pai. Como em seu tempo o adolescente não recebia
mesada, resolveu ele arranjar um emprego qualquer com três únicos objetivos
imediatos: passear com as namoradas, comprar cigarros para alimentar o vício e
comprar uma lambretta para se locomover rapidamente, tendo veículo próprio.
Diga-se de passagem que a “lambretta”, uma motoneta italiana, era o veiculo da
moda para os adolescentes que vivenciavam o especial momento de mudança de
costumes com o rock’in roll e a “Jovem Guarda”.
Mesmo preocupado com um veículo de duas
rodas, ou seja, feito para cair, o pai aceitou ser fiador. É fato mais que
constatado tal comportamento de pais que estão se separando: presentear os
filhos como forma de compensação. A
Lambretta adquirida veio amenizar, de certa forma, a dor e a preocupação com
seu futuro em face da separação iminente dos pais. A mãe, traumatizada e
inconformada com os acontecimentos, resolveu viajar de férias para Pernambuco,
sua terra natal, em busca de um ombro amigo para chorar. O pai, aproveitando a
ausência da mulher, passou a só ir em casa para pegar roupas. Assim, de uma
hora para outra, o jovem passou a se sentir órfão de pais vivos e totalmente
desamparado, tanto sentimentalmente, como materialmente. Sem ter quem lhe
ajudasse nas tarefas da casa, logo aprendeu a cozinhar o trivial e a forrar a
própria cama.
E a verdadeira história começa aqui, num
domingo chuvoso, depois desse longo preâmbulo.
Em vista da chuva, Mauro resolveu passar o
domingo em casa. Sair de Lambreta debaixo de chuva não fazia o menor sentido,
nem suas namoradas (tinha mais de uma) topariam sair para um programa
assim. E aí surgiu o dedo do destino que
mudaria todo o quadro da solidão que já ocupava todos os cômodos da casa.
Entre seus principais amigos, Jorge “Garrafa”,
que possuía tal apelido por ter um porte físico no feitio de uma garrafa,
apareceu em sua casa ao final do tal domingo. Era um tipo criativo, gozador e
com grande presença de espírito. Foi logo entrando e dizendo: “Vamos passar uns
trotes ao telefone, para aproveitar o fim desse domingo chuvoso? Mauro logo
aprovou a ideia. Combinaram de inventar um programa de rádio que apresentasse
uma seleção de gravações de Cauby Peixoto, o cantor do momento. Selecionaram os
discos, ligaram a aparelhagem de som, abriram o catálogo telefônico e sortearam
um assinante qualquer. Ambos possuíam qualidades de fazer vozes diferentes e
bem impostadas. A ideia era fazer perguntas sobre Cauby, e cada resposta certa
daria direito ao ouvinte ser premiado com um disco do cantor. Resumindo: Logo
na primeira ligação, ouviram uma voz de mulher, grande admiradora de Cauby. O
trote foi tão perfeito que não foi dado, a ela, tempo de sair do telefone para
ligar um aparelho de rádio e conferir a ligação. É claro que, depois de certo
tempo a mulher entendeu que fora vítima de um belo trote, mas, gostando do
papo. estendeu a ligação. Ao final, trocaram nomes, telefones e endereços.
O tempo passou e Mauro já não se lembrava do
trote quando seu telefone tocou e ele foi atender. Era a tal mulher, vítima do
trote.
- Não está lembrando de mim? Sou a Dirla do
seu trote, Mauro. Estou louca para lhe conhecer pessoalmente e se quiser me
receber, poderei ir até a sua casa amanhã.
E ao final da ligação, ela completou:
- Existe um probleminha e não sei se você
vai gostar de mim. Eu sou mulata.
Imediatamente, Mauro respondeu:
- Isso não é problema, é solução.
No dia seguinte, na hora marcada, Mauro
ouviu palmas no portão. Ao invés de sair para receber a visita, Mauro resolveu
conferir a criatura através das frestas da janela. Se fosse feia, fingiria que
não estava em casa. Entretanto, não era uma mulata comum, era uma escultura
moldada pelos deuses. Poderia perfeitamente fazer parte do elenco das mulatas
do show do saudoso Sargenteli, famoso produtor de televisão da época. Resumindo
mais uma vez, ao final da visita, Mauro perguntou:
- Está trabalhando?
- Trabalho como doméstica para um casal de
portugueses e moro no emprego. Eles têm uma fábrica nos fundos da casa e como
viajam muito para Portugal, eu, quando eles estão fora, tomo conta da casa e
dos empregados da fábrica.
- E quantos eles te pagam?
O valor era bem acima do que normalmente era
pago a uma doméstica. Mesmo assim, Mauro propôs:
- Minha mãe precisa de uma empregada. No
momento eu estou só e ela está em Recife, Pernambuco. Gostaria de contratá-la e
fazer uma surpresa para mamãe, mas só podemos pagar a metade do que você ganha.
No dia seguinte, Dirla chegou com malas e
bagagem.
Naquele dia Mauro não precisou cozinhar
macarrão, nem fritar ovo. Almoçou e jantou pratos variados e saborosos. Dirla,
para completar, era cozinheira de forno e fogão.
Depois do jantar, Mauro improvisou um baile
para um único casal, com gravações de Cauby Peixoto. Para criar um clima de
boate, colocou uma lâmpada vermelha no abajur da sala e preparou algumas doses
de Cuba Libre, a bebida do momento.
O sucesso do baile foi comemorado na cama de
casal, que há muito não estava sendo usada por seus reais ocupantes. O homem
que ainda não fez sexo com uma mulata, não sabe o que é sexo. Mauro soube
naquela noite e provavelmente, os vizinhos também, ao imaginaram a intensidade
do ato, mediante os fortes gemidos.
A mãe de Mauro se surpreendeu
favoravelmente. Acostumada a ter sempre em casa uma boa doméstica, logo
percebeu que aquela havia sido, até então, uma das mais completas.
A bem da verdade, Mauro obteve maior lucro e
vantagem. Enquanto sua mãe era bem atendida nos quitutes da mesa, ele usufruía,
diariamente também, das melhores e saborosas posições do Kama Sutra, na cama. E
assim, durante três longos anos, os três se completaram de forma diferente,
porém intensa.
Mas não há mal que sempre dure nem bem que
não se acabe. O quarto de dormir de Dirla, visitado por Mauro todas as noite,
além de sua cama visitada por Dirla durante o dia, quando da ausência da
patroa, fôra construído separado da casa, no fundo do quintal. Era desconfortável e quente para o verão do
Rio. E certa madrugada de calor intenso, os amantes resolveram inovar. Fariam
sexo deitados sobre a terra fresca pelo orvalho da noite, sob a frondosa
mangueira e o luminoso prateado da lua cheia. O novo cenário tornou-se tão
estimulante e romântico que acabou proporcionando um, sexo alucinante composto
de frenesi e gemidos fora de controle.
Só que os gemidos descontrolados chegaram aos ouvidos da mãe de Mauro,
acordando-a. Quando ela abriu a porta da cozinha que dava para o quintal, não
acreditou no que viu. A bunda prateada do filho subia e descia em ritmo
alucinante, sobre uma escultura mulata que, de forma intensa e também retimada,
proporcionava tal movimentação.
A mãe do jovem, depois de beber um copo de
água açucarada, esperou o amanhecer para despedir, por justa causa, uma de suas
melhores empregadas. E bota justa causa nisso.
Dias antes Dirla havia comprado “Lancaster”,
famoso perfume argentino, e impregnara o lençol da cama de Mauro com aquele
maravilhoso aroma. Quando, ao final daquela semana a mãe do rapaz quis trocar a
roupa de cama de toda a casa para lavar, Mauro não deixou que retirasse o
lençol que forrava a sua cama. E para impedir que tal acontecesse, sempre que
se ausentava da casa, ele trancava a porta de seu quarto e levava consigo a
chave. Já que não poderia ter Dirla em
seus braços, que ao menos o perfume, que de seu corpo irmanara, ficasse com ele
até que o tempo se encarregasse de dissipá-lo.
A imagem de Dirla ficaria gravada em sua
lembrança pelo resto da vida, mas o perfume daquele corpo escultural se desfez
por completo na Brastemp, máquina de lavar roupas da casa. O responsável pelo grande desgosto do rapaz
foi o chaveiro contratado por sua mãe.
HORÓSCOPO DO DIA
Um conto de Angelo Romero
O serviço meteorológico previa uma
frente fria com chuvas esparsas, para o Rio de Janeiro, no início da semana.
Como domingo é o primeiro dia da semana e, pouca gente sabe disso, esta estória
aconteceu nos dois primeiros dias daquela semana de junho.
Para quem só consegue despertar com o
toque repetitivo e irritante do despertador, temos que convir que, para estes,
o som não é dos mais agradáveis. Na noite anterior, a convite da amiga Eleonor,
Juvenal havia participado de uma noite de queijos e vinhos. Ele, que só gostava
de queijo de Minas a "La Romeu e Julieta", ou seja, acompanhado de
goiabada, provou, comedidamente, de alguns tipos de queijo por pura educação.
No entanto, fazendo jus ao apelido de "Seca Garrafas", que recebera
dos íntimos, dos vinhos provara todos: tinto, branco, verde e rosé, de diversas
marcas e em quantidade generosa. Resultado - antes da meia-noite, as garrafas
estavam secas e sobrava queijo. Percebendo o ar de decepção que Juvenal não
conseguiu esconder, Eleonor, a anfitriã, sugeriu que abrissem um garrafão de
vinho tinto, sem rótulo e de qualidade duvidosa. Assim, a noite foi prolongada
até às duas da manhã, ou melhor, até a última gota do vinho do garrafão.
Bem, assunto não faltou, mas a
relação entre Eleonor e a astrologia era tão intensa, que além de ter sido o
tema predominante, foi o que provocou as discussões mais acirradas. Apaixonada
que era, a anfitriã não conseguiu esconder o estado de excitação em que se
encontrava, ao versar sobre o assunto. No início, contida, emitia o som firme
na voz. Aos poucos foi se descontrolando. Perdera o controle dos músculos e
nervos. Estava ofegante. O corpo tremia e a pele transpirava. Por vezes emitia
a voz em falsete, como se estivesse gemendo de intenso prazer.
- Por Deus, gente! Existem
embusteiros, pessoas despreparadas que são pagas para escrever besteiras nos
jornais. Assim como a matemática, astrologia é uma ciência perfeita! - falou e
gemeu.
Preocupado, um dos convidados
procurou mudar de assunto. Tentou evitar que a anfitriã e amiga chegasse a ter
orgasmos múltiplos ali, diante de todos.
Para Juvenal, astrologia seria o
último tema do mundo para ser discutido. Por não entender, não acreditava. Por
não acreditar, não entendia. Assim, absorto, a tudo ouvia calado. Trocara o
cálice por uma caneca e o desconforto do assunto, pelo prazer que o vinho lhe
causava.
Empolgada, Eleonor custou a se dar
conta do silêncio de Juvenal. Ao fitar o convidado, que parecia mais ausente
que chuva na caatinga, perguntou:
- E você, Juvenal, o que me diz disso
tudo?
- Excelente! - respondeu ele. Este vinho é da melhor qualidade.
- Não, querido - ponderou ela
delicadamente - estou falando sobre astrologia.
Qual é o seu signo?
- Sou espada e todo mundo sabe disso.
Eleonor sorriu amarelo, mas resolveu
insistir:
- Em que dia e mês você nasceu?
- Sete de julho. Daqui a duas
semanas. Por quê? Vai me dar algum presente?
Todos riram menos Eleonor, que se
sentiu ofendida com a brincadeira grosseira.
Com ajuda do seu anjo da guarda,
Juvenal chegou à sua casa são e salvo. Sim, porque, por ter bebido além da
conta, atravessara em alta velocidade todos os sinais de trânsito (semáforo para
os paulistas) dos mais perigosos cruzamentos, que para ele estavam verdes. Ah,
aquele vinho verde estava delicioso - pensou ele.
Logo ao entrar, Juvenal programou o
despertador para tocar às onze horas da manhã. Afinal, o primeiro compromisso
que teria segunda-feira, estava marcado para as duas da tarde. Descalçou os
sapatos e dormiu com a roupa que chegara da rua. Mas não foi um sono tranquilo.
Acordou diversas vezes durante a madrugada. Teve um pesadelo sem sentido, como
costumam ser os pesadelos, mas extremamente fiel ao enredo: astrologia.
Logo de cara, NETUNO, coitado,
agonizava vítima do vendaval que varria o oceano. Na certa o SOL não estava em
aspecto positivo com ELE. Depois, era ele próprio, Juvenal, que quase morreu
afogado dentro de um AQUÁRIO cheio de PEIXES. Ao livrar-se do AQUÁRIO,
preocupou-se com os GÊMEOS, filhos da vizinha do andar de baixo. Haviam sido
mordidos por um ESCORPIÃO. De repente, Juvenal viu-se diante de uma casa de
câmbio, tentando trocar todo o seu salário por LIBRA, e não se conformava com o
fato. Por que não dólar, perguntava. O BIG BEN não lhe despertava o menor
interesse. Mas, em compensação, não via a hora de apostar todo o seu dinheiro
nas roletas de ATLANTIC CITY.
A última etapa do pesadelo foi a mais
interessante. Estava agora no hall de um
hotel, 5 estrelas, sem um tostão no bolso, diante de Clarisse, a mulher que
mais desejava na face da terra.
Para ela, Juvenal lhe era totalmente
indiferente. Certa vez, numa conversa informal, Clarisse havia lhe dito que era
de VIRGEM, e ele não dera a mínima importância ao fato. Agora, ali estava ela,
diante dele, amável, provocante e perigosamente acessível. Se era virgem ou
não, continuava a ser detalhe de somenos importância. Seria agora ou nunca. Sem
dinheiro para sequer um simples apartamento, pensou em fazer sexo com ela ali
mesmo, no hall do hotel. Naquele momento, o movimento de entrada e saída de
hóspedes era intenso, mas Juvenal só tinha olhos para Clarisse. Bem, olhos e
tudo o mais que pulsava dentro da roupa que começava a despir com extrema
rapidez. Ofegante, ardendo de desejo, Clarisse despia-se de forma
sensualíssima. Quando segundos e centímetros os separavam do contato físico,
eis que Juvenal sentiu uma dor aguda e dilacerante nas costas. Havia sido
chifrado por um TOURO alucinado. Para completar o drama daquele amante, em
potencial, surgia a poucos metros de distância à sua frente, um LEÃO, com
expressão faminta. Pior que a dor que sentia, foi o inconformismo com a situação.
Como podem permitir a entrada de animais ferozes num hotel 5 estrelas? -
perguntava a si mesmo.
Tão estranho quanto a presença
daqueles animais, foi a aparição, sabe lá vindo de onde, de um caçador inglês
trajando aquele indefectível uniforme caqui, com um bermudão até os joelhos,
com meiões em xadrez, cobrindo as incolores canelas, e portando um fuzil de
caça, com luneta e tudo. Foram dois tiros certeiros. Um para cada animal. Se
ridícula era a indumentária, o mesmo não se podia dizer com relação à pontaria
do inglês.
O pânico fez evacuar o hall em
segundos, mas Clarisse permaneceu ali, no mesmo lugar, com o olhar lânguido e o
corpo nu, estendido num sofá oval. Como em sonho tudo é possível, Juvenal,
surpreendentemente, mantivera a ereção. E quando tudo parecia caminhar para um
"happy end", eis que nosso herói é sacudido por um insistente toque
de campainha. Ele ainda pensou que o groom estivesse sendo chamado pela
recepção do hotel para carregar malas e, só no quinto toque foi que veio a se
lembrar do seu despertador. Não, não existe sonho com final feliz. Ou acaba mal
ou é interrompido, o que não deixa também de ser frustrante.
Ao ultrapassar os segundos que
precedem sonho/realidade, Juvenal percebeu que as pálpebras pesavam, a cabeça
doía e o sabor acre-amargo impregnava sua boca provocando náuseas. A imagem de
Clarisse desaparecera por completo. Ficou apenas a lembrança - doce lembrança.
Revoltado, tentou silenciar o despertador com um murro. Não conseguiu. Nem
podia, ele, o despertador, estava tão silencioso quanto taquigrafa de tribunal
de júri. Afinal, fora programado para tocar às onze, e ainda eram seis horas da
manhã. Foi aí que Juvenal achou por bem atender ao telefone.
- Estava dormindo?
Uma pergunta imbecil, feita numa hora
imprópria, mas como a voz era de seu patrão, resolveu responder:
- Estou.
- Pois trate de acordar e levantar
depressa. O compromisso que estava marcado para as duas da tarde foi antecipado
para às oito da manhã. Mister Jones, apesar de ser americano, é britânico
quando se trata de horário. Se acha que vai se atrasar, é melhor não ir.
Telefone e tente remarcar o encontro. Se chegar antes da hora combinada só dê
as caras às oito em ponto. Lembre-se de que se atraso quer dizer
impontualidade, antecipar-se ao horário é descortesia e falta de educação. De
uma coisa esteja certo: se perder esta venda, estará perdendo a maior comissão
de sua vida!
Juvenal era o melhor corretor de
imóveis da "IMOBILIÄRIA PADRÃO LTDA". Especializado na venda de
mansões, sítios e fazendas. Deveria vender a Mr. Jones, milionário americano,
residente em São Paulo, uma suntuosa mansão na Barra da Tijuca, pertencente a
um dono de uma rede de supermercado.
Extremamente metódico, ele jamais
alterou a ordem do que fazia após despertar: lavar o rosto, escovar os dentes,
beber um copo d'água, em jejum, fazer xixi, tomar uma xícara de café forte e
fumar o primeiro cigarro do dia, enquanto passava a vista nas principais
manchetes das seções de economia, política, esporte e variedades do jornal do
qual era assinante. O dia, para ele, começava realmente após cumprir esta
primeira etapa.
Naquela manhã de segunda-feira,
Juvenal teve que alterar a rotina. Lavou o rosto, escovou os dentes, fez a
barba e o xixi no box, enquanto tomava banho. Vestiu a melhor roupa e
aproveitou o copo d'água que costumava beber em jejum, para engolir um
comprimido para dor de cabeça. Não bebeu café, não fumou, e o jornal que tinha
pego sobre o capacho do corredor de entrada do apartamento, atirou-o sobre a
espreguiçadeira, sem sequer ter lido a manchete da primeira página, e saiu.
Na garagem do prédio, ao entrar no
carro, ficou duplamente surpreso: primeiro porque ele estava estacionado na
vaga do síndico; depois, porque ao girar a chave na ignição o motor pegou de
primeira, coisa que raramente acontece com carro a álcool quando está frio.
Talvez por isso tenha tido um bom pressentimento: "apesar da ressaca, este
vai ser meu dia de sorte" - pensou.
No dia anterior, domingo, na redação
do jornal do qual Juvenal tinha assinatura, acontecera um fato curioso.
Roberval Matias, o jornalista designado para escrever o horóscopo diário e em
cuja coluna assinava com o pseudônimo de MADAME X, não apareceu para trabalhar.
Quando o redator-chefe se deu conta da ausência, entrou em pânico. Afinal, dali
a menos de uma hora a matéria deveria estar sendo impressa. O berro do
redator-chefe fez silenciar máquinas e computadores da redação:
- Tem alguém aqui tão idiota que seja
capaz de escrever um horóscopo?
- O silêncio aumentou, se é que se
pode aumentar o silêncio.
Casualmente, naquele momento,
Mirinho, o contínuo, acabara de entrar no salão para servir cafezinho e alguém
sussurrou em seu ouvido:
- Aproveita a oportunidade, cara. Vai
lá e se apresenta.
- Está maluco?! Quer que ele me
demita? - respondeu ele.
O sussurro chegou aos ouvidos do
redator-chefe que voltou a berrar:
- Quem falou aí?
Novo silêncio.
- Jornalista na redação é como
soldado no quartel. Se não aparecer um voluntário, vou escalar qualquer um e,
ai desse que não redigir o horóscopo direitinho!
Bem, para encurtar a estória, logo,
logo o redator-chefe tomava conhecimento de um fato que durante anos vinha
sendo mantido em segredo: Roberval Matias jamais havia escrito um horóscopo
sequer em toda a sua vida. MADAME X, na verdade, era Mirinho, o contínuo. Ele
ganhava uns trocados do Roberval. A este cabia consertar os erros de português
e passar o texto para a impressora.
O novo berro do redator-chefe
misturava surpresa com indignação:
- Mirinho?! Nem pensar. Aliás, a
partir de agora ele vai estar dispensado. Chega de cafezinho por hoje.
E dirigindo-se a Mirinho, acrescentou
com ternura na voz:
- Pode ir pra casa mais cedo, meu
filho. Aproveite o domingo e vá almoçar com a patroa.
A bomba foi estourar nas mãos de seu
Alberto, o jornalista mais antigo do jornal, ali presente. Era ele o
responsável pela redação dos obituários e parte do noticiário policial. Era o
castigo que recebia por ter revelado o segredo de MADAME X.
- Seu Alberto, venha aqui na minha
sala. Gostaria de ter uma conversinha com o senhor.
Ao entrar na sala do redator-chefe,
Alberto ouviu cobras e lagartos.
- Ficou maluco? Como pôde me indicar
o Mirinho para escrever o horóscopo?
Amanhã ele diz que sempre foi o responsável pela coluna, arranja algumas
testemunhas, aciona a Empresa, recebe uma baita indenização e acaba se
aposentando como jornalista. Já pensou? E acrescentou: O senhor tem trinta
minutos para redigir o horóscopo de amanhã, e estamos conversados.
A segunda-feira amanheceu nublada com
ameaça de chuva a qualquer momento. O Chevrolet Opala de Juvenal parou no sinal
do terceiro cruzamento e não andou mais. Depois de tentar algumas vezes ligar o
motor girando a chave na ignição, saltou do carro e empurrou para junto do meio-fio.
Falando assim, parece tarefa simples, mas não foi. O Opala é um carro pesado e
ninguém o ajudou, pois naquele momento, a chuva desabou com intensidade. Por
possuir noções de mecânica, Juvenal abriu o capô e fez uma inspeção rápida,
porém minuciosa. Tudo parecia estar em perfeita ordem. Menos, é claro, o tanque
de combustível que ele esquecera de abastecer no domingo ao deixar a casa de
Eleonor. Por não ter um posto nas proximidades, nem tampouco um vasilhame para
comprar o álcool, Juvenal resolveu abandonar o veículo. Antes, porém, colocou o
triângulo de segurança a cinco metros da traseira do carro. Tentou pegar um
táxi, mas naquela hora e debaixo daquele aguaceiro, só milagre. Os poucos que
passavam, ou estavam ocupados ou não paravam. Foi aí que se lembrou de
atravessar a rua e tentar pegar um táxi na outra alameda, em sentido contrário
ao rush. A tentativa pareceu dar certo, pois três minutos depois estava dentro
de um táxi.
- Pra onde vamos? - perguntou o
motorista
- São Conrado - respondeu Juvenal.
- Negativo - falou o motorista, ao
mesmo tempo em que apertou o pedal do freio. Trabalhei a noite toda e estou
recolhendo o carro para a garagem. Pensei que o senhor fosse para a zona norte.
- Quanto o senhor quer pra me levar
em São Conrado?
- Nem o senhor pagando em dólar na
bandeira dois eu posso levar. O que eu quero mesmo é que o senhor salte porque
eu já estou atrasado.
Juvenal apelou:
- E se eu falar com um guarda?
- Bem, se o senhor encontrar um guarda por
aqui, a esta hora e com toda esta chuva, não vai nem precisar falar com ele -
eu levo o senhor.
Juvenal, ao saltar, esperou que o
táxi arrancasse em disparada, para sorrir. Mesmo vivendo todo aquele drama teve
que reconhecer a espirituosidade daquele mau profissional do volante. Afinal,
estavam no Rio de Janeiro e aquele deveria ser um carioca típico.
Agora, além da forte chuva, um vento
desgovernado espalhava água por todas as direções, a um só tempo. Procurou
abrigo sob uma marquise e continuou a observar os carros que passavam. Como
milagre às vezes acontece, eis que a seu lado, sobre a calçada, surge um táxi,
livre, que havia subido a rampa do prédio cuja marquise o abrigava.
- Será que o senhor poderia me levar
a São Conrado? - perguntou em voz de súplica. Além da bandeirada eu lhe darei
uma gorjeta gorda.
- É pra já, chefia. Coloque o cinto de
segurança, não fume e deixe o resto comigo - respondeu o motorista.
O trânsito estava caótico, coisa de louco! Por
diversas vezes tiveram que mudar o itinerário para fugir dos engarrafamentos,
mas 40 minutos depois já estavam passando por Copacabana. Agora tudo parecia
correr às mil maravilhas! A chuva havia parado, o sol despontava por entre as
nuvens e o trânsito fluía razoavelmente. De repente, o motorista parou o carro
junto ao meio-fio.
- Lamento, chefia, mas vou ter que
ficar por aqui.
- Como ficar por aqui?
- O pneu da frente furou e eu estou
com o macaco quebrado. Se o senhor quiser esperar que alguém me socorra...
Como ninguém parava para socorrê-los
e outro táxi livre não passava, Juvenal resolveu pegar um ônibus com destino ao
Vidigal. Foi uma viagem emocionante! De cara, o ônibus arrancara bruscamente,
avançara um sinal fechado e fizera uma curva em alta velocidade. Parecia que o
motorista abandonara a Formula I para dirigir veículo coletivo por pura emoção!
Aproximadamente a três quilômetros do Hotel Sheraton, local do encontro,
Juvenal olhou para seu Rolex de pulso pela última vez: marcava dez minutos para
às oito. O ônibus já não estava tão cheio. Só ele e mais três passageiros
permaneciam de pé. Agora ele estava certo de que chegaria na hora marcada. E
quando, em silêncio, agradecia aos céus por ter colocado ao volante daquele
veículo um louco e irresponsável para conduzi-lo, eis que uma voz esganiçada de
um negão, ao lado do motorista, chega aos seus ouvidos:
- Ninguém se mexe. É um assalto.
Juvenal olhou para a parte traseira
do coletivo e um mulato sentado no último banco, confirmou:
- É isso aí, "Tio", tô com
meu parceiro.
Apesar de cercado por duas poderosas
armas de fogo, Juvenal surpreendeu a todos, inclusive aos assaltantes, quando
pronunciou em voz alta e firme um pequeno discurso:
- Se tiver alguém armado, que não
reaja, pelo amor de Deus! Os rapazes aí são vítimas do desemprego, da má
distribuição de renda, do descaso da sociedade e das autoridades governamentais
voltadas apenas para os grandes interesses internacionais. Vamos colaborar com os
rapazes. Quero ser o primeiro. Falou e foi logo tirando do pulso o Rolex, da
mão o anel de grau, do pescoço o cordão de ouro e do bolso a carteira de
dinheiro. E, para finalizar, acrescentou:
- Desculpem, mas esqueci em casa o
talão de cheque e os cartões de crédito. A quem posso entregar a mercadoria?
- Põe aí no chão - orientou o negão.
Juvenal procurou negociar:
- Já que fui o primeiro a colaborar,
solicito um favor de vocês. Deixem-me saltar, por favor! Tenho um compromisso
agora, às oito horas, no Hotel Sheraton e, se faltar, serei mais um
desempregado, assim como vocês.
O negão voltou a falar:
- Tu tá no seu dia de sorte,
"Sangue Bom". Vamos te dispensar. Mas se bancar o esperto e denunciar
a gente pros homens, tu tá ferrado. Já te fotografamos, e quando a gente se
encontrar, tu vai virar presunto.
Ao receber a ordem do negão, o
motorista arrancou com o ônibus e só foi parar em frente ao
"Sheraton". Quando a porta traseira foi aberta, Juvenal saiu em
disparada. Às oito e quinze estava na recepção do hotel.
- Meu nome é Juvenal Ferreira e tenho
encontro marcado com o Sr. James Albert Curtis, hóspede da suíte 03. Poderia me
anunciar?
O Sr. Curtis acabou de deixar o hotel
e pediu-me que lhe entregasse este envelope.
O bilhete estava escrito em inglês,
mas Juvenal entendeu: - "Não pude esperá-lo. Precisei retornar a São Paulo
antes do horário previsto. Continuo interessado no negócio. Volto na semana que
vem e, assim que chegar, entro em contato. Atenciosamente, James."
Dos males, o menor - pensou Juvenal.
Fecharia o negócio no próximo encontro, e disso ele tinha certeza.
Dali mesmo, da recepção do Sheraton,
ele telefonou para a "IMOBILIÁRIA PADRÃO" e, em três minutos, resumiu
para o patrão todo o drama que acabara de passar. Este, penalizado, resolveu
mandar seu motorista particular para pegá-lo.
O engenheiro Paulo Carneiro,
Diretor-Financeiro e sócio majoritário da "Imobiliária Padrão", era
um homem de humor inconstante, duro, calculista, sisudo, como costuma ser
determinado tipo de pessoa que veste couraça para proteger-se de sua própria
fragilidade. No fundo, no fundo, Dr. Paulo não passava de um ser sensível e
extremamente sentimental. Ele admirava Juvenal e tinha consciência de sua
importância para a Empresa. Ao recebê-lo, em seu gabinete, falou:
- Sua aparência está péssima! Parece
que foi vender barracos no morro do Vidigal. Cancele os demais compromissos de
sua agenda, para hoje, e tire o resto do dia de folga. Vá para casa, tire esta
roupa nojenta e tome uma boa ducha. Você irá se sentir melhor. E completou,
entregando a Juvenal, um cheque assinado: - Como não temos dinheiro vivo na
Empresa, desconte este cheque e fique tranquilo - o valor não será descontado
do salário nem de suas comissões. É uma espécie de bônus pelo prejuízo que
teve, e pelo susto que passou. E não me agradeça não, porque não estou fazendo
favor - é uma forma de investimento.
E mais não disse porque não foi
preciso. Mas, apesar de dispensado, Juvenal aproveitou o resto daquela manhã
para por em dia alguns papéis que se acumulavam em sua mesa.
Ao meio-dia, deixou o prédio da
Empresa, descontou o cheque e entrou numa lanchonete. Estava faminto! Depois de
lanchar, entrou num táxi e rumou em direção ao local que havia deixado seu
automóvel. Automóvel? Que automóvel? Não, não havia nada parecido com o seu
Opala que ele deixara ali, estacionado junto ao meio-fio. Entrou em pânico!
Afinal, o seguro do carro estava vencido e ele não tivera tempo de renovar.
Lembrou-se do amigo Gastão, detetive da polícia civil e resolveu telefonar-lhe.
Como estava sem ficha para o telefone público, entrou no botequim da esquina e
pediu para fazer a ligação. Gastão não estava nem em casa nem na Delegacia e,
em vista disso, resolveu deixar o recado nos dois locais. E quando foi pagar o
telefonema, ouviu do lusitano, dono do bar, palavras tranquilizadoras:
- Desculpe Doutor, mas não pude deixar
de ouvir sua conversa. Seu carro é um Opala azul-marinho, com chapa de
Petrópolis?
- Era.
- Não se preocupe. Ele não foi
roubado não. Foi rebocado pelo DETRAN.
Além dessa informação, o português
ainda lhe deu todas as coordenadas de tudo o que teria que fazer para recuperar
o veículo. Resultado: novo táxi, novo endereço e o pior, novas despesas.
Depois de comprar o formulário na
papelaria, enfrentar enorme fila na agência bancária para pagar a multa e o
reboque, Juvenal viu-se diante do seu carro, no terreno do DETRAN. Pior do que
sentir a falta de seu toca-fitas auto reverse e dos dois espelhos retrovisores
externos, foi lembrar-se de que estava sem combustível. Um
"flanelinha", agente associado ao policiamento ostensivo do trânsito,
que estava de plantão no local, logo se apresentou para resolver o problema,
mediante a cobrança de uma pequena taxa. Em fração de segundos, reapareceu o
administrador do espaço público com sua indefectível "flanela" em volta
do pescoço e um vasilhame numa das mãos. E foi aí que Juvenal percebeu que o
posto de gasolina mais próximo do terreno do DETRAN não era tão próximo assim.
De volta ao posto, agora na direção
de seu carro, Juvenal pensou em mandar encher o tanque. Pensou apenas, pois o
dinheiro que sobrara mal dava para uns quatro ou cinco litros, no máximo. Assim,
a volta ao lar não foi tão tranquila quanto desejava nosso herói. A chuva
voltou a cair com intensidade. Com o temporal, alguns pequenos acidentes de
trânsito aconteceram e, aliados ao impedimento de alguns trechos para obras da
Companhia Telefônica, fez provocar engarrafamentos em boa parte do trajeto. E
durante todo o percurso ele rezou, rezou muito para que o combustível desse
para chegar em casa. Bem, na verdade, o álcool só acabou a poucos metros do
prédio em que morava.
Severino, porteiro do edifício,
apesar do temporal, ajudou Juvenal a empurrar e a estacionar o carro na vaga da
garagem.
Já entrou no apartamento espirrando,
com a garganta ardendo e o corpo levemente febril. Na secretária eletrônica
havia apenas um recado. Era a Ritinha, sua namorada de longa data: -
"fiquei até às três horas da tarde sentada no restaurante, que nem uma
idiota, esperando por você para almoçar. Se não encontrar uma desculpa bastante
convincente, é melhor me esquecer".
Juvenal tinha esquecido o
compromisso. Também, pudera!
Depois de tomar uma boa ducha de água
morna, colocar o pijama, beber um café forte, nosso herói estendeu o corpo na
espreguiçadeira para, enfim, ler o jornal e fumar o primeiro cigarro. Não o
primeiro cigarro do dia, é claro, mas o primeiro cigarro do segundo maço.
Movido por uma curiosidade quase doentia, Juvenal começou a leitura do jornal,
justamente pela coluna que jamais dera a mínima importância: o horóscopo do dia
de MADAME X, que dizia: - CANCER: O sol em aspecto negativo com NETUNO lhe
trará problemas no campo social e profissional. Evite pequenas viagens e não
conduza veículos automotores. Terá problemas de desencontros, tanto no terreno
profissional quanto no campo afetivo. Tenha mais cuidado com sua saúde que está
fragilizada. ASCENDENTE: Esteja mais atento para a vida a dois. Você será mais
cobrado e terá que buscar mais equilíbrio entre seus direitos e as necessidades
dos outros".
Por via das dúvidas, daquele dia em
diante, Juvenal jamais saiu de casa sem antes ler seu horóscopo. O que ele
nunca soube, na verdade, é que o horóscopo que tanto o impressionara, não havia
sido escrito por Mirinho, o contínuo, e sim, por um jornalista idiota qualquer,
que jamais havia escrito sobre aquela matéria científica. Se soubesse o que
tinha acontecido, na certa Juvenal teria dito: "Ah, por que não deixaram o
Mirinho escrever o horóscopo de segunda-feira. Se fosse dele a redação, eu
tenho certeza que não teria um dia tão azarado!"
APOSENTADORIA COMPULSÓRIA
Um conto de
Angelo Romero
Tavico
(Otávio dos Santos Pereira Jr.), sempre foi tarado por fotografia. Quando
criança, folhear álbuns de fotos da família, nas horas vagas, era a sua melhor
diversão. Enquanto acreditou na existência de Papai Noel, pedia sempre em suas
cartas, uma máquina fotográfica no natal. Não era fácil para o seu pai, pequeno
funcionário dos Correios e Telégrafos, se desculpar pelo velho Noel, explicando
ao garoto que ele era jovem demais para lidar com objeto tão complicado. Tavico
aguardava o Natal a cada ano com maior ansiedade. Ao completar seis anos de
idade rompeu definitivamente com Papai Noel. Começou a desconfiar que o velho
jamais existira. – Como poderia o correio, que extraviava constantemente as
cartas de seus parentes do Rio para Recife e vice-versa, entregar as suas
cartas a um cara que sequer tinha endereço certo? E Tavico começou a
viajar: - primeiro, da ilusão para a revolta; depois, da desconfiança para a
certeza, até que chegou ao fim da viagem: a vingança. Foi aí que Tavico começou
a espalhar para todas as crianças do bairro a sua grande descoberta: - Papai
Noel é uma figura imaginária. Um vermelho. Um perigoso agente comunista. Não um
agitador profissional, mas um cretino com cara de bom moço e uma falsa
expressão de candura na face para iludir as crianças. Para prometer aos pobres
coisas que jamais poderia cumprir. E, nós adultos, que sempre pensamos ser
Papai Noel um agente do capitalismo, ficamos tremendamente preocupados com mais
uma descoberta infantil.
Ao
completar oito anos, Tavico ganhou de presente de seu avô sua primeira máquina
fotográfica, uma Kodak caixão. Foi uma loucura total! Daí em diante passou a
pedir filmes de presente a todos os seus parentes. Sua avó era quem mais o
abastecia, e haja filmes, porque o Tavico fotografava tudo o que via. Dos
treinos do Mengão, na Gávea, a desastres de trânsito, hoje tão frequentes,
sua máquina ia registrando tudo.
Um dia,
pensando em ganhar um prêmio de originalidade, fotografou uma menina do
pré-primário agachada, fazendo xixi no pátio da escola e ganhou uma suspensão
de uma semana sem direito a recreio, mais uma reprimenda por escrito com lápis
vermelho no seu boletim. Foi sua primeira decepção como fotógrafo.
O tempo
foi passando, Tavico crescendo e com ele crescendo também o seu ideal. Tirou um
curso de fotografia por correspondência, pago por sua mãe, e ao aprender a
medir distância, trocar lentes, abrir e fechar diafragmas acreditou que já era
um fotógrafo de mão cheia. Esqueceu-se, porém, que sua Kodak, modelo caixão,
tinha poucos recursos. Tentou arranjar emprego como fotógrafo e o máximo que
conseguiu foi trabalhar como contínuo num laboratório fotográfico. Era tão
contagiante o seu entusiasmo pelo trabalho que em pouco tempo tinha cativado
todos os empregados da casa, inclusive o gerente, também um amante da
fotografia. Era um velhote simpático, gordo, baixinho e ligeiramente gago. Bem,
falava com dificuldade, mas fotografava como gente grande!
Tavico
esquecia-se das horas fazendo extras depois do expediente, aprendendo a arte de
revelar e ampliar negativos, mergulhado na sufocante penumbra vermelha do
laboratório. Não precisando ajudar em casa com seu magro salário, em pouco
tempo juntou o suficiente para comprar uma máquina fotográfica japonesa de
segunda mão.
O tempo
escorria pelas mãos suadas de Tavico como a fina areia de uma ampulheta: lenta,
mas progressivamente. A perda da noção da passagem do tempo é característica de
quem o usa em função de um trabalho entusiasmante. Quando já estava tirando
fotos dignas de serem analisadas por um profissional, sentiu que seu entusiasmo
e ele, juntos, já não cabiam mais dentro do laboratório. Entendeu que chegara a
hora de provar que já podia viver de sua arte, de seu talento. Puro engano.
Estava na hora era de servir ao seu país. A pátria o requisitara. Não para
fotografar uma missão especial no exterior e nem sequer aos movimentos das
tropas em exercícios de rotina, e sim, para fazer parte deles, sem a sua
máquina, é claro.
Assim como o destino costuma preparar
surpresas desagradáveis, pode reservar surpresas agradáveis também. O que seria
uma humilhação para qualquer mortal, para Tavico foi um prêmio especial. Foi
dispensado do exército por possuir um físico incompatível com as Forças
Armadas. Baixo, franzino, anêmico e, de quebra, vitimado por uma bronquite
crônica.
De posse
de seu certificado militar de terceira categoria e de um álbum no qual
selecionou suas melhores fotos, Tavico percorreu todas as redações de jornais
do Rio, em busca de uma oportunidade. – “Só com comprovada experiência
profissional” – era o que ia ouvindo por onde passava. Ora bolas - falava de si
para si – como se pode adquirir experiência se não nos dão oportunidade para
iniciar a profissão? Já quase sem esperança, Tavico resolveu visitar um jornal,
cuja fama era de ser mais que um pasquim, um banco de sangue. Tragédia sem
morte e sem muito sangue jamais seria tema para a manchete principal e o título
teria que ser impresso em letras vermelhas. Enfim, conseguiu um emprego como
“foca” para ficar três meses de experiência, sem carteira assinada, sem
ordenado e recebendo, apenas, uma pequena ajuda de custo para a condução e o
cigarro.
Tavico
começou com toda a fúria e fotografava até as máquinas impressoras rodando o
jornal na oficina.
Ao
crepúsculo de um belo dia de verão, ao findar o terceiro mês e com poucas
perspectivas de ser aproveitado, encontrava-se ele de plantão na redação, em
companhia do fotógrafo mais antigo do jornal e, provavelmente, do jornalismo
brasileiro. Este, na verdade, já passara, em muitos anos, o tempo para se
aposentar. Mas, por condescendência do proprietário do pasquim, continuava a
trabalhar. O estridente toque do telefone, na redação, fez interromper o jogo
de “Damas”, que o distraia. Um conhecido informante telefonava para avisar, com
algum atraso, que houvera uma pequena rebelião no presídio da Frei Caneca (hoje
desativado) e que três perigosos integrantes da baixa criminalidade - já que os da alta sequer são indiciados -
tinham conseguido escapar e deveriam estar naquele momento, malocados no morro
que ficava bem aos fundos do presídio. Teixeira, o velho fotógrafo, foi o
destacado para a missão, mas Tavico conseguiu, com o chefe da redação,
permissão para acompanhar o colega. Aquela, na verdade, seria sua primeira
grande chance. O morro estava coalhado de policiais do “Bope”, armados até os
dentes. A missão exigia a atuação da tropa de elite. Afinal, entre os fugitivos
estava “Olho de Gato”, traficante sanguinário, ex-líder do “Comando Vermelho” e
apontado como o inimigo público número um.
Teixeira,
alto, gordo, com pouca mobilidade, avantajada miopia e com o vermelho do sol do
crepúsculo encravado nas grossas lentes de seus óculos, colocou-se bem na linha
de tiro e foi o alvo mais fácil que encontraram. Um balaço o atingiu pelas
costas, vazou seu corpo na altura do coração, impelindo-o violentamente para
frente. Surpreso, não tendo tempo para escolher melhor lugar para o pouso, caiu
de boca numa vala pútrida e desencarnou sem saber se havia sido atingido pelo
mocinho ou pelo bandido daquele filme de ação.
Tavico foi
imediatamente efetivado. Não tanto pela vaga deixada pelo velho Teixeira, mas,
sobretudo, pela expressão captada por sua possante “Yashica”: “a expressão de
dor de quem é aposentado compulsoriamente”.
ROSINHA
Angelo Romero
Eu já não suportava a ausência
daquela mini-saia rodada, xadrez cinza e vermelho. A blusa branca com a gravatinha também em
xadrez completava o uniforme das alunas do colégio que existe em frente à minha
casa. Aquelas férias de fim de ano pareciam,
para mim, as mais longas de todas as férias escolares.
A janela do meu quarto ficava no
pavimento superior de nossa casa, e bem defronte ao portão principal do
colégio. De lá, costumava ver pela manhã
e ao cair da tarde, a entrada e a saída das meninas. O muro alto de tijolos vermelhos de cerâmica,
acrescido de uma trepadeira que floria durante a primavera, escondia quase todo
o pátio de entrada, deixando apenas descoberta a grande porta principal que
dava para a recepção e a secretaria. Da
minha janela podia imaginar as demais dependências, pois conhecia todo o
colégio.
Estive lá apenas uma vez. Foi quando fui matricular Martinha, minha
irmã caçula. Dona Celeste, a diretora, impressionou-me por sua polidez e
simpatia. Apesar de impor respeito, não carregava, em suas feições, a imagem do
autoritarismo. Muito pelo contrário,
pois possuía o ar de irmã mais velha de suas alunas e, por isso, por elas era
querida.
Quando de minha visita, mostrou-nos
todo o Colégio, sempre segurando carinhosamente a mão de minha irmãzinha. Vimos a secretaria, as salas de aula, o
ginásio, adaptado para toda e qualquer modalidade desportiva, a piscina, a
sauna, a biblioteca, o refeitório e uma pequena enfermaria. Enquanto mostrava, Dona Celeste procurava
valorizar os mínimos detalhes, e se seu entusiasmo era contagiante, sua
fisionomia era encantadora.
Naquele
momento era hora de recreio e o pátio estava repleto de rostos e vozes. Eram meninas e moças que distribuíam
vitalidade e alegria. Mas não creio que,
entre tantas, houvesse uma expressão mais jovem e feliz que a de Dona
Celeste. Seus cabelos grisalhos pareciam
tranças loiras. Suas pequenas rugas
haviam-se transformado em alegres covinhas, e o brilho de seus olhos, duas
lágrimas de vida. Naquele momento notei
também um sorriso de felicidade nos olhos de minha irmã. Calada, a tudo apreciava, e penso que nada
dizia para não desmanchar o sorriso.
Soube mais tarde, por uma amiga que
havia concluído o segundo grau ali, que Dona Celeste dedicara a maior parte de
sua vida àquele estabelecimento de ensino.
Sempre foi a primeira a chegar e a última a sair. Todas as noites, pontualmente às 19 h, um
motorista estacionava luxuoso automóvel preto em frente ao portão principal, e
esperava-a por tempo indeterminado.
Num país em que o professor é mal
pago, Dona Celeste conseguia manter um corpo docente de excelente nível,
regiamente remunerado. Era com
competência e zelo que conseguia supervisionar, pessoalmente, todos os setores
de seu estabelecimento, desde o ensino propriamente dito, até a boa
alimentação. As salas de aula eram
claras, arejadas e confortáveis, e no refeitório havia um asseio incomum. Jarras com flores ornamentavam as mesas que
estavam sempre forradas por toalhas impecavelmente brancas.
Funcionando basicamente em regime de
dois turnos, o Colégio apresentava também o sistema de semi-internato. Para as alunas semi-internas, o almoço era
servido com cardápio variado e sadio.
Para isso haviam contratado competente nutricionista que sabia dosar
gorduras e calorias na medida certa. Se
porventura alguma aluna apresentasse atestado de seu médico particular
sugerindo dieta alimentar, esta era seguida à risca.
A preocupação de Dona Celeste com suas
alunas costumava ir além do alto muro de tijolos vermelhos. Psicóloga, sabia como ninguém, compreender o
ser humano em formação. Visando integrar
corpo e espírito, distribuía conhecimentos com muito amor. Aliás, toda a técnica empregada por ela tinha
o amor como sustentação. Assim,
acreditava, seria capaz de fortalecer o caráter, alimentando-o de cultura.
Se antes a carência de afeto e a
falta de bons exemplos eram fatores inerentes às crianças abandonadas ou
oriundas de família de baixa renda, hoje tal fato estendeu-se às crianças
nascidas em berço de ouro. E com um
agravante, diga-se de passagem, pois o amor destas costuma ser comprado pelos
pais, através de caros presentes. É
assim que as crianças aprendem, desde cedo, a conviver com o suborno.
A ambição desmedida é muito própria
do rico e do novo rico. A luta para a
manutenção do status exige-lhes tempo e a sobra deste, que deveria ser dedicado
a atenções com os filhos, é desviada para as academias de cultura física, para
o tênis, o massagista, o analista, os parceiros de biriba e os amantes de
ocasião.
Em contrapartida, para que as
crianças não sintam ausência dos pais e possam descarregar energia e
agressividade, estes, por sua vez, impingem-lhes atividades diversas,
indiscriminadamente, tais como: estudo de línguas, de música instrumental, de
dança, de artes marciais, ginástica e de uma ou mais modalidade
desportiva. Não importa a vocação que
cada uma por ventura venha a ter.
Importante mesmo é que fiquem o maior tempo possível fora de casa e que,
ao chegar, estejam extenuadas.
Consciente ou inconscientemente, não importa. Mas, salvo algumas exceções, este tem sido o
comportamento dos pais de famílias abastadas.
Por ter tido, no passado, uma
experiência traumática, Dona Celeste criara aquele estabelecimento de
ensino. Agora, através de suas alunas,
podia entender melhor a sociedade moderna.
Compreendia que para educar esse tipo de criança, precisaria de um
ambiente propício, confortável, capaz enfim, de proporcionar ao jovem educação
e cultura, tendo como base o amor e a liberdade disciplinada. Ela não gostava que dissessem que seu Colégio
era o prosseguimento do lar, mas ficava feliz quando ouvia dizer que aquele
estabelecimento era um verdadeiro lar.
Tudo ali me impressionara
favoravelmente, mas nada me chamou tanta atenção quanto uma pequena sala com
lindas cortinas, tapetes, um moderno jogo de poltronas, abajur de pé e
almofadas espalhadas pelo chão. Havia
uma plaqueta na porta com a seguinte inscrição: "sala de
repouso". Nesta sala, Dona Celeste
parecia armazenar soluções. Os problemas
apresentados por suas alunas, na sua maioria, fugiam ao âmbito escolar. Invariavelmente ela dedicava parte do dia em
conforto moral, conselhos e orientações maternais das mais diversas. A "sala de repouso" poderia ser
chamada também de "sala das confidências" ou "sala de
recuperação espiritual", pois ali foram evitados abandonos de lar,
descontroles sexuais, e até mesmo concretização de plano para suicídio. Era naquela sala que ela recebia os pais das
alunas, e que chamava a atenção das meninas por atos de indisciplina. Era naquela sala também que, depois de
admitir uma nova aluna ministrava, a ela, os primeiros conselhos.
Assim era Dona Celeste, assim era seu
mundo. Soube também, mais tarde, por sua
ex-aluna, que por trás daquele mundo, tentava ela esquecer um outro. Um mundo de sonho e fantasia concebido em seu
primeiro e único amor. Um amor desfeito
pela imaturidade de adolescentes. O casamento
durara apenas três anos. Um único
problema, aparentemente sem solução, foi o causador dos desajustes e
incompreensões: Dona Celeste não podia ser mãe.
Que destino! Logo ela que sempre
tivera adoração por criança.
Assim, diante de tal fato, pude
compreender melhor o entusiasmo dela ao mostrar-me o Colégio. Não havia nenhuma intenção de publicidade,
pois me foi difícil conseguir vaga para minha irmã. Era hábito seu, agir daquela maneira diante
dos visitantes. Aquela era uma forma de
extravasar vaidade e orgulho, e de encobrir seu próprio drama.
Depois de acertarmos tudo sobre a
matrícula de minha irmã na secretaria, fomos conversar na "sala de
repouso", onde então tivemos a oportunidade de nos conhecer melhor. Expus à Dona Celeste meus problemas com
relação à educação de Martinha. Fiz ver
a ela que a pensão de viúva que minha mãe recebia não era suficiente para
atender a todas as nossas necessidades, principalmente por termos três crianças
em casa em idade escolar. Diante desse
quadro, decidi trancar minha matrícula na Faculdade e arranjar um emprego que
ao menos pudesse me proporcionar condições para cuidar do ensino de meus irmãos
menores. Martinha, a caçula, era a única
que não estava tendo bom aproveitamento em escola do governo. Possivelmente por não ter tido tempo de
conhecer e admirar papai, com seu equilíbrio e eficiência de chefe de família,
e seu dom de manter a paz e distribuir felicidade no lar. Eu, felizmente, já estava trabalhando e,
apesar do salário modesto, podia ver realizado um sonho antigo. Matricular Martinha naquele estabelecimento
modelar de ensino era a melhor forma que poderia encontrar para compensá-la e,
naquele momento, estava profundamente feliz.
Ao agradecer minhas palavras, Dona
Celeste não conseguiu disfarçar a emoção.
Em seguida pediu-me, delicadamente, que aguardasse Martinha no corredor,
pois precisava falar com ela a sós.
- Em determinados momentos - disse
ela - devemos dar à criança, um tratamento adulto.
Quando saí da "sala de
repouso", bati os olhos numa jovem que presumi ter em torno de 15 anos de
idade. Com a cabeça encostada no braço
direito, e com esse apoiado ao portal da "sala", soluçava. Deveria estar esperando uma oportunidade para
falar à Dona Celeste. Não contive minha
curiosidade e indaguei:
- Deseja falar com a Diretora?
Ela me olhou, surpresa, prendeu o
soluço e respondeu apenas:
- Sim, quero.
Apesar da profunda tristeza que a
envolvia, era bela. Seus olhos graúdos
eram azul turquesa. Possuía grandes
cílios e perfeitas sobrancelhas. A boca
carnuda e bem contornada estava suavemente pintada num tom róseo. Os cabelos negros e lisos caiam-lhe pouco
abaixo dos ombros. O busto, em formato
de pera, era pequeno e ereto. Sob a
mini-saia xadrez cinza e vermelho, podia-se antever um lindo par de coxas. Pernas esguias, finos tornozelos e pequenos
pés de fada completavam um corpo atraente.
Seu olhar entre o meigo e o arisco, irradiava uma ingenuidade sexy.
- Aguarde um pouquinho. Dona
Celeste está conversando com minha irmãzinha e logo irá lhe atender.
Ela olhou-me mais uma vez e, sem nada
dizer, voltou à posição primitiva. A
tentação de vê-la me olhar foi maior que minha timidez. Voltei a falar:
- Posso ajudá-la de alguma forma?
Sem mover a cabeça, respondeu-me num
tom aborrecido:
- Ninguém poderá me ajudar. Quero apenas desabafar com a diretora.
Não insisti. Logo a seguir, Martinha saía da sala com o
mesmo sorriso que entrara. Era evidente
seu embevecimento. Às minhas perguntas,
respondia com um movimento de cabeça como se estivesse encantada. Durante muito tempo manteve o mesmo ar feliz.
- Martinha causou-me muito boa
impressão. Quero que esteja aqui com ela
amanhã às sete horas - falou-me Dona Celeste antes de nos despedirmos.
- E se não tiver tempo hoje para
providenciar o uniforme? - perguntei.
- Não tem importância. Martinha já perdeu as primeiras aulas. Nesses casos, o uniforme passa a ser problema
secundário.
Despedimo-nos e, ao me afastar, ouvi
a Diretora dizer:
- Entre, Rosinha.
Agora podia eu dar nome à imagem que
povoava meus sonhos: Rosinha. Naquele
momento entendi que aquele nome ficaria gravado em minha memória enquanto
vivesse.
Na verdade eu já a tinha visto
centenas de vezes, sempre da janela de meu quarto. A primeira vez que a vi, fazia dois anos. Foi logo após mudarmos para aquele novo
endereço. A partir daquele dia, passei a
acompanhar, à distância, sua beleza e elegância. Agora, depois de vê-la de pertinho, não tive
mais dúvidas, era paixão o que sentia. E
tão inconfessável, como parte de meu desejo de ver minha irmã matriculada no
mesmo colégio. Minha sinceridade havia
sido apenas parcial ao conversar com Dona Celeste. Foi evidente meu interesse em provocar uma situação
capaz de fazer aproximar-me de Rosinha.
E depois que aqueles olhos azuis turquesa me fitaram, desejei descobrir
não apenas o azul, mas o arco-íris de seus mistérios.
Confesso que o destino foi muito
generoso para comigo, ao colocar Anita, minha vizinha, estudando na mesma sala
que Rosinha. Com pouco mais de um ano de
relacionamento, haviam-se tornado amigas íntimas. Ao saber disso, busquei maior aproximação com
Anita. Procurei usar de todo meu
charme. E após trocarmos algumas
confidências, percebi que havia adquirido sua confiança. Meu plano para chegar até Rosinha, através de
Anita, estava em andamento. Não, não
gostaria de chegar até Rosinha ainda, e sim, aos seus segredos e mistérios, à
sua intimidade, enfim. Apesar de minha
insegurança, usei de subterfúgio e discrição.
Anita não poupou palavras. Pelo contrário,
foi prolífera demais.
O pai de Rosinha era presidente de
uma grande empresa de construção civil.
A mãe, dama da sociedade. Ela,
filha única, sempre teve do bom e do melhor. Até motorista particular para
levá-la ao colégio. Serviço esse que dispensava, pelo prazer de ir se
divertindo, com as colegas, no ônibus que a deixava na esquina da rua. Mas soube mais, muito mais. Soube o que supunha tivesse acontecido ao
vê-la chorar naquela manhã: um caso de amor.
Primeiro amor. Amor que quando
findo, costuma deixar marcas profundas.
A carência de afeto levou-a a apaixonar-se por um homem maduro e
experiente. O melhor amigo de seu pai. Também rico, também casado, também
cretino. A ele dedicara sua primeira
noite de amor. E nem foi noite. Tudo aconteceu numa tarde cinzenta, de chuva
e vento, discos e bebidas, gemidos e silêncio.
A vida passava por mim, da mesma
forma que Rosinha passava por minha janela: sempre à distância. Alimentava-me de imagem, sem perfume ou
sabor, e parecia que isso me bastava. No
entanto quis o destino novamente interferir a meu favor. Anita iria aniversariar naquele mês. Para comemorar a data, estava sendo
organizada uma grande festa.
Convidou-me. Imaginei que não poderia haver uma oportunidade melhor para
conhecer Rosinha pessoalmente. A
apresentação iria acontecer normalmente, tal qual havia sonhado. Mas, apesar de toda esta ansiedade, resolvi
não ir. Preferi mantê-la prisioneira de
meus sonhos onde então só a mim pertencia, a arriscar-me perdê-la diante do
mundo real. Mas o desejo de vê-la chegar
à festa excitava-me. Da janela de meu quarto procurei o melhor ângulo. Mesmo ausente, sentia-me o centro das
atenções. Nem a distância foi capaz de
proteger-me da insegurança e da inibição que me dominavam. A mente humana é capaz de projetar situações
embaraçosas e constrangedoras. Sentia-me
como se fosse uma pessoa estranha em meu próprio quarto.
Mandei Martinha com um bilhete. Procurei desculpar minha ausência em virtude
de forte indigestão. É sempre uma
satisfação, para quem é pobre, dizer que adoeceu por ter comido demais.
A festa foi bem concorrida. Automóveis de luxo congestionaram a rua. Rosinha chegou num deles, acompanhada por
seus pais. Quando a vi, acenei com a mão,
instintivamente. Foi óbvio que não me
viu. Mas na condução de meus sonhos,
mando eu. Por isso sorri feliz ao vê-la
acenar pra mim.
O tempo passou célere e, quando
percebi, já estávamos próximos das férias de julho. Perdi meu emprego. Sem salário, não teria como pagar um colégio
tão caro. Se em março daquele ano havia
tido o dia mais feliz da minha vida, agora, em julho, acabara de ter o mais
triste. Após explicar o ocorrido à Dona
Celeste, solicitei transferência de minha irmã para uma escola pública. No entanto, para surpresa minha, a diretora
não concordou com o pedido. Com bondade
e compreensão não muito comuns nos dias que correm, propôs que Martinha continuasse
ali seus estudos até o final do ano. Se
até lá eu conseguisse um novo emprego, voltaria a pagar a partir do primeiro
ordenado, apenas o mês a vencer. Os
anteriores seriam saldados através do bom comportamento de minha irmã e de seu
ótimo aproveitamento.
Dois meses depois voltei a trabalhar
e a sorrir. Martinha passou em primeiro
lugar nas provas finais. Agora viriam as
férias de fim de ano. Seriam dois longos
meses sem ver Rosinha. Nunca este fato
havia me deixado com tanta angústia e depressão. Durante aquele ano letivo, acostumara-me a
vê-la através de minha janela, sempre à entrada, e algumas vezes também à saída
do Colégio. Procurei, conscientemente,
evitar apresentações. Amar à distância
havia sido minha opção. Como iria
preencher agora o grande vazio que sua ausência iria me causar? Não sabia responder. Rosinha continuaria seus
estudos naquele Colégio, já que tanto ela quanto Anita haviam acabado de
concluir o 1º grau? Esta pergunta ficou
também sem resposta durante alguns dias.
Enfim as férias chegaram. Contou-me Anita que Rosinha iria passá-las em
Búzios, e a convidara também para ir.
Vivi dois séculos em apenas dois meses.
Foi um verão de manhãs insólitas, tardes longas e noites angustiantes.
Março chegou para revitalizar minhas
energias e renovar minhas esperanças.
Logo estava eu no pátio do Colégio com Martinha, aguardando não só a
chamada para o início das aulas, como também a chegada de Rosinha. Impaciente, fumava um cigarro após o
outro. Finalmente ela passou pelo portão
ao lado de duas colegas. Falava,
gesticulava e sorria muito. Eu jamais a
vira assim. Era uma alegria contagiante,
sem dúvida. Meus olhos encheram-se de
lágrimas. A imaginação fez com que o
ciúme me corroesse a alma. Afinal, foram
dois longos meses de verão longe de meus olhos prospectivos. Senti-me impotente ao constatar que aquelas
férias haviam-na transformado numa jovem feliz, sem que eu tivesse participado
dessa transformação. Naquele momento
decidi que na primeira oportunidade iria falar-lhe de meu amor. Que fosse para o inferno todo e qualquer
sentimento de inibição, timidez ou recalque que, por ventura, estivesse
sentindo. Descobri que não era vergonha
ser pobre. Vergonha seria esconder a
pobreza. Para o inferno também com a
Sociedade que sempre ditou os padrões de moralidade apenas para proteger seus
interesses imorais. Não sei o que é
certo ou errado, e duvido muito quem o saiba.
Só sei que amar não é pecado, seja de que forma venha a ser este amor. Daria um basta em meu amor platônico,
transformando-o em algo palpável e possivelmente recíproco. Arriscaria todos os meus sonhos numa só
cartada, no pano verde da verdade, mesmo que a realidade não me fosse
favorável. Afinal, ao procurar me
analisar, entendi que possuía educação, simpatia, razoável cultura com boas
possibilidades de futuro. Por que não
arriscar?
Passei o resto do dia no trabalho,
numa excitação incomum. Pedi ao meu
chefe para sair mais cedo. Senti
incontrolável desejo de ver Rosinha deixar o Colégio naquela tarde. Não, não
apenas de ver, mas falar, revelar meu amor. Ela passou por mim sem me ver, como
se eu fosse invisível. Emudeci. Acompanhei seus passos com os olhos turvos de
emoção.
À noite, Marcos chegou mais cedo do
que de costume. Eu havia acabado de
jantar. Beijou-me na boca como sempre
fazia, só que, daquela vez, correspondi com toda a paixão que tinha dentro de
mim. E quando nossos lábios se
separaram, não pude conter o sussurro: Rosinha, meu amor!
Rio
de Janeiro, manhã da última quinta-feira de fevereiro de 1967.
“BAHIA DE TODOS OS SANTOS”
(Angelo Romero)
O bar
estava repleto. Instalado no alto da parede, à esquerda de quem entra, um
aparelho de televisão exibia naquele momento a novela das nove no volume
máximo. Na última mesa, nos fundos, à direita, um pequeno grupo ouvia, através
de um possante rádio de pilha, a transmissão do jogo de futebol entre o Bahia e
o Fluminense de Feira de Santana. Portanto, como é de se imaginar, o barulho
por ali era ensurdecedor. Aliás, o brasileiro é o único povo no mundo que pensa
que todo mundo é surdo... Vai falar alto assim nos "quintos do
inferno"! Pois bem, apesar da diversificação e do volume dos ruídos, uma
voz se destacou na pequena multidão:
-
DEUS é baiano! - exclamou Clô, jornalista licenciado da "Folha da
Tarde".
Aquela afirmação em frase curta obteve o efeito de um tiro dado para o
alto. O silêncio passou a ser maior do que o da elevação da eucaristia nas
missas da sexta-feira da Paixão.
-
Está louco você, ou o fogo da cachaça já lhe fritou os miolos? - perguntou Luís
Alfonso, o espanhol dono do bar, com seu castelhano perfeito, mas já com o
sotaque baiano.
Luís
estava a trinta anos em Salvador e “Filho da Puta” era a única coisa que sabia
falar em português corretamente.
- É
isso mesmo - continuou Clô - descobri que Deus é baiano.
Não
fosse o seu adiantado estado de embriaguez, as pessoas poderiam pensar que ele
estava falando sério. Apesar de viver constantemente licenciado para tratamento
do alcoolismo, era Clodoaldo Matoso, mais conhecido como Clô, um cronista
respeitado. Zé do Carmo, gozador aposentado pelo INSS, procurou alimentar o
tema levantado:
-
Olha cara, eu sei que a Bahia é privilegiada. Afinal, é o Estado que mais
homens ilustres têm dado ao Brasil... Mas, DEUS!? Eu acho que agora você
exagerou. Como foi que chegou a esta
conclusão?
-
Baseei-me em estudos e observações...
Barriguinha, freguês assíduo do bar do espanhol, era católico fervoroso.
Tão católico que a cada gole que dava em seu traçado, não só agradecia como
oferecia a Deus. Pois bem, Barriguinha estava indignado com Clô.
-
Baitôla, miserável! Você só pode ser ateu. Não conhece o mandamento que diz
"não levantar Seu Santo Nome em vão"? Como você pode brincar com o
nome de Deus!?
-
Deus não só é baiano, como nasceu em Salvador - afirmou Clô.
-
Isso é sacrilégio! Cala essa boca, infeliz, antes que eu perca a cabeça e lhe
quebre os dentes - gritou Barriguinha, ameaçando se levantar.
-
Calma Barriguinha - interveio Zé do Carmo. Se o homem aí estudou e chegou a
essa conclusão, vamos dar uma oportunidade a ele de se explicar... Vá em
frente, Clô.
- A
igreja não é a casa de Deus? - perguntou o cronista. Pois bem – continuou -
Qual é a cidade que tem 365 igrejas? Qual é a cidade que tem 365 dias festivos
no ano? Qual é a cidade em que alguns trabalham pra valer, para que todos
possam se divertir diariamente? Salvador, meu filho - SALVADOR!
"Nova Galícia", mais conhecido como bar do espanhol, era
reduto de aposentados, desempregados, biscateiros e foras da lei. Logo, aquela
revelação causou indignação na maioria dos presentes, pois quem mais se revolta
em ser chamado de preguiçoso, é justamente quem menos é chegado ao trabalho.
Assim, em meio a palavrões e ameaças, o grito de Zé do Carmo se fez destacar:
-
Calma gente, que o letrado aí deve ter mais coisas a dizer.
- E
é bom que tenha mesmo, porque até agora o que ele fez foi chamar baiano de
vagabundo. E logo esse miserável que só vive licenciado!
- E
quem foi que disse que baiano é preguiçoso? - Baiano é esperto, criativo...
Trabalha com a cabeça. E quem lhe deu toda essa esperteza e inteligência? Deus,
que é seu Pai, e Jesus que é seu irmão - falou Clô.
Aproveitando o momento de silêncio, Zé do
Carmo provocou:
-
Mas esperto só se cria quando encontra otário, e por aqui quem é otário?
-
Ué, os turistas - rebateu ele. O pessoal que vem de todas as partes do Brasil e
do mundo pra trazer dinheiro pra nós. Ah, e por falar em turista, por que vocês
acham que Deus colocou Sergipe coladinho à Bahia?
- Eu
sei lá porque - resmungou Zé do Carmo.
-
Por causa do artesanato baiano - respondeu Clô.
-
Êpa. Essa eu não entendi...
-
Mas eu explico - continuou. Nós faturamos horrores com o nosso artesanato que é
conhecido no mundo todo. No entanto, a maior parte do artesanato baiano é feito
em Sergipe. Ou seja: eles, por lá, dão um duro danado, e nós aqui, vendemos e
ganhamos à fama!
-
Esse indivíduo continua a chamar a gente de preguiçoso, cara. Já vi que pra
ele, baiano não trabalha... Eu já tô começando a ficar puto - falou
Barriguinha, ameaçador.
- Se
segura aí, Barriguinha. O que o letrado quer dizer é que nós, baianos, sabemos
ganhar dinheiro sem precisar dar
duro...
- É
isso aí - continuou Clô. Por exemplo: - quem inventou o "Trio
Elétrico"?
-
Foi um baiano? - perguntou Zé do Carmo.
-
Não sei, e pouco me interessa saber. O que importa mesmo é que foi um baiano
esperto quem divulgou a engenhoca. Antes do advento do "Trio
Elétrico" era preciso uma orquestra para levar o som para um grupo de
pessoas. Hoje, através da engenhoca, um pequeno grupo de músicos, sem fazer
muita força, leva o mesmo som para milhares de foliões. Vê? Só mesmo coisa de
baiano...
É
bem verdade que, até ali, nada havia sido dito de concreto, por Clô, que
pudesse provar a nacionalidade e naturalidade de Deus. No entanto, com sua
verve, o cronista conseguira acalmar os ânimos. A discussão, naquela altura,
poderia ter morrido, mas Zé do Carmo não deixou:
- Tu
achas cara, que se Deus fosse baiano ia mandar Jesus, Seu filho, pra Jerusalém?
Mandava Ele pra Salvador.
- E
quem pode me assegurar que Jesus quando veio ao mundo não esteve por aqui
primeiro hem? Tem alguém aqui que conheça Jerusalém?
Silêncio total!
Pois
asseguro que não precisam ir até lá. Seria uma perda de tempo e de dinheiro. Se
querem saber como é Jerusalém, basta ir até Milagres, aqui no sertão baiano.
Tenho a impressão de que Jesus, antes de ir pra Jerusalém, andou uns tempos por
Milagres para ir se acostumando com o tipo de região... Claro que não temos a
infraestrutura que hoje eles têm por lá. E nem precisamos, pois se em
Jerusalém o povo vive à custa do turismo, em Milagres, a gente de lá vive à
custa de milagres. Aliás, esta é a única diferença, pois em termos de riqueza e
beleza naturais, é tudo igual. É como trocar merda por cocô.
Todos riram exceto Terencio. Para falar neste último personagem, preciso
abrir um parêntese: - Seria desperdício de tempo calcular as medidas, em
centímetros, que aquele negão tinha de tórax, braços e pernas. Porém, de altura
era fácil: mais de um metro e noventa. Terencio estava sentado no fundo do bar
e, ao se por de pé, quebrou a luminária do teto com a cabeça. Sua voz de trovão
fez balançar os cascos vazios de cerveja que estavam por sobre o balcão:
-
Está me chamando de merda? - perguntou ele a Clô. Pois saiba que sou filho
daquela terra...
Na
certa aqueles eram os dentes mais alvos e perfeitos de toda a Bahia. Era, sem
dúvida, em todos os sentidos, um dos mais bem dotados exemplares da cor de
ébano. Negro pra qualquer rainha escandinava abdicar da coroa! Mesmo assim,
diante daquele monumento, Clô não perdeu a pose:
- Se
o amigo aí é de Milagres, por favor, não se ofenda. Quem nasce naquela região
pobre, traída pelos políticos, esquecida pelas autoridades e, mesmo assim,
consegue sobreviver e se transformar num homem forte, saudável e inteligente
como vossa mercê, é prova viva de que minha teoria está certa. Você, cidadão, é
o próprio milagre!
O
negão voltou a sentar e, já mais calmo, falou:
-
Bem, na verdade, eu nasci em Milagres, mas fui criado numa fazenda de cacau em
Itabuna...
-
Milagres ou Itabuna, não importa. Tudo isso é relevante. O que conta,
realmente, é que aqui todos nós somos baianos com a graça de Deus. Temos esse
privilégio. O verdadeiro baiano não briga com outro baiano a não ser por
mulher, cachaça ou futebol. Portanto gente estou tranquilo, pois falo de Deus
Todo Poderoso!
-
Ah, quer dizer que você acredita que por religião, baiano não briga? -
perguntou Barriguinha.
-
Claro que não - respondeu Clô - pois se brigasse os adeptos do Candomblé não
iam lavar as escadarias da igreja do Bonfim. Nós, baianos, somos um povo unido
na religião, na política e nas artes.
Principalmente nas artes! Ao eleger os melhores do país, o baiano é
unânime. Querem ver? Vou perguntar,
sabendo que não precisam responder: - Quem é o maior escritor do Brasil? Qual é
o melhor pintor? Quem são os melhores cantores, cantoras e compositores? Quem é
o maior líder político do país? Todos são baianos com a benção de Deus!
Houve aplausos e silencioso balançar de cabeça em sinal de aprovação. No
entanto, Zé do Carmo não estava nada satisfeito e acabou por provocar
novamente:
- É,
na retórica, o ilustrado cronista é imbatível! Porém, pra mim, pessoalmente,
tudo até aqui não passou de prosopopéia, de uma prosa divertida. Na verdade,
nenhuma prova cabal, histórica, irrefutável foi apresentada, capaz de colocar
como inquestionável, tão absurda tese. Entretanto, como acredito na
inteligência e na cultura de nosso cronista maior, imagino que você, Clô, tenha
guardado para o final, uma revelação bombástica, colhida sob a poeira de um
alfarrábio do tempo. Vamos lá, meu predileto cronista, não nos faça esperar
mais. Seja benevolente para com nossa desconfiança e comprove sua tese. Afinal, por que acredita que Deus é baiano?
Clô
coçou a cabeça. Dezenas de olhos questionavam o silêncio. Olhos que pareciam
fuzis apontados em sua direção no momento que antecede ao fuzilamento. O
cronista pigarreou procurando ganhar tempo. O bar do espanhol nunca havia
experimentado silêncio parecido. De repente, Clô sorriu. Foi um sorriso curto,
contido. Mais de alívio do que de satisfação. Parecia que havia encontrado uma
luz no fim do escuro túnel, quando começou a falar pausadamente:
-
Como é sabido por todos, Deus fez a semana ter sete dias. Em seis criou o mundo
e no domingo descansou, não é verdade?
Não
se ouviu uma só voz, murmúrio ou ruído.
-
Mentira! - gritou Clô. Todos vocês foram enganados a respeito. Domingo não é o
último dia da semana, é o primeiro. Portanto, Deus, quando resolveu criar o
universo, descansou bastante no domingo, pra depois fazer o mundo na segunda,
terça, quarta, quinta, sexta e sábado. E aí está meus amigos, a maior prova que
posso dar de que Deus é baiano...
A
voz de Zé do Carmo interrompeu o silêncio:
-
Explique melhor. Não sei aonde você quer chegar...
-
Muito simples - concluiu o cronista: o baiano é o único povo no mundo, capaz de
tirar férias antes de começar a trabalhar...
E
aí, gente, o pau comeu...
O futuro a
Deus pertence.
Angelo Romero
As pessoas
estão divididas em dois distintos grupos: as que desejam saber sobre seu
futuro, e as que preferem ser surpreendidas. É um conjunto de detalhes que as
separam e tudo poderá estar ligado a questões de índole e criação. No grupo das
audaciosas estão as impacientes, irrequietas e curiosas. Já as do grupo das
acovardadas e impressionáveis estão as que costumam dizer: “o futuro a Deus
pertence”.
Já Bartô (Alberto Ferreira Martins), enquadrava-se
no primeiro grupo. Como não se achava uma pessoa impressionável, dizia que
sabendo sobre seu futuro, conseguiria se precaver e, antecipando-se a
determinado problema, poderia tomar algumas providências.
Bartô
atravessava um momento crítico na vida. Duas questões, uma de ordem
profissional e outra de ordem sentimental, passaram a incomodá-lo. Por viver
uma vida saudável, sentia-se um touro de forte. Alimentava-se bem, não tinha
vícios, costumava fazer exercícios físicos e a dormir sete horas por noite, sempre
no mesmo horário. Com relação à saúde, vivia tranquilo. Jamais sonhou grande e
nunca teve maiores ambições. Vivia com o estritamente necessário. Não contraía
dívidas que não pudesse pagar. Juntando seu salário de bancário, com o de
professora de Marilda, sua mulher, conseguia pagar as contas do mês sem ficar
no vermelho. Não se dava ao direito de fazer extravagância, como andar na moda,
comprar roupa de grife e comer em restaurante. Divertia-se
em casa e raramente ia ao cinema com a mulher ou a um jogo de futebol. Praia
costumava ir, no verão, porque era de graça e quando desejava comer na rua,
preparava uma cesta com iguarias caseiras para um picnic na Quinta da Boa
Vista.
O mesmo
tempo que tinha de vida conjugal, tinha como bancário: vinte anos. Possuía
diploma de contador e trabalhando no caixa do banco, nunca teve problemas.
Sempre foi pontual e jamais faltou um dia sequer ao trabalho. Bartô sentia-se
bem casado, amava a esposa e acreditava que ela o amava. No entanto, nada mais
os surpreendia e a rotina poderia vir a ser um inimigo invisível. Dividia o
aluguel de uma casa no subúrbio do Rio, com Juvenal, seu cunhado, único irmão
de Marilda, que era casado com Estela. Havia um bom relacionamento entre os
casais e a paz jamais foi ameaçada até certo domingo de verão, a 40 graus na
sombra, quando uma nuvem negra começou a pairar sobre sua cabeça. Não era bem
uma nuvem, era uma piscina dessas desmontáveis, feita de material impermeável e
que pode ser armada na parte externa da casa. A idéia partiu de Juvenal e todos
colaboraram com a compra da piscina e com as despesas para a sua inauguração. Para
aproveitar o belo domingo de sol decidiram, de comum acordo, preparar um
churrasco regado a muita cerveja. Uma grande extravagância para orçamentos tão
limitados. E a despesa já começou com o uso da água: cinco mil litros.
Enquanto
Juvenal, vestido num short – modelo zona norte - ou seja: largo e estampado em
cores berrantes, tentava acender a churrasqueira improvisada por um tambor de
roda de caminhão, abanando o jornal embebido em álcool para acender os carvões,
Bartô, com calção de banho curto e apertado, do tempo em que era mais jovem e
bem mais magro, acomodava as latas de cerveja na caixa de isopor cobrindo-as
com as pedras de gelo que acabara de partir.
Enquanto
os homens trabalhavam, as mulheres dividiam o banheiro, preparando-se para a
entrada triunfal. Marilda, vestida num maiô inteiriço que fez parte de seu
enxoval há vinte anos e que ostentava na pela a cor amarelo-escritório,
besuntava pernas, braços, costas e rosto com um creme branco protetor. Já
Estela, num biquíni de fio dental, depilava cuidadosamente as penugens das
pernas. Quando Marilda apareceu com o nariz todo branco, foi vítima de gozação
do irmão e modelo para foto do marido, que já estava com seu celular de
prontidão para captar a imagem.
- O que
minha mulher está fazendo que ainda não apareceu? – perguntou Juvenal.
- Está se
depilando – respondeu Marilda e mergulhou. Foi a primeira a entrar na água.
Antes de o
carvão virar brasa e provocar estalidos, as latinhas de cerveja começaram a ser
abertas. De repente, como se tivesse surgido do meio da fumaça, despontou
Estela, esplendorosa em seu biquíni fio dental. Aos olhos de Bartô, lhe pareceu
ser uma mulher que estava vendo pela primeira vez. Bem, o rosto ele já
conhecia, mas o corpo... E com aquele corpo quem poderia olhar para o rosto.
Tentou enquadrar a imagem na tela de seu celular, mas, ao acioná-lo já sabia
que a foto sairia tremida. Logo ele procurou proteger-se do sol, sob a sombra
do guarda-sol, aberto sobre uma mesa, colocada do lado oposto da churrasqueira.
De nada adiantou. Não era o calor provocado pelo sol que o fazia derreter-se.
Aquela imagem por si só já era um braseiro. Fazia arder mais o seu corpo do que
a carne sobre o carvão. Pensou até que os estalidos que agora ouvia já não eram
provenientes do carvão em brasa e sim dos próprios ossos do corpo. Optou por
mergulhar para aplacar o intenso calor.
Ao mesmo
tempo em que Juvenal
revirava a carne para tostar por igual, Estela, deitada sobre a toalha
estendida no chão, virava de bruços para adquirir o mesmo tom de bronzeado nas
diversas partes do corpo. Para que o biquíni em fio dental não se torne um
modelo impróprio para a mulher, é indispensável que ela ostente um perfeito
formato de bunda e a bunda de Estela foi esculpida pelos deuses do olimpo!
A mulher é
o único animal que sente imenso prazer em provocar o macho, mesmo que este não
desperte nela o menor interesse. O provocar por provocar a realiza. E Estela
sabia que ao passar o creme sobre as partes mais íntimas de seu corpo de
maneira sensual e até lasciva, estava não só provocando o cunhado como o
excitando e levando-o aos mais baixos sentimentos inerentes ao ser humano. No
entanto, o feitiço voltou-se contra a feiticeira. Bartô era um homem muito bem
dotado e não teve como evitar sua ereção. Aquele seu minúsculo calção de banho,
do tempo em que era atlético e que tinha barriga de tanquinho, não teve como
disfarçar o volume que logo se formou e se manteve ereto durante todo o
churrasco. A cerveja acabou, a carne
acabou, o sol se escondeu e só duas coisas permaneceram iguais até o último
mergulho: o olhar de Bartô para a bunda de Estela; o olhar de Estela para o
volume de Bartô.
Depois
daquele domingo de verão, Bartô nunca mais foi o mesmo. O que estaria sentindo
pela cunhada? Amor? Não, não seria amor, pois amava sua esposa. Paixão? Não,
não seria paixão. Paixão é o prólogo de um grande amor. O que sentia, na
verdade, era um imensurável e reprimido desejo. Uma fixação naquela bunda
escultural. Chegara a sonhar com ela e a gozar abundantemente como se o contato
físico tivesse sido real. Se percebesse o menor sinal de que a cunhada o
desejava, como ele a desejava, não pensaria duas vezes. Arriscaria tudo em
troca de uma única relação carnal. Ele se sentia enfeitiçado e acreditava que o
feitiço só seria desfeito se seu desejo fosse realizado. Seu tormento crescia a
cada dia na espera de um simples sinal. Já não se alimentava nem dormia
direito. Ao confidenciar sua tara ao seu melhor amigo, ele o aconselhou:
- Vá se
confessar com o padre Teodorico. Ele é um santo homem. Ouça o que ele irá
dizer.
Foi e
desabafou:
- Sei que
desejar a mulher do próximo é um pecado capital, padre, mas não estou
encontrando forças para me controlar. E, para piorar, tanto a mulher, quanto o
marido estão muito próximos de mim. Sinto que estou enfeitiçado.
Padre
Teodorico procurou lhe mostrar o melhor caminho:
- O
demônio está lhe testando. Reze, filho. Se entregue a Deus Pai. Ele ouvirá suas
preces, pois estará mais próximo de você do que o pecado.
Bartô
rezou, rezou, rezou, mas seu desejo sobrepujou sua fé. Para piorar sua
angústia, a promoção prometida por seu chefe não se concretizava. Ele deixaria
de trabalhar no caixa e seria promovido a gerente de contas. Teria quase o
dobro de salário. Mas uma vez seguiu os conselhos de seu melhor amigo:
- Se você
deseja saber sobre seu futuro, procure madame Celina.
- Quem é
madame Celina?
- É a
melhor vidente da praça. Cartomante de mão cheia! Ela joga cartas, búzios e
ainda lê as linhas da mão. Suas previsões costumam acontecer.
- O que
lhe trouxe a mim? Quais são seus problemas? O que lhe aflige e o que deseja
saber sobre seu futuro? – perguntou a vidente, diante de uma bola de cristal.
- Só tenho
dois problemas, madame: um de ordem profissional e o outro de ordem carnal.
Estou enfeitiçado por uma mulher e desejo saber se ela me quer.
Madame Celina
jogou cartas, búzios e por último leu a mão de Bartô.
- Essa
mulher vive a lhe provocar, mas não lhe deseja. Se insistir, ela poderá ser sua
perdição. Quanto ao lado profissional, afirmo que dentro de três dias, no
máximo, você terá uma grande promoção.
Um mês
depois, sem a promoção e cada vez mais sendo provocado pela cunhada que lhe
lançava olhares pecaminosos, Bartô já não sabia o que fazer.
- Já que
as previsões de madame Celina não se concretizaram, procure o babalaô Sete
Luas. Este, eu lhe garanto, não falha – aconselhou o tal amigo.
Devidamente
incorporado o babalaô depois de uma longa baforada em seu charuto e de cuspir
para longe um pedaço da folha do fumo, falou:
- Não me
diga nada, zifio, tu tá carregado, coberto de mau olhado. Tu ta sendo traído em
casa e no trabaio. Se afaste da tal mulher e procure um novo emprego.
Bartô não
deu ouvido. Uma semana depois, encorajado, decidiu marcar um encontro com a
cunhada num restaurante que ficava em frente a determinado Motel. Naquele fim
de tarde, antes de deixar o emprego, recebeu um aviso prévio da agência
bancária em que trabalhava. Para completar sua infelicidade, a cunhada faltou
ao encontro. E como não existe nada que seja bem ruim que não possa piorar,
antes de pegar um táxi de volta para casa, ainda viu Marilda, sua bela esposa,
sair do Motel no carro do gerente de seu banco.
O babalaô
Sete Luas acertou em cheio.
O Sacristão, o Padre e a
Beata
Vendo a mulher no tanque esfregando e enxaguando
roupa e uma pilha de louça na pia para ser lavada, Esperidião, o marido, não se
conformou:
- Cadê Jurema que não vem lhe ajudar?
- Está rezando o terço - respondeu a mulher, sem
interromper o que estava fazendo.
- De novo? E quantos terços nossa filha reza por
dia?
- Três. Um ao acordar, outro depois do almoço e o
terceiro as seis, na hora da Ave Maria...
- Não acha que é reza demais, mulher?
- Deus gosta de ser lembrado e rezar nunca fez mal a
ninguém...
- Ajudar a mãe nos trabalhos de casa, também não e
Deus, tenho certeza, iria gostar e compreender.
- Mas Deus está em primeiro lugar.
- Pelo que eu vejo, Ele está em primeiro, em segundo
e em terceiro.
- Deixa a menina pra lá, Dão. Ela está rezando por
ela, por mim e por você.
- Eu não passei procuração pra ela.
- A prova de que Deus ouve as preces de nossa filha
é que me dá saúde para fazer todo o serviço de casa, e é de saúde que preciso.
Esperidião
desistiu de argumentar. Mulher, quando esposa, raramente muda seu ponto de
vista em discussão com o marido. Costuma ser perda de tempo e desgaste inútil.
Porém, intimamente ele não se conformava com o que entendia como um exagero da
filha, nem com o fato dela deixar de ajudar a mãe.
Alguns quarteirões dali, Gaguinho, como era
conhecido o sacristão, preparava a igreja para as missas dominicais que
aconteceriam no dia seguinte. Padre João de Assis, vendo-o trabalhar, falou:
- Parabéns! A ornamentação está ficando bonita para
a Semana Santa. Na segunda-feira, dia de sua folga, não vou abrir a igreja.
Pretendo fazer uma pequena viagem para visitar minha velha mãe.
O bar do Tavico, que ficava em frente à igreja,
costumava reunir aos sábados os maiores viciados da cidade: viciados em bebida
e em carteado. Esperidião participava nas duas frentes: bebia muito enquanto jogava.
Naquela manhã
o bar recebia uma nova dupla de fregueses. Eram caixeiros-viajantes que estavam
hospedados na pensão de dona Ismênia.
Enquanto o jogo corria solto, os dois, numa mesa de
frente para a rua, bebericavam e apreciavam o movimento dos passantes. Homem
que costuma beber em bar, raramente foge de três assuntos: futebol, política e principalmente,
MULHER. Nisso passou Jurema em direção da igreja, andando de cabeça baixa,
vestindo saia comprida e blusa abotoada até o pescoço. Imaginava ela que com
aquele comportamento e vestida daquela forma, jamais chamaria atenção, ou
despertaria a cobiça dos homens.
Para o povo da cidade, talvez. Porém, para aquela
dupla de visitantes, não foi bem assim. Jurema possuía um corpo cultural, capaz
de sobrepor-se à indumentária simplória e seu andar, em salto alto sobre o piso
irregular da calçada, proporcionavam aos quadris um provocante, embora sutil
rebolado. E não existe nada capaz de superar a imaginação pecaminosa de um
homem mal intencionado.
- Veja mano, aquela ali deve ser uma grande trepada!
- Por que diz isso? Conhece a moça?
- Não e nem preciso. Mulher que anda de vista baixa,
olhando para o chão e vestida daquele jeito para esconder o corpo, costuma ser
uma falsa pudente... Um furacão na cama!
Esperidião
ouviu o comentário, mas como não viu a filha passar, concentrou-se no carteado.
- Você não vai reagir, Dão? - perguntou o parceiro.
- Reagir de que?
- Vai deixar o cara ali dizer que sua filha deve ser
um furacão na cama, uma grande trepada?
Não foi
preciso que se dissesse mais nada. A pancadaria comeu solta. No início
Esperidião começou perdendo dos dois. Depois, ajudado por todos que estavam no
bar, os visitantes passaram a apanhar e ficaram em petição de miséria. A
polícia chegou e conseguiu evitar uma tragédia maior. Porém, o bar do Tavico
foi quem sofreu maior estrago.
Padre João de Assis há tempos que estava
desconfiado. Podia dizer que o que sentia era quase certeza. Gaguinho, seu
sacristão, estava roubando os cofres da igreja. Coisa pouca, era verdade, mas,
com a continuidade deu para notar. Roubava para alimentar seu vício: Gaguinho
gostava de fumar bons charutos. O padre inventou que iria viajar na
segunda-feira para ver se pegava o sacristão em flagrante. E não deu outra.
Precisando de uns trocados para comprar ingresso no
cinema local para assistir a "Paixão de Cristo", Gaguinho foi pego
com a mão dentro da urna coletora.
- O que eu
devo fazer com ladrão que rouba a igreja? Devo expulsá-lo e denunciá-lo para a
polícia? - perguntou, segurando a mão do sacristão.
Gaguinho não
se alterou e procurou manter a calma:
- Como um
santo homem, o senhor deve me perdoar. Eu não sou representante de Deus na
terra. Não tenho o dom da santidade, nem a missão, como pastor, de perdoar suas
ovelhas. Mas assim mesmo, padre, eu lhe perdoo porque sei que a carne é fraca.
Surpreso e
sem compreender o que acabara de ouvir, perguntou:
- Você!?
Perdoar-me de quê? De que pecado?
- De trepar
com dona Jurema todas as segundas-feiras na sacristia. E lhe garanto que Vossa
Eminência ficará no lucro se me perdoar. De minha parte, deixo de roubar a
igreja e nada conto do que acontece por aqui às segundas-feiras...
No domingo o sermão do Padre João de Assis teve como
tema o perdão.
A morte faltou ao primeiro compromisso
Por Angelo Romero
Dulcenéia Aparecida da Anunciação, ou
melhor, Dulcinha, estava aperreada. Já não sabia o que fazer. Os remédios
caseiros já não faziam efeito e sua patroa, madame Carmen, poderia desencarnar
de uma hora para outra. Lembrou-se de um passado remoto em que a patroa esteve
à morte e agora parecia padecer do mesmo mal. Os sintomas pareciam ser os
mesmos. Naquela ocasião, foi salva por Justino, famoso babalaô. Madame Carmen
fôra vítima de um trabalho de feitiço, cujo motivo era a inveja de uma
concorrente. O babalaô desfez o trabalho e ela ficou curada. A primeira
providência que tomou foi chamar o babalaô. Ele, depois de uma baforada de seu
charuto, soltou seu veredicto com a voz da entidade envolvido na fumaça que
acabara de expelir:
-O cavalo está muito doente, sofrendo de um
grande mal.
- O que ela tem? Qual é a sua doença? –
perguntou Dulcinha aflita.
Outra baforada e outro veredicto:
- Velhice.
- E velhice é doença? – perguntou com
desdém.
- A pior de todas porque não tem cura.
Agora, diante da situação de miséria de vocês, trabalho motivado por inveja é
que não poderia ser – completou Justino.
- E o que nos aconselha a fazer? Ficarmos
aqui, de braços cruzados, parados, esperando que ela morra? Não podemos levá-la
para o Pronto Socorro, porque madame já não tem forças para se locomover, não
temos dinheiro para o táxi nem para chamar um médico para vir atendê-la aqui.
- Por que não usam o telefone para chamar uma
ambulância?
- Que telefone? Não temos e, se tivéssemos,
até uma ambulância aparecer por essas bandas ela já estaria morta. E, além do
mais o telefone comunitário está quebrado e eu não conheço um vizinho que tenha
telefone.
- Eu poderia emprestar meu celular, mas ele
está sem carga – falou o babalaô, já com a voz de Justino.
Comentário do narrador: “O babalaô moderno
já não se limita a falar com os mortos. Por garantia ele já usa o celular”.
- Dulcinha! – gritou madame Carmen, com a
voz estrangulada – me traga meu álbum de retratos. Quero rever a cara dos que
já se foram para reconhecê-los quando eu chegar por lá.
- Viu só? Madame já está se entregando. Não
quer mais reagir. Não tem mais forças...
Justino, antes de partir, numa atitude
piedosa, retirou o cordão de pedras que o protegia e o colocou em madame
Carmen. Que os orixás conduzissem a infeliz senhora pelos melhores caminhos aos
braços de Oxum.
A retornar ao quarto de madame, trazendo o
álbum de retratos, Dulcinha percebeu que um deles havia se descolado e caído no
chão. Tal fato lhe pareceu um aviso. Era uma foto de Dr. Adibe. Ele, quando
estudante de medicina, fôra um dos mais assíduos frequentadores do castelo de
sua patroa. Madame gostava muito dele e costumava lhe dar crédito quando, sem
dinheiro, permitia que o jovem fosse atendido por uma de suas sobrinhas, que
era como ela tratava suas mulheres.
O maior problema de Adibe, estudante pobre,
não foi a falta de dinheiro. Foi, isto sim, a de ter se apaixonado loucamente
por Dorinha, a mais jovem profissional do Castelo de Madame Carmen. Dorinha
tinha feições angelicais, um corpo de fazer inveja às demais mulheres-amas da
Casa e a deixar os frequentadores embasbacados. Se algum escritor tivesse
escrito um livro de memórias sobre a fase áurea do castelo, Dorinha teria tido
o direito de ter um capítulo à parte. Os pais a haviam criada para ser freira.
Ela, apesar de não possuir vocação, era uma jovem tímida, covarde, frágil e
obediente demais para se rebelar. Acabou por se deixar levar pelos pais. Assim,
ao invés de vir morar em Salvador, seu grande sonho, a menina foi internada na
Ordem das Carmelitas. E ainda como noviça, a um passo de ser ordenada, Dorinha,
surpreendendo a todos, conseguiu desvirginar-se com as próprias mãos, acusando
o padre Jonas de tê-la feito mal. A Ordem das Carmelitas abafou o caso. Proibiu
o padre de frequentar suas dependência, solicitou que outro clérigo fosse
designado para rezar missas dominicais e expulsou sumariamente Dorinha do
Convento. Sabendo que não seria recebida pela família e nem dando muita
importância ao fato, a jovem submissa, agora rebelde, matou seu antigo desejo:
conhecer Salvador. E, na capital baiana, depois de perambular pelo Centro, foi
se bater no Pelourinho. Foi Dudu que a
colocou nas mãos de madame Carmen.
- O que houve com seu cabelo? Deu piolho? –
perguntou a dona do Bordel ao ver Dorinha com a cabeça raspada.
- Para responder a essa pergunta, a jovem
contou toda a sua vida a partir dos motivos que a levaram à Ordem das
Carmelitas.
- Quer dizer que você já não é virgem sem
ainda ter tido relação sexual com homem?
- É verdade – respondeu balançando a cabeça
envergonhada.
- Pois agora irá conhecer o melhor prazer
do mundo! E com seu rostinho angelical e com seu corpinho de manequim recauchutado,
você terá muito prazer e, o melhor, ainda será paga para se divertir.
Dorinha sorriu um sorriso indecifrável.
- E qual é a sua idade, mocinha?
- Dezesseis anos.
- Tem documentos?
- Não. Deixei tudo na Ordem.
E percebendo a cara de preocupação de
Madame Carmen, a jovem falou, com voz chorosa:
- Será que por não ter documentos e ser
menor de idade a senhora não vai poder me aceitar?
- Eu sou a Madame Carmen, meu bem. A minha
voz ultrapassa os muros do meu Castelo. Aqui, no Pelourinho, todos me escutam e
todos me atendem. Antes que seu cabelo cresça por completo, terá nova
identidade, com tudo novo, filiação, nome e data de nascimento.
As imagens daquele filme passaram muito
rápidas. Dulcinha ainda estava com o retrato de Adibe nas mãos, enquanto Madame
Carmen, diante do álbum, voltava a ter a respiração normal. Era como se corpo e
alma tivessem retornado ao passado.
- Lembra deste aqui? – perguntou Dulcinha
para a patroa, apontando uma foto.
Carmen, com as mãos trêmulas a segurar o
retrato, balbuciou:
- Como poderia esquecê-lo De todos os meus
clientes foi o que eu mais gostei e o único em quem conferi crédito.
- Lembra do nome dele?
- Para que servem os nomes? Como poderia
guardar os nomes de todos que frequentaram meu castelo? Nunca me importei com
nomes, meu bem, mas suas fisionomias guardei-as todas. Sempre me importei com o
dinheiro e com o bom comportamento. Se pudessem pagar e me respeitar, tanto
poderia ser doutor, quanto malandro desempregado.
- Pois este é o doutor Adibe, que hoje é
considerado um grande médico. Se eu encontrasse o telefone de seu consultório,
eu o chamaria para cuidar da senhora e ele, tenho certeza, viria correndo.
- E você acha que eu a deixaria
incomodá-lo?
Dulcinha nada respondeu. Estava preocupada
com a demora de Dudu. Sim, Dudu era o terceiro personagem que, assim como ela,
Dulcinha, não havia abandonado o castelo. Em parte, por amor a Madame Carmen;
em parte, por não ter onde viver. Este personagem bem que poderia pertencer a
outro capítulo. O castelo, em sua fase áurea, foi um grande depositório de
sonhos. Todos que ali trabalharam, alimentavam um sonho. A grande maioria das
mulheres esperava encontrar um protetor que lhe tirasse dali para lhe montar
casa com comida, luxo e conforto. Outras alimentavam um sonho maior: casar,
receber um nome respeitável e constituir família. Já Dulcinha sonhava em ser
descoberta e tornar-se artista de cinema. Dudu, ah, Dudu, seu sonho era
economizar o bastante para arriscar a vida numa cirurgia capaz de lhe mudar de
sexo. Agora, velho e desesperançado, seu único sonho era ter alguns trocados
para comprar a companhia, mesmo que por breves momentos, e ter um jovem
inexperiente para levar para a sua cama. Sabia que seus sonhos, nos tempos
atuais, seria quase impossível: conseguir juntar dinheiro e encontrar um jovem
inexperiente seria quase uma utopia. E Dudu, com o pouco dinheiro que faturava
com os biscates que conseguia fazer, ajudava a manter a casa que lhe dava
moradia.
- Veja este retrato, Dulcinha – falou
Madame Carmen, com voz fraca, apontando a figura de Dudu, bem jovem, em roupa
de malha.
- Coitado! Ele levava muito jeito para o
balet, mas não teve dinheiro para se manter no curso.
- Nem para comprar novas sapatilhas,
coitado!
Os olhos embaçados de Madame Carmen ganharam
um brilho fugaz, diante de um outro retrato. Era ela, bem jovem, estudando
canto lírico no conservatório musical de Sevilha. Sua mãe, apaixonada por
ópera, a batizara com o nome de Carmen em virtude do principal personagem da
ópera de Bizet. O sonho foi desfeito a partir da segunda guerra mundial. A
Espanha, sob o domínio fascista de General Franco, fez com que sua família, que
lutava contra o regime, viesse se refugiar no Brasil.
Dudu inventou que precisava comprar um
remédio capaz de combater a falta de ar de Madame Carmen mas, na verdade, o que
ele queria era estar distante do Castelo para não ter que presenciar a morte de
sua protetora. Acabou retornando a casa sem o tal do remédio.
- Não consegui comprar o remédio. Só vendem
com receita médica. Como está a madame? – perguntou com sua voz de falsete e
com seus gestos afeminados.
- Um pouco melhor. Distraiu-se vendo o álbum
de retratos – respondeu Dulcinha.
Dudu deu um longo suspiro de alívio.
- Você se lembra do Dr. Adibe, Dudu?
- Como eu poderia esquecer? Nunca deixou de
me dar uns trocados quando vinha por aqui. É pena que tenha deixado de
frequentar a casa por um longo tempo...
Dulcinha desabafou:
- Nunca me apaixonei de verdade, graças a
Deus, mas sei que paixão é uma das doenças que mais afeta o coração. Dr. Adibe
não se conformou com o suicídio de Dorinha.
- É verdade. Cabeça fraca da infeliz. Que
vida! Dorinha não conseguiu se livrar do remorso por ter destruído a vida do
padre Jonas, ao tentar construir sua própria vida..
-
Pois se eu encontrasse o telefone do Dr. Adibe, chamaria por ele. Quem sabe
ele, com sua gratidão e conhecimentos pudesse fazer prolongar a vida de nossa
protetora, hem?
Dudu não disse uma só palavra e partiu
célere para o seu quarto. Momentos depois voltou ele com um jornal velho nas
mãos. E apontando para um determinado anúncio, falou:
- Veja isto aqui. É uma propaganda da
clínica do Dr. Adibe. Este jornal é velho, mas se não mudou o número do
telefone...
Resumindo: em menos de uma hora, um moderno
e luxuoso automóvel parou na porta do Castelo e de seu interior surgiu um
senhor de cabeça grisalha, muito bem vestido, portando uma maleta e acompanhado
de uma jovem bonita. Era a sua enfermeira.
Em pouco tempo o clima de velório se
transformou num clima de festa. Depois de examinar minuciosamente sua velha
amiga, Dr. Adibe falou:
- A paciente já está devidamente medicada.
Hoje não dá mais tempo, mas amanhã bem cedo estarei aqui para removê-la para o
hospital, onde será submetida a uma bateria de exames.
E virando-se para Carmen, perguntou:
- Que diabos você andou fazendo, minha
amiga?
- Nada demais. Cansei de viver e de dar
trabalho a essa dupla maluca que não me larga. Quando li nos jornais que o
Pelourinho foi tombado, que minha casa será desapropriada e que seremos postos
na rua, resolvi deitar para morrer. Só não sabia que a morte só vem quando bem
entende. Aí, para passar o tempo, comecei a ver meu álbum de recordações e
acabei por me distrair. Agora já nem sei se quero morrer. Daqui a um mês vou
fazer noventa anos e, se estiver viva até lá e ainda não estiver sido
despejada, pretendo comemorar a data.
- A desapropriação é um processo demorado
e, quando acontecer ninguém ficará desabrigado. O governo está prometendo
remanejar as famílias para outro local.
- E você acredita em promessa de governo?
- Se ele não cumprir a promessa, eu vou
cuidar de você. E pode ir enviando os convites para a sua festa, pois lhe dou
minha palavra que em seu aniversário estará viva.
No portão, antes de entrar em seu carro,
Dulcinha, ao lado de um Dudu morrendo de curiosidade, fez a pergunta:
- O que o Sr. achou, doutor? Madame Carmen
vai morrer?
- Claro. Todos nós temos que morrer um dia
e ela está muito doente...
- É!? E qual é a doença dela? – perguntou
Dudu, aflito.
- Uma doença incurável: velhice. Mas só
depois de analisar o resultado de todos os exames que nossa amiga terá de fazer
é que saberei dizer que se, além da velhice, pode existir outras complicações.
Aos olhos de Dulcinha o doutor acabara de plagiar Justino, o mais requisitado babalaô da Bahia.
Mas, se este final não está convencendo o
leitor, posso garantir que não houve o despejo imediato, que a festa aconteceu,
que foi muito concorrida e que dias depois Madame Carmen morreu com um lindo sorriso
nos olhos.
E na certidão de óbito constou escrito: causa morte – velhice.
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