DA CAMA À FAMA
Um Romance de Angelo Romero
PRÓLOGO
Germaine - 1940
Hoje
pela manhã, ao chegar do colégio entrei em casa cantando. É primavera em Paris
e em meu coração. Aos dezenove anos sinto que estou apaixonada por meu
professor de literatura francesa. Eu, na verdade, não tive ainda maiores
experiências neste campo, pois os jovens de minha idade não me atraem. Paul,
meu professor, é viúvo e tem treze anos mais que eu. De estatura média, corpo
atlético, cabelos negros ondulados, com alguns fios brancos nas têmporas, posso
dizer ser ele um homem bonito. No entanto, parece que Paul dele se esqueceu há
algum tempo. Despido de vaidade, veste-se mal. Ele me dá até a impressão que,
ou emagreceu, ou a roupa que veste lhe foi dada por alguém mais forte. Os
colarinhos de suas camisas estão sempre rotos, o paletó constantemente
desabotoado, as calças largas e amarrotadas, e os sapatos por engraxar. Tem o
hábito de carregar livros e jornais sob o braço e um cachimbo apagado caído no
lado esquerdo da boca. Mas seus olhos negros e profundos emitem tal magnetismo
que toda a sua desleixada aparência desaparece diante de meus olhos. O brilho
de seu olhar, firme e constante, transmite as bruscas mudanças de seu estado de
espírito. Se por um momento ele evidencia, ao passar a matéria para seus
alunos, firmeza, conhecimento e entusiasmo, em outro, logo a seguir, ao fixar
os olhos no quadro negro à sua frente, torna-se tão ausente que na verdade
parece estar olhando na direção do horizonte a milhares de quilômetros dali. E
é justamente no flagrante contraste, nos sentimentos opostos, que reside a minha
maior atração. Eu me sinto magnetizada pela experiência visível em suas
têmporas, pelos conhecimentos da matéria que leciona, tão apaixonante pra mim,
como também pelo profundo mistério que aquele seu olhar ausente tenta esconder.
Vendo-o, a um só tempo seguro e carente, sinto-me necessitada e capaz. Pronta para dar e receber tudo o que as
pessoas precisam ter para viver um grande amor.
Eu
gosto de literatura de um modo geral, e da literatura francesa em especial,
naturalmente. Leio, com avidez, tudo o que me chega às mãos, mas sempre dei
preferência a romances e biografias dos grandes autores. Estou ansiosa para
concluir meus estudos e assim poder dedicar todo o meu tempo livre à arte de
criar e desenvolver temas e personagens. Quando essa guerra acabar, estarei
pronta para ser a grande revelação literária de minha geração. Para que estes
dois fatos possam acontecer brevemente, conto com minhas aptidões e com o
patriotismo e a fibra de meu povo. Por isso creio que, assim que esta guerra
imunda acabar, me tornarei uma escritora profissional de renome.
Paul
costuma apreciar meus trabalhos de redação e composição. Tenho a impressão de
que ele acredita em meu potencial, pois está sempre me incentivando. Posso até
jurar que seja eu sua aluna predileta. De algum tempo para cá comecei a perceber
o prazer que dou a Paul sempre que lhe peço explicações complementares sobre a
matéria. Sinto a necessidade de estar sempre um passo adiante da turma. Não,
não sei se é bem isso ou se é a satisfação de tê-lo a sós comigo, por alguns
momentos. Por ter me sentido encorajada, tenho forçado esse tipo de situação
ultimamente. Hoje, por exemplo, ficamos juntos mais de uma hora conversando
sobre a forma e o estilo de Balzac. Atrasei-me e, ao chegar em casa, fui
severamente repreendida por minha mãe. Tenho minhas tarefas diárias
predeterminadas no restaurante, e quando me atraso sobrecarrego meus pais. Eu
compreendo isso tanto quanto minha mãe compreende minha ânsia de saber.
O
movimento de fregueses no restaurante, ultimamente, não tem estado bom. Hoje somos apenas cinco pessoas para todo o
serviço: eu, papai, mamãe, meu irmão e um garçom. A situação não está boa. Deve
ser por causa da guerra. Por isso entendo que papai não possa agora contratar
outro empregado. Mamãe passa o dia inteiro e parte da noite na cozinha do
restaurante, e não sei como ainda encontra tempo para cuidar de minha irmãzinha
e de nossa casa no andar de cima. Ela é uma heroína, coitada.
Seu
tempero é tão gostoso que eu não vejo a hora de trazer Paul até aqui para
provar sua comida. Eu, naturalmente, terei imenso prazer em servi-lo. Penso que ele já se deu conta dos meus
sentimentos para com ele pois hoje, pela primeira vez, pude ver um pouco de
ternura em seu olhar triste, ao nos despedirmos. Agora eu não sei se aquela
ternura era verdadeira, ou se eu a vi por ter querido ver. Será que ele já
sente um pouco de amor por mim? Daria a minha juventude para descobrir.
Se
algum dia perceber valor literário neste meu diário, darei a ele uma nova
forma, transformando em romance o registro de minhas memórias.
O
sono já está me pegando. Amanhã eu continuo.
Ah! Já ia me esquecendo. Hoje, antes de subir
para o quarto, vi meu pai chorar pela primeira vez. Ele bem que tentou
disfarçar como se estivesse com um cisco no olho. Mas sei que foi o cisco da guerra.
Na certa foram as notícias pessimistas que acabara de ouvir pelo rádio. Dizem
que os alemães estarão em Paris dentro de poucos dias. Eu, particularmente, não
acredito. Mas, se isto acontecer, eles é que estarão perdidos.
Oh,
guerra imunda e desgraçada!
Giacomo – 1940
O
sofrimento costuma envelhecer primeiro o interior das pessoas, por isso penso
ter sido uma criança envelhecida. Não falo apenas de meu próprio sofrimento mas
o de meus pais, causado involuntariamente por mim ao ser acometido, na
infância, pela paralisia. Por este fato, fui sempre diferente de meus irmãos.
Logo senti a necessidade de construir um mundo só para mim e que, por ser
exclusivamente meu, por certo caberiam nele as minhas deficiências.
Protegendo-me, em breve saberia como conviver com meu drama.
Superei
a doença, cresci, alarguei minhas passadas e invadi o mundo dos outros, sem no
entanto abandonar definitivamente o meu. Era necessário para mim preservar a
fantasia de minha infância, o invólucro colorido, a caixa acolchoada que sempre
me protegeu. Imprescindível como o ar que respiro, jamais abri mão de minha
individualidade.
Penso
que o sofrimento faz desenvolver mais rapidamente a sensibilidade nas pessoas,
e faz crescer seu poder de percepção. Ao tornar-me adulto fui levado a manter a
diferença que sempre me separou de meus irmãos. Agora ela estava presente por
motivos outros. Não eram mais diferenças físicas e sim estruturais. Percebi
isso logo depois que a guerra eclodiu. Fui o único que não viu com bons olhos o
nazismo. Fui o único, em toda a minha família, que não aceitou o fascismo.
Fui
forçado a retornar ao meu mundo para melhor conviver com os princípios de
democracia e liberdade e para refletir melhor e dialogar comigo mesmo, na
tentativa de buscar dentro de mim as respostas às perguntas que eu mesmo
formulava.
Em
meados de 1940 o temor da guerra cresceu em mim de forma avassaladora. Penso
que a notícia da invasão de Paris, pelas tropas nazistas, tenha me causado
aquele temor maior e repentino. Aprendi
a gostar da França quando criança, em virtude de ter sido cuidado por um médico
francês. Foi a melhor razão que encontrei para o que estava sentindo. A mais
plausível. Afinal, não era Gênova, minha
terra, que estava sendo invadida, e sim Paris, que eu nem sequer conhecia
pessoalmente. Gênova, eu sabia, não seria invadida. Não precisava. Como uma
mulher fácil e volúvel ela havia sido conquistada, assim como toda a Itália,
através das palavras pomposas ditas por um fanático fardado. Entre a invasão e
aquela conquista residia a grande diferença. A capital francesa representava
para mim, e creio, para todo o mundo, um marco: Paris era o berço da
civilização contemporânea, da cultura, da liberdade. Aquele berço deveria ser
preservado. Aquele marco jamais poderia ser destruído.
Muito
tempo depois, já na França, foi que descobri que o temor que eu havia sentido
não foi, na verdade, tanto pela possível destruição do mundo em que as pessoas
viviam e, sim, pela destruição do mundo que eu havia criado para mim na minha
infância. E foi a partir daquela descoberta que eu passei a me cuidar melhor,
pois aquele mundo estava dentro de mim, e só com a minha destruição é que ele
poderia ser atingido.
Este
é o resumo de meus sentimentos, da parte de minha vida que você não conheceu. A
essência do que fiz e do que fui, antes de conhecê-la. O que deixei de dizer
não tem o menor valor. Não irá acrescentar nada. Escreva, se lhe interessar.
Descubra as palavras que melhor lhe convier. O importante é que seja mantida
inalterada a minha filosofia de vida, e isso, por certo, você saberá como
fazê-lo.
O
resto de minha história está tão ligada à sua que, mesmo que deseje, jamais
conseguirá separá-las. Somos duas pessoas que temos vivido, até aqui, em
uníssono. Estamos ligados pelos mesmos ideais e por um amor verdadeiro. Esse
será o nosso maior legado para a futura geração, geração esta que iremos ajudar
a procriar.
Bill - 1980
Bill
pensava estar flutuando no ar, suspenso apenas por um fio. O soro estava sendo
injetado em sua veia lentamente. Seus olhos estavam fechados e sua cabeça
tombada para o lado esquerdo do travesseiro. Momentos antes, alguns anjos
vestidos de branco haviam deixado o quarto, depois de lhe terem tomado o pulso.
Agora, o cheiro de remédio espalhado pelo ar estava se tornando insuportável.
Ainda sob os efeitos da anestesia, ele confundia passado e presente. As imagens
estavam sendo interligadas em sua mente.
"Vamos
brincar de guerra" - disse Bill. "Eu sou americano e vocês são os
alemães."
"Não,
eu não sou mais criança" - pensava. "Eu fui ferido em combate numa
guerra de verdade, e agora estou aqui, na enfermaria deste hospital
improvisado, armado no front."
As
dores que sentia no baixo ventre eram agora suportáveis.
"Fui
vítima de uma maldita baioneta alemã" - pensava ele.
-
O homem é muito forte e deverá sobreviver - ouvia a voz do médico. Seu estado é
grave e inspira muitos cuidados. Ainda é cedo para um diagnóstico definitivo.
Bill
sorriu. Estava feliz. Paris acabava de ser libertada, e ele, Bill, herói da
Resistência, recebera uma condecoração. E antes de ter tempo de ficar
orgulhoso, refletiu:
"Não,
não posso aceitar esta condecoração. Eu não lutei. O que soube a respeito da
guerra foi através dos livros... eu nem sequer era nascido”...
-
Ele insiste em ler - disse a enfermeira ao médico. No entanto, logo adormece
com o livro aberto nas mãos.
A
enfermeira o acordou.
-
Vamos dorminhoco, acorde. Está na hora de sua injeção.
-
Chega de remédio - disse Bill. Eu estou faminto, e o que eu quero agora é
comida...
-
Tenha paciência, meu bem - falou ela. Tenho primeiro que falar com o doutor.
Vou ver o que posso fazer por você.
Assim
que a enfermeira saiu, Bill voltou a mergulhar na angustiante solidão
hospitalar. Retomou a leitura de onde havia interrompido. A saída, para ele,
poderia estar ali. O personagem principal daquela história identificava-se
muito com ele. Quem sabe - pensou - se não estaria ali, num passado que não
viveu, o caminho de seu futuro? Quem sabe?
CAPÍTULO 1
O
fim da primeira etapa
Bill,
de peito nu, sentado sobre um caixote de livros, acabara de ajudar a carregar o
caminhão. Suava em bicas. Observava cada detalhe externo da casa que fora, até
então, seu primeiro e único lar, com os olhos marejados de lágrimas. Alguma
coisa lhe dizia que ali tinha vivido os melhores anos de sua vida.
Era
uma segunda-feira abafada e ele não gostava desse dia da semana. Não encontrava
uma explicação mais razoável para isso, a não ser o fato de ter que acordar
cedo para ir ao colégio, depois de um domingo de futebol, festas e garotas.
Realmente era uma dose um tanto forte. Ele já tinha se despedido do interior da
casa. Detivera-se em cada cômodo, como se estivesse dando o seu adeus a entes
queridos que jamais veria de novo. Agora, a sua vista percorria o exterior,
parando em cada ponto. Sua mente projetava um filme na tela dos olhos: um
resumo dos dezessete anos rodados naquele cenário maravilhoso; da primeira cena
que uma mente infantil pode registrar, até a última - o momento atual. As
imagens eram projetadas por sua mente obedecendo à ordem cronológica,
rigorosamente. Surgiram então, em velocidade espantosa, os acontecimentos
importantes que marcaram a sua vida: o sarampo, a festa de aniversário, o
natal, o brinquedo e a queda da mangueira que resultou num pequeno corte em sua
cabeça. Via o primeiro gol de bicicleta, feito na baliza que o pai o ajudara a
fazer, para que jogasse futebol com os garotos da vizinhança no fundo do
quintal. De repente, ao olhar o grande balanço de ferro na varanda, sentiu a
imagem parar e aos poucos recomeçar a passar, em câmara lenta. E via então o
seu primeiro beijo em Márcia, sua prima de sete anos naquela época. Era uma
linda garota rechonchuda, de tranças loiras e olhos azuis. Márcia reagira de
três maneiras diferentes, numa sequência rápida, ao ser beijada: ao toque puro
dos lábios de Bill olhou espantada, em seguida sorriu, e logo depois entrou
chorando casa a dentro, dizendo que fora beijada e que estava comprometida com
o primo para o resto da vida. Ao lembrar da cena, Bill não pode deixar de
sorrir.
Ele
nascera ali no Encantado, simpático bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. A
casa, de construção antiga, dava esquina para duas ruas bem arborizadas e de
pouco movimento. Pela parte da frente passava uma rua calçada por
paralelepípedos. A rua que margeava a parte lateral esquerda da casa era ainda
de terra batida. Fronteiro à casa, um muro baixo com dois portões de madeira:
um menor ao centro e outro maior do lado esquerdo. Depois de um jardim, vinha a
varanda em forma de "L". Começava no centro do prédio e terminava no
quintal, contornando todo o lado esquerdo da construção. Do lado direito um
janelão emoldurava uma pequena sala de estar; à direita, na parte externa, um
corredor com dois metros de largura separava a casa do terreno vizinho; à
esquerda, na parte que dava para a ruazinha de terra, um terreno de
aproximadamente cinco metros de largura passava entre a varanda e um alto muro,
e emendava com o quintal. A cerca da varanda era de madeira, como também os
três degraus que desciam para o jardim. Nos fundos do terreno, três frondosas
árvores frutíferas: uma jaqueira, uma mangueira e um abacateiro. Mais à frente,
uma pequena goiabeira e um coqueiro-anão. Além do quarto e do banheiro que seu
pai mandara construir para o casal de empregados, existia ainda um pequeno
galinheiro e a casinha do Sultão, um lindo cão de raça pura, que apesar do nome
vivia só, sem companheira. O interior da casa era muito amplo, claro e arejado.
Na parte térrea, além do grande salão da frente e da pequena sala de estar
contígua, uma grande copa-cozinha e um pequeno banheiro limitavam os fundos da
casa com o quintal. No andar superior, dois quartos de frente, uma biblioteca
nos fundos com varanda para o quintal, um grande banheiro e uma área interna,
onde terminava a escada de ferro que, em caracol, descia até o lado direito do
salão.
Há
dois dias atrás, no sábado, os pais de Bill deram uma linda festa para
comemorar o aniversário do filho e também para se despedirem da casa. Foi a
melhor, a mais organizada e concorrida de todas as realizadas ali. Prepararam a
casa com o carinho e cuidado de quem prepara uma noiva no dia do seu casamento.
A começar do jardim, onde pequenas lâmpadas coloridas foram colocadas entre as
folhagens; no quintal, cada árvore tinha sua própria iluminação. Uma grande
mesa fora armada nos fundos do terreno. Sobre a mesa, farta variedade de doces
e salgados. De um fio, esticado poucos metros acima, pendiam algumas lâmpadas
fantasiadas por lindos balões coloridos, que davam um realce todo especial às
deliciosas iguarias; do lado direito da mesa, de vários barris, jorrava o chopp
estupidamente gelado. As estrelas, em noites claras de verão, ainda
frequentavam o céu do Encantado, e, parece que todas elas foram convidadas,
pois de lá de cima, no sereno, eram espectadoras privilegiadas.
Um
maitre e quatro garçons foram chamados para servir os convidados. O grande
salão fora também redecorado. As cortinas e tapetes foram lavados. As plantas, todas
naturais, estavam tão bem cuidadas que apresentavam cores fortes e brilhantes.
Revividas, pareciam vestidas de veludo e cetim. Os quadros na parede ganharam
iluminação direta. O velho piano fora afinado, e as flores, bem dispostas em
lindas jarras, davam o toque final de bom gosto no ambiente.
Cinco
músicos foram contratados para tocar no salão: o italiano Antonino com o seu
violino; o francês André Loui com o seu acordeom; Teodorico, baiano de
Alagoinhas, com o seu contrabaixo; Bidu, carioca do Sampaio, na bateria, e ao
comando, mestre Dedéu, pianista e maestro de famosa gafieira do centro da
cidade. Enquanto a velha guarda, na grande sala, se deliciava ouvindo e
dançando músicas francesas, italianas e brasileiras, no quintal, num pequeno
tablado armado, a juventude curtia a vibrante música americana dos anos
sessenta, saída de possantes caixas de som.
A
partir das oito horas da noite os convidados foram chegando. Comerciantes,
políticos, contraventores, o médico, o advogado, o dentista e o barbeiro da
família. E numa lista de convidados tão extensa, elaborada com tanto cuidado,
não poderia faltar o nome de Padre Marcelo, o pároco do bairro, de quem Bill
fora discípulo de catecismo. Fora ele que preparara o menino para a sua
primeira comunhão. E ali estava o pastor de almas bebendo, com os pais de Bill,
alguns cálices do autêntico "Lácrima Christi". Numa festa em casa de
família eminentemente cristã, onde o diabo poderia entrar como penetra, um
padre é de vital importância. E ele tinha consciência de sua importância, e
estava ali, não só para proteger, como também para reconduzir ao seu rebanho
algumas ovelhas desgarradas. A juventude, é claro, predominava, e ia chegando
em grupos alegres e barulhentos. Todo o bairro do Encantado estava ali,
representado por suas figuras mais proeminentes.
Os
jovens, com sua sabedoria instintiva, dividiram a casa em três setores
distintos: o jardim, para a paquera, para os que ainda não faziam par; o
quintal, para a dança e os comes e bebes, e, finalmente, a varanda, envolvida
por uma penumbra pecaminosa, para o namoro, onde um metro quadrado valia ouro.
À meia-noite ainda chegaram alguns retardatários, mas já às nove horas,
tinha-se a impressão de que não cabia mais gente. O salão e o quintal estavam
repletos, a varanda, intransitável; sobrava o jardim, onde poucos permaneciam
muito tempo, pois ali a bebida chegava quente e os salgadinhos gelados.
Enquanto o salão pertencia à velha-guarda, o berçário fora instalado no andar
superior. A verdade é que durante todo o tempo a alegria era contagiante nos
quatro cantos da casa. Só Bill, o aniversariante, estava triste. Irrequieto,
tenso, procurava um rosto na multidão e, ao procurá-lo, percebia que metade dos
rostos que estavam ali lhe eram totalmente desconhecidos - formavam o famoso
bloco dos penetras, dos convidados dos convidados. Quando olhou para o salão
totalmente lotado, sorriu pela primeira vez naquela noite. Recordou uma cena de
um desenho animado que vira no cinema: vários animaizinhos entrando numa
pequena casa que ia engordando, engordando até explodir. Era essa a impressão
que ele tinha do que ali poderia acontecer. Mas, ao desviar a vista para o
portão, pode conservar o sorriso. O rosto que tanto procurava tinha acabado de
chegar: Joana, sua namorada, seu amor. Foi recebê-la feliz. Trocaram rápidos
beijos na face, e caminharam de mãos dadas. Foi ela quem falou primeiro:
-
Desculpe a demora. Tive que ajudar mamãe a arrumar a cozinha. Não podia deixar
de vir para lhe desejar muitas felicidades e lhe dar uma pequena lembrança.
Bill
desembrulhou o presente e agradeceu. Era um suéter de lã, feito em tricô.
-
É para quando o inverno chegar. Fui eu mesma quem fez.
-
Não precisava se incomodar. Enquanto eu tiver você, jamais sentirei frio.
Joana
sorriu feliz.
Durante
toda a noite, Bill só tinha olhos para Joana. Andavam de mãos dadas por toda a
parte. Dançavam de rostos colados. Beijavam-se atrás do coqueiro-anão, e em
alguns momentos, sabe Deus como, conseguiam desaparecer no meio da multidão.
Durante todo o tempo em que estiveram juntos, trocaram juras de amor e traçaram
planos para o futuro.
-
Você me ama de verdade? - perguntou Bill.
-
Você sabe que sim, e que estou com um medo louco de perdê-lo.
-
Não diga tolices...
-
As garotas da Zona Sul são mais bonitas e evoluídas, e vivem com mais
liberdade. Temo que logo me esqueça.
-
Bobinha... - beijou-a de leve. Não vê que só você me interessa? Que é só a você
que eu amo?
-
Agora, talvez; e amanhã? Eu continuarei aqui, esperando por você. Minha vida em
nada vai mudar. A mesma rotina de sempre. E você? Quantas transformações vão
ocorrer? Nova casa, novo bairro. Novo colégio, novas amizades, e na certa,
novos amores...
-
Claro que minha vida vai mudar. Vou completar meus estudos. Vou trabalhar com
meu pai. Vou economizar dinheiro e venho lhe buscar. Enquanto isso virei vê-la
sempre que puder.
Bill
beijou-a com toda a paixão que sentia naquele momento, e, só quatro anos após
aquela noite, foram se encontrar novamente.
Quase
todas as suas ex-namoradas estavam ali na festa, inclusive a primeira, a prima
Márcia que, aos quinze anos já era uma linda moça. Ela desfilava orgulhosa,
exibindo seu novo namorado. Ele não era morador do bairro e trajava uma farda
de gala do Colégio Militar; por ambos os motivos era alvo de inveja e
provocação dos rapazes da redondeza.
A
festa foi até o romper da aurora, mas acabou, para Bill, às duas da manhã,
quando o pai de Joana, menina pobre do bairro, veio buscá-la.
Bill
abriu bem os olhos, como se estivesse levantando a tela. O filme de sua vida
acabara de passar. Ainda sentado sobre o caixote de livros, com o braço apoiado
na perna e o queixo na mão, olhava os vestígios da grande festa espalhados pelo
terreno. O casal de empregados, que trabalhava para a família, já estava no
novo apartamento aguardando a chegada da mudança. O caminhão de tio Giorgio já
tinha feito a primeira viagem e já estava arrumado para partir, de volta à Zona
Sul. Só faltava o caixote em que Bill estava sentado. De onde estava, podia
ouvir as vozes e os risos que vinham do fundo do quintal. Lá, seus pais e tio
Giorgio terminavam de esvaziar o último barril de chopp que sobrara da festa.
Os
pais partiram num táxi. Seu tio deu a partida no motor tendo ao lado, na
cabine, dois ajudantes. Em cima do velho caminhão, misturado com a mobília e
segurando objetos quebráveis, ia Bill que, a despeito do lindo dia de sol, via
totalmente embaçada a casa se afastando, lentamente.
CAPÍTULO
2
Paris,
14 de junho de 1940
Durante
cinco anos as botas alemães pisaram o berço da liberdade. O nazismo roubava a
cultura, a dignidade do povo francês. Pelas avenidas dos Champs-Elysées,
milhares de soldados inimigos marchavam diante de uma multidão perplexa. A
França fora invadida e Paris capitulara diante do 5º. Exército alemão, no dia
14 de junho de 1940. Das janelas dos edifícios, à distância, tinha-se a
impressão de que a avenida fora tomada por uma grande nuvem de gafanhotos.
Muitos cobriam os olhos para não ver, outros se escondiam, mais por vergonha
que por medo. Mas todos ouviam o ressoar dos cascos em "passo de
ganso". Uma mistura de cadência com estupidez. Era um sábado, dia em que o
francês costuma sair às ruas para conversar, rir, beber, dançar e ouvir música.
Dia difícil de se encontrar um lugar vago nas mesas dos Cafés espalhados pelas
largas calçadas e cobertos por toldos coloridos, onde as flores eram oferecidas
aos casais enamorados por senhoras gastas pelo tempo, mas de almas jovens. O
turista desavisado, chegado em Paris numa noite de sábado, poderia pensar que
um só e imenso acordeão estaria tocando para toda a cidade ouvir, cantar e
dançar. Do Arco do Triunfo à Tour Eiffel, das margens do Sena à Place Pigalle
e, principalmente no coração boêmio de Paris: Saint-Germain-des-Prés.
Naquele
sábado poucos saíram às ruas, ninguém cantou e o acordeão emudeceu. Grande
parte da população passou vários dias para acreditar na profanação do solo
pátrio e, só quando as prisões, as sevícias e os fuzilamentos começaram a
acontecer, foi que o povo saiu do torpor que o atingiu. A Linha Maginot, tão
decantada por sua inviolabilidade, fora transformada no maior fracasso da
história da segunda guerra mundial.
Aos
poucos o povo foi transformando sua apatia, gerada dentro da perplexidade que
fora, por sua vez, fecundada pelo absurdo, por um revolta muda. Lafayette,
Chateaubriand, Baudelaire, Dumas e Moliére eram, entre outros, os grandes nomes
da história da França, da história da paz. Foram heróis da luta pela liberdade
de expressão. Foram Marechais das artes, das letras, da cultura. E, se vivos
estavam na memória e no respeito de um povo tradicionalmente culto e pacífico,
felizmente estavam mortos pois assim não podiam se envergonhar com a grande
catástrofe que se abatia sobre a nação gaulesa. O povo estava agora entregue à
coragem suicida de um maquis, na maioria um jovem estudante servindo à
"Resistência". A pátria estava agora no coração heróico de um De
Gaulle e no cérebro inteligente de um Sartre.
Aquele
sábado, que amanhecera coberto por uma estranha névoa cinzenta que muitos
acreditaram ser um mau presságio, terminara negro. Era como se as nuvens
escuras, que cobriam Paris em sinal de luto, tivessem se transformado em chuva
e caíssem em forma de nanquim preto, pintando toda a cidade. Cinco anos depois
a Alemanha rendia-se aos aliados em Rheims, França, na manhã do dia 7 de maio
de 1945. Daquele dia em diante os franceses começaram a limpeza. Lavaram não só
Paris como toda a França, mas não conseguiram raspar do solo a grande mancha que
ficara na história.
Se,
durante todo esse tempo, tanto o oportunismo como a corrupção foram os
responsáveis por grandes fortunas feitas por traidores da pátria, a França pôde
mostrar também ao mundo que era capaz de fabricar heróis. Enquanto uns
enriqueciam, outros morriam. Tudo isso fruto da invasão de uma terra pacífica e
despreparada para uma grande guerra; onde o saboroso vinho, o excelente queijo,
o amor desenfreado, e, principalmente a liberdade, são coisas essenciais à
vida. De repente esse povo é tolhido de tudo que lhe é mais caro e grande parte
dele cede, sucumbe, barganha. Existem duas formas de traição: por medo ou por
ambição. Parte do povo traiu por medo da dor física, ou da dor moral; por
covardia, diante da morte iminente. A outra parte traiu por oportunismo, ganância
e ambição.
Assim
como é verdade que não se deve generalizar nunca, é verdade também, para quem
se propõe a escrever sobre a história, que o faça baseado em fatos
estatísticos. E diante disso, podemos dizer que em todas as guerras de que se
tem notícia, um fenômeno foi registrado: o índice de coragem sempre foi maior
entre a parte pobre da população. Quando se fala ou se escreve a palavra povo,
lembra-se do necessitado, do oprimido; daqueles que convivem constantemente com
a fome, a miséria, a dor. E é desse ou nesse tipo de gente que surgem grandes
heróis. Eles encontram forças que jamais um subnutrido supunha ter. O poder de
resistência torna-se maior num homem aparentemente fraco. Pode ser
contraditório e até irônico, mas quem foi acostumado a comer pouco e mal,
resiste mais tempo sem se alimentar. Quem não conhece o bom vinho às refeições,
jamais sentirá falta dele. Diante de fatos concretos, insofismáveis e
estatísticos, é que podemos afirmar que a história registrou, através dos
séculos, um maior número de heróis entre os pobres, e um maior número de
traidores entre os ricos.
Durante
todo o tempo em que a França esteve ocupada, como não poderia deixar de ser,
repetiu-se o fenômeno. Se um ou outro pobre enriquecia, grande parte dos ricos
ficava cada vez mais rica. Quando não triplicavam suas fortunas, conseguiam
mantê-las intactas e, com isso, não precisavam abdicar de seus hábitos e
regalias - do supérfluo, que só o dinheiro pode comprar, ao bom gosto que o
dinheiro aprimora. Enquanto o país desmoronava, eles, os traidores ricos, se
mantinham no topo, cercados de padrão e "status".
É
bom também registrar, a bem da justiça, que algumas fortunas foram destroçadas,
e que famílias de grandes tradições e privilegiadas condições financeiras, ao
findar a guerra, se encontravam na mais solitária das misérias. Foram também
heróis; a renúncia, em certos casos, pode ser considerada uma forma de
heroísmo.
No
velho carrilhão na parede de um pequeno restaurante em Saint-Germain-des-Prés,
soavam nove horas da noite. A família
Fontaine cerrava as portas do seu estabelecimento mais cedo nesse sábado, por
falta total de fregueses. Pierre, o
filho mais velho de vinte anos, recolhia as mesas da calçada; Germaine, filha
do meio, com dezenove anos, varria o salão; Noelle, a caçula, de seis anos, num
canto, brincava inocentemente, com a sua boneca de pano, totalmente alheia aos
trágicos acontecimentos. Enquanto Madame Fontaine arrumava a cozinha, seu
marido ouvia o rádio no salão, prostrado numa velha poltrona de vime. O locutor
dava as últimas notícias da ocupação alemã. A voz parecia insegura e as
notícias truncadas, incompletas; encerrava fazendo um apelo patético à
população para que não entrasse em pânico. Garantia que em poucos dias tudo se
normalizaria; que, se o povo francês mantivesse suas tradições pacíficas e
hospitaleiras, nada deveria temer. E antes que o locutor exortasse a população
a colaborar com os "boches", Pierre desligou o rádio, cheio de ódio e
nojo. Ele a princípio não acreditara no acontecido. Agora não parava de falar,
demonstrando com a voz abafada seu inconformismo, aos gritos sua revolta e, em
voz chorosa, sua vergonha. Madame Fontaine e sua filha Germaine passaram o dia
fazendo perguntas. Nesse sábado, desde
as primeiras notícias da queda de Paris, o velho Fontaine não dizia uma só
palavra. Limitava-se a gestos. Estava com uma expressão ausente, como se
estivesse dopado.
Com
as portas cerradas e a casa arrumada, reuniram-se em torno da maior mesa do
pequeno restaurante, para a ceia. Só em ocasiões especiais, como o natal, é que
a família Fontaine se reunia para uma refeição, todos a um só tempo. O velho
Fontaine levantou-se em silêncio, foi até a pequena adega e de lá trouxe até à
mesa o seu melhor vinho. Serviu quatro copos de fino cristal e uma pequena
caneca de alumínio que entregou à Noelle, sua filha caçula. Foi aí então que
ele, rompendo o silêncio, falou pela primeira vez nesse dia:
-
Nossa pequena família está aqui reunida, como fazemos sempre nas grandes
ocasiões - falava com a voz firme e pausada, para surpresa de todos - Não
sabemos quando vamos ter uma nova oportunidade para isto. Talvez seja esta a
nossa última refeição juntos. Tudo poderá nos acontecer. Precisamos estar
preparados para o pior. Nossa soberania foi ultrajada e nossa honra
vilipendiada. Hoje a estupidez venceu uma batalha contra o bom senso. Mas podem
estar certos que justamente hoje, quando tropas nazistas pisaram Paris, berço
da cultura e grande vitrine das artes, foi que a Alemanha começou a perder a
guerra. E por essa certeza e pela fé que depositamos em Deus e num povo que faz
da liberdade a sua maior arma, é que ergo a minha taça e proponho um brinde à
nossa vitória.
O
velho Fontaine ergueu sua taça com a mão firme, mas suas últimas palavras
saíram trêmulas. Terminara o pequeno discurso com a voz embargada. A emoção o tomara de assalto, e suas faces
foram banhadas pelas lágrimas do patriotismo.
Na
manhã seguinte, domingo de sol apático, uma de suas previsões fora confirmada:
jamais a pequena família Fontaine estaria reunida em torno de uma mesa. Pierre
partira de madrugada.
CAPÍTULO 3
O início da nova etapa
Só
a sua família e o pessoal do quartel onde serviu conheciam-no pelo verdadeiro
nome. No entanto, por toda a vizinhança, só o conheciam pelo pseudônimo que
adotara: Bill. Muito cedo, bem criança ainda, mostrou os primeiros sinais de
uma forte personalidade. Seus pais, que a princípio gostavam de chamá-lo apenas
por Gil, tiveram que aceitar a troca para Bill, diante da insistência do
garoto. O certo é que ele se negava a atender qualquer chamado se não o
chamassem por Bill. Aos dezessete anos ele já não lembrava porque e quando
adotara aquele nome. Em todos os seus dourados anos de infância e início de
juventude, por todo o bairro do Encantado ou por onde quer que fosse, era
conhecido apenas como Bill. Para os amigos dos bancos da igreja dominical, para
os colegas dos bancos da escola, para os companheiros dos terrenos baldios e
campinhos de várzea, onde jogava uma bola redondinha, seu nome verdadeiro era
Bill. E até que o nome que adotara combinava muito bem com o seu tipo físico:
alto para a idade, forte, louro e de olhos verdes. O sobrenome Morrison ele
adotara algum tempo depois que dera baixa da Aeronáutica e tentava conseguir o
primeiro emprego.
Enquanto
ouvia discos, no quarto bem decorado do novo apartamento que seu pai comprara
em Copacabana, Bill colava algumas fotos, que ele mesmo tirara, no álbum de
recordações. Eram fotografias de namoradas e ex-namoradas. Muitas estavam de
vestido ou calça comprida; outras de maiô ou biquíni, e algumas inteiramente
nuas. De repente sentiu um calafrio. Regina, em foto colorida, deitada num
sofá, numa pose lânguida e sensual, vestia apenas uma corrente dourada em volta
do pescoço. Um medalhão pendia da corrente e pousava entre seus seios fartos.
Que faria o Coronel Carneiro, a ele, Bill, se visse aquele retrato?
Bill
detestara a vida militar. Sempre fora avesso a horários rígidos, a fardas e a
gritos. Estava agora novamente feliz. Voltara à vida civil. Mas, independente
de tudo isso, sabia que poderia guardar para sempre na lembrança os bons
momentos que vivera servindo na Base Aérea do Campo dos Afonsos. A despeito de
não gostar do militarismo, fora um bom soldado e muito querido entre os
companheiros. Era sempre um dos primeiros a se destacar nos exercícios e
manobras. Seu comportamento fora impecável. Recebera, dos superiores, citações
elogiosas nos boletins. Seu prestígio se solidificara ao ganhar, para a unidade
na qual servia, o título de campeão de boxe em sua categoria. Além da bela taça
de prata conquistada, recebera também como prêmio, do Comandante, um passe que
lhe dava direito a passar três dias com a família. Deixou a Base, no final
daquele dia, com alguns de seus melhores companheiros, e foram comemorar a
grande conquista numa boate de fama duvidosa.
Bill, que não estava acostumado com bebidas alcoólicas, tomara um porre
monumental. Ninguém conseguia lembrar mais do número exato de doses de
cuba-libres servidas na rica taça, e só pararam de beber quando passaram a ver
várias taças iguais se fundirem sobre a pequena mesa. Ao acordar, no dia
seguinte, Bill estranhou ter adormecido de botinas, e mais perplexo ficou ao
abrir as cortinas da janela do quarto e ser agredido pelo sol, que antes fora
sempre seu amigo. Bill acabara de conhecer o dissabor de uma imensa ressaca.
Pouco
tempo depois de sua grande conquista, passou a ser o ordenança do Coronel
Carneiro e seu motorista particular. Bill dirigia muito bem. Sua vida começou a
ganhar novos rumos e seus horizontes novas cores. Conheceu Regina, filha caçula
e a menina dos olhos do Coronel. Menina não era bem o termo. Uma linda jovem de
dezessete anos. Cabelos castanhos claros, olhos castanhos-esverdeados, boca
pequena e carnuda, cintura fina, seios fartos e um traseiro imponente. Media
1,60 m de pecado. Regininha, como era chamada, era uma pimenta malagueta. Viva,
alegre, geniosa, irrequieta e profundamente ardente. Na primeira vez que botou
os olhos em Bill, convocou-o para servir aos seus caprichos. Só que não contava
que iria se apaixonar de verdade e muito menos que iria encontrar um rapaz de
personalidade marcante, capaz de não se deixar envolver tão facilmente. Bill
sabia o que queria, onde e quando. No início os gênios conflitantes se
chocaram. Com o passar do tempo ele conseguiu amansá-la.
Dona
Margareth casara, ao completar dezoito anos, com o Coronel Carneiro. Um ano
depois nascia Augusto, seu primeiro filho. Rosa, a filha do meio, nascera no
ano seguinte, e só três anos depois, em parto muito difícil, no qual quase
perdera a vida ou a criança, D.Margareth dera à luz Regina, que seria
definitivamente sua filha caçula. O médico a prevenira sobre o perigo de uma
nova gravidez. Ela sempre fora uma mulher vaidosa e, depois do nascimento de
Regininha, passara a se cuidar melhor. Usava cremes de beleza importados; fazia
ginástica diariamente e tomava massagens duas vezes por semana. Obedecia rigorosamente
a dieta prescrita por médico nutricionista e se sentia realizada ao ouvir dizer
que parecia ser a irmã mais velha de seus filhos.
Augusto,
próximo de completar maioridade, cursava uma faculdade na Zona Sul e morava com
os tios na Urca. Costumava passar os domingos com os pais. Rosa casou cedo e
foi morar no Méier. Apenas Regininha, que cursava o segundo grau numa Escola em
Marechal Hermes, morava com os pais. Educada com todo o mimo e excesso de zelo,
ela tinha tudo o que queria, principalmente do Coronel Carneiro. Ela sabia
desmontar em segundos toda aquela pose marcial do pai. Quem conhecesse o
Coronel apenas no quartel jamais poderia imaginar do que ele seria capaz de
fazer em casa, diante dos dengos da filha. Bill, em pouco tempo de convivência
com a família do seu comandante, percebeu logo isso e entendeu também que
Regininha poderia vir a ser o primeiro grande trunfo de sua vida.
No
início fora difícil, mas, com o correr dos dias, e diante da habilidade de
Bill, Regina foi-se moldando. Ela era muito autoritária e geniosa. Quando
queria alguma coisa, tinha que ser de imediato e não aceitava recusa. Nos
dezessete anos vividos não tinha aprendido a pedir, só sabia exigir. Mesmo
quando falava com o pai, num tom baixo e macio de voz, era incisiva,
intransigente, categórica. Sabia usar o choro para persuadir e o grito para se
impor. Bill tivera que fazer uso de toda a sua sagacidade e inteligência. Como
poderia agradar Regina sem se deixar por ela dominar? Agradando-a, estaria
agradando também ao Coronel e entendia que tendo o pai dela como amigo, estaria
sempre de bem com a vida militar. Tempos depois viu que não havia se enganado.
O
simpático e confortável bangalô, em que a família Carneiro morava, ficava a dez
minutos do quartel. O Coronel transitava sempre em carro oficial e deixava o
seu para uso exclusivo da esposa que, entre outras coisas, levava a filha à
escola. De repente, Bill passara a motorista de Regina. Aquela nova tarefa
agradava a Bill e tinha sido criada por um complô organizado por mãe e filha.
Ambas tinham interesses distintos e ele sabia que estava sendo usado. Dona Margareth passara a ter mais tempo livre
para cuidar de sua aparência ou para jogar biriba com as amigas e outras
pequenas futilidades. Regina passara a ter mais tempo ao lado do seu príncipe
encantado. E as mudanças naquela família foram surgindo. Mãe e filha passaram a
conviver melhor. Enquanto uma estava mais tranquila e despreocupada, a outra
estava mais alegre e menos exigente. Na verdade, ambas estavam mais felizes.
Até o Coronel, que vivia envolvido por problemas concernentes à segurança
nacional, notara a mudança. Mas estava por demais atarefado para investigar as
causas que motivaram tão gratas transformações. - E afinal de contas, por que
investigar? - pensava ele. Paz e felicidade não se investiga, se usufrui. Na
verdade o Coronel dispunha de muito pouco tempo para passar com a família e há
muito não via tanta paz reinante em seu doce lar. Estava também feliz.
Regina
estudava à tarde e Bill sempre a levava após o almoço. Estes eram os únicos
momentos que tinha para ficar a sós com ela. Nas três primeiras vezes que a
levou à escola o fez no devassável jipe do quartel, e isto não o deixava muito
à vontade. No primeiro dia parara em frente ao portão principal que dava para
uma rua de tráfego intenso; na segunda vez, durante o trajeto, Regina sugerira
que ele a deixasse numa rua de pouco movimento, para onde a escola dava fundos.
Ela alegou, com uma pitada de malícia na voz e no sorriso, que devido ao
engarrafamento constante na rua principal, seria mais fácil estacionar nos
fundos da escola. Um longo e alto muro de blocos de concreto delimitava o
Ginásio com aquela pacata rua sem calçamento, onde algumas casas de construção
recente, na maioria ainda desabitadas, se misturavam a casebres e terrenos
baldios. Bill notou que, no primeiro dia em que ali estacionou o jipe, Regina,
ao saltar, dera a volta a pé pelo quarteirão, e que da segunda vez em diante,
entrara na escola por um pequeno portão de ferro que antes vivia trancado por
um grande cadeado preso por grossa corrente.
Todas
as conquistas amorosas de Bill, anteriores à Regina, independente de seu charme
e tipo físico privilegiados, foram difíceis e trabalhosas, e por isso mesmo
sentira um prazer todo especial. Com a filha do Coronel fora diferente. Não que
ela não merecesse sua atenção, ou que ele temesse arriscar o seu prestígio
perante o seu superior. Não, ele sabia que se não era por falta de atributos
físicos da parte dela, muito menos seria por medo da parte dele. O mundo, até
então, não o ensinara a conviver com tal sentimento. Nunca ouvira, em criança,
frases imbecis como as que costumam dizer adultos idiotas e despreparados:
-
Se não comer a comidinha toda, o Bicho Papão vem pegar o neném. Se fizer
malcriação o guarda prende, etc.
Não,
seu velho pai lhe ensinara diferente, lhe mostrara a fórmula do destemor
equilibrado e da coragem lúcida. Fora bem preparado para a vida. Não temia
doenças, pois gozava de ótima saúde, e da morte não tinha medo, pois era jovem
demais para se preocupar com ela. Sempre
fora um vitorioso, e por isso jamais sentira a dor da derrota, do fracasso, da
humilhação e do castigo. Por que teria que temer o Coronel? Se quisesse
conquistar Regina, saberia como fazê-lo. Com sutis insinuações jamais daria
margem a melindres e, consequentemente, a reações explosivas. O que poderia
conseguir de pior seria uma negativa da parte dela e, se isso acontecesse,
usaria a estratégia militar: recuaria, daria campo, ficaria na defensiva e
voltaria a atacar no momento oportuno com o inimigo já enfraquecido. Mas não
foi preciso nada disso. Regina não lhe
dera tempo. Logo que o viu, jogou-se em cima dele com armas e bagagens. Foram
tão evidentes as suas atitudes que logo dona Margareth percebeu. Com três dias
como ordenança foi à casa do Coronel para entregar uma encomenda e ouviu da mãe
de Regininha um comentário curto e em tom jocoso:
-
Você tem sorte, rapaz... Nunca vi minha filha tão interessada por alguém!
O
primeiro diálogo entre os dois fora um tanto áspero:
-
Você trabalha para o meu pai? - perguntou Regina.
-
Não, trabalho para a Nação - respondeu secamente Bill.
-
Mas faz tudo que meu pai lhe manda fazer, não?
-
Recebo ordens militares e as cumpro; fora disso o ajudo em tudo que posso da
melhor maneira possível e, em troca, recebo certas regalias...
-
Você não passa de um serviçal presunçoso...
-
Poderia ser, mas sou apenas ordenança e motorista do Coronel.
-
Não creio que você tenha coragem de se negar a cumprir uma ordem de meu pai,
seja ela qual for...
-
Nunca me passou isso pela cabeça. Conhecendo o Coronel como penso conhecer, não
creio que ele seja capaz de me pedir algo que eu não possa fazer...
Ambos
falavam com firmeza, mas os tons das vozes é que eram diferentes: o dela,
áspero; o dele, macio. Regina continuou a provocar:
-
Sabe que se eu quiser você trabalhará para mim também?
-
Poderei ajudá-la, se você me pedir e seu pai concordar, ou vice-versa.
-
Pois bem, um dia desses lhe mando fazer alguma coisa para mim e vamos ver o que
acontece...
Sem
dar tempo de nova resposta, Regina virou-se rápido e saiu da sala, batendo com
força a porta de seu quarto.
-
O último disco acabara de tocar. O automático da vitrola enguiçara e há muito
que o disco girava sob a agulha sem sair do lugar. O ruído irritante trouxera
Bill de volta ao quarto. À sua frente ainda estava Regina, inteiramente nua em
foto colorida. Era ela, até então, o seu mais valioso troféu.
CAPITULO 4
Gênova, 14 de
junho de 1940
Dois
sorrisos diferentes pendurados na parede: um bondoso, outro arrogante. Cristo e
Mussoline, em dois grandes quadros de molduras douradas, estavam ali, lado a
lado, em frente à grande mesa da sala principal da família Spata. O rádio,
sobre a cristaleira, acabara de dar as últimas notícias da guerra. Naquela
hora, dezenas de bandeiras com a cruz suástica tremulavam nos mastros dos
prédios públicos de Paris. A grande metrópole capitulara diante do imbatível
exército alemão e um grande passo fora dado para fortalecer a coligação
fascismo-nazismo. Dentro de um futuro bem próximo o mundo inteiro renderia
homenagens às duas maiores figuras do século XX : Mussoline e Hitler.
Toda
a família do velho sapateiro genovês Giusephino Spata estava ali reunida
comemorando, com bom vinho e suculento spaguetti, o grande feito. Toda a
família não, pois o sonhador Giorgio, seu filho mais velho, viajara, antes da
guerra, para o Brasil. Fora tentar a sorte em São Paulo e há muito não mandava
notícias. Com o pensamento no além mar, uma furtiva lágrima brotou nos olhos do
velho Spata. Ah! como seria bom que seu filho Giorgio estivesse ali com ele, em
Gênova, usando sua coragem e espírito idealista em prol do fascismo. Poderia
agora estar lutando lado a lado com o seu irmão, capitão Giovanni, recentemente
condecorado por ato de bravura. Ainda que fosse em Turim, Milão ou Roma, não
importava. Mas que estivesse na Itália reforçando as fileiras do grande
exército comandado por seu querido "Duce". Poderia estar até como
Coronel, quem sabe? Em tempo de Guerra as promoções surgem rapidamente e ele
era um rapaz forte, inteligente e corajoso.
Mas
o que o velho sapateiro mais lamentava era o fato de Giacomo, seu filho mais
moço entre os homens, ter sido dispensado das forças armadas. Tinha um pequeno
defeito físico: era coxo, puxava da perna esquerda; tivera paralisia infantil
aos cinco anos, o pobre infeliz. Fora uma criança tão alegre, bonita e sadia
antes da desgraça, coitado! Continuava bonito e forte, era verdade, mas era um
ragazzo triste aos vinte e cinco anos. Oito filhos, pensava, e sete deles ali
com ele a seu lado, bebendo e cantando, e só Giacomo não tocara no vinho e não
dissera nem uma palavra. Dali a trinta dias, se Deus quisesse e o grande
"Duce" permitisse, estariam novamente reunidos. Benedetta, sua santa
mulher, quatro anos mais moça que ele, faria 56 anos. O velho Spata estava
feliz. Embora pobre, sua mesa era farta, nada lhe faltava. Recebia a proteção
dos homens e as graças do bom Deus. Era o chefe de uma família unida, alegre e
feliz. À cabeceira da mesa sentia-se como um General no comando do seu pequeno
exército.
Todo
mundo estava ali. Junto dele, à direita, sua querida mulher; à esquerda,
garbosamente fardado, com uma valiosa medalha pendendo no lado do coração, o
capitão Giovanni, seu filho de 32 anos, seu herói. Estava parcialmente bêbado e
entornava, goela a baixo, mais uma caneca de vinho. A bebida já lhe escorria
pelo canto da boca e manchava a impecável túnica.
O
velho Spata passava agora em revista as filhas.
Silvana era a mais velha e também a mais feia. Solteirona, aos 38 anos,
tornara-se beata de missas diárias e plantões na sacristia. Até ela, de
temperamento esquisito e alma revoltada, estava alegre e cantando. Ao lado dela
estava Gina, a mais bonita de todas. Mantinha a pele jovem e o corpo esbelto,
aos 35 anos, mesmo sendo casada e mãe de quatro crianças endiabradas que
naquele momento brincavam nos fundos da casa. Gina tivera sorte: casara com um
industrial da pesca. Seu marido, entre outras coisas, possuía uma grande frota
de barcos pesqueiros. Ainda do lado direito, completando os lugares da mesa,
Giuseppino Spata via sua filha Graziela de 28 anos. O rosto continuava bonito,
mas engordara demais. Também estava casada, mas ao ter o seu terceiro filho
fora aconselhada por seu médico a fazer um severo regime, caso desejasse nova
gravidez. Daquele dia em diante o seu espírito materno passou a ser atacado
ferozmente por sua insaciável gula. Travou tremendas batalhas interiores, mas
seu espírito materno acabou sendo assassinado pelo temperamento guloso.
Do
lado esquerdo do velho Spata, a seguir Giovanni, estava Mônica, bela e virgem
aos 21 anos. Bem, virgem pensava o pai, que não sabia que a filha, sendo mais
nazista do que fascista, tinha cedido o seu precioso tesouro aos encantos de um
jovem soldado alemão. Rapaz de sorte, o Hans! Perdido no emaranhado da guerra
fora acolhido por um corpo imaculado e amigo, nele abrindo uma pequena clareira
à procura de novos caminhos, para depois sumir de vez. Fora destacado para novas
missões e deixara aquele belo corpo imaculado, liberto. Ficaria como um pasto
fértil e sempre pronto para saciar a fome de todos os soldados do mundo. Moça
de sorte, a Mônica! O cabo Hans era estéril.
Ah!
o pobre Spata, só ele não sabia. Inocência e infância sempre caminharam juntas,
e ele ao completar sessenta anos acabara de entrar na sua segunda infância. Da
cabeceira da mesa ele sorria para sua filha Mônica, um sorriso inocente. Em
seguida os olhos ganharam novos brilhos. Via a filha caçula Carina, de
dezessete anos. Não era feia nem bonita, mas era a mais viva, alegre,
inteligente e a mais carinhosa de todas. Ele a adorava. Ganhara a predileção do
pai na vaga deixada por Giorgio, no mesmo dia em que este partira para o
Brasil. Estava esperta, a Carina, e já namorava. O felizardo era o Ferraro,
jovem soldado do glorioso exército italiano. Ao lado de Carina estava uma
cadeira vazia, era para Giorgio.
Por
último, na cabeceira oposta da mesa, estava o filho Giacomo, o triste. Era
diferente de todos. Antes do mal o atingir, fora alegre e feliz como qualquer
criança. Jogava bola e corria pelos campos com os meninos da vizinhança.
Participava de todas as brincadeiras típicas da sua idade. A doença não
conseguira tirar-lhe a vida, mas lhe roubara para sempre a alegria de viver.
Inicialmente, ficara com o lado esquerdo totalmente paralisado; aos poucos, foi
recobrando os movimentos. Fora um tratamento caro e demorado; praticava
exercícios horas e horas seguidas, diariamente. Suportava tudo com muita
coragem para sua pouca idade; sua fibra e sua força de vontade eram
constantemente elogiadas pelos médicos responsáveis pelo tratamento. Dona
Benedetta, sua mãe, católica fervorosa, fizera até uma promessa a São Genaro:
se o filho voltasse a andar, ela faria abstinência de sexo por um ano. Era
também uma maneira de fazer o fogoso marido participar do seu ato de fé.
Diga-se, a bem da verdade, que, desde o dia em que Giacomo voltou a andar, ela,
Benedetta, mulher ardente, cumprira galhardamente a sua parte. É verdade também
que em muitas noites de quarto-crescente e lua-cheia, sentira necessidade de
dormir no quarto dos fundos com as meninas, e que antes de deitar tivera o
cuidado de passar uma grande tranca na porta.
Giuseppino,
seu marido, buscava na bebida a fuga para o delicado problema. Quando perdia as
contas das canecas de vinho que entornava pela goela, dormia fora de casa e
dizia às mulheres do porto que só a esposa era obrigada a fazer a tal da
abstinência. Só conseguia ser aceito por prostitutas que não tivessem formação
religiosa, pois a maioria das mulheres sentia-se orgulhosa em poder colaborar
com aquele maravilhoso ato de fé, sacrifício e renúncia.
Giacomo
foi readquirindo gradativamente os movimentos e quando voltou a andar ia à
praia nadar diariamente. Isso é ótimo pra ele - diziam os médicos! - Qual o
exercício mais completo que a natação para desenvolver e fortalecer a musculatura?
E Giacomo, em pouco tempo, se transformara num exímio nadador. Aos poucos foi
adquirindo novos hábitos. Descobriu novas fórmulas para passar o tempo.
Aprendeu a pescar e construiu o seu pequeno mundo em cima de uma pedra
debruçada sobre o mar. Prendia pequenos peixes e parte de sua infância na ponta
de uma isca. Giacomo adorava o mar e pensava em ser um dia marinheiro. Logo aprendeu
a ler e passou a gostar dos livros. Sua leitura predileta era sobre homens
livres e aventureiros: navegadores, viajantes, exploradores. Gente ávida, como
ele, de liberdade e conhecimentos; homens dispostos a descobrir novos mundos, a
explorar novas terras. Assim cresceu Giacomo dentro do seu mundo particular.
Por mais exercícios que tenha feito, ficara com uma pequena atrofia na perna
esquerda. Não fora aceito na Marinha e, talvez por isso, recusara o emprego que
Angelo, marido de Gina, lhe oferecera. O cunhado o chamara para trabalhar num
de seus barcos pesqueiros. Preferiu estudar, formar-se em contabilidade, e
ficar trabalhando nos escritórios de uma fábrica de massas alimentícias.
Giusephino
Spata acabara de passar em revista a sua tropa. Toda a família estava ali
reunida, exceto o cabeçudo do Giorgio. Seu lugar estava simbolicamente
reservado à mesa. A cadeira estava vazia. Os dois genros também estavam
ausentes; trabalhavam ainda naquela hora. Bem, em Angelo, marido de sua filha
Gina, ele podia confiar - sempre fora um homem muito trabalhador e por isso era
um vitorioso. Deveria estar naquela hora afogado entre faturas, gráficos e
mapas, nos escritórios de sua indústria pesqueira. E o safado do Marcelo,
marido de sua obesa filha Graziela, onde estaria? Na certa bebendo com alguma
vagabunda da beira do cais. Era um porco que só se sentia bem encafurnado na
lama. Sempre que chegava em casa, das farras, era obrigado pela mulher a ficar
uma hora embaixo do chuveiro para conseguir tirar do corpo os três fortes
odores que constantemente impregnavam sua pele: de peixe estragado, vinho
barato e mulher idem, idem. O velho Spata, já meio tonto, vendo Graziela
tentando se levantar da cadeira em movimentos lentos, sentiu piedade dela. Via
em sua filha alguns quilos a mais, e pequenos chifres despontando da alva
testa.
Agora
as filhas estavam ajudando a mãe a tirar a mesa e arrumar a cozinha. O capitão
Giovanni, herói de grandes batalhas, perdera a última para o vinho e, babando,
roncava com a cabeça emborcada na mesa, ali a seu lado. À frente, seu filho
Giacomo lhe parecia cada vez mais triste. Definitivamente o velho Spata
começara a viver sua segunda infância; a inocência passara a conviver com ele
de novo. A ingenuidade sempre foi o primeiro sentimento do ser humano, e o mais
puro, e sendo ele agora uma criança idosa, não podia compreender a tristeza que
o filho não conseguia esconder. Não entendia que o passado ficara para trás e
que levara com ele as marcas da doença que há muito o filho superara. Ele não sabia
que Giacomo era o único de seus filhos que desprezava o fascismo e odiava o
nazismo; que aquela expressão em seu rosto não era só de tristeza, mas,
sobretudo, de inconformismo, revolta e preocupação.
Giacomo,
aos 25 anos, era um homem relativamente culto. Lia muito e estava a par dos
verdadeiros acontecimentos. Ele sabia que sua pátria caminhava a passos largos
para o caos, governada por um ditador vaidoso, arbitrário e sem escrúpulos. Só
ele, ali naquela família, conseguia enxergar o futuro nebuloso e catastrófico.
Sabia também que o paranóico e maquiavélico Hitler fizera de Mussoline um
boneco de fantoche e manipulava sua vaidade e prepotência com a ponta dos
dedos. Mussoline espalhara o fanatismo por toda a Itália e os seus seguidores o
chamavam carinhosamente de "Duce". Giacomo sabia que toda a sua
família engrossava essa fileira. Ah... se ele pudesse explicar tudo isso ao
inocente pai. Mas, se antes era muito fanático para aceitar, agora ele estava
muito velho para entender.
A
algazarra das crianças cessara. Os netos do velho Spata já estavam dormindo
quando Angelo chegou de carro para apanhar Gina. Como o safado do Marcelo não
aparecera, ele se propôs a deixar a cunhada Graziela em sua casa. Sabendo que
seu carro não comportaria tanta gente, resolveu deixar os filhos com os avós.
No dia seguinte mandaria o motorista buscá-los. Seria uma boa oportunidade para
ter sua linda mulher Gina inteiramente para ele, naquela noite.
O
velho Spata ajudou seu filho Giovanni a se livrar da farda e o pôs no sofá da sala,
do mesmo modo que fazia quando ele era criança. Podia passar a noite ali, pois
só na manhã seguinte é que teria de se apresentar ao quartel. Giacomo, depois
de receber a bênção do pai, retirou-se para o seu quarto de solteiro. A noite
terminara em paz. Giusephino Spata apagou as luzes e, cambaleante, tropeçou nos
móveis da sala que ficara na mais profunda escuridão.
Giacomo
não conseguira conciliar o sono; duas horas depois caminhava descalço no
silêncio da madrugada. Pisando com a ponta dos pés, entrou no quarto dos pais.
Naquela noite seu pai dormira mais tarde do que de costume e roncava
ruidosamente, pregado ao pesado sono e à bebida leve. Com cuidado acordou a
mãe, e a levou até seu quarto. Chegara o momento da conversa que por tanto
tempo adiara. Tomou bastante fôlego e falou:
-
Como já deve saber, minha mãe, sou o único aqui que não suporta o fascismo; que
não aceita qualquer regime de força. Renego a ditadura; sempre fui livre. Amo o
sistema de vida democrático porque sei que é o que nos dá o direito de escolha;
se não é perfeito, nos deixa mais próximo da liberdade. Nosso povo está agora
dividido. Mal dividido, por sinal, pois só o fascismo está armado. Não fui
educado dentro da violência nem do pacifismo exagerado, por isso, entendo que
não devo lutar contra meus compatriotas, nem tampouco aceitar o regime imposto.
Por não poder lutar contra vocês, meus pais, nem contra meus irmãos, é que só
encontro uma saída: partir. Só a senhora, minha mãe, pode me compreender e me
ajudar a deixar a Itália. Lutarei contra o nazismo, se preciso for, em outras
terras. Destruirei os verdadeiros inimigos da nossa pátria em outros campos, e,
com fé em Deus, voltarei um dia, quando então todos nós estaremos livres
novamente.
A
mãe ouvira tudo em silêncio e compreendera. Ela conhecia o filho como ninguém
seria capaz. Giacomo sempre fora um bom bambino. Ficara triste com a doença,
era verdade, mas em momento algum fora uma criança revoltada. Sempre frequentou,
ao seu lado, as missas dominicais. Sempre tivera fé no bom Deus e em São
Genaro. Era um homem conformado, mas orgulhoso; de aparência triste, mas cheio
de vida. Fora o que mais lhe dera gosto nos estudos. Fazia da compreensão e da
bondade seus maiores elos de ligação com a família. Era o filho predileto, seu
melhor amigo. Dona Benedetta, enquanto ouvia o filho falando, pensara em tudo
isso. A tênue luz do abajur disfarçava a emoção dos olhos dos dois. No fim de
tudo dona Benedetta dissera apenas:
-
Eu compreendo você, meu filho. Vou lhe ajudar. Pode confiar em mim.
Giacomo
adormecera naquela noite com a cabeça pousada no colo de sua mãe.
CAPÍTULO 5
Os primeiros
caminhos
Sentindo
que não conseguia atingir Bill com a aspereza de suas provocações, Regina logo
mudou de método e passou a provocá-lo de maneira diferente. Insistiu nos
olhares e sorrisos maliciosos, nos apertos de mão prolongados e na exibição de
partes de seu corpo. Isso ela fazia temperando malícia com falso pudor. A
princípio as reações de Bill foram de constrangimento e timidez, e Regininha
gostava de vê-lo encabulado. Usou todos os artifícios que aprendera em filmes,
fotonovelas e romances. Debruçava-se para mostrar o decote; cruzava e
descruzava as pernas para mostrar as coxas, e passeava pela sala usando
curtíssimos shorts. Num dia teve a ousadia de aparecer vestindo uma blusa fina,
sem o sutiã por baixo, e no outro, ao ouvir a voz de Bill, que acabara de
chegar, entrou distraidamente na sala, vestida apenas com a saia do uniforme.
Ao deparar com Bill, fingiu-se surpresa, e voltou para o quarto tentando
esconder os seios com as mãos. De lá
chamou a empregada e, em voz alta, pediu que passasse a ferro a blusa do
uniforme.
Bill
entendia tudo muito bem. Compreendia até que Regina gostava de vê-lo embaraçado
e, por isso mesmo, fazia o tipo. Na verdade a timidez nunca fora o seu forte.
Na
primeira vez que a levou ao colégio, nada aconteceu durante o trajeto. Nem
palavras trocaram. Estavam tensos como dois lutadores que se estudam antes de
começar a luta. Quando parou no portão principal do colégio, Regina ao saltar
do jipe, beijou-lhe a face rapidamente, e disse:
-
Sabe que você é um garoto bem comportado? - Obrigada.
Da
segunda vez, foram conversando sobre a vida escolar, e, em dado momento, Regina
pousou a mão esquerda sobre a coxa direita de Bill, bem próximo da virilha. Ele
corou de verdade. Bill sentiu um forte calor subindo pela perna, a começar de
dentro da botina. Regina, ao sentir um pequeno volume se formar por sob a calça
do rapaz, retirou rapidamente a mão. Não trocaram mais palavras até chegar ao
colégio. Antes de saltar Regina olhou para Bill, que ainda estava corado, e
desceu lentamente a vista para onde deveria estar a razão de todo aquele tom
avermelhado em seu rosto. Bill ainda estava excitado. Ela levantou a cabeça
vagarosamente e os dois se encararam. Podia-se notar, em segundos, milhares de micro
faíscas que iam e vinham, num rápido duelo de olhos. Regina notou que Bill ia
falar alguma coisa e, antes que ele tivesse tempo, acenou sua bandeira branca,
em forma de terno sorriso, propondo trégua. Desceu ligeiro do jipe e passou
pelo pequeno portão de ferro sem olhar para trás. Era uma terça-feira quente.
Bill
sempre fora um conquistador e, pela primeira vez em sua vida, estava sendo
conquistado. Ele não estava gostando nada daquilo. Sabia que era uma
experiência nova e que, mais cedo ou mais tarde, teria que passar por ela. Mas,
na verdade, aquela aventura amorosa o estava incomodando. Nunca fora de
esquentar a cabeça com suas namoradas, mas as atitudes de Regina já o estavam
deixando preocupado. Preocupação poderia não ser bem o termo, mas só o fato de
ter que estudar a melhor maneira de agir, de como prestar mais atenção às
situações, momentos e locais, já o estava aborrecendo.
Era
noite de quinta-feira e ele estava em seu quarto. Acabara de desligar o
telefone; recebera um convite de um novo amigo, conhecimento de praia, para um
chopinho gelado com a turma. Recusara, alegando cansaço e a necessidade de não
dormir tarde naquela noite, pois teria que estar na manhã seguinte, bem cedo,
no quartel. Deitou-se, acendeu o abajur de cabeceira, e tentou iniciar a
leitura de um novo romance. Lembrou que há dois dias Regina não o chamava para
levá-la ao colégio. Bill estava aprendendo a fumar e ainda se engasgava com a
fumaça do cigarro, mas, mesmo assim, fumou meio maço aquela noite. Não passou
das primeiras páginas do romance, e pegou no sono se questionando seguidamente:
- por que? por que?
No
dia seguinte, no quartel, depois de fazer os exercícios de rotina, foi chamado
ao gabinete do Coronel Carneiro. Depois de perfilar-se e prestar continência,
falou:
-
Bom dia Coronel; mandou me chamar?
-
Sim, quero que me faça um favor...
-
Estou às suas ordens, senhor.
-
Parece que houve qualquer problema com o nosso carro, e Margareth me telefonou
perguntando se você poderia levar Regininha ao colégio.
-
Claro, Coronel. Basta o senhor autorizar...
-
Pois bem, depois do rancho você vai estar dispensado.
-
Só isso, Coronel?
- À
vontade, e obrigado
Bill
deu meia volta, e saiu sorridente.
Às
doze e trinta em ponto, saltou do jipe carregando uma caixa de ferramentas.
Dona Margareth veio abrir a porta.
-
Bom dia, madame - falou o rapaz. Que houve com seu carro?
-
Não entendo de motores de carro, e só sei que esse aí não quer pegar.
Bill,
ainda na soleira da porta, viu de relance, Regina atravessar a sala, vestindo
uma camisola levemente transparente, podendo se ver, por baixo do tecido, as
marcas da calcinha e do sutiã. Foi aí que resolveu falar num tom de voz mais
alto que o seu habitual:
-
Não será por um defeitozinho à toa que a senhora vai deixar de levar sua filha
ao colégio. Tenho algumas noções de mecânica, e poderia tentar dar um jeito...
Margareth
interrompeu bruscamente:
-
Por que, você não está à nossa disposição?
-
Claro que estou, madame - gaguejou um pouco - é que eu pensei que...
Margareth
interrompeu de novo:
-
Não há necessidade de você se sujar de graxa à toa. Já telefonei para o nosso
mecânico e ele deverá chegar a qualquer momento. Gostaria apenas que você
levasse Regininha ao colégio, no jipe.
-
Sim, senhora.
-
Entre e sente-se ali. Regininha foi trocar de roupa e não deve demorar. Dizendo
isso, saiu da sala.
Nem
bem um minuto tinha se passado e dona Margareth estava de volta, trazendo, numa
bandeja, um copo duplo de refresco gelado.
-
Tome. Faz bem aos dois males: hoje está um dia muito quente, e você está um
pouco nervoso.
Assim
que Bill segurou o copo e ia agradecer, ela completou:
-
Maracujá é calmante.
-
Obrigado, dona Margareth - falou sem conseguir esconder um sorriso brejeiro.
Logo
depois Regina apareceu, com os livros na mão, e saíram. Fizeram a curta viagem
totalmente mudos. Vez por outra, Bill assobiava para mostrar descontração. Se a
tecnologia eletrônica estivesse evoluída ao ponto de ter inventado um aparelho
capaz de captar pensamentos, e um desses aparelhos tivesse sido instalado
naquele jipe, teria registrado o seguinte diálogo:
Ela:
- Idiota, orgulhoso. Está doido para saber porque há dois dias não lhe peço
para me trazer ao colégio.
Ele:
- Tão bobinha, e pensando que é esperta. Está morrendo de vontade que eu lhe
pergunte porque me evitou durante dois dias.
E
foram pensando coisas semelhantes até estacionarem nos fundos do colégio.
Regina não saltou logo do jipe, como era do seu costume. Ficou estática, como
se quisesse ouvir alguma coisa. Esperando que algo acontecesse, ficou olhando a
linha do horizonte, através do para-brisa. Bill não sabia o que fazer ou dizer
e, impaciente, assobiava para disfarçar. Regina percebeu que ele a observava, e
virou o rosto bruscamente em sua direção. Ficaram cara a cara por alguns
segundos, e falaram ao mesmo tempo:
-
Sentiu falta de mim?
Regina
passou o braço em torno do pescoço de Bill, e beijou-o na boca. E, dos lábios,
em cascatas, jorraram perguntas. As frases eram curtas, e os beijos longos. Os
lábios satisfaziam os corpos e os espíritos, com respostas e carícias. Fizeram
uma pequena pausa, como se estivessem readquirindo fôlego, e voltaram a se
beijar com sofreguidão. A despeito do sol a pino, de uma tarde de um dia de
muito calor, soprou naquele instante uma brisa fresca e agradável. O jipe
poderia estar estacionado ali, naquela rua poeirenta e esburacada mas, naquele
momento, o jovem casal enamorado acabava de estacionar nas nuvens. Voltaram a
conversar:
-
Pensei que este momento não fosse chegar - falou ela.
-
Estava ansioso por isso - disse ele.
-
Não fosse o seu orgulho e teríamos ganho mais tempo de felicidade, pois nunca
escondi meus sentimentos.
-
Você me inibiu com a sua pose autoritária e, afinal de contas, não deve
esquecer que é a filha do meu comandante. Jamais poderia desagradá-la.
-
Bobinho !
-
Vamos recuperar o tempo perdido, prometo - e Bill beijou-a no rosto.
O
último beijo foi longo, demorado; perderam a noção do tempo. Poderiam ficar
assim, indefinidamente, de lábios colados, alheios a tudo, não fosse a voz de
uma criança que parada bem próxima ao jipe, dizia:
-
Aí, soldado, manda bala! - E partia correndo pela rua afora, empinando um velho
papagaio de papel.
CAPÍTULO 6
Paris, três meses depois
A
família Fontaine só foi ter notícias de seu filho Pierre, três meses depois de
sua partida. Numa fria manhã de setembro, um menino de sete anos, morador da
vizinhança, entrara correndo restaurante a dentro e entregara ao senhor
Fontaine um pequeno bilhete escrito em letra de forma, que dizia:
-
Queridos pais, não se preocupem. Estou muito bem. Fui adotado por uma grande
família de patriotas franceses e viajo muito por todo o país. Breve estarei com
vocês. Beijos, Pierre.
-
Quem lhe entregou isso? - perguntou aflito o pai de Pierre.
-
Foi um homem de blusão de couro que estava num Citroen preto - respondeu o
garoto.
-
Ele lhe falou alguma coisa?
-
Ele me disse apenas que entregasse o bilhete em suas mãos. Depois me deu alguns
bombons e partiu.
O
velho Fontaine agradeceu à criança e foi contar a novidade à mulher, com os
olhos úmidos de lágrimas.
Três
meses foram o suficiente para transformar a risonha cidade-luz. Paris era uma
frágil mulher que fora violentada por um grande membro alemão. Traumatizada e
infeliz, parecia ser outra Metrópole. Os efeitos maléficos da ocupação alemã já
se faziam sentir; havia escassez de tudo, dos gêneros de primeira necessidade
aos artigos de higiene, da carne ao sabonete, passando pela gasolina que fora
logo racionada. Estava a cidade nas mãos dos aproveitadores, à mercê daqueles
que iriam enriquecer ou triplicar suas fortunas, usando o câmbio negro e a
desgraça como armas poderosas a serviço de suas ambições. Os generais e grandes
líderes das forças alemães de ocupação, Goering e Himmler, confiscavam
propriedades particulares e saqueavam, do grande museu do Louvre, obras de arte
de valor incalculável. Várias estátuas de heróis franceses foram dinamitadas
por pelotões nazistas. Os "Boches" enfraqueciam o povo das duas
formas mais eficazes: pela fome e pela humilhação. A ostentação era também
outro meio encontrado para ferir a dignidade do povo francês. Os alemães frequentavam
os melhores restaurantes, teatros e casas de diversões, comendo e bebendo do
melhor, e pagando em marcos de ocupação, cédulas nas quais a promessa de
pagamento impressa não tinha assinatura. Garbosamente fardados, os soldados
nazistas desfilavam nesses lugares acompanhados por lindas garotas francesas.
Se assim sabiam que estavam ferindo o povo, esqueciam-se que, com isso, geravam
um ódio incontrolável, acirravam os brios, o amor próprio e a altivez do
francês.
Um
fato curioso podia-se observar nas ruas de Paris: as crianças continuavam
soltas, brincando: as mulheres continuavam passeando; os velhos, na sua maioria,
saiam para comprar alimentos para casa.- E os rapazes? Para onde foram os
rapazes? Por onde andava o sexo masculino da juventude francesa? Poucos, muito
poucos eram vistos nas ruas. Mas estavam mais vivos do que nunca; trabalhavam,
planejavam, lutavam e se escondiam. Comunicavam-se por código; preparavam
emboscadas; interceptavam mensagens inimigas; destruíam arquivos secretos;
interrompiam as linhas telegráficas e telefônicas; incendiavam prédios
públicos, nas mãos dos nazistas; roubavam comida e munição. Costumavam usar, em
seus ataques, bombas de confecção caseira. E, o mais importante de tudo, é que
comemoravam cada batalha vencida, cada feito isolado, com o sabor de uma grande
vitória.Um velho celeiro, numa pequena fazenda, nos arredores de Paris, poderia ser um grande depósito de armas e munições para os jovens revolucionários. Um prédio semidestruído, uma casa em ruínas, ou um armazém abandonado, poderia ser também, eventualmente, o ponto de encontro, o quartel-general para aqueles que viriam formar o que seria depois conhecido como a famosa "Resistência". O fato é que eles poderiam estar em qualquer ponto da cidade ou do país. Costumavam sempre trocar de endereço por menor que fosse a suspeita de que estavam sendo seguidos ou vigiados. Um pequeno erro poderia ser fatal. Não tinham medo da morte, mas temiam serem capturados vivos. Sabiam que se um deles caísse prisioneiro e fosse vítima dos já famosos métodos de tortura da "Gestapo", poderia por a perder todo um trabalho, e com isso sacrificaria também uma infinidade de vidas preciosas. Eles não aceitavam limite para o medo, mas acreditavam no limite para a dor. Qualquer pessoa poderia fazer parte da "Resistência", desde que a coragem fosse ilimitada e que o poder de renúncia fosse maior do que o apego à família e superior a qualquer tentação de bem material.
Dois poderosos grupos, entre outros, faziam parte da "Resistência": os Bombeiros, que por organização e eficiência no desempenho de suas funções, costumavam ter todas as plantas das cidades em suas mãos, e os maquis, formado na sua maioria por jovens estudantes.
Pierre tornara-se um maquis, e estava naquele dia a quarenta quilômetros de Paris, numa fazendola de criação de aves e porcos. Dentro de um pequeno galpão, entre patos, gansos e galinhas, liderava um pequeno grupo composto por cinco rapazes e uma moça. Enquanto limpava a sua arma, Pierre perguntou:
- Como foi a operação "Pato"?
- Sucesso absoluto - respondeu o mais franzino.
- Quero saber dos detalhes. Saiu tudo bem?
- Poderia ser melhor - falou a moça
- Como assim?
- Um deles conseguiu escapar, e o outro ficou gravemente ferido.
- Bem - falou Pierre - então o sucesso não foi tão absoluto...
- Dois morreram na hora, e olha que foi até engraçado - falou o mais alto e forte da turma.
- Sabe - falou o franzino - o que escapou teve a sorte de estar com a bexiga cheia. Levantou da mesa minutos antes da explosão. Nasceu outra vez.
- É, safado de sorte! Levantou para mijar na horinha - completou o forte.
- E o garçom? - perguntou Pierre.
- Foi preso na hora, sem saber o que estava acontecendo - falou a moça.
- Não só o garçom como todos que trabalham na casa - falou o franzino. Soubemos depois que soltaram os demais, mas que o proprietário, o cozinheiro e o garçom, ficaram presos e incomunicáveis.
- Sorte nossa que eles sejam inocentes. Mesmo que venham a sofrer torturas, nada poderão revelar. Infelizmente essas coisas fazem parte da guerra. Eles pagarão por terem sido usados involuntariamente. Faremos o possível para libertá-los.
Tudo fora tramado com muita arte e cuidado. O serviço de informações dos maquis tomara conhecimento de que quatro dos mais eficientes membros da Gestapo, costumavam frequentar aquele pequeno restaurante, onde comiam, invariavelmente, o famoso prato da casa: Pato recheado, dourado ao forno". Tais "secretas" eram os que mais estavam informados quanto às atividades dos maquis. Um pato fora preparado à moda da casa, com um recheio bem diferente por dentro. Uma carga de explosivo especial detonaria, no momento em que a ave fosse friccionada. Alguém entraria pelos fundos do restaurante e substituiria o pato original, pela imitação. Dois jovens integrantes do grupo foram destacados para a missão, e ambos conseguiram escapar. A mesa usada pelos alemães ficava dentro de um pequeno reservado, um pouco afastada das demais. Mesmo assim, alguns poucos fregueses foram levemente atingidos. Dos quatro integrantes da Gestapo, dois morreram no local. Um ficou gravemente ferido, perdendo a visão horas depois. O outro escapou por não estar na mesa no momento da explosão.
Ao meio-dia do dia seguinte uma lustrosa "Mercedes Benz" preta, escoltada por dois batedores de motocicletas, com uma pequena bandeira alemã tremulando em curto mastro preso ao pára-choque dianteiro do carro, estacionou bem em frente à porta do restaurante da família Fontaine, em Saint-Germain-des-Prés. Dois soldados e um sargento saltaram do veículo, entraram no prédio e inspecionaram minuciosamente todas as suas dependências. Os soldados ficaram no salão. O sargento voltou, abriu a porta traseira da "Mercedes", e falou:
- Tudo em ordem, meu Coronel.
A rua estava quase deserta àquela hora do dia. Um pequeno grupo de crianças, que brincava na calçada em frente, aproximou-se do automóvel, movido pela curiosidade. Foram elas quem viram primeiro quando o Coronel Kurt Staden, trajando um uniforme vistoso e impecável, surgiu do interior do veículo.
- Que desejam, cavalheiros? - perguntou o garçom, à entrada do restaurante, procurando ser natural.
- Gostaríamos de almoçar. Recebi informações de um francês, amigo meu, de que aqui vocês têm um tempero muito agradável. Vim conferir - falou o Coronel Kurt.
O oficial ocupou uma mesa. O sargento com os dois soldados ficaram numa outra, ao lado. Os dois motociclistas ficaram de pé na porta do restaurante, mantendo severa prontidão. Na rua, sentado à direção do carro, ficara o motorista.
O que o cavalheiro gostaria de pedir? - perguntou o garçom, entregando o menu.
- Espero que não se ofenda - respondeu o Coronel - mas, se nos fosse possível, ficaríamos lisonjeados em ouvir a sugestão do próprio maitre da casa.
- Tenho certeza que será um prazer para ele, senhor - respondeu gentilmente o garçom. Com licença, que vou chamá-lo - e saiu apressadamente.
O Coronel Kurt era um homem muito polido, de bom gosto e fino trato. Culto, conseguia falar um francês corretíssimo e com admirável pronúncia. Media mais de 1,80 m de altura e era magro. Seus traços fisionômicos destoavam de seu comportamento, pois eram grosseiros. Cabelos claros e ralos, no tom da palha do milho. Possuía um estranho poder sobre os seus olhos de um azul profundo. De acordo com o momento, poderia emitir, através deles, tanto um frio ártico como um calor equatorial. Três dedos abaixo da vista esquerda, uma pequena cicatriz. Caminhava para os cinqüenta anos de vida.
Não passou mais de um minuto e o Senhor Fontaine estava ali, ao lado da mesa.
- É um prazer, cavalheiros, tê-los conosco. Não é sempre que nossa modesta casa tem a honra de servir a tão ilustres autoridades - falou o proprietário.
- A despeito de nossas vestimentas e posições, não estamos aqui como autoridades, e sim, como fregueses comuns que gostam de comer bem e com simplicidade. Não só apreciamos um bom tempero caseiro, como a cordial hospitalidade francesa - respondeu o Coronel, olhando dentro dos olhos do velho Fontaine.
- Me perdoem a vaidade, mas, posso lhes garantir que vieram ao lugar certo.
- Estamos certos disso - disse o Coronel num tom de voz indecifrável.
Os dois estavam representando, e ambos sabiam disso.
O Coronel, com o menu nas mãos, sem abri-lo, perguntou de repente:
- Os senhores aqui servem "Pato recheado, dourado ao forno"?
O Senhor Fontaine ficou nervoso, mas procurou esconder.
- Infelizmente não, senhor. Temos tido muitas dificuldades com os nossos fornecedores há algum tempo, o que é perfeitamente compreensível, e...
- Trabalha como maitre aqui há muito tempo? - interrompeu o Coronel.
- Nosso restaurante é muito modesto para termos um maitre, senhor. Sou o proprietário, e, sempre que posso, faço as honras da casa.
- Como se chama?
- André Fontaine, às suas ordens.
- Muito prazer. Sou o Coronel Kurt Staden. Que nos sugere então para o almoço, Monsieur Fontaine ?
- Como ia dizendo, senhor, não temos recebido carnes bovina, caprina e certos tipos de aves. Para falar a verdade, hoje só temos peixe e galinha. Peço desculpas, senhor.
- Que prato nos indicaria, então?
- Galinha à moda da casa, se não se opõe.
- Contanto que a galinha não seja recheada, pode nos mandar servir - falou o Coronel, procurando emitir um tom natural na voz, e acrescentando depois de uma pequena pausa:
- De preferência, que nos sirva já destrinchada.
- Pode deixar, senhor. Não vão se arrepender. Com licença - e saiu.
O garçom, único a trabalhar na casa, estava servindo outras mesas quando Germaine, a linda filha de dezenove anos do Senhor Fontaine se aproximou da mesa trazendo, numa bandeja, quatro copos e uma garrafa. Foi direto ao Coronel, e falou:
- Com licença, senhor. Gostaria de servi-lo e aos seus acompanhantes o nosso melhor vinho, como gentileza da casa - e em seguida encheu os copos.
Pela primeira vez o Coronel transmitiu alguma emoção. Ao ver a garota seu olhar emitiu aquele calor, e a sua voz, antes firme e segura, vacilou ao falar:
- Foi muita gentileza de sua parte em vir até aqui nos servir. Trabalha na casa?
- Trabalho, sim senhor - respondeu Germaine timidamente.
- Gosta do que faz?
- Meu pai é o proprietário do restaurante, e eu tenho muito prazer em poder ajudá-lo.
- Gostei de ouvir isso. Foi muito bonito de sua parte, nobre até. Entretanto, quero crer que você ainda é muito jovem para esse tipo de serviço.
- Já estou acostumada e o importante é que eu me sinta útil a meu pai.
- Sentiria orgulho, se tivesse uma filha como você. Seu pai deve ser um homem feliz. Gostaria que o chamasse até aqui. Agora sou eu quem quer oferecer a bebida. Quero brindar com champanhe a sua simpatia, inteligência e beleza.
O brinde foi feito. A comida foi servida com rapidez e eficiência. Deveria estar saborosa pois os alemães comeram bem, e teceram elogios depois. Pagaram a conta, deixaram gorda gorjeta e partiram.
Na manhã seguinte, um grande caminhão frigorífico abasteceu o restaurante com todos os tipos de carne.
CAPÍTULO 7
A primeira batalha
Manda
bala, soldado! Aquela frase poderia ter sido dita por um garoto maior, ou até
mesmo por um grupo de rapazes, moleques de rua. O fato é que aquele pequeno incidente
despertou nos dois uma certa preocupação. Não poderiam se expor, assim,
perigosamente; deveriam tomar mais precauções. Nem tanto por eles, pois o
destemor fazia parte do caráter de ambos mas, sobretudo, pelo Coronel. Afinal
de contas eles estavam trocando carícias dentro de uma viatura militar. Uma
denúncia, um escândalo, e estaria a posição do Coronel abalada. Ainda naquela
tarde, após o primeiro beijo, alvo da pilhéria infantil, conversaram algum
tempo:
-
Não devemos mais sair de jipe - falou Regina. Da próxima vez que me trouxer ao
colégio, será no nosso carro.
-
E se sua mãe precisar dele?
-
Dificilmente ela sai logo depois do almoço. Se mamãe precisar sair à tarde,
acredito que possa esperar que você volte com o carro.
-
E se houver qualquer outro impedimento?
-
Então nesse dia prefiro que não me traga ao colégio.
Depois
de tudo acertado, Regina beijou levemente os lábios de Bill e saiu. Naquela
tarde perdera a primeira aula.
Aquele
final de semana fora o mais longo de sua vida.
-
Será que estou me apaixonando por Regina? A todo instante fazia a si próprio a
mesma pergunta.
No
sábado, pela manhã, foi à praia. Jogou vôlei e futebol com a turma. À noite,
foi com Marlene, sua parceira de sarros sob as águas do Arpoador, a uma festa
de quinze anos, num luxuoso apartamento de cobertura no Leblon. E Regina estava
ali presente, dançando com ele. Passeando de mãos dadas ou olhando para as
estrelas no céu, que brilhavam e cobriam a área do nono andar. Depois de um
beijo, ela falou:
-
Não sei porque insiste em me chamar de Regina, já que meu nome é Marlene.
-
Gosto de você, mas não gosto do seu nome. Desculpe-me. Não quero que fique
zangada, mas pra mim você será sempre Regina - falou Bill sem pestanejar e com
um tom jocoso na voz.
Naquela
noite bebeu mais do que podia e, quando chegou em casa, adormeceu vestido.
Acordou tarde no domingo e foi curar sua ressaca na praia. As fortes ondas
arrebentavam com força e Bill arriscou apenas um mergulho. De repente, teve a
impressão que o mar, na noite anterior, participara de todas as festas
acontecidas próximas à orla marítima, pois estava de ressaca também. Fez a sua
pior partida de vôlei e, em conversa com os companheiros, não conseguiu
esconder o mau humor.
A
segunda-feira amanhecera chuvosa. Chegou cedo ao Campo dos Afonsos, como era
seu costume. A parte da manhã correra sem maiores incidentes. Na hora do
rancho, quase não tocou na comida. Sentiu que estava tenso demais. Recebeu o
recado de Regina às 12 horas e, minutos depois, apertava a campainha de sua
casa. Ela mesma veio recebê-lo, e parecia mais bonita do que nunca. Assim que
Bill entrou na sala, ela fechou rapidamente a porta e o beijou demoradamente.
Sua mãe estava no chuveiro e a empregada, na cozinha. Regina arranjou uma
desculpa qualquer e saíram mais cedo que de hábito. Pela primeira vez estavam
indo para o colégio em carro particular, o "fusquinha" dos pais dela.
Chovia muito e Bill dirigia com cuidado, em marcha reduzida. Em cada sinal
fechado que parava era beijado por Regina. A ruazinha, para onde o colégio dava
fundos, por pouco não estava intransitável. Mais uma hora de chuva intensa, e
por certo o carro atolaria. Se estivessem com o jipe, veículo mais apropriado
para terrenos acidentados e lamacentos, não teriam problemas. Tudo isso passava
rápido pela cabeça de Bill. Depois de analisar os prós e contras, resolveu
entrar na rua com atenção, procurando desviar das poças maiores e das partes
mais escorregadias. Estacionou um pouco além do local de costume, defronte de
uma casa nova ainda não habitada, e ao lado de um terreno baldio. Desligou o
motor do carro. Os vidros do pequeno veículo estavam totalmente embaçados. Com
o limpador do para-brisas desligado, pouco ou quase nada podiam enxergar ao
redor. Agora era Regina quem se mostrava tensa; estática, parecia aguardar o
ataque. E, para bem da verdade, não teve que esperar muito tempo. Bill deu a
última tragada em seu cigarro e o amassou no cinzeiro. Procurou uma música
suave no rádio e diminuiu o volume. Segurou Regina pelos cabelos e a beijou com
a fome de quem fez jejum de sexo e amor por muito tempo. Regina correspondeu;
também estava em jejum. Também não tinha almoçado e transferiu todo o seu
apetite digestivo para o sexual. Pela primeira vez era Bill quem tomava as
iniciativas. Ah... como foi bom esperar a hora do bote, pensava ele. Soltou os cabelos de Regina e acariciou
suavemente seu rosto. Desceu vagarosamente as mãos para os ombros dela e logo
depois ao busto. Cada mão em cada seio, delicadamente a princípio e, em
seguida, alternando toques leves e apertos firmes. Simultaneamente beijava suas
faces, seus olhos, nariz, boca e nuca. Percebeu que, quando a ponta de sua
língua tocava a orelha de Regina, ela estremecia de prazer. Suas mãos
trabalhavam sem cessar e agora abriam os botões da blusa, um a um até o último,
que antes estava por sob a saia de pregas do uniforme de Regina. Bill sabia que
ainda tinha que rodar muitos quilômetros por aquele corpo, mas não tinha
pressa; não estava preocupado, porque sabia também que tinha energia suficiente
para tanto. Regina não largava a cabeça de Bill, segurando-a por trás, pelos
cabelos, como se em silêncio lhe implorasse mais carinhos. Com sua mão esquerda
ele apertava o seio parcialmente escondido e, com a direita, tentava alcançar,
pelas costas, o fecho do sutiã. Regina não se alterou. Bill começou a suar. Que
diabo de coisa mais complicada, pensava. Suas mãos estavam pesadas, grossas,
com pouco tato, por excesso de calosidade devido aos exercícios com as armas e
com a mecânica. Ele não queria admitir sua falta de prática com determinadas
partes do vestuário feminino. Bill, cada vez mais impaciente, começou a forçar
o fecho. Pela primeira vez Regina soltou as mãos dos cabelos dele e, antes que
Bill arrebentasse seu sutiã, ela mesma, com um toque suave, soltou o fecho.
Ah... enfim a liberdade! - Por que a sociedade tem a mania de prender, coibir,
censurar, esconder tudo o que deveria ser livre. E, ao beijar o bico da
liberdade, encontrou ele a resposta: é porque as leis da sociedade são feitas pelos homens, e os homens são uns
imbecis. Mas parou logo de pensar; não deveria naquele momento misturar
filosofia com anatomia, e continuou a explorar aquele corpo maravilhoso e
prenhe de desejo. Fez de sua mão um avião e subiu uma pista de carne farta e
macia. Sobrevoou o biquíni e pousou numa pista de grama castanha.
A
chuva diminuíra de intensidade. A rua estava totalmente deserta e o carro
envolvido em brumas. Se algum transeunte apressado por ali passasse,
dificilmente poderia ouvir os gemidos. Bill fez tudo o que tinha direito.
Regina, a princípio passiva, aos poucos foi se soltando e no fim o surpreendeu.
Ambos sentiam nos lábios vários sabores. Regina saltou do carro e ficou por
alguns momentos sob a chuva. Precisava de uma desculpa para se apresentar no
colégio com o uniforme tão amarrotado. As rodas do carro giravam em torno de si
sem mover o veículo. Estavam parcialmente submersas em pequenas poças. Bill
saltou também e procurou pelo caminho algumas pedras com que pudesse calçar as
rodas do carro. Ficou todo encharcado e sujo de barro e lama, e, só assim, pôde
disfarçar a grande mancha na perna da calça de seu uniforme.
Pouco
tempo depois, durante a aula, o professor de matemática perguntou à Regina qual
era o motivo de seu sorriso, e ela respondeu, depois de vacilar, que estava
feliz por ter encontrado a resposta para tão intrincado problema antes que ele
terminasse no quadro-negro os cálculos que fazia. Sim, realmente tinha acabado
de encontrar a resposta para o grande problema que lhe afligia no momento: como
conseguira sair intacta e soubera preservar inviolável algo que lhe era muito
caro. Recebeu orgulhosa os parabéns do professor. Sim, podia sorrir à vontade o
seu riso de felicidade e profunda paz interior.
Ah...
como são difíceis e espinhosos os caminhos que nos levam à paz. Quantas
provocações, insultos, batalhas são travadas até que descubramos, entre outras
coisas, o precioso tempo gasto de nossas vidas. Ah... quantas barreiras temos
que transpor; quantas picadas temos que abrir em meio a florestas densas e
virgens; quantas íngremes montanhas temos que escalar, e tudo isso para que?
Para nos levar ao recanto da paz? Mas se este recanto sempre foi ligado ao
resto do mundo por uma estrada larga, plana, clara, fresca, calçada, reta e
florida!
Estavam
agora os dois no caminho certo, pelo menos assim pensavam. Uma trégua fora
proposta de início e a paz fora selada logo após. Passaram a viver momentos
felizes. Aquela tarde chuvosa fora decisiva. Era como se os dois fossem lindos
corcéis puro sangue e que estivessem sendo preparados para uma grande corrida.
Antes, presos ao estábulo, recebendo o tratamento necessário. Em seguida,
trotando com rédea curta ou sendo freados ao primeiro perigo. E agora,
finalmente livres, galopando em desenfreada carreira em torno da mesma pista.
As pequenas viagens ao colégio eram cada vez mais frequentes. O jipe fora para
eles apenas um veículo de transporte, mas o pequeno "fusca" era muito
mais que isso: um templo sagrado sobre rodas para transportar e abrigar um
grande amor.
As
situações foram se repetindo: as mesmas carícias, os mesmos locais. Bill sentia
a necessidade de mudar alguma coisa e apenas não sabia ainda o que, e como. Só
uma pequena alteração fora observada por ele: Dona Margareth, que costumava
sair muito, agora estava presente; era ela quem sempre o recebia na porta. Bill
buscava respostas para esta pequena mudança de comportamento e não encontrava.
Será que ela sabe do nosso caso? Deve saber. Até quanto? Será que concorda? Estou sendo aceito pela família? E o Coronel
Carneiro, o que pensa ele, se é que pensa ou desconfia? Se sabe, ótimo, pois me
trata cada vez melhor; talvez saiba e não queira dar a perceber. De repente
Bill se viu cercado, envolvido, sufocado por suas próprias perguntas, e passou
a observar melhor o comportamento dos pais de Regina. No Coronel nada notou que
lhe chamasse a atenção, mas com dona Margareth alguma coisa estranha estava
acontecendo. Estando sempre presente em casa, dificultava um pouco as coisas. E
não era só isso: nos momentos em que a filha estava ausente, ela o tratava bem;
na presença de Regininha, ficava tensa, nervosa, irritava-se por qualquer
motivo, brigava com a filha, chamava a sua atenção por pequeninas falhas, por
coisas tolas e banais. Por quê? E para essa pergunta Bill não encontrava uma
resposta plausível. Por que dona Margareth tentava envergonhar a filha,
diminuí-la, despindo-a de qualidades e vestindo-a de defeitos, ali em sua
presença? Bill passou vários dias perguntando à sua imagem, refletida no
espelho: - por quê? E só algum tempo depois é que foi encontrar límpida,
cristalina, à sua frente, a resposta para todas as perguntas.
CAPÍTULO 8
Gênova, três meses depois
Uma
série de providências tiveram de ser tomadas para a fuga de Giacomo. Dona
Benedetta, sua mãe, conseguira convencer o genro Angelo a transportar seu filho
até a fronteira da França em um dos barcos pesqueiros. Esta fora a parte mais
fácil da empreitada. Ela conseguiria muito mais que isso, pois sabia que, sem a
aquiescência e efetiva colaboração dele, o plano dificilmente teria êxito. Ele
era um homem muito rico, poderoso e bem relacionado com as autoridades
constituídas. E logo Angelo fazia valer o seu prestígio e usava a força de suas
liras como argumento decisivo. Encontrava o homem certo no lugar certo: um alto
funcionário do governo fascista, chefe da seção de expedição de documentos. Era
um homem rico de ambições e sem nenhuma ideologia política. Ele se encarregaria
de forjar, com arte e precisão, toda a documentação necessária. Se Giacomo
fosse capturado, seria com outro nome, parentesco e endereço. Tudo seria
elaborado com muito cuidado: se ele caísse nas mãos de patriotas franceses,
seus antecedentes fascistas não o prejudicariam; se fosse capturado pelos
alemães, sua família na Itália não sofreria represálias.
Dona
Benedetta estava feliz; conseguira sucesso inicial para uma das partes mais
importantes do plano. Através da Cruz Vermelha Internacional, descobrira não só
o paradeiro, como os meios de se comunicar com o Dr. Christian Louch. Ele
morara 15 anos em Gênova e fora o médico responsável pelo tratamento de
Giacomo. Tornara-se um grande amigo da família. Mesmo depois de seu regresso à
França, sua pátria, continuou a manter correspondência, e, por duas vezes que
esteve em Gênova, de férias, foi hóspede da família Spata. Dr. Louch era um
democrata ferrenho e, tivera discussões acaloradas, mas amistosas, com
Giuseppino Spata. Ele estava agora em Paris e prestava serviços à Cruz Vermelha
Internacional. Seria ele então o grande contato, sem o qual o trânsito de
Giacomo em solo francês poderia ser tremendamente arriscado. Os detalhes finais
do plano foram elaborados nos escritórios da indústria pesqueira, no dia 8 de
setembro de 1940. Era uma segunda-feira. Do encontro participaram apenas
Angelo, Giacomo e dona Benedetta. Fora uma reunião demorada, interrompida
apenas, vez por outra, por chamadas telefônicas importantes.
Era
Angelo quem falava no momento em que discutiam de que forma e quando Giacomo
deveria embarcar:
-
Sou de opinião de que tudo deverá parecer normal e legal.
-
Como assim? - perguntou Giacomo.
-
Todos nós devemos correr o menor risco possível. Nada é mais ilegal do que a
aparente legalidade.
-
Não sei aonde você quer chegar - falou dona Benedetta.
-
Muito simples: se Giacomo viajar como clandestino, correrá um risco maior;
tanto poderá ser descoberto no momento do embarque como durante a viagem, se
formos interceptados por um barco patrulha em alto mar.
-
Então, qual seria a melhor solução? - perguntou Giacomo.
-
Legalizarmos sua situação, empregando-o como membro da tripulação. Aí sim, tudo
pareceria natural.
-
Já sei, pediria minhas contas ao meu patrão e passaria a trabalhar para você -
falou em tom pilhérico.
-
Certo.
-
E como você explicaria o meu desaparecimento?
-
Como marinheiro de primeira viagem, sem a natural experiência para a função,
seria mais fácil cair ao mar e não ser encontrado.
-
Você se esquece que sou conhecido como exímio nadador?
-
É claro que não desconheço suas qualidades, mas vamos admitir que você caia ao
mar e ninguém o veja cair. Na queda, bate com a cabeça num objeto qualquer - o
mar está revolto e a noite escura. Quais
seriam as suas chances?
-
Admiro o seu poder de imaginação para tragédia - falou Giacomo sentindo-se um
náufrago em potencial.
-
Só espero que a proteção de San Genaro seja suficientemente capaz de evitar que
este ardiloso plano se transforme numa trágica realidade - falou dona
Benedetta, fazendo o sinal da cruz.
Angelo
acendeu o seu cachimbo, impregnando a sala com o aroma do mais fino tabaco
inglês. Em seguida, presenteou o cunhado com um pacote de cigarros americanos.
-
Vai precisar para a viagem - falou.
-
Acertou em cheio, é a minha marca predileta. Este é o cigarro que eu gostaria
de poder comprar. Obrigado.
Abriu
um maço e acendeu um cigarro. Puxou a fumaça com sofreguidão.
-
Além da roupa do corpo, dos documentos e dos cigarros, de que mais meu filho
irá precisar? - perguntou dona Benedetta.
-
De francos franceses; muitos francos - respondeu Angelo.
-
Tenho algumas economias costuradas no forro do colchão - falou dona Benedetta.
-
E eu tenho o meu ordenado para receber no fim do mês - falou Giacomo.
-
Eu colaborarei com o resto que for preciso. Entreguem-me todas as liras que
possam conseguir, que eu me encarregarei de transformá-las em francos.
-
Quando acha que poderei partir?
Angelo
consultou a folhinha e um gráfico, pendurado na parede, no qual as viagens eram
programadas com antecedência.
-
O dia certo ainda não posso precisar, mas garanto-lhes que será em meados do
próximo mês. Devo escalar, para essa viagem, o maior e mais veloz barco de
minha frota: o "Gina D'Oro".
-
Parece que já temos tudo acertado. Alguma coisa mais a acrescentar, Angelo? -
perguntou dona Benedetta.
-
Quantas pessoas sabem a respeito desta fuga? - respondeu Angelo com outra
pergunta.
-
Só nós três - respondeu dona Benedetta.
-
E, naturalmente, as pessoas ligadas na falsificação de minha documentação -
acrescentou Giacomo.
-
Engano seu, caro cunhado. Apenas uma pessoa tratou de seus papéis, mas já recebeu
o suficiente para ignorar para quem está falsificando os documentos.
-
Perfeito! - exclamou Giacomo, cheio de admiração.
-
No próximo dia 1º você começará a trabalhar para mim - finalizou Angelo.
-
Já estou começando a gostar do meu novo patrão - sorriu, arrematando a
conversa.
Giacomo
sabia que seu próximo passo seria propor um acordo ao seu patrão, Juliano
Morone, Diretor-Presidente da "Fábrica Morone", indústria de porte
médio de massas alimentícias. A rescisão de trabalho não seria fácil, e ele sabia.
Começara a trabalhar na fábrica aos quinze anos. Percorreu todos os setores da
organização, enquanto estudava à noite com afinco. Começou como entregador, e
logo depois passou a controlador de estoque. Algum tempo mais tarde era
promovido a despachante. Ávido por novos conhecimentos, tentou o setor de
vendas e surpreendeu a todos em sua nova função. Um ano depois era elevado à
categoria de Gerente do Setor. Sendo muito disciplinado, encontrava tempo para
aprender tudo o que dizia respeito ao fabrico dos diversos tipos de massas e a
ajudar na parte contábil do escritório. Foi muito bem nos estudos e se formou
em Contador com louvor. Aos 22 anos já era o Diretor mais novo da empresa:
Superintendente Geral da Contabilidade.
Morone
sabia que depois dele, ali na fábrica, só o seu bambino Giacomo era capaz de
conhecer todos os setores da organização. O velho Morone tratava-o como a um
filho e tinha grandes planos para ele. Confiava em sua honestidade e grande
capacidade de trabalho. A despeito de ter um filho, um cunhado e três genros
trabalhando para ele, ali, e que morriam de inveja e ciúme de Giacomo, era para
o jovem Contador que Morone tinha grandes planos. O velho industrial fora
informado do desejo de Giacomo, no dia seguinte em que este se reunira com o
cunhado e a mãe:
-
Com licença, senhor Morone - entrara Giacomo na manhã de 9 de setembro, no
gabinete do Diretor-Presidente.
-
Entre, caro bambino. Que deseja?
-
O assunto que me traz aqui é muito delicado.
-
Seja o que for que venha me pedir, já tem a minha aprovação.
Giacomo,
que pretendia dar várias voltas para chegar ao assunto, aproveitou a deixa:
-
Quero minha demissão.
O
velho Morone sorriu, pensando ser brincadeira, mas ao ver a expressão carregada
no rosto do rapaz, falou:
-
Não posso acreditar no que estou ouvindo, mas se for verdade o que diz, podemos
acertar tudo num só minuto: dou-lhe promoção, aumento de salário e férias. Você
deve estar esgotado!
-
Não se trata disso...
-
Se for algum problema com algum parente meu, que eu não possa contemporizar,
despeço o cretino já - interrompeu Morone.
-
Bem, é que... - gaguejou Giacomo.
-
Deixe-me adivinhar; foi meu intrigante cunhado Angione. Teve algum problema com
aquele "figlio de una putana", não foi?
-
Não, não houve problema algum. Por favor, não diga nada e me escute.
O
velho Morone calou-se e vestiu seu rosto com uma rica máscara de expressões:
surpresa, curiosidade, preocupação, etc. Giacomo pigarreou, limpando a
garganta, e continuou:
-
Na intimidade de seu escritório posso dizer que o tenho como a um pai e sei que
o Sr. me tem como um filho. Como conhecer o filho é um dever paternal, estou
certo que me conhece tão bem ou melhor que meu próprio pai.
O
velho Morone, em silêncio, acompanhava tudo com interesse e angustiante curiosidade.
-
Assim sendo - continuou Giacomo - sei que não desconhece o meu grande amor pelo
mar. Sabe também que a minha maior decepção foi não ter podido seguir a
carreira naval. Por tudo isso foi que resolvi aceitar um convite que há muito
tempo meu cunhado me fez e que agora renovou. Não foi o excelente ordenado
oferecido que me motivou e, sim, a oportunidade de trabalhar em sua frota
pesqueira. Espero que me perdoe, compreenda e aceite este meu pedido.
-
É tudo o que me tem a dizer, meu filho? - perguntou Morone, com a voz abafada
de tristeza.
-
Acho que sim.
-
Mesmo não sabendo o quanto vai ganhar, ofereço-lhe o dobro, com direito a
férias a partir de hoje. Estou certo que as merece e precisa. Enquanto estiver
no gozo de suas férias, poderá pensar melhor no assunto e reconsiderá-lo. Quem
sabe voltará atrás?
-
Agradeço tudo o que já fez por mim e o que tenta fazer agora, mas esta minha
decisão é irrevogável.
-
Como eu ficarei? Quem eu ponho em seu lugar?
-
Carlo, meu ajudante. Desde que comecei a pensar em sair que o venho preparando.
É um rapaz de muito valor e eu o considero apto para assumir o meu lugar a
qualquer momento.
-
Há alguma coisa que eu possa fazer que seja capaz de mudar sua decisão?
-
Não - respondeu com firmeza.
-
Então expedirei uma ordem para que seja demitido, pois assim terá direito à
indenização. Além do ordenado do mês em curso, mandarei pagar em dobro as suas
férias acumuladas. Como o conheço bem, não conto com seu fracasso e, querendo-o
como a um filho querido, só posso lhe desejar muitas felicidades. Acontece que
um bom filho sempre volta ao lar e aqui o estarei esperando de braços abertos.
O
velho Morone beijou a face de Giacomo e os dois, abraçados, choraram em
silêncio por algum tempo.
No dia 1º de outubro Giacomo iniciava suas
novas funções na indústria pesqueira do cunhado. Fazia parte do plano um
período de aprendizagem. Ele teria que aprender, em pouco tempo, tudo o que
dissesse respeito à organização: da pesca à embalagem, passando pela
administração. Durante este tempo, fizera viagens em pequenos barcos. Seu
progresso era espantoso. Quem não conhecesse seus objetivos, só poderia pensar
que Giacomo pretendia encetar brilhante carreira em seu novo emprego. Diga-se,
a bem da verdade, que ele estava realmente gostando do que fazia; ganhara novo
ânimo, motivação e energia. Trabalhava com desusado entusiasmo e inédita
alegria.
Até
seus parentes e amigos mais íntimos notavam a diferença em seu comportamento;
era evidente a sua transformação. Seu temperamento eternamente sisudo foi
alterado: estava pilhérico. O cunhado Angelo estava tão entusiasmado com ele
que, ao cabo de 15 dias, chamou-o para uma conversa em seu escritório:
-
Sabe que sempre foi do meu desejo tê-lo aqui trabalhando a meu lado, não sabe?
-
Claro, você nunca me fez segredo disso - respondeu Giacomo, procurando
adivinhar o motivo da conversa.
-
Não foi surpresa para mim sua rápida adaptação ao serviço, mas devo lhe dizer
que estou profundamente admirado por sua eficiência e dedicação, e tenho que
parabenizá-lo por tudo isso.
-
Muito obrigado. Só falta dizer que já está pretendendo aumentar o meu salário -
pilheriou Giacomo.
-
Falo sério. Você conseguiu, em apenas 15 dias, conhecer a nossa organização
melhor que muitos que trabalham nela há anos. Lamento apenas as circunstâncias
em que está aqui. Gostaria que você pesasse tudo isso e alterasse seus planos.
-
Não sei onde quer chegar. Prefiro que jogue aberto comigo - falou Giacomo, com
a sua conhecida expressão sisuda.
-
Pois bem, vou falar claro - Angelo acendeu o cachimbo, fez uma pequena pausa, e
continuou:
-
Você mora na Itália, sua pátria - em Gênova, sua terra natal; tem uma grande e
unida família que lhe quer bem, alguns bons amigos que o admiram, um emprego de
futuro promissor, saúde, mocidade e lindas garotas. Que quer mais? Você aqui
tem tudo! Quero que pense em tudo isso e aceite a minha oferta: diga em que
setor quer trabalhar, o que quer fazer, e quanto quer ganhar. Fique conosco de
verdade, para o seu próprio bem.
-
Tenho tudo, disse você. Não, meu caro cunhado. Falta-me o principal: a
liberdade; o meu direito de expressão, do qual não abro mão. E quero que
entenda duas coisas fundamentais: a alegria que demonstro ter no momento é
motivada pela proximidade do dia de minha partida e que, se eu não conseguir
fugir, será pior pra todos nós. Quero que compreenda, também, que se eu ficar
aqui serei impelido a quebrar o meu silêncio e a sair por aí gritando a minha
verdade pelos quatro cantos da Itália. Libertarei a minha insatisfação represada
e serei o mais ferrenho inimigo do regime imposto. Odeio qualquer tipo de
repressão e não suporto ver o sorriso estampado na face de um governo, onde a
prepotência e o cinismo comungam dos mesmos ideais. Se eu ficar, meu caro
Angelo, não serei a maior vítima, pois estarei lutando pelos meus direitos, mas
minha família poderá ser perseguida, e até a sua indústria poderá ser
confiscada. E como não desejo prejudicar aqueles que mais amo, é que entendo
que devo partir.
Angelo
ouvira tudo no mais profundo silêncio e compreendera. As últimas palavras do
cunhado lhe proporcionaram um leve tremor de preocupação. Entendeu, pela
primeira vez, a gravidade da situação e prometeu fazer todo o possível para que
a fuga de Giacomo fosse coroada do mais pleno êxito. Puxou mais uma baforada de
seu cachimbo, e falou :
-
Pode ficar descansado. Daqui a cinco dias você partirá.
CAPÍTULO 9
Novas descobertas
Bill
acabara de deixar Regina no colégio e estava de volta à casa do Coronel,
dirigindo o seu templo do amor verde musgo sobre quatro rodas. Mal ultrapassara
o portão da garagem e desligara o motor do carro, ouviu dona Margareth lhe
chamar da porta principal. Entrou na sala e encontrou a mãe de sua namorada
como se estivesse se preparando para sair. Os cabelos estavam bem penteados e,
no rosto, podia-se notar uma suave e bem feita maquilagem. Usava um peignoir
que deixava transparecer, contra a luz, os contornos de seu belo corpo e, no
ar, pairava o perfume discreto de um fino sabonete. De repente Bill teve um
pensamento estranho; ele sabia que dona Margareth era uma mulher bonita e
atraente, mas era como se alguém lhe tivesse dito aquilo, e ele tivesse
acreditado. Era curioso que depois de vê-la quase que diariamente, durante
tanto tempo, só agora, naquele momento, era que ele a observava de verdade.
Analisava-a como se a estivesse vendo pela primeira vez. E descobria um corpo
esbelto e perfumado; um rosto maduro, de expressões jovens; a pele e a silhueta
bem conservadas aos 39 anos. Ao sentir que estava também sendo observado,
corou. Envergonhou-se de seus pensamentos como se eles estivessem sendo
decifrados e entrou na realidade quando ela falou:
-
Há pouco você me olhava como se nunca me tivesse visto.
-
Desculpe - respondeu Bill - eu estava distraído.
-
Distraído comigo ou com o pensamento distante?
Bill
ficou bastante embaraçado, mas ainda falou:
-
É que eu estou um pouco preocupado com a hora. Ainda tenho muitas coisas a
fazer no quartel.
-
Tinha, não tem mais. Consegui que o liberassem até o fim da tarde. Preciso de
um favor seu.
-
Sendo assim, estou a seu inteiro dispor.
-
Ótimo! Preciso fazer uma visita a uma amiga que mora no Méier, e acho que não
vou poder dirigir. Pisei em falso e tenho a impressão que torci o tornozelo.
-
Deveria ter logo feito aplicação de gelo no local - falou Bill, demonstrando
certa preocupação.
-
Foi o que fiz e acho que já melhorei bastante. Assim mesmo ainda estou com
receio de forçar o pé.
-
Seria interessante também que fizesse uma imobilização para proteger o
tornozelo enquanto estiver se movimentando.
-
Tentarei. Vou pôr um vestido e, enquanto me espera, o que deseja beber - café
ou refresco?
-
Um cafezinho, obrigado.
Pouco
tempo depois era servido a Bill, pela criada, um café fresco e saboroso. Logo
em seguida reaparecia dona Margareth já pronta, e trazendo na mão um pé de
tornozeleira.
-
Gostaria que me ajudasse a colocar. Tentei calçar, mas não consegui.
-
Pois não - respondeu o rapaz.
Ela
sentou, tirou o pé direito do sapato esporte que calçava e estendeu a perna em
direção de Bill. Ele se pôs de joelhos ao seu lado e, na posição em que estava,
pôde ver parte das coxas de Margareth. Percebendo que já estava suando, tentou
disfarçar o seu nervosismo. Ela estremeceu ao primeiro toque de Bill em seu
pé. Cócegas ou dor? - pensava o rapaz, que
não conseguia entender ainda o que ela realmente sentia. Trêmulo e desajeitado,
levara mais tempo que o necessário para calçar a tornozeleira. Trinta e cinco
minutos depois estavam chegando no Méier e ele estacionava o "fusca"
numa ruazinha tranquila e arborizada. A casa era pequena e sombria e estava
envolta por plantas de todos os tipos, do pequeno jardim à minúscula varanda.
Ao saltar do carro, dona Margareth falou:
-
Se quiser dar um passeio pelo comércio, esteja de volta dentro de uma hora.
-
Obrigado, madame.
Nada
acontecera digno de registro, durante a viagem de volta. Ao saltar do carro,
não fosse a proteção imediata de Bill, que passou o braço em torno de sua
cintura no momento exato, Margareth quase caiu ao falsear o pé. Ela apoiou-se
em seu ombro e ele ajudou-a a subir os dois pequenos lances da escada que
separava o jardim da porta principal da casa. Ao transpor a porta, ela falseou
novamente o pé e deu um pequeno gemido de dor. Bill tomou-a nos braços e
levou-a até o grande sofá, no centro da sala. Deitou-a com todo o cuidado e
retirou a tornozeleira. Não percebeu nada de anormal; nem sequer estava
levemente inchado o tornozelo dela. Mesmo assim, fez uma pequena fricção.
Afinal, para que serviam as aulas de primeiros socorros que recebera no quartel?
Ela estremeceu de novo ao toque de suas mãos; se ele percebeu, não deu a
entender. Estava agora bem mais à vontade e desembaraçado; foi até a cozinha providenciar
gelo e logo depois colocava uma pequena bolsa de borracha sobre o frágil
tornozelo de dona Margareth. Bill se movimentava rapidamente como se não
quisesse perder um só minuto. Não olhava nunca em direção do rosto de
Margareth, e assim, não pôde ver em sua face uma expressão mista de admiração e
desejo.
-
A senhora deve aplicar o gelo durante as primeiras 24 horas e procurar manter o
tornozelo nesta posição o maior tempo possível. Agora preciso ir.
-
É pena que tenha chegado a sua hora. Gostaria que me fizesse companhia mais um
pouco.
-
Lamento muito também, mas infelizmente não posso. Estou certo de que está bem
medicada e que não vai mais precisar de mim hoje.
-
Estou muito agradecida por tudo.
Ao
chegar à porta, Bill ouviu dona Margareth dizer qualquer coisa e virou-se para
vê-la.
-
Você foi maravilhoso! - e em seguida, levando a ponta dos dedos à sua boca, ela
atirou um beijo para o rapaz.
No
quartel, naquele fim de tarde, Bill não conseguia pensar noutra coisa a não ser
em tudo o que ocorrera. E, rememorando todas as cenas, não lembrou de ter visto
dona Margareth mancando um só momento, até chegarem de volta à casa.
Corria
o ano de 1964, enquanto Bill servia à Aeronáutica na base aérea dos Campos dos
Afonsos. O país vivia momentos de forte tensão; na véspera do dia 1o. de abril,
fora debelada uma grande crise político-militar. As Forças Armadas estavam
divididas no que fora denominado, depois, de esquerda e direita. A facção
contrária ao governo civil constituído saíra vitoriosa. Fora organizada uma
Junta Militar para assumir provisoriamente o governo da nação. O presidente nem
sequer fora deposto, pois antes do momento final, abandonara o país. Depois de
conseguir asilo político, viajou para um país vizinho. Muitos, depois,
elogiaram o seu gesto heróico - a renúncia também pode ser um ato de heroísmo.
Em decorrência de sua providencial saída, conseguira evitar derramamento de
sangue entre irmãos. O povo, de temperamento reconhecidamente pacífico, através
da história, acompanhava à certa distância o desenrolar dos acontecimentos. Afinal,
um povo que julga ter, no mundo, o melhor carnaval, o melhor futebol e a melhor
mulher, não precisa ser necessariamente político. Os dias iam passando e tudo
voltava à normalidade na medida do possível.
O
Coronel Carneiro, por força das circunstâncias, viajava muito. E, enquanto ele
tratava e protegia os interesses do país, Bill, seu ordenança, tratava e
protegia os interesses de sua família.
Bill
e Regina continuavam firmes no namoro; sem brigas ou qualquer outra novidade
digna de registro. Suas carícias só iam até onde a sociedade permitia; o
santuário sagrado continuava inviolável, muito embora em sua porta, muitos
dedos aflitos e boca sedenta tenham tocado. E toda aquela imensa aflição
continuava presa e limitada ao interior do pequeno automóvel.
O
relacionamento de Bill com dona Margareth pouco se alterara. Ela continuava
cortês e atenciosa com ele na ausência da filha, e impaciente e mal humorada na
presença dela. Bill não notara nela nada que pudesse chamar realmente sua
atenção, a não ser, vez por outra, alguns furtivos olhares. Não entendia ou
tinha medo de entender, mas o certo era que não desejava fazer um julgamento
precipitado. Se houvesse maldade em dona Margareth e aquele seu comportamento
provocante fosse uma forma de convite, ela que o mandasse assinado e dentro de
um envelope com o nome do remetente. Mas não teve que esperar muito tempo para
dizimar sua dúvida. Dona Margareth reclamara de vir sentindo, já algum tempo,
leves tonteiras e, com a ausência do marido, que viajara para Natal, pedira a
Bill que a levasse ao médico. Durante o trajeto, tanto de ida quanto de volta,
ela se mostrara bem disposta e conversara bastante sobre diversos assuntos. Ao
saltar do carro, já em casa, ela sentiu de novo uma leve tontura e se apoiou no
ombro de Bill. Regininha ainda estava naquela hora no colégio e a empregada
tinha saído. Margareth pedira a Bill que ficasse ali com ela até que uma das
duas chegasse. Ele sentou no sofá e começou a desfolhar uma revista enquanto
ela se retirou da sala para mudar de roupa. Minutos depois voltava vestindo um
provocante peignoir e trazendo, numa pequena bandeja, um copo de refresco de
maracujá. Sentou-se no sofá bem próximo a Bill e falou:
-
Maracujá para você. Gosto de vê-lo bem calmo.
Bill
segurou o copo e agradeceu.
-
Muito obrigado pelo refresco. Está se sentindo melhor agora?
-
Estou. O médico me disse para não me preocupar. Constatou apenas uma ligeira
queda de pressão. De que vamos falar agora?
Margareth
chegou mais próximo de Bill e o copo tremeu na mão do rapaz. Ele estava
realmente embaraçado.
-
Poderíamos falar sobre sua filha, se não se importa.
No
rosto de Margareth, uma ponta de decepção.
-
Se é do que deseja falar, sou toda ouvidos.
Bill
perdeu alguns segundos, procurando as palavras certas.
-
Penso que sabe que amo sua filha e que estamos namorando já há algum tempo...
-
Se a ama, realmente eu não sei - interrompeu Margareth - só no tempo e momento
oportunos é que poderá nos provar. Quanto ao namoro propriamente dito, é claro
que sempre soube; já o tinha previsto antes mesmo de começar.
-
Estou ficando cada vez mais confuso...
-
Como assim?
-
Sabe do nosso caso, permite o nosso namoro e nos dá a impressão de não
aprová-lo.
-
E quem lhe disse que eu dei minha permissão?
-
A senhora mesma, ainda há pouco, disse que sabia de tudo e nunca nos proibiu...
-
Proibir é uma coisa, permitir é outra. Para que se possa proibir ou permitir
algo, é preciso que se tome conhecimento oficial do fato; vocês não me
participaram o namoro, portanto, eu o ignorava.
-
E agora que sabe, qual é a sua opinião?
Margareth
respondeu a pergunta de Bill com outra pergunta:
-
O que levou você a crer que eu não o aprovo?
-
Suas atitudes estranhas - respondeu prontamente. A senhora está sempre bem
humorada e atenciosa comigo quando sua filha está ausente e muda totalmente de
comportamento quando estamos todos juntos...
-
Já lhe ocorreu que isso poderia ser ciúmes?
-
É natural o seu cuidado - falou rapidamente - mas acontece que as minhas
intenções...
-
Quem falou em cuidados? - interrompeu Margareth. Eu falei ciúmes, idiota!
Margareth
colocou sua mão na coxa de Bill e juntou o seu corpo ao dele. Em seguida, falou
com a sua boca próxima à boca do rapaz, com uma voz quente e afetuosa.
-
Eu sinto ciúmes de você. Eu o quero também para mim.
Bill
perdeu o controle e como um animal enfurecido atacou a sua presa com um bote
felino. Derrubou-a sobre o sofá e atirou-se por cima. Beijou-a na boca, com
sofreguidão, enquanto suas mãos a apertavam com força. A princípio Margareth
correspondera, mas, aos poucos, foi se controlando e acabou sorrindo.
-
Que houve? - perguntou espantado. O que está acontecendo? O que fiz de errado?
-
Você reagiu como eu esperava que reagisse: como uma criança grande.
-
Eu não sou criança.
-
A princípio passou séculos para entender o que estava estampado no meu rosto
todo o tempo, e quando declaro meus sentimentos abertamente, você perde
imediatamente o controle. Num pequeno espaço de tempo você consegue ser
inocente, tímido e selvagem!
-
Não era isso que você queria, que eu a beijasse?
-
Claro, meu amor - falou com voz carinhosa - e estou muito feliz com isso. Tanto
a inocência como a impetuosidade são próprias de sua idade. Você não é nem mais
nem menos do que um jovem homem. Um forte e belo jovem homem, por sinal!
-
Não brinque comigo!
-
Falo sério. Você necessita receber duas coisas que a minha filha não está ainda
preparada para lhe dar: experiência e amor absoluto e total. E eu vou lhe dar
tudo isso, meu bem.
Margareth
beijou-o na boca ternamente, acariciando seu rosto, seus cabelos, seu peito.
Ele se deixou levar, inebriado por uma onda quente de ternura e desejo. As mãos
de Margareth eram bem diferentes das de Regina: maiores e mais experientes. E
elas percorreram lentamente seu corpo até pousar suavemente no seu orgulho. Ela
o segurou com a firmeza de quem se apresenta a alguém que não se conhece. Bill
estremeceu de prazer e sentiu que já estava no ponto de explodir, de voltar à
carga. Seu espírito selvagem ressurgia velozmente quando ela sussurrou ao seu
ouvido:
-
Não aqui, nem agora. Tudo tem o seu devido tempo e lugar. Aprenda a esperar.
Nem
bem um minuto se passara quando a campainha da porta tocou. Bill, suado, com os
cabelos em desalinho e ainda excitado, levantou-se e caminhou até a porta. No
curto trajeto pôde voltar ao seu estado físico normal. O susto tivera o efeito
de uma ducha fria. Abriu a porta e deu de cara com Regininha que, ao vê-lo
àquela hora ali e naquele estado, e vendo também a sua mãe estendida no sofá,
exclamou assustada:
-
O que é que está acontecendo aqui?
-
Sua mãe está passando muito mal - respondeu Bill, procurando dar à voz um tom
mesclado de naturalidade e preocupação.
CAPÍTULO 10
Paris, outubro de 1940.
-
Pela última vez, Armand: quem lhe entregou o pato com o explosivo dentro? -
perguntou o frio oficial da Gestapo.
-
Pelo amor de Deus, acredite em mim! Já disse tudo o que sabia - respondeu o
cozinheiro.
-
Mas você nos disse que já o tinha visto, não?
-
Não, eu não disse isso. Jamais o vi, não sei de onde veio e nem sequer o vi
entrar na cozinha.
-
Mas ele chamou pelo seu nome, não foi?
-
Certo. Naquele momento tive a impressão que ele me conhecia.
-
Por quê?
-
Pelo tom íntimo e afetuoso com que falava.
-
O que aconteceu então?
-
Já contei tudo dezenas de vezes, em seus mínimos detalhes. Por favor, não me
faça mais passar vergonha.
-
Um efeminado não costuma ter vergonha, Armand. Procure lembrar da cena mais uma
vez. Afinal, recordar um agradável momento só deveria lhe dar prazer, não
concorda?
Armand
controlou os soluços, mas não pôde evitar que uma lágrima ou outra deslizasse
por suas faces. Com dificuldade começou a falar:
-
Eram quase 21 horas e eu estava só na cozinha. Acabara de preparar tudo,
enquanto os dois garçons estavam servindo no salão os últimos pedidos. Faltavam
servir duas mesas. O pato estava pronto e arrumado na travessa, sobre o pequeno
balcão da cozinha. O movimento fora fraco naquela noite e por isso pretendíamos
fechar mais cedo.
-
O que você estava fazendo naquele momento? - perguntou o oficial, interrompendo
a narrativa.
-
Estava arrumando as latas de mantimentos e os frascos de temperos nas
prateleiras, numa pequena sala contígua.
-
Continue, e depois?
-
Foi quando senti um bafo morno no meu pescoço e ouvi uma voz quente e macia,
que me chamava pelo nome. A princípio não pude vê-lo direito, pois ele me
abraçava por trás enquanto falava e me acariciava levemente. Confesso que de
início fiquei sem ação, imobilizado, mudo. Só aos poucos fui tomando
consciência da situação. Não posso negar que gostei do rapaz, de seu jeito
terno, de sua voz tranquila...
-
Como era o rapaz?
-
Tinha um corpo musculoso, os cabelos negros encaracolados, olhos castanhos
claros, mãos grandes e aveludadas, mas firmes. Era um pouco mais baixo do que
eu, mas achei que isto não tinha a menor importância. Afinal...
-
Algum sinal característico? - interrompeu o oficial, mais uma vez.
-
No rosto, não. No corpo eu não pude ver, ele estava todo vestido - falou com
melancolia na voz. Mas tinha uma pele tão...
-
Chega, Armand. Ninguém poderá descrever um homem melhor que você,
"queridinho". Agora queremos ação, muita ação. Por favor!
-
Ele fechou a cortina que separava a saleta da cozinha, para que ninguém nos
visse, e continuou a falar e a me acariciar mais ousadamente. Disse que me
conhecia de vista há algum tempo e que simpatizava muito comigo. Perguntou se
podia passar aquela noite em meu quarto; alegou que estava sem emprego por
falta de documentos, que não tinha para onde ir e que estava esfomeado.
Pediu-me que levasse algo para comermos. Perguntou a hora que eu deveria sair,
disse que sabia onde eu morava e que iria me esperar na porta do meu prédio.
Falou que seria melhor sair pelos fundos, pois não deveria ser visto ali,
naquela hora; achava arriscado demais frequentar locais públicos, sem
documentos. Pegou restos de comida de uma travessa servida, sorriu e saiu pela
porta dos fundos, mastigando uma coxa de galinha. Eu ainda vi seu vulto, no
escuro da noite, escalando o pequeno muro no fim do terreno que faz divisa com
um prédio abandonado.
-
Quanto tempo durou esse emocionante colóquio? - perguntou, com ironia, o
oficial inquisidor.
-
Não mais que quatro minutos, presumo. Foi tudo tão rápido - falou em tom de
lamento.
-
Não viu nem ouviu mais nada que pudesse lhe chamar a atenção?
-
Enquanto falávamos, ainda na despensa, ouvi ruídos na cozinha mas não me
preocupei. Achei que deveriam ser os garçons com as bandejas.
-
Mais algum detalhe?
-
Sim, claro. Percebi, assim que o jovem partiu, que o pato já não estava mais no
balcão. Deveria estar sendo servido naquele momento.
-
Sei que é tolice lhe perguntar, mas... Como ele disse que se chamava?
-
Quando eu perguntei seu nome, ele sorriu com sua boca bem feita, de dentes
alvos e perfeitos, e me disse que gostaria que eu lhe arranjasse um. Disse que
ficaríamos mais íntimos assim, mais nós - falou emocionado por uma lembrança
terna.
-
Terminou? - perguntou o oficial, emitindo desprezo na voz.
-
Ah... sim - falou como se tivesse lembrado de algo importante - mal o jovem
acabara de pular o muro e "bum", a explosão. Fiquei gelado e quase
desmaiei. Afinal de contas foram duas emoções muito fortes para uma noite só.
-
Muito bem. Como já esperávamos, nada de novo foi acrescentado nesse seu
depoimento. Perdemos apenas o nosso tempo e em troca disso você perderá sua
vida; não só você, como seus dois comparsas também.
-
Eu juro que falei toda a verdade!
-
Por falta absoluta de provas concretas e por não termos encontrado uma nova
pista até agora, seremos obrigados, infelizmente, a arquivar temporariamente
este caso. Atentados são praticados quase que diariamente e não podemos perder
tempo com um caso isolado, por mais lamentável que ele seja. Por tudo isso,
sentimos muito informar que vocês vão ter que morrer para que o caso não fique
sem solução.
-
Mas se não ficou provada a nossa culpa, porque vão nos sacrificar? - perguntou
Armand, apavorado.
-
Também não foi provada a inocência de vocês e alguém terá que pagar para que
crimes como este, covarde e brutal, não venham a se repetir - falava o oficial
com voz firme e pausada. Então, "queridinho" Armand, acreditava mesmo
ser capaz de fazer um jovem e bonito rapaz, como disse, se apaixonar por você?
Você, bicha velha, feia, gorda e enrugada, se acha capaz de conquistar um
príncipe encantado que tem o poder de aparecer à sua frente, no meio da noite,
como num passe de mágica? Um jovem corajoso que arriscou a própria vida
aparecendo, sem documentos, num local público sabidamente frequentado por
oficiais da Gestapo?! Quer que acreditemos nisso, nessa estória
fantástica? Hein, bicha imunda e
covarde?
Armand
ouvia tudo entre soluços.
-
Você nos deu muito trabalho, sabia, efeminado escroto? Fez com que fizéssemos
desfilar à sua frente uma infinidade de jovens com traços físicos semelhantes
ao do seu príncipe. Covardemente você nos apontou um deles. Um inocente que só
não foi morto em seu lugar, porque tinha sido detido por nós um dia antes do
atentado. Você é um anormal velho, feio, covarde e pelancudo. Acusou um irmão
inocente para salvar as suas pelancas. Você vai morrer, antes de tudo, por não
merecer viver.
O
oficial fez uma pequena pausa para acender um cigarro e logo depois continuou:
-
Ainda quer se salvar, ou prefere continuar a nos fazer de idiotas? Quer contar
agora a verdade, ou quer que acreditemos na sua estória encantada? Vamos, responda! Você tem um minuto. Esta é a
sua última chance.
Armand
foi se controlando aos poucos. Engoliu o choro e enxugou os olhos com as costas
da mão. Respirou fundo e começou a falar num tom de voz diferente, mais grosso
e firme:
-
Se acusei um jovem inocente, num momento de fraqueza, muito me arrependo disso.
Peço perdão, não a vocês, que nem sequer são humanos, mas ao meu Deus.
Fraquejei depois de horas intermináveis de torturas e de dores insuportáveis.
Não foi da morte que tive medo, mas da dor intensa no meu corpo dilacerado. Não
suportava mais os maus tratos, fome, sede e humilhação. Agora não; tudo passou,
me sinto outro homem. Fiquem sabendo que o que contei foi a verdade; antes
tivesse mentido, pois teria mais sabor. Se soubesse agora os nomes dos
responsáveis, nada lhes contaria; teria então um motivo a mais para me orgulhar,
para sentir prazer e rir de vocês.
Os
olhos de Armand foram adquirindo um brilho estranho.
-
Sou um homossexual e não me envergonho disso, pois sei que mesmo assim sou,
antes de tudo, um ser humano. E vocês, o que são? Para mim não passam de uns animais.
Antes de ser tudo o que disseram que sou, me orgulho de ser francês. Só quem
tem o privilégio de nascer nesta terra, livre e maravilhosa, é que pode
compreender a emoção que sinto agora. Estou feliz em poder dar a minha vida
pela liberdade e por meu país. Podem me matar, e que Deus os perdoe.
A
poucos quilômetros dali, num prédio em ruínas, naquela hora, outro grande
atentado contra os nazistas era arquitetado. Um grupo de oito jovens, todos
maquis, discutiam detalhes do plano. Pierre comandava o grupo.
Hans,
o oficial nazista, membro da Gestapo, que fora vítima do atentado e em consequência
perdera a visão, conseguira ser designado para chefiar o inquérito sobre o caso
do "pato explosivo". Ele mesmo fazia questão de executar pessoalmente
os tipos de tortura que criava com prazer. O interrogatório se estendera por
três dias e três noites consecutivas, com pequenos intervalos para descanso.
Durante todo esse tempo, os três implicados no caso sofreram os mais variados
tipos de tortura; tão perversas, aberradoras, sórdidas e desumanas, que jamais
uma mente sadia seria capaz de inventar.
Mas
o oficial Hans não estava ainda satisfeito. Ele mesmo fez questão de sugerir
três maneiras diferentes para executar os prisioneiros. Durante a noite, aos
berros em sua cela, estrebuchando no chão e babando, morria Victor, o garçom,
envenenado pelo fausto banquete que lhe serviram como jantar; às dez horas do
dia seguinte, no pátio interno da prisão, morria Philipe, o proprietário do
restaurante, diante de um pelotão de fuzilamento; na mesma hora, a poucos
quilômetros de Paris, dentro de um pequeno galpão de madeira, morria Armand, o
cozinheiro, explodindo com um banana de dinamite acesa e enterrada em seu ânus.
CAPÍTULO 11
Entre duas bandeiras
Toda
a trama girava em torno da colonização branca no oeste selvagem dos Estados
Unidos. O romance, como a maioria do gênero, era cheio de lugar comum, mas
mesmo assim Bill divertia-se lendo-o. Embora a vida no quartel fosse agitada e
seus dias de folga bem aproveitados entre a praia, os esportes, as festas e as
garotas, Bill ainda encontrava tempo para ler. Estava atualizado com todos os
assuntos - da política internacional ao futebol, passando pela economia e pelas
artes. Escolhia, nas revistas e nos jornais, os assuntos mais palpitantes e
costumava estar sempre lendo um bom livro. Era, em síntese, do tipo de leitor
que não tendo nada melhor com que passar o tempo, lia até estórias em
quadrinhos.
Aquele
romance lhe tinha sido presenteado por uma garota muito especial e, embora
fosse do tipo água com açúcar, ele o estava lendo para prestigiá-la. Naquele
momento lia o capítulo em que um bandido, depois de atirar num outro, riscava o
cabo de sua arma para indicar, com aquela marca, o número de pessoas que abatera.
Quando chegou nesse trecho da estória começou a rir. Ele estava prestes a
abater mais uma de suas vítimas, só que ele usava outro tipo de arma, pois era
um herói da paz e do amor. Costumava travar os seus duelos entre almofadas,
colchões e tapetes e, ao lembrar do número de mulheres que conseguira abater
com sua arma, imaginou como estaria ela agora, se a tivesse marcado com riscos.
Não, ele usava outro método para registrar as suas vitórias; num pequeno
caderno com a capa preta de couro e com a inscrição "Bill" gravada em
dourado, costumava escrever o nome de cada mulher com quem iniciava um caso
amoroso. Só depois de abatê-las, de tomar posse definitiva e total, é que
riscava o nome de suas vítimas com um lápis vermelho.
Ao
completar quatorze anos seu pai o levara a passear no bairro do Catete.
Entraram num grande casarão colonial todo decorado à moda antiga: na sala
principal, um pequeno bar em madeira de lei e uma grande vitrola automática,
que funcionava mediante a introdução de pequenas fichas de metal num orifício
colocado no centro do aparelho; das portas e janelas caiam pesadas cortinas;
poltronas e almofadões em toda a volta da sala compunham o ambiente. O chão, de
tábuas corridas, estava muito bem encerado. Predominava a luz vermelha no ambiente
e o mais importante estava ali à sua frente: lindas mulheres, provocantemente
vestidas e bem maquiladas, sentadas como se estivessem aguardando o início de
uma grande festa. Seu pai lhe dera, antes de sair, algumas explicações e
conselhos:
-
Você já é um homem e precisa aprender a conhecer as mulheres. Todas essas que
você vê aqui estão preparadas para lhe oferecer experiência, amor e sexo;
conquiste a que mais lhe agradar e aproveite ao máximo. Tenho um compromisso
agora e devo me ausentar por umas duas horas; passarei depois aqui para
buscá-lo. Fique à vontade. Saio confiante e certo de que mais tarde só terei
com que me orgulhar de você. Depois, se desejar, poderemos conversar sobre esta
sua primeira experiência.
O
pai de Bill, antes de sair, deixou alguns trocados com ele para alguns
"drinks" caso precisasse se desinibir. Só uma mulher, a mais nova,
sorria e olhava discretamente para o jovem rapaz. Bill gostou dela.
Conversaram, dançaram e desapareceram da sala por mais de uma hora. Mais tarde,
ao ver o pai de volta, ele sorriu e foi em sua direção.
-
Aqui está o seu troco - disse Bill. Eu me senti bem à vontade e por isso não
precisei beber bebida alcoólica, tomei apenas um refrigerante; minha
companheira é que me pareceu um pouco nervosa e me pediu que lhe pagasse um
drink - completou o rapaz. O pai, ao ouvir aquilo, não pôde deixar de sorrir.
Bill
estava agora olhando a primeira página do pequeno caderno e não conseguia ler o
primeiro nome de mulher por ele ali escrito. Sabia, de lembrança, que era
Mônica. Fora ela a responsável pela quebra de sua virgindade e, por isso,
jamais poderia esquecer aquele nome. Soubera, pouco tempo depois de sua
aventura, por um amigo mais velho e experiente, que o pai teria pago por seu
prazer, e tão decepcionado ficou ao descobrir a verdade que, com raiva, riscou
de preto aquele nome. Vai ver que Mônica nem era o seu verdadeiro nome -
pensou.
Fora
aquele o primeiro e último caso que tivera com uma profissional. Bill só escrevia em seu caderno nome de
mulheres que conseguia conquistar por amor ou por atração física recíproca,
única e exclusivamente, por seus méritos pessoais. Durante o tempo que morou no
Encantado, poucos nomes pôde registrar no caderno. A não ser o de Lúcia, sua
vizinha, os demais eram de humildes empregadinhas domésticas, muitas das quais
conquistadas entre a pia e o fogão de sua própria casa. Lúcia fora um caso
rápido e especial. Viera morar no bairro com seus pais, vinda do interior do
Estado. Chegara grávida, aos quinze anos, vítima de um rico fazendeiro, dono de
muitas terras e ex-patrão de seu pai. O próspero latifundiário tivera que
despender uma alta soma, não só para abafar o escândalo, como também para
enviar para bem longe a prova contundente de seu erro. Com o dinheiro recebido,
os pais de Lúcia puderam comprar a casa ao lado da de Bill. Aos primeiros
indícios da gravidez ela casava com um motorista de ônibus da empresa em que
seu pai arranjara emprego como trocador. Bill deitara com ela algumas vezes
numa casa em construção, no final de sua rua. O rápido caso só foi interrompido
quando ele percebeu um pequeno volume a se formar na alva barriguinha de Lúcia.
Na época, tinha quinze anos também e passou algumas noites sem conseguir dormir
direito. Passou a se sentir um pai em potencial e só conseguiu descansar quando
soube de toda a verdade.
Com
menos de dois anos como morador da Zona Sul Bill já tinha conseguido riscar de
vermelho, em seu caderno, o dobro de nomes de mulheres escritos em toda a sua
curta vida amorosa no Encantado. Três nomes ainda estavam ali para serem
riscados. Margareth era um deles.
A
vida no quartel seguia o ritmo normal, e para Bill sempre fora mais suave que
para os demais. O Coronel Carneiro gozava de muita autoridade e prestígio e
Bill era o seu "peixinho" ali. Só uma vez teve que ficar de
prontidão; foi quando correu uma notícia de que no dia seguinte haveria uma
passeata monstro, organizada por estudantes e artistas. Todos no quartel
tiveram que ficar de prontidão durante 24 horas.
O
namoro com Regina continuava sem novidades. Resumia-se nas pequenas viagens de
ida da casa dela para o colégio. Com Margareth havia uma pequena diferença;
quase vinte dias já se tinham passado desde que ela lhe revelara suas reais
intenções e já se podia sentir, no ar, uma suave atmosfera romântica. A partir
do momento em que ela colocara a nu seus sentimentos, diante dos olhos
admirados do jovem recruta, fortuitos beijos, leves toques de mão e rápidos
abraços vinham acontecendo entre os dois. Aquele envolvimento crescia como uma
linda sonata: lenta e ritmadamente. Margareth já lhe tinha dado a certeza de
que seria para ele uma excelente professora. Bill aprendera a primeira lição:
como arder de desejos e saber controlar os impulsos. Ela agora era quem estava
sendo vítima dos próprios ensinamentos pois, vez por outra, deixava escapar seu
auto domínio; Bill, por duas vezes, tivera que
chamar a atenção para a presença da criada e para o horário de chegada
de Regininha. Tanto ele sabia que a imensa ansiedade era recíproca, como tinha
consciência de que Margareth aguardava a melhor oportunidade. Bill gostava da
espera e acumulava suas energias para a batalha decisiva. Era estranho como
conseguia se sentir bem diante da enorme expectativa. A demora - pensava ele -
só poderia valorizar o sublime ato da entrega e da posse. Ah! como seria bom
receber carinhos e ensinamentos de uma mulher madura, bela e cheia de amor para
dar. E como ele ansiava em surpreendê-la, mostrando-lhe que não era tão cru
como ela o tinha julgado. Ele estava confiante, pois sabia que depois só teria
motivos com que se orgulhar de sua virilidade e de seu órgão sexual bem dotado
e insaciável.
Tudo
começou numa sexta-feira e naquele dia não vira Regina nem Margareth. Os
colégios não funcionaram. Estava quase no fim do expediente, recebendo
instruções a respeito de motores de avião, quando o sargento instrutor lhe
chamara para uma conversa em particular:
-
Ao ser dispensado, depois da revista, apresente-se na casa do Coronel Carneiro
- dissera ele.
Seu
coração disparou. Quem o estava chamando - Regina ou Margareth? Uma hora depois
estava apertando o botão da campainha da porta de seus dois amores. Margareth
veio recebê-lo. Estava vestindo uma calça de brim justa e uma blusa leve e
decotada. Parecia mais jovem com os cabelos soltos e sem maquilagem. Bill
deixava sempre para ela as iniciativas, pois sabia que uma atitude mais
indiscreta da parte dele, poderia por tudo a perder. Margareth beijou-o na boca
demoradamente que, entendendo que o sinal verde estava aberto para ele,
correspondeu ao beijo com ardor. Depois de um momento intenso de frenesi, ela falou:
-
Precisamos ter cuidado! Regininha deve chegar a qualquer momento e eu não
gostaria que ela o visse aqui.
-
Por que me chamou a esta hora? - perguntou Bill.
-
Estava louca de saudades!
-
Eu também, mas por que não me chamou mais cedo?
-
Minha filha não teve aula hoje e eu só pude ligar para o quartel depois dela
ter saído para ir ao dentista...
-
E então resolveu me ver por um minuto?
-
Sei que um minuto é pouco, mas acha que desejar vê-lo não chega a ser um motivo
suficiente?
-
Bem..., claro..., isto é - Bill procurava as palavras certas - eu pensei que...
-
Houvesse um outro motivo para chamá-lo? - completou Margareth.
-
Sim... isso mesmo.
-
E há. Gostaria de lhe pedir um favor, se fosse possível, é claro...
-
Pode pedir...
-
Minha filha Rosa e meu genro estiveram ontem à noite aqui e me entregaram as
chaves de seu apartamento no Méier. Eles viajaram hoje cedo para Pernambuco, de
avião. Foram passar as férias em Olinda. Rosa me disse que provavelmente teria
que deixar o apartamento desarrumado e me pediu que fosse até lá para dar um
jeitinho para ela. Achei que este fim de semana seria o ideal para isso, pois
Regininha irá passá-lo com os tios, na Urca, e meu marido, como sabe, está
viajando e só deverá estar em casa no domingo à tarde. Como domingo é o dia de
folga da nossa empregada, resolvi dar a ela o sábado, também. Como vê, tenho
amanhã o dia todo livre para mim.
-
Muito bem, e aonde eu entro nessa estória?
-
Como sei que você vai estar de folga neste fim de semana, pensei em contar com
você para me ajudar na faxina...
-
Basta me dar o endereço e dizer a hora que deverei chegar, e estarei amanhã
pontualmente no local, com um esfregão na mão.
Bill
chegara ao endereço na hora marcada: oito da manhã em ponto. A rua era tranquila,
mas o edifício ficava próximo à esquina da principal rua do Méier. Era um
prédio antigo de três andares, tendo dois apartamentos em cada. Rosa morava no
302, que ficava no terceiro andar, de fundos, num prédio que não tinha porteiro
nem elevador. Bill não estava bem disposto; tivera um sono agitado e acordara
várias vezes na noite anterior. Pela manhã, bem cedo, depois da ducha fria,
tomara apenas uma xícara de café puro e forte. No ônibus, a caminho do Méier,
fumara mais cigarros do que estava habituado e sentia agora na boca um gosto
amargo e a saliva pastosa. Subiu os três lances de escada de uma só vez e, ao
chegar ao terceiro andar, suava muito e sentia uma pequena taquicardia. A porta
estava apenas encostada, como havia sido combinado, e ele ao entrar teve o
cuidado de passar a chave. Chamou por Margareth e ouviu a voz dela vindo de um
dos quartos. Passou pela saleta de entrada e pela sala sem observar o quanto
estavam desarrumadas. Entrou no quarto e encontrou Margareth forrando a cama.
Ela estava com a mesma calça justa que usara na noite anterior. A blusa era de
malha de algodão e os seios, soltos sob ela, mostravam salientes as suas
extremidades. Parecia mais jovem ainda, descalça e com os cabelos para trás
presos por uma fita cor de rosa. Estava com a pele fresca como se tivesse
passado a noite dentro de uma banheira. Beijaram-se.
-
O que há com você? - perguntou ela. Parece que viu um fantasma!
-
Dormi pouco, fumei muito, estou em jejum e subi as escadas correndo para vê-la.
-
Trouxe roupa para mudar?
-
Esqueci, mas estou de short por baixo da calça...
-
Pois bem, vou preparar-lhe um bom banho morno na banheira e enquanto você se
refaz, preparo também um café reforçado.
Poucas
vezes em sua vida Bill tomara um banho morno. Só nas poucas vezes em que
adoeceu - pensou - e ele teve uma infância muito sadia. A água estava numa
temperatura agradável. A banheira era grande e ele podia se esticar todo,
deixando o corpo submerso na perfumada espuma. Pensava em Margareth e sabia que
aquele seria o dia "D". O grande momento não deveria tardar e ele
gostaria de saber quando seria. Ela devia estar com tudo planejado. A arrumação
do apartamento só devia ter sido um pretexto para estarem juntos. Tudo deveria
parecer espontâneo, natural, pois Margareth era uma grande mulher, sem dúvida!
E, enquanto absorto pensava, sentiu uma pequena aragem vinda da porta. Olhou e
deu com os olhos em Margareth, que encostada à soleira o observava.
-
Foi boa a ideia? - perguntou ela.
-
Maravilhosa! Senti que estava precisando. É muito reconfortante...
-
E calmante - completou ela. Você estava cansado e muito tenso. Precisa agora é
de se alimentar. O café já está pronto.
-
O difícil vai ser eu encontrar coragem para sair daqui.
-
Eu vou lhe ajudar.
Margareth
tirou de um pequeno armário um vidro de shampoo oleoso e despejou uma parte do
líquido numa esponja macia. Sentou num pequeno tamborete junto à banheira e
começou a esfregar Bill com a esponja. Fez com que ele ficasse de costas e
começou a massagem pelos pés. Lentamente foi subindo, passando pelas pernas,
coxas, nádegas, costas e demorando-se mais um pouco no pescoço e na cabeça.
Bill, de olhos fechados, tinha a sensação de estar flutuando no espaço e quase
adormeceu. A pedido dela, virou de frente. Margareth voltou aos pés e foi
subindo devagar. A esponja agora deslizava entre suas coxas, tocando de leve
suas partes mais sensíveis. A calmaria passara. O mar estava, naquele momento,
revolto. Fortes ondas iam e vinham cada vez mais agitadas. Bill era um frágil
barco a pique de naufragar. Agarrou-se ao pescoço de Margareth com a agonia de
um náufrago preso a um tronco de madeira. Ela o beijou na boca com ternura e o
despertou do pesadelo com sua voz macia:
- Primeiro vamos ao café.
Entregou
uma grande e felpuda toalha a Bill e saiu do banheiro sem olhar para trás.
O
desjejum foi reforçado: chocolate, café, ovos, geléia, presunto, queijo e
torradas. Bill comera de tudo com disposição.
-
Deite agora ali naquela poltrona - falou Margareth - pois só vou precisar de
toda a sua energia mais tarde. Descanse agora enquanto arrumo os armários,
gavetas e prateleiras. Depois venho lhe chamar para me ajudar no pesado.
Bill
deitou-se na poltrona da sala e enquanto fumava, desfolhava uma revista. Alguns
minutos depois, dormia um sono profundo e sereno, com a revista aberta em seu
peito.
Às
três horas da tarde o apartamento estava todo limpo e arrumado. Bill limpara os
vidros das janelas e ajudara a Margareth na lavagem da cozinha e do banheiro.
Os dois, de short, sentados no tapete da sala conversavam, riam e brindavam o
final dos trabalhos com taças de champanhe.
Margareth falou:
-
Agora é a minha vez. Vou tomar uma boa ducha para ficar cheirosa para você.
Da
sala Bill ouvia a voz de Margareth cantarolando sob o chuveiro. Impaciente com
a demora, foi em direção da voz, segurando com uma das mãos a garrafa de
champanhe. A porta do banheiro estava apenas encostada e ele entrou. Através da
fina cortina de plástico rosa, ele pôde ver a silhueta de Margareth. Abriu a
cortina e, pela primeira vez, a viu totalmente nua. Seu corpo era esplêndido!
Seus seios pequenos tinham o formato de manga espada, e ainda estavam rijos; as
nádegas eram redondas e fartas; os olhos eram castanhos claros, o nariz
levemente arrebitado e a boca carnuda. Bill, extasiado e enrijecido, despiu o
short antes de abrir a cortina. Margareth continuava a se ensaboar como se não
estivesse sendo observada. Também não demonstrou nenhuma alteração quando ele
entrou no boxe e tirou o sabonete de suas mãos. Bill esperou que toda a espuma
escorresse pelo corpo dela e desligou o chuveiro. Ela o fitou pela primeira vez
e ficou na expectativa. Ele derramou o resto do champanhe, ainda gelado, em
seus cabelos e ela estremeceu. O líquido correu veloz pelo seu corpo tanto
quanto a língua de Bill e, naquela corrida louca, não houve vencido nem
vencedor; ambos chegaram juntos ao local do encontro: a cascata do amor. O
chuveiro fora novamente acionado e a forte ducha batia nos corpos nus. Bill
estava agora de pé, e um pouco mais abaixo, em seu corpo, "Ele", de
pé também, tremia sob os respingos frios. Margareth agachou-se e fez de sua
boca uma capa de borracha e o envolveu, protegendo-o do forte temporal.
Dois
corpos ainda molhados, envoltos em toalhas e de mãos dadas, corriam pela casa
em busca de abrigo. Uma grande cama de ferro os recebeu em silêncio.
Compreendeu a urgência e os acolheu com respeito, e eles, entrelaçados, rolaram
juntos ocupando todos os espaços do velho colchão de molas. Tão juntos estavam
que se perdiam em busca dos caminhos que os pudessem levar ao êxtase. Mais fácil
seria, aos dois corpos perdidos, que se fundissem num só corpo e corressem numa
só direção. Na dor da agonia, gemiam, rangiam, gritavam. A velha cama era agora
uma mulher carpideira que gemia para eles. Em determinado momento os corpos se
separaram. Margareth, de frente sob o corpo de Bill, tinha o olhar de súplica.
Ele, com o corpo suspenso e com suas mãos apoiadas no colchão, era um grande
pássaro sobrevoando sua frágil presa. Com suas asas abertas, flutuava no
espaço, e pousava suavemente. Ainda do alto podia ver a expressão de dor e
prazer nascer no rosto dela no exato momento em que sua afiada garra penetrava
lentamente no pequeno ninho de sua caça.
Durante
todo aquele tempo continuaram a ouvir o barulho da água a correr e só
perceberam que não era do chuveiro, quando viram os vidros da janela do quarto
embaçados pela chuva de verão. As sombras do cair da tarde foram impedidas de
entrar no quarto pelo suor da vidraça, e assim não puderam testemunhar aquela
maravilhosa cena de amor.
Entre
as pequenas tréguas, comiam, bebiam e ouviam música, e emendaram tarde, noite e
madrugada, num só pedaço de tempo.
Margareth
chegou em casa às 7 horas da manhã do dia seguinte, domingo. O Coronel Carneiro
já estava em casa. Chegou cedo da viagem e já tinha feito o seu café. Sentado
na grande poltrona da sala, lia o gordo jornal de domingo.
-
Está chegando de onde? - perguntou entre o curioso e espantado.
-
Dormi no apartamento de Rosa.
-
Você está com uma expressão cansada, abatida, de olheiras fundas, que
aconteceu?
Margareth
contou sobre a faxina e valorizou o duro que dera para por em ordem o
apartamento da filha. Disse também que ao terminar o serviço, tarde da noite, e
ao se encontrar exausta, resolveu passar a noite lá, e concluiu:
-
Você precisava ver a desarrumação e a imundície que ela deixou... Nunca pensei
que nossa filha fosse tão relaxada!
CAPÍTULO 12
Gênova,
outubro de 1940
Giacomo
Spata acordara cedo naquele domingo, véspera de sua viagem. Estava feliz. Sentia-se como se fosse um turista pronto a
dar a volta ao mundo. Tudo fora providenciado nos seus mínimos detalhes. Seus
documentos estavam em ordem; a falsificação de sua nova identidade ficara
perfeita; uma boa quantidade de francos franceses estavam costurados sob o
forro de seu colchão. O dinheiro fora conseguido de três maneiras diferentes: a
maior parte, proveniente de suas próprias economias, era a soma de três meses de
salários da indústria pesqueira e a indenização e vantagens recebidas do
primeiro emprego; a mãe contribuíra com a outra parte, fruto de suas economias
domésticas e, por último, a terceira parte lhe fora emprestada pelo cunhado e
atual patrão. Angelo, ao lhe entregar o dinheiro já cambiado, dissera:
-
Esta é a minha colaboração em dinheiro. Poderia presenteá-lo com esta quantia,
pois tenho meios suficientes para isso. Entretanto, resolvi emprestá-lo, pois
sei que agindo assim poderei vê-lo brevemente. A responsabilidade do pagamento
desta dívida o trará de volta ao seio de sua família e de sua pátria.
- A
gratidão será a minha maior dívida e o principal motivo que vou ter para um dia
regressar - falou Giacomo, com emoção.
Uma
sacola fora confeccionada, em material impermeável, para que ele pudesse levar
os documentos, dinheiro, cigarros e um pequeno mapa da França, no qual estaria
marcado o local onde deveria desembarcar. Levaria também uma lanterna e um
afiado punhal, escondido dentro da bota.
Giacomo
falava francês com uma pronúncia invejável. A França, através da literatura, o
cativara. "Os três Mosqueteiros", de Alexandre Dumas, fora o primeiro
romance que lera, ainda garoto. Conhecia quase toda a obra de Victor Hugo e
passara a se interessar por tudo o que dizia respeito ao povo gaulês: história,
costumes, geografia e língua. No dia em que resolveu fugir para a França,
contratou o melhor professor da língua francesa que encontrou em Gênova, para
aprimorar a sua pronúncia, e agora estava apto até a passar por um verdadeiro
francês.
O
cunhado e a mãe eram os únicos que sabiam da viagem no dia seguinte, e ele
sentia necessidade de se despedir dos parentes e amigos, sem deixar
transparecer a eles as suas reais intenções. Naquela manhã de domingo, depois
do café que tomara bem cedo, fora pescar com o capitão Giovanni, seu irmão, em
cima da grande pedra que durante muito tempo fizera parte do seu pequeno mundo
infantil. Giacomo descobrira logo que tanto a maré naquele dia não estava
favorável para uma boa pescaria, como o seu irmão Giovanni não tinha a menor
vocação para pescador. Mais tarde, entre
caniços, iscas e anzóis, fez a descoberta mais importante: ele e o irmão,
independente de seus ideais, tinham muita afinidade. A pescaria em si, poderia
ter sido um fracasso, mas o encontro dos dois foi um sucesso absoluto.
Descobriram, durante todo aquele tempo em que estiveram conversando, o quanto
se entendiam e se admiravam.
- O
que você espera desta guerra? - perguntou Giacomo.
-
Que a paz chegue depressa - respondeu Giovanni.
-
Você tem opinião formada sobre Mussolini?
- O
"Duce" é um grande homem! Ele só deseja o bem da Itália, embora se
deixe empolgar demais pelo poder. Os alemães se julgam superiores e dentro da
prepotência são muito observadores. Já descobriram que a vaidade é o ponto
fraco de nosso líder. Tentam influenciar e até interferir na nossa política, no
nosso comando, e isso tem gerado um certo descontentamento nas tropas e em
parte de nosso povo.
-
Você não acha que se a Alemanha perder esta guerra poderá arrastar a Itália
para o caos?
-
Nós pensamos de maneiras distintas: enquanto eles sonham com o impossível - a
conquista do mundo, nós buscamos apenas a nossa afirmação como grande potência.
Se perdermos juntos esta guerra, nós sobreviveremos e eles se renderão.
Giacomo
foi almoçar com sua irmã Gina e o cunhado Angelo. Passou parte da tarde
brincando com os quatro sobrinhos. Ao se despedir, ouviu da irmã uma
observação:
-
Soube que vai muito bem no seu novo emprego. Estou feliz por você.
-
Tenho trabalhado com prazer, mas não estou fazendo vantagem nenhuma, pois no
lugar do patrão encontrei um cunhado.
-
Soube que Angelo pretende lhe promover. Quer lhe dar um cargo na direção da
empresa. Que acha disso?
-
Parece muito bom!
-
Ele tem muitos planos para você...
-
Quanto a isso, não tenho a menor dúvida - falou Giacomo, sorrindo.
Antes
de voltar para casa, lembrou de visitar sua irmã Graziela. O cunhado Marcelo,
um mau caráter, não estava em casa e ele achou melhor assim. Encontrou a irmã com o rosto inchado de tanto
chorar. Ela ficou muito alegre com a visita e aproveitou a oportunidade para
desabafar, para por pra fora toda a mágoa estocada nos seus 84 quilos.
Giacomo
ouviu tudo em silêncio e depois falou:
-
Conselho não se dá e por isso vou lhe fazer apenas umas advertências. Você é
uma Spata e nossa família sempre manteve tradição de força de caráter. Ninguém,
em momento algum, se deixou abater. Olhe para o espelho. Você ainda é jovem e
bonita; faz parte de uma família forte, unida, que lhe quer muito bem e que não
lhe negará apoio em qualquer ocasião, desde que esteja do lado certo. Você tem
três filhos bonitos, sadios e que a adoram. A felicidade deles depende da sua
felicidade, e no momento em que tiver que tomar uma atitude drástica, eles
estarão do seu lado também. Reaja
enquanto há tempo. Lute. Cuidando do corpo e do espírito, logo verá que será
ainda capaz de ser admirada por olhos cobiçosos. Alimente o seu orgulho e a sua
vaidade. As soluções e as respostas estão dentro de você mesma - encontre-as.
Quem é Marcelo? De onde ele veio? A qual família pertence? O que ele tem lhe
oferecido? Quem precisa mais de quem? Para onde ele irá, se um dia você o
abandonar? Sem tradição, família e dinheiro, encontrará abrigo entre as
prostitutas do cais? Pense bem, minha irmã. Você é uma Spata e uma Spata não se
entrega.
Graziela
ouviu tudo em silêncio e compreendeu a mensagem do irmão. Transformou a piedade
que sentia por si mesma em um olhar confiante, seguro. Enxugou a fraqueza de
seus olhos e por eles pôde antever o seu futuro repleto de soluções. Giacomo
deixou a irmã com o moral elevado. Já na rua, em silêncio, fez uma prece a
"San Genaro". Pediu ao santo milagroso forças para que ela pudesse
reagir.
Giacomo
jantou com os pais naquela noite e saiu para falar com Sofia, sua namorada. Não
podia preveni-la sobre sua viagem, mas também não poderia deixá-la esperando
por ele, indefinidamente. Teria que encontrar uma solução. Passearam de mãos
dadas, tomaram sorvetes, e no fim ele falou:
-
Sei que nunca me fez prometer coisa alguma e que jamais exigiu algo de mim.
Assim mesmo me sinto na obrigação de ser honesto com você. Lamento dizer que
não posso mais roubar o seu tempo. Você já está numa idade boa para casar,
constituir família. Precisa de alguém que lhe possa dar amor, proteção,
segurança, e eu infelizmente não posso pensar em compromisso tão cedo. Agora é
que comecei a cuidar de meu futuro. Estou dedicando todo o meu tempo nesta
empreitada. Além do mais, sou o responsável por minha família. Meu pai já está
muito idoso e cansado. Meu irmão mais velho mora no Brasil e o outro é militar
e está lutando por uma causa perdida. Resta eu. Tenho certeza que um dia você
compreenderá tudo isso e me dará razão. Espero que seja muito feliz e desejo
que possamos continuar como bons amigos, como sempre fomos, sem mágoas e
ressentimentos.
O
sexto sentido feminino falou mais alto e Sofia percebeu que, por trás de toda
aquela estória, havia algo importante que Giacomo preferia esconder. Como se
estivesse penetrando no pensamento dele, beijou-o em lágrimas e disse apenas:
-
Boa sorte, meu amor.
Giacomo,
antes de voltar para casa, passou ainda no bar de costume para uma prosa com os
amigos. Perdeu a conta dos vermutes que bebeu e chegou em casa alegre,
cantarolando. Passou pelos pais que, ainda acordados, conversavam na sala. Já
no quarto, Giacomo pôde ouvir seus pais comentarem sobre ele. O velho Spata
estava maravilhado com a transformação que via em seu filho:
-
Minha velha, pela primeira vez em toda a minha vida, me sinto realmente
realizado. Meu último problema foi solucionado. Vejo de novo em nosso filho Giacomo
a alegria de seus primeiros anos. Se ele tivesse me ouvido antes, há muito que
já estaria trabalhando com o cunhado. Angelo é um excelente rapaz e sua
indústria só tende a progredir. Estou muito feliz, minha velha. Imensamente feliz!
Os
dois se abraçaram e choraram muito tempo, juntos, seus sentimentos opostos.
CAPÍTULO 13
Um acordo conveniente
Há
muito tempo que o Coronel Carneiro não passava um domingo tão agradável e até
certo ponto surpreendente, como aquele. Preocupado com o estado de exaustão em
que a esposa se encontrava ao chegar em casa, preparou para ela um bom banho de
banheira e lhe deu um sedativo. Margareth dormiu a manhã inteira e acordou ao
meio-dia com fome e bem disposta. Para sua surpresa, encontrou a mesa posta e
um delicioso almoço quase pronto. A culinária era o maior hobby do Coronel. Vez
por outra ele costumava convidar casais amigos para o almoço do domingo e,
quando isso acontecia, ficava feliz em poder mostrar seu vasto conhecimento
sobre a cozinha nativa. Sabia, de cabeça, receitas de uma infinidade de pratos
de todas as regiões do Brasil. E, na verdade, tinha mão e paladar
privilegiados. Passara aquela manhã de domingo na cozinha e deixara ali prontos
um arroz de forno enfeitado e uma saborosa farofa. As batatas, cortadas em
rodelas, estavam numa panela com água e sal, para serem fritas na hora. De
dentro de casa podia-se sentir o aroma maravilhoso de carne verde na brasa,
vindo do quintal. De repente, Margareth percebeu que era mesmo um bom churrasco
que gostaria de comer naquele dia. Seu marido fora feliz na escolha do cardápio
- pensou. O Coronel Carneiro ganhara a churrasqueira, da esposa, como presente
de aniversário, e só a tinha usado uma vez. Margareth, guiada pelo aroma, foi
até o quintal e agradecida, beijou o marido. Provou uma fina e sangrenta fatia
da carne com uma pitada do suculento molho, feito à base de cebolas, e pôde
comprovar a alta qualidade da matéria prima e da mão de obra. A geladeira da
casa estava bem abastecida de cerveja e, meia hora mais tarde, o casal comia e
bebia até não poder mais.
Augusto,
o filho mais velho do casal, que morava
na Urca com os tios, telefonara avisando que naquele domingo não iria almoçar
com os pais, mas que à noite passaria por lá para levar a mana Regininha. Por
certo deveriam estar, àquela hora, esticando o domingo na praia. Há muito não
fazia um dia tão ensolarado. Todas as nuvens negras do sábado se transformaram
em chuva noturna e, ao amanhecer, o Deus Sol reinava absoluto no céu límpido e
claro. O calor era suportável, pois soprava uma brisa constante e agradável.
Confortavelmente
sentados e aconchegados, o casal assistia televisão na grande poltrona da sala.
Era evidente que a comida e a cerveja provocara neles aquele natural estado de
sonolência e, mais evidente ainda era a força que ambos faziam para controlar o
sono. Era notória a necessidade que sentiam de estarem juntos e a sós. Fazia
tempo que isto não acontecia e não queriam desperdiçar a providencial
oportunidade. Estavam ali tentando retirar os ossos do passado, há muito
sepultado. Num perfeito exercício de memória, encontravam retalhos de
lembranças. Procuravam os olhos vigilantes dos pais de Margareth pela sala,
quando trocavam carícias mais audaciosas. Logo depois ela estava se recompondo,
como se tivesse sido apanhada em flagrante. Ele cruzava as pernas
desajeitadamente e, envergonhado, escondia o volume de seu pecado. O sorriso
travesso e acanhado no rosto de ambos eliminava vinte anos de rugas. Na sala, o
prelúdio fora maravilhoso. Foram namorados tímidos e bem comportados, dentro da
premência do sexo. No quarto, sobre a larga cama de casal, foram amantes
insaciáveis e devassos; usaram a liberdade e a libertinagem como nunca ousaram
antes, e se descobriram, surpresos. O Coronel, bom piloto, fazia voos rasantes,
bombardeando tabus e, via do alto, desmoronando toda a falsa moral vigente.
Pôde então perceber a grande quantidade de sexo que transportava e o quanto
negligenciara como marido. Sentia, naquele momento, o quanto fora infiel à
esposa, naqueles últimos anos. Estava casado com Margareth, mas na verdade, era
com a Aeronáutica que vivia. Respirações ofegantes, sussurros, gritos e gemidos
enchiam a casa como um bando de duendes. Da penumbra à escuridão total, a
passagem fora imperceptível aos dois corpos flamantes e entrelaçados. Novos
sons chegaram e se misturaram aos antigos e os amantes só foram perceber a
chegada dos filhos, algum tempo depois, quando pararam de gemer.
Na
manhã seguinte, segunda-feira, o Coronel Carneiro acordou bem cedo. A empregada
do casal já estava trabalhando, mas foi Margareth quem preparou o desjejum para
o marido. Amanheceram ainda no clima de lua de mel renovada. Na porta, ele se
despedia trocando beijos apaixonados com a esposa. Só muito tempo depois é que
Regininha acordou. Passou na sala pela mãe como se não a tivesse visto. Foi até
a copa e lá tomou o seu café. Margareth pregava um botão numa camisa do marido,
quando a filha passou por ela, novamente, sem sequer lhe olhar. Não entendendo
a atitude dela, falou:
-
Pelo menos um bom dia ainda se dá...
-
Por que devo dar? Não acho que este seja um bom dia - respondeu Regina, sem
olhar.
-
Não dormiu bem esta noite?
-
Não.
-
Teve algum aborrecimento neste fim de semana?
-
Tive.
-
Que tipo de problema?
-
O pior possível.
-
Foi algum aborrecimento com alguém que conheço?
-
Foi.
-
Com quem?
-
Com você - e saiu da sala, em prantos, em direção do seu quarto.
Margareth
seguiu a filha e a encontrou chorando, deitada de bruços sobre o colchão.
-
Sinto muito, mas minha intenção foi a melhor possível quando lhe sugeri um fim
de semana com seus tios. Você precisava se divertir, sair, mudar de ambiente.
Achei que estava fazendo um bem...
-
Um bem a si própria - interrompeu Regina.
-
Como assim? Não sei aonde quer chegar!
-
Claro que sabe e não queira me fazer de idiota.
Regina
parara de chorar e falava com ódio na voz.
-
Por que me culpa do que lhe aconteceu?
-
Porque só você tem culpa. Passei o sábado inteiro ligando o telefone para cá e
ninguém atendeu...
-
Só porque eu tive que sair...
-
Também passei o sábado inteiro ligando para o Bill - interrompeu Regina - e lá
da casa dele ninguém soube me dizer para onde tinha ido.
Margareth
começou a compreender e foi ficando tensa, nervosa. Ainda tentou contornar a
situação quando falou:
-
Bem, eu passei o dia no apartamento de...
-
Eu sei onde você passou o dia - interrompeu Regina, mais uma vez - como também
sei onde Bill passou. Aliás, o dia e a noite. Por coincidência vocês passaram
juntos, no mesmo endereço.
-
Você ficou louca!
-
Você faz uma loucura e eu é que fico louca? Estou louca sim, mas é de raiva. Já
tinha uma leve suspeita mas não quis acreditar, mas quando os procurei pelo
telefone, desconfiei ainda mais. De repente, me lembrei da viagem de Rosa e das
chaves do apartamento dela em seu poder, e aí resolvi arriscar.
-
O que é que você está pensando? - falou Margareth, apenas por falar.
-
A minha intuição não falhou. Consegui que um
amigo me levasse até o Méier, no seu carro. Entrei no edifício e fiquei
parada no corredor do terceiro andar, com o ouvido colado na porta do
apartamento, o tempo suficiente para entender o que estava acontecendo no seu
interior. Os ruídos, risos e vozes que ouvi, davam para incriminar qualquer
pessoa. As vozes, então, eram inconfundíveis e bem familiares. Jamais poderia
me enganar. Passei a noite inteira dentro do carro e vi quando Bill saiu às
cinco horas da manhã. Não precisei esperar muito para vê-la sair também, pouco
tempo depois. Pretende negar? Quer dizer que
nada aconteceu?
-
Seria uma estúpida se admitisse a minha inocência. Não, não vou negar a minha
culpa, nem estou arrependida do que fiz. Lamento apenas que você tenha
descoberto, pois, em momento algum, pretendi magoá-la. Aconteceu o que tinha
que acontecer; nem mais, nem menos. Pedi a Bill que me ajudasse na parte mais
pesada da faxina e ele depois me cobrou pelo serviço...
-
Com que facilidade você transforma amor e sexo numa coisa suja, baixa,
asquerosa!
-
Você é muito esperta e em pouco tempo aprenderá a separar as coisas. O amor, de
uma maneira ampla, é o sentimento mais forte, intenso e sublime que existe. A
atração física é diferente: é um encontro de dois corpos necessitados de uma
satisfação carnal. Esse sentimento surge em determinados momentos apenas. Isso
não é amor. Nós não amamos Bill, como ele também não nos ama.
-
Responda por você apenas. Não lhe dou o direito de julgar os meus sentimentos.
-
Nós estamos usando ele, assim como ele está nos usando, também. Existe apenas
uma suja troca. Estamos precisando dele, de sua mocidade, de seu sexo viril.
Você, no início de sua vida amorosa, precisa praticar, aprender, e eu, no ocaso
da minha, preciso me afirmar, e me contento em ensinar tudo o que aprendi.
Sinto necessidade de alimentar minha vaidade há tanto tempo adormecida; de
voltar a me sentir desejável como sempre fui, num passado não tão distante
assim. Preciso me sentir mulher, nem que seja por alguns momentos apenas, e não
o objeto de uso doméstico que tenho sido há algum tempo.
-
Você já tem o seu homem. Bill é meu e me ama, tenho certeza. Eu perdoarei a sua
fraqueza.
-
Se ele a amasse, não teria me faltado com o respeito.
-
Você não se deu ao respeito.
-
Dois não erram quando um não quer.
-
Isso não interessa agora. O fato é que você me atingiu em cheio com o seu erro,
e eu gostaria de saber o que pretende fazer, daqui pra frente.
-
Era esta a pergunta que eu ia lhe fazer.
-
Estou com vontade de ter uma longa conversa com papai. Gostaria de contar a
ele, não só sobre este caso, como sobre outros anteriores, que também acabei
descobrindo. Falaria sobre o dentista, o tenente...
-
Não precisa me lembrar os nomes - interrompeu Margareth - pois eu não os
esqueci. Falando com seu pai, você faria a única coisa que jamais deveria
fazer. Você não é melhor nem pior do que eu; é minha filha, e somos bastante
parecidas. Talvez por isso mesmo eu lhe queira tanto bem. Sua lista é mais
extensa que a minha e seu pai nunca soube de nada. Tive que usar de toda a
minha habilidade para que ele não descobrisse sobre os seus casos com homens
maduros e casados, amigos dele. Agi com diplomacia para evitar que seus
flertes, inconsequentes, mas perigosos, prosseguissem. Não fosse eu perspicaz e
o escândalo seria inevitável, ou até uma tragédia, quem sabe. Sempre tive uma
certa predominância sobre seu pai, um certo domínio até. Ele ainda me ama.
Ontem tivemos um dia maravilhoso! A quem ele daria mais crédito, a mim ou a
você? Portanto, querida filha, proponho inicialmente que deixemos as coisas
como estão. Vamos por um fim neste pequeno incidente.
-
Quer que eu esqueça tudo, assim tão de repente?
-
Para o nosso próprio bem: meu, seu, de seu pai e de Bill. Esta foi nossa
primeira conversa realmente adulta. Eu preciso de você, do seu amor e
compreensão, como você precisa de minha ajuda, apoio, conselhos e experiência.
Poderíamos e deveríamos ser boas amigas. Sei que agora você está muito magoada
e eu lhe dou razão. Com o tempo você esquecerá tudo, prometo. Quando o
amadurecimento chegar, você entenderá que eu não a traí, nem nunca pretendi
roubar seu namorado. Que me diz disso tudo?
-
Se eu aceitar seus argumentos, o que acha que devo fazer agora?
-
Já esteve com o Bill, ou falou com ele a respeito do que aconteceu?
-
Não.
-
Então não fale. Deixe que ele pense que você não sabe de nada. Se contar a ele
o que descobriu, na certa ele tentará negar e você irá se decepcionar mais
ainda. Aprenda a usá-lo também. Aproveite o que ele tem de bom para lhe
oferecer. Todo o homem é forte e fraco ao mesmo tempo. Coragem e covardia
variam com a idade e de acordo com os tipos de situações que se tem que
enfrentar. O homem maduro normalmente não gosta de se sentir só. Os jovens,
muitas vezes, procuram se isolar e em determinados momentos são solitários,
porque não sabem o que é solidão. Bill foi um fraco porque pensou ser forte
demais. Aceite-o como é, com seu tipo de fraqueza própria da idade, e tente lhe
perdoar.
-
Admitamos que eu esqueça tudo e perdoe a ambos; você continuará o seu caso com
ele?
-
Antes de lhe responder, farei minha proposta final: a partir de hoje,
facilitarei ao máximo o namoro de vocês, criando até boas oportunidades para
que estejam a sós; conseguirei não só a concordância, como as boas graças de
seu pai, para o namoro de vocês. Se ele provar que a ama de verdade, farei tudo
para que se casem e sejam felizes. De minha parte, prometo que o evitarei e
farei com que pense que o que aconteceu foi por minha culpa, e que não passou
de um momento de fraqueza de minha parte. Agora, se ele me procurar, insistir,
me mostrar e provar que me deseja também, eu o usarei até o dia em que ele não
me interessar mais. Se ele agir assim, estarei certa de que não passa de um
aproveitador e que não a ama de verdade, e aí, cabe a você decidir usá-lo ou
não. Está certo assim?
Regininha
ficou algum tempo pensando, e depois respondeu com convicção:
-
Acho justo assim. Concordo com tudo o que disse. Vou passar a observá-lo
melhor. Se me provar o seu amor, ficarei com ele enquanto for sincero e
honesto. Caso contrário, vou aprender a usá-lo como a um objeto descartável:
quando estiver gasto e imprestável, eu o jogarei no lixo e o substituirei por
um outro melhor.
O
relacionamento mãe e filha, a partir daquele dia, melhorou sensivelmente. Se
não atingiu a perfeição, ficou melhor do que sempre fora antes. Margareth
cumprira a promessa feita à filha: a princípio, resistiu às investidas de Bill
o quanto pôde, mas depois, acabou cedendo. Regininha, por sua vez, na falta de
novas provas que pudessem incriminar o rapaz, deu sequência ao namoro, como se
nada tivesse acontecido, e por vezes, dava a impressão, à mãe, que preferia
ficar na inocência do que enfrentar a verdade. Bill não sabia que era agora um
objeto descartável e que estava sendo usado também. Ficou como único inocente
na estória - um inocente útil e cada vez mais feliz.
CAPÍTULO 14
A permuta
Com
cinco meses de ocupação nazista, Paris era uma outra cidade. Tudo estava sob o
mais rígido controle do Alto Comando Alemão. A eficiência da Gestapo se fazia
sentir a cada momento. A vida pregressa de qualquer cidadão francês era
levantada nos seus mínimos detalhes bastando, para isso, que recaísse sobre ele
a mais leve suspeita de traição ao regime imposto. O pavor se espalhara pelos
quatro cantos da cidade. Ninguém confiava mais em ninguém. Até as conversas
entre vizinhos estavam restritas a cordiais cumprimentos. Só se falava sobre a
guerra e as suas consequências maléficas na intimidade do lar, entre os
parentes mais chegados.
Quase
tudo era racionado e grande parte dos artigos de consumo estava sendo
falsificada, até o amor. As ruas, cada dia mais desertas, tinham o ar triste do
abandono. O tráfego fora reduzido consideravelmente, tanto de pedestre como de
carros. Os táxis eram escassos e o povo usava, como meio de transporte, os
cabriolés de dois lugares puxados por bicicletas.
Os
alemães faziam turismo em Paris. Em grupos alegres pareciam um bando de
colegiais em férias, dada a segurança e tranquilidade que a cidade a eles assim
apresentava. E aproveitaram ao máximo! Aprenderam a degustar vinhos e queijos,
a apreciar o teatro musicado e a aliar a técnica à força, na grande arte do
sexo.
Enquanto
isso, no interior da França, a Resistência era organizada. De Londres, o grande
De Gaulle enviava mensagens em código aos seus compatriotas. Os maquis
continuavam a sua luta sem tréguas. Usavam de muita astúcia e vigor. De quando
em quando uma fábrica, uma ponte, um poste telegráfico eram destruídos. Eles
proliferavam e se espalhavam por todos os lados do território francês.
Procuravam se reunir em grupos, em pequenas aldeias nos arredores da grande
capital. Vez por outra preparavam um atentado arriscado, uma incursão perigosa,
quase suicida, ao centro de Paris. Numa dessas incursões Pierre fora ferido por
uma bala inimiga, no ombro esquerdo. Por milagre conseguira escapar, com a
ajuda de um amigo, através de um esgoto. Paris sempre teve uma das maiores, se
não a maior, rede de esgotos do mundo. Suas enormes e bem traçadas galerias de
águas pluviais, formavam uma cidade sob a outra. Pierre conseguira escapar da
Gestapo como o grande personagem de "Os Miseráveis", de Victor Hugo,
escapava sempre do Inspetor Jouvert. Mais tarde escondeu-se num pequeno sítio
em "Créteil", a poucos quilômetros de Paris. A bala passara de
raspão, mas fizera uma grande ferida. Um médico, de inteira confiança do grupo,
fora chamado para fazer o curativo.
-
Você está fora de perigo, mas deve repousar por uns dias até que cicatrize
totalmente. Por sorte não atingiu a articulação. Mais um centímetro abaixo e o
projétil teria feito um grande estrago.
-
Muito obrigado, Dr. Louch. Além de competente médico o senhor é patriota e
amigo.
-
Eu cumpro a minha obrigação. Você deve agradecer a Deus a ajuda que recebeu.
Dr.
Christian Louch arriscava a vida daquela maneira. Era a forma que encontrava
para colaborar com seu país. Era um nacionalista extremado e odiava o nazismo.
Seu ódio aumentara a partir do dia em que o filho caçula chegara em casa
totalmente irreconhecível, depois de preso e torturado pela Gestapo. O pior é
que ele estava inocente. Fora vítima de um infeliz acaso. Sua captura
acontecera quando se encontrava conversando com um grupo de rapazes, próximo de
casa. Um deles era um maquis e ninguém sabia. Agora ele fazia parte do grupo de
Pierre, e era um dos mais corajosos. A uma graciosa jovem que fazia também
parte do grupo, Dr. Louch explicara, antes de partir, como deveria ser feito o
curativo em Pierre:
-
O curativo deverá ser trocado diariamente. Vou deixar sob sua responsabilidade
os medicamentos necessários e em quantidades suficientes: água oxigenada,
algodão, gazes, esparadrapo e sulfa em pó.
-
Pode deixar, doutor - falou a moça - quando esta guerra terminar, terei
completado meu curso prático de enfermagem.
Naquela
hora, em Paris, precisamente em Saint-Germain-des-Prés, o Coronel Kurt Staden
entrava para jantar no pequeno restaurante da família Fontaine. Estava à
paisana e vestia um vistoso terno cinza grafite, de colete, e uma gravata
vinho. Estava só, muito embora podia-se notar, em algumas mesas, alemães,
também à paisana, jantando antes de sua chegada. O Coronel reclamou
polidamente, ao garçom, a presença de Monsieur Fontaine.
-
Boa noite, Coronel Kurt. É um prazer tê-lo de volta - falou o proprietário do
restaurante.
-
O prazer é todo meu, Monsieur Fontaine. Fico contente em saber que não esqueceu
meu nome.
-
Isso faz parte de nossa profissão. Nunca esquecemos os nomes dos bons
fregueses, se me permite classificá-lo assim.
-
Claro, claro. Gostei do atendimento e do serviço, e posso lhe garantir que
virei sempre aqui enquanto estiver em Paris.
-
O senhor fica muito bem à paisana, Coronel. Pela maneira como está vestido
presumo que tenha vindo para jantar,
não?
-
Sim, e gostaria de ouvir sua sugestão. Que prato devo pedir?
-
"Quenelles de brochet", e para acompanhar recomendo "vin blanc
corsé". Tenho certeza que vai gostar.
-
Confio no seu bom gosto e gostaria de convidá-lo a jantar comigo.
-
Eu agradeço, mas jantei cedo hoje, justamente para poder atender melhor aos
meus fregueses.
-
Aceite então uma bebida, mas por favor sente-se aí e me faça companhia. Não
gosto de jantar sozinho.
O
senhor Fontaine sentou-se à mesa e pediu ao garçom o jantar e o vinho do
Coronel. Para ele, pediu uma dose de "cognac". O Coronel parecia não
ter pressa e, enquanto comia, conversava.
-
Espero que não tenha tido mais problemas com seus fornecedores, monsieur.
-
Não tive mais problemas e estou certo agora de que houve uma interferência
amiga a meu favor. Fico-lhe muito grato, Coronel.
-
Aos amigos e colaboradores nós costumamos oferecer tudo, e aos inimigos fazemos
cumprir a lei.
O
senhor Fontaine preferiria não ter o Coronel Kurt como amigo, nem como inimigo
também. O certo é que achava que alguma coisa não estava lhe cheirando bem.
-
Espero que a guerra não tenha prejudicado muito o seu negócio, monsieur.
-
Poderia ser pior. Perdemos alguns fregueses, mas estamos conquistando outros.
-
Soube que moram aqui mesmo, não?
-
Sim, ocupamos também o andar superior. Temos os quartos lá em cima.
-
Sua família é muito grande?
-
Somos cinco pessoas; eu, minha mulher e três filhos.
-
Só conheço as duas meninas.
-
Temos um rapaz também, mas está sempre fora. Quase não o vejo.
-
Mora com vocês?
-
Morava. Ultimamente tem dado muitos desgostos a nós. Arranjou uma amante e
raramente nos dá notícias.
-
Qual é a idade dele?
-
Completou 20 anos este ano.
-
Então deve estar servindo às forças armadas, não?
-
Não sei. Acho que não. Na verdade pouco
tenho sabido de sua vida.
O
senhor Fontaine começava a demonstrar o seu nervosismo.
-
Com a idade que tem, deveria ter sido recrutado. Se não está em serviço, é
aleijado, doente ou desertor.
-
Aleijado ele não é. Talvez esteja doente, ou...
-
Vamos jogar limpo, monsieur. Me parece que eu sei a respeito do seu filho bem
mais do que o senhor. Na verdade ele arranjou uma amante, e até eu sei o nome
dela: chama-se França. Pierre Fontaine é um desertor e está sendo procurado não
só por isso como também por ser considerado um inimigo do governo. Ele tem
andado em más companhias e tem feito coisas muito feias.
-
Não é possível! Meu filho sempre foi muito pacífico e até um pouco medroso.
Talvez o senhor esteja enganado. Deve estar fazendo confusão com outra pessoa.
-
Quer que lhe mostre a ficha de seu filho Pierre? Posso lhe garantir que hoje eu
sei mais a respeito dele que propriamente o senhor. Não só tenho conhecimento
de dados a respeito de seu passado, que o senhor não deve mais se lembrar, como
de suas atividades no presente que, me parece, o senhor desconhece. Sei até que
hoje à tarde, durante um atentado, ele foi ferido.
O
senhor Fontaine, derrubou sobre a alva toalha da mesa o resto do seu
"cognac".
-
Por favor, me diga. Como ele está?
-
Desta vez, teve sorte. Conseguiu escapar. Ao que me consta, parece que a bala
pegou apenas de raspão.
-
Por Deus, me diga o que devo fazer para salvá-lo?
-
Se o senhor o encontrar primeiro, nos entregue e eu lhe dou minha palavra que
lhe poupo a vida.
-
Já faz cinco meses que eu não sei de seu paradeiro. Como poderei encontrá-lo?
-
Se ele não o procurar agora que está ferido, posso lhe garantir que muito breve
o pegaremos.
-
E o que acontecerá com ele então?
-
Isso em parte vai depender do senhor. De sua compreensão e boa vontade.
-
Tudo farei para salvar a vida de meu filho. Darei até a minha vida em troca, se
for preciso.
-
Em absoluto! O senhor é o chefe da família. Sua vida é muito preciosa. Tem uma
filha ainda criança para criar.
O
Coronel Kurt fez uma pequena pausa, acendeu um cigarro e continuou:
-
Tive uma ideia. Vou lhe propor um acordo, uma permuta. É a única maneira que
encontro, no momento, para salvar a vida de seu filho.
-
Por favor, fale, Coronel!
-
Proponho permutar a vida de seu filho por Fraulein Germaine.
A
princípio a surpresa, e logo depois, o ódio, ficaram estampados no rosto do
senhor Fontaine e ele não pôde disfarçar.
-
O senhor, Coronel, já entrou aqui com este plano no bolso de seu colete. Vocês
são incapazes de fazer o bem, sem logo em seguida exigir um grande favor em
troca, não?
-
Esta forma de agir não é peculiaridade do povo alemão, e sim de toda a
humanidade, Monsieur Fontaine. Ninguém dá nada inteiramente de graça. Até os
pais esperam uma recompensa dos filhos e vice-versa. Não esperava que
arriscasse a minha patente, salvando a vida de um inimigo nosso a troco de
nada, não é? Sua filha estará melhor sob meus cuidados e proteção, do que aqui
com vocês. Do contrário, assim que a Gestapo botar as mãos em Pierre, todos
vocês sofrerão as conseqüências. Serão presos para interrogatório e terão o
restaurante fechado. Sem minha ajuda, dificilmente conseguirão provar
inocência. Já imaginou o que lhes poderá acontecer? Com quem ficará sua filha,
uma criança de seis anos? Pense em tudo isso, monsieur e verá que tendo a mim
como aliado, não será tão ruim assim. Fraulein Germaine terá tudo do bom e do
melhor. Boa comida, roupas caras, joias, divertimentos e, o mais importante,
total proteção. Garanto-lhes a vida de seu filho e minha proteção. Jamais
sofrerão punições e perseguições. Continuarão livres, trabalhando honestamente.
Que me diz disso tudo?
-
E se minha filha não aceitar sua oferta?
-
É claro que vai aceitar. Ela lhe quer muito bem e deve querer também ao irmão.
Conto com sua ajuda para convencê-la. Espero uma decisão rápida, pois pretendo
levá-la ainda esta noite. Diga a ela que não precisa trazer bagagem. Basta que
venha com a roupa do corpo e seus objetos pessoais.
-
Como pode desejar a companhia de alguém que poderá vir a lhe odiar?
-
Este será um problema meu que espero resolver satisfatoriamente.
-
Minha filha tem apenas dezenove anos e é ainda virgem.
-
Antes de tudo, quero que saiba que sou um cavalheiro, e não poderia ser de
outra forma, como oficial do glorioso exército alemão. Ela deverá ir comigo
hoje, mas eu só a tocarei quando conquistar a sua amizade e confiança. Sou um
homem de palavra. Tudo o que prometi, até aqui, pode ficar certo de que
cumprirei.
Eram
quase meia-noite quando o Coronel Kurt Staden entrava com Germaine Fontaine
numa lustrosa "Mercedes" preta, estacionada na porta do restaurante.
O último freguês há muito tinha ido embora, e as portas do estabelecimento já
estavam semicerradas. Lá dentro, o casal
Fontaine abraçado, soluçava sem parar. Pouco tempo depois, Germaine era
instalada numa confortável suite no último andar de um hotel localizado na
"Avenue Marceau".
CAPÍTULO 15
Uma nova experiência
A
vida amorosa de Bill não poderia ir melhor. Regina, para ele, era um excelente
aperitivo, e Margareth, um fausto banquete. E havia ainda as inconseqüentes
aventuras de fim de semana, com as amiguinhas de praia. Ele achava que todas
mereciam uma oportunidade, mas raramente saía mais de uma vez com a mesma
garota. Esses pequenos casos ele costumava classificar como tira-gosto.
A
primavera, naquele ano, chegara com todas as cores e os domingos de sol se
repetiam. Num desses domingos, Bill e Fernando disputaram uma partida de
voleibol diferente. Só eles sabiam que estava em jogo um valioso troféu. Ambos
jogavam muito bem e, naquele dia, eram adversários. Enquanto Bill liderava um
"time", Fernando liderava o outro. Fátima, uma linda loura de dezoito
anos, era o rico troféu. Eles combinaram que quem vencesse aquela partida
sairia com ela, naquela tarde. Ambos sabiam que Fátima se insinuava para os
dois, alternadamente, mas eram muito unidos para se magoarem, um com o outro,
por causa de uma garota leviana. Nenhum dos dois quis tomar primeiro a
iniciativa da conquista e, quando o assunto entre eles veio à baila, decidiram
resolver a parada em forma de aposta. A partida foi muito bem disputada e o
"time" de Bill saiu vencedor. Depois do tradicional mergulho dos atletas
nas águas de Copacabana, Bill e Fernando foram em direção à Fátima, que,
isolada do grupo, se bronzeava deitada de costas.
-
Alô - disseram, a um só tempo.
-
Ôi - respondeu ela, virando-se surpresa com a presença dos dois.
-
Acabamos de disputar uma partida de voleibol em sua homenagem - falou Fernando.
-
Não mereço tanta honra...
-
Isso é o que estamos pretendendo saber - comentou Bill, com ironia.
-
Não estou entendendo a piada...
-
Fizemos uma aposta entre nós. O vitorioso sairia com você esta tarde - falou
Fernando.
-
Quer dizer que vocês disputaram a minha companhia sem me avisar? E como sabem
que eu gostaria de sair com um de vocês?
-
Não sabemos, mas acreditamos que depois de uma homenagem tão espontânea, você
não vai se recusar a sair com um de nós - comentou Bill.
-
Poderia entender como homenagem se tivessem me participado antes. Da maneira
como fizeram, me colocaram na posição de objeto - falou Fátima, fingindo
aborrecimento.
-
Não pensamos assim, nem acreditamos que, inteligente como você é, venha a
pensar desta forma - falou Fernando.
-
Claro. Uma notícia dada assim só poderia ter o sabor de uma agradável surpresa
e ser motivo para envaidecimento - completou Bill.
-
Não quer saber quem ganhou? - perguntou Fernando.
-
Se é assim que acham que eu devo pensar, claro que gostaria de saber com qual
de vocês vou ter que sair.
Fernando
já se preparava para apontar o vencedor, quando Bill interrompeu:
-
Ficamos com um pequeno problema; a partida se estendeu por mais tempo do que
esperávamos em virtude do grande equilíbrio e, como não chegava ao fim e já
estávamos exaustos, resolvemos encerrá-la, dando o empate como resultado final.
Portanto, não houve vencedor.
Embora
sem compreender a atitude de Bill, Fernando manteve-se calado. Fátima, surpresa
com a notícia, não conseguiu esconder uma ponta de decepção quando falou:
-
Quer dizer então que não vou precisar sair com um de vocês?
-
Pelo contrário - falou Bill - gostaríamos que aceitasse o nosso convite e
saíssemos os três. Não podemos perder a oportunidade de homenageá-la.
-
Claro! Não poderia ser de outra forma - falou Fernando, começando a
compreender.
-
Não sei o que dizer. Estou realmente surpresa e envaidecida, entretanto,
acredito que vá me sentir inibida saindo sozinha com vocês dois. Quem sabe se
não seria melhor que eu trouxesse uma amiga comigo?
Bill
respondeu rapidamente, antes que Fernando tivesse tempo de dizer alguma coisa:
-
Em absoluto! Achamos que você deverá reinar sozinha. Esta tarde só você deverá
estar cercada de nosso carinho, atenção e gentileza.
Bill
tinha em Fernando o seu melhor amigo. Era evidente a grande afinidade entre os
dois. Gostavam das mesmas coisas: esportes, praia, bailes e garotas. No
futebol, ambos torciam pelo Fluminense. Aliavam ao espírito de liderança,
predicado nato nos dois, o charme e a simpatia pessoais. Enquanto Bill se
interessava por todos os assuntos sem se prender a um só especialmente,
Fernando estava sempre a par de tudo o que dizia respeito ao cinema, televisão
e, principalmente, à arte fotográfica, sua grande paixão. Ao completar dezoito
anos ganhara de presente dos pais um pequeno apartamento em Copacabana, onde
ele pudesse montar seu pequeno estúdio fotográfico. Se era intenção da mãe
proporcionar-lhe condições para que ele desenvolvesse a sua arte, para seu pai
seria a chance que daria ao filho de descarregar todo o seu apetite sexual. Foi
a fórmula mais eficaz, e até certo ponto sutil, que encontrou para bloquear o
assédio e as visitas noturnas do filho ao quarto das empregadas. Fernando não
era como Bill um bom estudante, mas fazia do estudo a sua profissão. Era a
fórmula mágica que encontrara para continuar a receber, mensalmente, dos pais,
gordas mesadas. Enquanto fingia que estudava, sabia que não precisaria trabalhar
de verdade. Quando seus gastos mensais ultrapassavam a quantia que recebia,
alugava o apartamento por hora a amigos de toda confiança, para completar o
orçamento. Fernando, assim como Bill, levava uma vida sexual intensa. Era o que
se podia chamar de "Don Juan" dos anos sessenta. Seu temperamento
alegre e comunicativo cativava, suas excelentes condições materiais
impressionavam e seu tipo físico atraente acabava por minar e enfraquecer
qualquer tentativa de resistência do sexo oposto. Tinha quase 1,80m de altura,
pesava aproximadamente 75 quilos, cabelos e olhos negros, pele morena e bem bronzeada, num corpo atlético e
peludo. Usava um grosso bigode e era de origem árabe. Era um ano mais velho que
Bill.
Exatamente
às cinco horas da tarde Fernando e Bill apanhavam Fátima na porta do seu
edifício. Ela estava mais bonita, atraente e sexy, como nunca tinham visto.
Vestia um vestido de alcinhas, em que o tom verde predominava no estampado,
combinando com a cor de seus olhos. Calçava uma sandália de salto alto e tiras
de couro. Os cabelos dourados estavam soltos. Usava um par de brincos de pedra
verde e, nos lábios, um discreto batom rosado. Fernando saíra com o carro de
seu pai, um "pontiac" do ano 1962, quase novo. Os três, sentados no
inteiriço banco da frente, rumaram para um barzinho discreto, no fim do Leblon.
Acharam melhor escolher um local distante dos olhos curiosos dos amigos comuns.
Conversaram e riram bastante e chamaram a atenção de todos que os circundavam.
Tinham a impressão que estavam sendo examinados como um jogo de quebra-cabeça,
onde uma parte estava faltando. Perderam a conta dos chopps que beberam e às
7h30min da noite já estavam bem alegres. Num abrir e fechar de olhos estavam os
três no apartamento de Fernando, apreciando suas fotos artísticas, e o tempo
foi pequeno demais para a sucessão de coisas que foram acontecendo. Enquanto a
luz ofuscante era substituída pela tênue lâmpada vermelha do abajur de pé, a
música quente dava lugar à romântica. Uma garrafa de puro uísque escocês fora
aberta. Bill e Fernando beberam algumas doses diluídas em cubos de gelo,
enquanto Fátima misturava guaraná ao seu uísque. A atmosfera foi ficando cada
vez mais quente e o possante aparelho de ar refrigerado não conseguia esfriar
as emoções. A dança passava a fazer parte do jogo amoroso, e Bill e Fernando
revezavam-se dançando com Fátima. Algumas vezes, quando o ritmo da música era
bem arrastado, os três dançavam juntos. As trocas de carícias mais ousadas já
se faziam sentir. De repente Fernando acionou o dispositivo final para
completar a excitação geral: projetou, sobre uma pequena tela, curtos filmes
pornográficos coloridos em oito milímetros. Após a conclusão do último filme,
os três estavam num estado desesperador, e foi aí que Fernando sugeriu à Fátima
que fizesse um strip-tease. Aos primeiros acordes de uma melodia própria, ela
não se fez de rogada, e foi tirando peça por peça da vestimenta com a
sensualidade e a arte da melhor profissional do gênero. Enquanto Bill, deitado
sobre almofadões, se deliciava, Fernando não perdia um só movimento e fazia
explodir várias vezes o "flash" de sua máquina fotográfica. Fátima,
apenas de calcinha semitransparente, dançava agitando suavemente os quadris,
num movimento super erótico. Rebolava no centro da sala sem sair do lugar, com
os braços estendidos para cima entrelaçando-se no ar como serpentes, quando
Fernando largou a máquina e atirou-se de joelhos aos seus pés. Estava tentando
descer lentamente a última peça de fino nylon que mal cobria a total nudez
daquele corpo escultural, quando Bill propôs deixá-los a sós. Argumentou que
precisava descer até a rua para comprar algo para comerem. Ninguém fez objeção
e ele só voltou uma hora depois.
Bill
encontrou os dois totalmente despidos, deitados lado a lado no grande sofá
aberto na sala. Ambos dormiam, e Fátima pousava o rosto no peito cabeludo de
Fernando. Bill os acordou e, enquanto os dois tomavam uma ducha fria, ele
preparava a mesa para servir uma saborosa pizza que, bem embalada, ainda estava
quente. Tanto a pizza, como a saída estratégica e providencial de Bill, foram
muito apreciadas por Fernando e Fátima.
Bill
aprendera a esperar com a sua grande mestra Margareth e por isso tivera a frieza
de elaborar todo aquele plano. Olhava para Fernando e via em seu rosto a
expressão do desejo satisfeito; olhava para Fátima e via em seu rosto uma
expressão tanto insaciável quanto inquisidora e, depois de rápida troca de
olhares, resolveu falar:
-
Sabe que horas são, Fernando?
-
Não - respondeu ele, distraído.
-
Quase duas horas da manhã.
-
Tudo isso? Juro que não percebi o tempo passar. Já está ficando tarde...
-
Para você - completou Bill - pois sei que seus pais não gostam que passe toda a
noite fora de casa.
-
Sim, é verdade. São muito rígidos e se preocupam demais comigo. Não posso
contrariá-los, pois sou muito dependente. Se romper qualquer regra disciplinar
imposta por eles poderei perder minhas regalias e isso não será nada bom.
-
Proponho então que se vá - falou Bill - e nos deixe ficar mais um pouco.
Levarei depois a Fátima em casa e ao sair deixarei as chaves de seu apartamento
com o porteiro, ok?
Fátima
não disse uma só palavra. Fernando olhou para os dois e pôde ver a cumplicidade
em ambos. Não precisou ser muito esperto para sentir que era ele, agora, quem
estava sobrando. Sorriu e falou:
-
Ok, garotão esperto. Você fez por merecer - e completou baixinho ao ouvido de
Bill - quero que fique sabendo que você é o único cara que eu conheço para quem
não vou cobrar a diária.
Fernando
se vestiu, piscou o olho para os dois e falou antes de sair:
-
Não se esforce para ser melhor do que eu Bill, pois isso você jamais conseguirá
e esta preocupação poderá lhe ser fatal.
Como
a pólvora e o fogo, a ternura e a violência se misturaram e houve uma explosão
de carícias, e quando a primeira brisa da manhã penetrou pela janela
entreaberta, só encontrou as cinzas mornas do sexo pelo chão da sala. O céu já
estava sangrando com os primeiros raios de sol do dia, quando Bill chegou em
casa. Vestiu a farda, tomou um café quente e forte e ainda encontrou tempo para
escrever, em seu caderno de capa preta de couro, mais um nome de mulher. Por
sobre o nome, um traço de lápis vermelho.
CAPÍTULO 16
A viagem no Gina D'Oro
Exatamente
às cinco horas da manhã o Gina D'Oro deixava a "Bacino Porto
Vecchio". Dezoito homens faziam parte da tripulação e Giacomo era um
deles. Levava como bagagem apenas uma sacola impermeável à tiracolo sobre o
casaco de couro mas, dentro do peito, carregava o peso maior: uma gama de
sentimentos conflitantes em que a alegria, o otimismo e a esperança se
misturavam à tristeza, à angústia e à saudade. Fazia um frio agradável, com a
temperatura a 10 graus, própria para aquela época do ano. Giacomo, encostado à
balaustrada, via o porto de Gênova se afastando lentamente e não percebeu que
estava chorando, pois o vento atirara em seu rosto respingos do Mediterrâneo.
Naquele momento sentia sono pois a expectativa da viagem não o deixara dormir
direito na noite anterior, e já às quatro horas da madrugada estava de pé.
Queria sair sem ser visto mas logo percebeu que a sua mãe já estava na cozinha
preparando para ele um café bem reforçado. Dona Benedetta teve oportunidade de
mostrar mais uma vez o quanto era forte, deixando para chorar depois que o
vulto de Giacomo desapareceu do campo de sua visão. O abraço entre mãe e filho
fora longo e silencioso. Ela o abençoou e o beijou com ternura. Naquele
instante o marido, Giuseppino Spata, dormia um sono profundo e inocente.
Sonhava com a sua Itália triunfante, rica e poderosa. No sonho, no lugar
daquele casquete ridículo que costumava usar, seu querido "Duce"
usava uma coroa de ouro, incrustada de rubis e esmeraldas, representando as
cores da bandeira da pátria.
Giacomo
olhava o casco do barco cortando o mar e via o rosto de sua mãe na linha
d'água. Retinha ainda nas mãos um pacote que ela lhe entregara no momento da
partida, contendo frutas, queijos e algumas bolachas ainda mornas, que ela
fizera especialmente para ele. Aquelas bolachas tinham para Giacomo um sabor de
infância. Elas o acompanharam por toda a vida - nas manhãs de domingo, na
merenda escolar, no leito do hospital e nas primeiras pescarias. Ninguém as
fazia como sua mãe, e ela tinha consciência disso. Aquela bolacha era muito
simples para ter receita e saborosa demais para ser copiada. Ele sabia que
aquele pacote de iguarias lhe era totalmente desnecessário, pois o barco fora
abastecido de gêneros alimentícios, como era lógico, mas a lógica nunca
conseguiu vencer o coração previdente e preocupado de uma mãe.
Pouco
tempo depois, Giacomo estava na torre de comando ao lado do cunhado. Há muito
tempo que Angelo não navegava. Vivia ocupado demais nos seus escritórios e
raramente ia até o porto. Naquela viagem resolvera ele mesmo comandar o Gina
D'Oro.
-
Que me diz do meu barco? - perguntou Angelo, quebrando o silêncio.
-
Um grande barco!
-
Grande só? Este é o maior, mais veloz e bem equipado barco pesqueiro da Itália!
-
E bonito também?
-
Claro! Você precisa ver meu camarote. Que luxo! Saiba que, da minha frota, este
é a menina de meus olhos. Se quando esta guerra acabar os meus negócios
estiverem tão firmes e prósperos como estão agora, farei uma viagem de volta ao
mundo nele.
O
Gina D'Oro só saía do porto para viagens maiores. Angelo morria de ciúmes do
barco, e quando o entregava a outro comandante, o fazia com recomendações
especiais e algumas restrições. Na verdade, fosse quem quer que fosse que
estivesse ao comando do grande pesqueiro, não tinha permissão para usar o seu
camarote principal.
-
Sua decisão de vir nesta viagem deve ter causado uma certa surpresa entre a
tripulação, não? - perguntou Giacomo.
-
Realmente. Eles já estavam desacostumados de me verem a bordo. Há muito que não
viajam sob meu comando.
-
Não acha que podem estar curiosos, ou que esse fato pode ter levantado alguma
suspeita sobre o nosso objetivo?
-
Não creio. Sempre agi assim. Vez por outra me lanço ao mar sem algum motivo
aparente, a não ser a necessidade que sinto de me distrair um pouco, enquanto
trabalho. Quando viajo em outro barco qualquer assumo a condição de um mero
espectador, um privilegiado turista, mas, quando o faço no Gina D'Oro, não abro
mão de seu comando. É no mar que descarrego minhas tensões e volto às minhas
origens. Quase nasci num pequeno bote. Meu pai viveu e morreu da pesca, sem
sequer conhecer outro ofício. O mar me fascina tanto quanto uma mulher recatada
e misteriosa: ela, assim como o mar, me recebe, inebria, me acalenta, me faz
queimar de desejo, mas evitando uma intimidade maior, não se deixa dominar e
permanece com seus segredos e mistérios insondáveis.
-
Você me fez ver uma linda imagem. Na verdade, sinto da mesma forma. Neste
ponto, somos duas almas gêmeas.
-
Como você conseguiu viver longe do mar tanto tempo?
-
Eu sabia que não era um rompimento definitivo, e que mais dia, menos dia, teria
que ceder. Da janela do meu escritório, lá na fábrica de massas, eu olhava o
mar à distância, diariamente, como alguém que olha a mulher que ama e espera
apenas o momento certo para abordá-la.
-
Por que você evitou o mar por tanto tempo?
-
Pelo mesmo motivo que o homem evita a mulher que ama - por insegurança. Quando
se deseja e se ama verdadeiramente uma mulher, nós a queremos como amante e
companheira e jamais nos conformamos de tê-la apenas como amiga. Eu jamais quis
apenas viver para o mar, pois na verdade eu sempre desejei foi viver com o mar.
Meu sonho de marinha começou a morrer no nascedouro, quando, em criança, adoeci
seriamente. Mais tarde, ao ser reprovado no exame médico da Escola Naval,
compreendi que não podia mais conviver com algo que já estava morto dentro de
mim. Rompi com o mar única e exclusivamente como instinto de defesa, pois
sempre tive consciência de que ele não teve culpa alguma do que me aconteceu. O
mar nunca me fez mal, pelo contrário, se alguma participação teve, em toda a
história, foi benéfica, pois foi um auxiliar decisivo na minha recuperação.
-
Espero que esta reconciliação seja definitiva e duradoura e que vocês possam
viver juntos, e felizes para todo o sempre.
Giacomo
apenas sorriu e acendeu um cigarro. Depois de um pequeno silêncio, que
aproveitou para meditar, perguntou:
-
Você acha que estaremos no local do meu desembarque na hora exata que planejou?
-
Se não houver nenhum contratempo, o que espero que não aconteça, você pisará o
solo francês antes da meia-noite.
Angelo
sabia que seu cunhado poderia fazer em apenas 4 horas, por terra, aquela
viagem, pois 200 km, aproximadamente, separam Gênova de Nice. Acontece que por
mar, e naquelas circunstâncias, 18 horas seriam o ideal. Se o Gina D'Oro
fizesse aquele percurso direto, sem escalas, desenvolvendo a velocidade de l2
milhas marítimas por hora, do que era capaz, na certa gastaria a metade do
tempo. Mas aí eles não procurariam as melhores regiões para a pesca, que era,
para todos os efeitos, o objetivo da viagem. Só Angelo ali sabia a rota a
seguir e a distância exata a percorrer. Conhecia bem a região e tinha elaborado
minuciosamente o plano de viagem. Sabia sobre a profundidade e a temperatura das
águas e que, exatamente às 11h 17min da noite, a maré estaria em preamar, o que
ele achava o ideal para o desembarque do cunhado. Com a maré em baixa-mar, ele
não poderia se aproximar muito da terra devido ao grande número de arrecifes
que assolam aquela região rochosa.
A
viagem, para Giacomo, foi mais de recreio do que de instrução. Para que tudo
parecesse normal, Angelo se fazia acompanhar pelo cunhado aos quatro cantos da
embarcação. Passaram pela casa das máquinas, onde Giacomo pôde ver como funcionava
a complicada engrenagem do potente motor que era alimentado a óleo diesel. Viu,
nos porões, como era armazenado o peixe sobre o gelo. Passaram pela cozinha,
refeitório e dormitório da marujada. No setor de comunicação recebeu noções de
radiotelegrafia, e pôde observar como eram transmitidas e captadas as
mensagens. E depois de conhecer os sistemas de iluminação e alarme, completou
seu rápido curso prático com o sinaleiro, o mais velho tripulante de bordo, um
tipo melancolicamente cômico, ágil, irrequieto, cheio de gestos, baixo,
narigudo, com um semblante carregado de passado e uma semelhança física com o
"Cyrano de Bergerac". Investido de sua importância, como se estivesse
representando para uma grande platéia, mostrou a Giacomo alguns sinais
convencionais.
De
volta à torre de comando, Angelo, ao lado de seu imediato, deu uma verdadeira
aula ao cunhado sobre os instrumentos de navegação. Era verdade que Giacomo em
terra, e durante as pequenas viagens que fizera anteriormente em barcos
menores, já tivera as primeiras noções da técnica, da ciência e da arte de
navegar, mas sabia que tudo aquilo eram pequenos ensinamentos e que só com o
correr do tempo e depois de muito praticar é que poderia sentir-se apto para
desempenhar, com perfeição, uma daquelas tarefas. De tudo o que vira, o que
achou mais complicado foi a engenharia de bordo - de como era traçada, nos
mapas, a rota a seguir e se perdia entre latitudes, longitudes, etc. Naquele
momento, Angelo passou-lhe o leme, e Giacomo pôde sentir por momentos, a gostosa
sensação de pilotar o barco. Do alto da torre pôde ver as redes serem retiradas
do mar repletas de peixes de várias cores, espécies e tamanhos. Desceu ao
convés, e pôde apreciar de perto a técnica dos pescadores a retirar da água,
por meio de arpões, os peixes maiores. Acompanhou, da proa, cardumes velozes
que pareciam disputar com o barco uma corrida desigual. Recebeu sol e sal no
rosto, e sentiu a pele repuxar. Bebeu muito vinho e adormeceu sobre um rolo de
grossos cabos no chão da popa, depois de comer um saboroso peixe, rusticamente
preparado pelo cozinheiro de bordo.
Quando
a tarde caiu ele estava no luxuoso camarote do cunhado, bebendo uísque escocês
e jogando com ele uma partida de xadrez.
-
Quando esta guerra imunda acabar eu voltarei e não vou querer outra vida. Perdi
meu precioso tempo em terra e só deixarei de navegar se me for totalmente
impossível.
-
Não fosse essa sua inadaptação ao fascismo e hoje você já poderia estar dando
um grande passo em direção ao seu futuro.
-
Não o recrimino por aceitar passivamente a política vigente, pois na verdade
você já estava bem situado na vida quando tudo começou, e agora goza de muito
prestígio junto às autoridades. É normal que queira cuidar de seus interesses,
mas não aceito as suas indiretas - falou Giacomo, em tom zangado.
-
Não se aborreça comigo, cunhado. Se não fosse seu amigo não estaria me
arriscando em lhe ajudar, mesmo acreditando ser uma loucura o que está
pretendendo fazer.
-
Se ter um ideal é ser louco, sou o louco mais lúcido do mundo. Estou certo de
que estou dando um grande e decisivo passo. Não vou vencer a guerra sozinho,
mas vou colaborar com todas as minhas forças e quero ser um dos primeiros a
comemorar a vitória final.
-
Invejo a confiança que deposita em si próprio e esta sua certeza de vitória.
Não posso lhe negar méritos por seu idealismo. Se estivesse na pior, não teria
tanto valor mas, ao abdicar de tantas vantagens, deixando para trás o lar, a
família, os amigos, trocando uma vida segura por uma aventura perigosa, passa a
receber todo o meu respeito e admiração.
-
Muito breve estarei ao seu lado, e juntos muitas milhas iremos navegar. Quem
sabe não faremos aquela volta ao mundo, tão sonhada por você, neste mesmo
barco?
-
Seria ótimo, mas mesmo assim, preferiria que no último instante decidisse
voltar atrás. Mas, se isso não suceder, quero que saiba que de uma coisa você
pode realmente ter certeza: assim que regressar, estarei lhe esperando de
braços abertos, aconteça o que acontecer.
Fez-se
um pequeno silêncio. Enquanto Angelo alimentava de fumo o seu cachimbo, Giacomo
serviu-se de uma nova dose de uísque.
-
Como estamos indo? - perguntou Giacomo.
-
Até agora, tudo na mais perfeita ordem e sem novidades - respondeu Angelo, sem
tirar o cachimbo da boca.
-
Qual a diferença da mulher italiana para a francesa? - perguntou Giacomo,
mudando de assunto.
-
Cambial. Com a italiana você gasta liras, com a francesa francos.
-
Falo sério - sorriu Giacomo. Reformulo a pergunta então:- Qual a semelhança
entre elas?
-
Ambas aceitam dólares - respondeu Angelo sorrindo.
-
Você está muito frio e materialista. Pare de brincar e me responda direito.
Gostaria de saber as nuanças, a essência, o espírito enfim. Você conhece bem as
duas e poderia me dar a sua opinião.
-
É claro que estou brincando, mas não deixo de ter um pouco de razão. Ninguém
tem a capacidade de conhecer mulher alguma, a não ser outra mulher, é claro.
Nós homens, pensamos apenas conhecer, mas se faz questão realmente de minha
opinião, vou dar-lhe...
- Claro, diga.
-
Se pudéssemos mesclar, fundir as qualidades e os defeitos das duas, na certa
teríamos a melhor mulher do mundo. Ambas são maravilhosas! A mulher italiana é
um vulcão e a francesa é um lago. Você pode explodir ao lado de um vulcão a
primeira vista extinto, como pode se perder nas profundezas de um lago
aparentemente sereno. Ambas são perigosas e belas, e o homem, explorador por
natureza, gosta de sentir o gosto da aventura e o sabor do perigo.
-
Percebo agora o quanto esta viagem está lhe fazendo bem. Há tantos anos nos
conhecemos e foi preciso que navegássemos juntos para que eu pudesse descobrir
o seu lado lírico, romântico. Você não só externou sua opinião, como transmitiu
uma visão poética sobre o assunto. Diante do que disse, cunhado, quero que
saiba que meu corpo chamuscado de brasa está pronto para mergulhar no primeiro
lago.
O
Gina D'Oro singrava veloz as águas do Mediterrâneo e passava agora por Sanremo,
no mar Ligure. Da janela do camarote, Giacomo apreciava a bela vista. Podia-se
ver ao longe o porto turístico com as suas primeiras luzes acesas. De repente,
Giacomo voltou atrás quatro anos de sua vida, e se via cometendo a sua primeira
travessura da fase adulta pois, ao completar 21 anos, passara toda uma noite de
sábado no Casino Municipale de Sanremo, maravilhosa atração turística da
Riviera dei Fiori. Ali deixara, naquela noite, todo o ordenado do mês e mais
algumas economias. Na verdade, há muito tempo que ele vinha se preparando para
seu début em cassino. Desde garoto, quando ouviu pela primeira vez histórias de
fortunas mirabolantes feitas e destroçadas numa só noite nas mesas de pano
verde, ele fez a si próprio a promessa de viver uma noite de emoção, junto à
maior concentração humana de ricos, farsantes e sonhadores. Parte de suas
economias gastou na indumentária. Mandou fazer um smocking por um alfaiate de belo talho, amigo
da família. Comprou um par de sapatos pretos de verniz e uma camisa de seda com
bordados no peito. Conseguiu, emprestado com o pai, uma piteira, uma cigarreira
e um par de abotoaduras, relíquias de família. Sem ter a imprudência do rico e
o sorriso indecifrável do sonhador, atarraxou no rosto a máscara do farsante, e
procurou viver, da melhor maneira possível, o seu papel. Entrou naquela noite
nos salões do Casino Municipale com o ar de filho de pai milionário. Seu mais
íntimo amigo, se o visse ali, jamais o reconheceria. Com os negros cabelos
engomados por fina brilhantina de suave perfume, um cravo branco na lapela e um
cigarro americano preso à ponta da longa piteira, desfilava serena e
elegantemente. Mas, se a muitos conseguiu enganar, para os profissionais do
jogo, que têm um aguçado faro pelo dinheiro, deixava-se trair, pois, por melhor
que fosse seu disfarce, não conseguia ofuscar de seus olhos o brilho típico que
tem o olhar de uma criança pobre ao entrar numa loja de brinquedos.
Arriscou
um pouco em cada mesa e perdeu tudo em poucas horas, mas jamais se arrependeu.
Sempre achou que um homem, por mais sério, equilibrado e econômico que fosse,
precisa e merece, vez por outra, uma noite de loucura, desde que isso não se
torne um hábito em sua vida. Perdeu até a última ficha, mas manteve a pose.
Embriagou-se e acordou, pela manhã, na suíte de um hotel de luxo, nos braços de
uma baronesa Fulana de Tal - pois jamais conseguiu lembrar de seu nome - e que
tinha idade para ser sua mãe. Refeito do pileque e do susto, logo voltou às
origens, recusando um gordo envelope cheio de liras que a nobre senhora fazia
questão de lhe presentear. Ao demonstrar escrúpulos, deixou cair a máscara, e
por mais que tentasse contornar, inventando histórias desconexas e tentando
conservar a pose da noite anterior, punha, cada vez mais a nu, a sua verdade de
jovem orgulhoso e pobre soberbo. E quando articulou sua última frase, dizendo
que não tivera sorte no jogo e perdera todo o seu dinheiro, ouviu da velha
baronesa uma resposta que o marcou para sempre:
-
Quem perde dinheiro é rico. Pobre deixa de ganhar.
Acabou
chorando e aceitando, por empréstimo, o dinheiro apenas para a passagem de
volta. Pouco tempo depois, naquele belo domingo de sol, estava dentro do
ônibus, de retorno à Gênova, e lamentava apenas não poder ter no rosto a imagem
que sempre sonhara: a de um milionário falido.
Eram
nove horas da noite quando o Gina D’Oro foi interceptado por um barco patrulha
da marinha italiana. Navegavam bem próximo da costa, na altura de Mortola. O
capitão-tenente que comandava a patrulha era um velho conhecido de Angelo e,
por isso, examinando apenas a licença para navegar e o plano de viagem, fez
cumprir, com indisfarçável desinteresse, parte de sua missão averiguadora. Não
exigiu a documentação da tripulação, nem fez questão de examinar a carga. Foi
mais uma visita de cortesia do que de inspeção. Depois de provar do puro uísque
de Angelo, fez as recomendações de praxe:
-
Não se esqueçam que estamos em guerra e que vocês já estão bem próximos da
fronteira com a França. Enquanto navegarem em águas italianas, poderão contar
com nosso auxílio. Fora disso, estarão correndo sérios riscos.
-
Não se preocupe, Capitão. Conheço bem esta região e não pretendo arriscar
nossas vidas nem meu precioso barco. Iremos um pouco mais à frente e logo
retornaremos. Tivemos um dia muito movimentado e proveitoso, e já estamos para
encerrar a nossa jornada. Meus homens trabalharam bem e estão fazendo jus a um
bom repouso.
-
Quando pretendem voltar ao porto de Gênova?
-
Amanhã, se tudo correr tão bem como correu hoje, ao entardecer estaremos
abarrotados de peixes e forçosamente teremos que regressar.
-
Espero que esta viagem seja muito proveitosa e sem incidentes - e olhando em
torno, concluiu o capitão-tenente, antes de partir - apesar da noite escura, o
mar está calmo e o tempo agradável.
Depois
de todas as tarefas do dia encerradas e de terem terminado de fazer uma pequena
ceia, os pescadores e tripulantes que não estavam de serviço se reuniram no
refeitório para cantar canções folclóricas ao som de um violão e uma harmônica
de boca. Exatamente às 23 horas soou o sino, no toque de recolher. Aquelas badaladas
indicavam também que fora cumprido mais um "quarto de hora", e que
deveriam ser substituídos os marujos de serviço. Só três tripulantes deveriam
ficar acordados: um, na casa de máquinas para controlar a velocidade do navio,
um radiotelegrafista e um timoneiro. Os três deveriam ser substituídos de
quatro em quatro horas. Naquele momento, na cabine da torre de comando, Angelo,
ao timão, conversava com Giacomo:
-
Deixamos Vintimiglia para trás e já estamos navegando em águas francesas. Logo
atingiremos o ponto exato em que você deverá saltar. De agora em diante, todo o
cuidado será pouco. Os alemães são nossos aliados mas não vão entender um barco
pesqueiro italiano a essas horas por aqui. Também o inimigo poderá estar
rondando esta área, e o certo é que estamos na posição de um barco pirata entre
dois fogos.
-
Como saberei quando será o momento exato em que terei que saltar?
-
Vou aproximar o barco o máximo que puder da costa, evitando os arrecifes.
Quando eu começar a fazer a curva para retornar, será o sinal. Você deverá
nadar em direção a uma pequena enseada que fica entre duas grandes rochas. Esta
praia é totalmente desabitada, e do lado direito dela você terá menos
dificuldade para subir a encosta. Logo depois encontrará uma estrada de acordo
com o ponto marcado no mapa. Seu contato deverá estar aguardando. Acenda a
lanterna três vezes seguidas e espere a resposta.
Giacomo
estudou pela última vez o mapa da região. Tomou um gole de café, fumou um
cigarro, arrumou a sacola, despediu-se do cunhado com um forte abraço e, na
ponta dos pés, desceu para o convés. O navio estava com todas as luzes apagadas
e mergulhado no mais profundo silêncio. A temperatura caíra bastante. Se
durante o dia chegara a fazer 20 graus, naquele momento estava um pouco abaixo
de 10º. O vento frio cortava o rosto de Giacomo quando ele transpôs a amurada e
começou a descer por uma escada de cabos entrelaçados. O Gina D'Oro já estava
completando a curva quando Giacomo dava ritmadas braçadas em direção ao
desconhecido.
Angelo
dormia em seu luxuoso camarote quando, na manhã seguinte, foi despertado pelo
Imediato. O desaparecimento do cunhado lhe foi comunicado pela voz aflita do
subalterno. O rosto do Comandante foi revestido por uma expressão de pesar e
banhado por algumas lágrimas que, providencialmente, rolaram de seus olhos.
Enxugou a face em silêncio, e diante de seu Imediato, registrou o trágico
acidente no diário de bordo.
CAPÍTULO 17
O balanço final de um período marcante
O
período de dois anos em que esteve ligado à vida militar estava chegando ao fim
e, em breve, Bill daria baixa da Aeronáutica. Ele sabia que nunca fora homem de
fazer planos para o futuro e achava que só depois de voltar a vestir,
definitivamente, as suas roupas civis é que deveria pensar sobre o que fazer de
sua vida. Havia algumas opções, e uma delas seria a de concluir o científico
que interrompera, depois de cursar o segundo ano, para servir às Forças
Armadas. Abandonar os estudos e ir trabalhar com o pai seria uma outra
alternativa. Poderia ainda, se o desejasse, trabalhar e estudar
simultaneamente. Sobre sua vida sentimental, então, é que não queria esquentar
a cabeça. Ao mesmo tempo em que sabia que deveria por um fim em seu caso com
Margareth, tinha dúvidas quanto ao que fazer com Regina. Não tinha certeza
ainda se a amava de verdade. Só o tempo, a ausência e a distância, enfim, é que
poderiam responder. O certo é que ele já entendia que um caso amoroso só
deveria ser esquecido por outro maior.
Margareth
o absorvia. Regina o asfixiava e ele sobrevivia. Com Margareth aprendia tudo da
arte e da técnica do amor. Sentia a sensação do equilíbrio, do sexo bem
saboreado e curtido, que só uma mulher madura e experiente pode transmitir.
Pôde comprovar, tempos depois, mediante outros casos com mulheres na mesma
faixa de idade de Margareth, a sensação que sentia quando as tinha em seus
braços: era um momento tão glorioso e intenso, que elas sempre lhe deixavam a
impressão de que seria aquele o último ato sexual que praticavam em suas vidas.
Com Regina era totalmente diferente. Mais pela pouca idade e escassos
conhecimentos do que por seu estado virginal e por sua falta de intimidade com
o peso do tempo, com o mundo. Bill não só mantivera íntimos contatos com outras
moças ainda invioladas, tal qual Regina, como também com jovens mulheres
recém-iniciadas no maravilhoso mundo do sexo, e todas elas lhe deixaram a mesma
impressão: - a virgem traz o sabor da fruta colhida ainda verde; a jovem
mulher, o sabor da fruta amadurecida artificialmente e, só a mulher madura é
capaz de apresentar a cor, a consistência e o sabor do fruto colhido no pé, na
época certa. Valorizando o detalhe, sublinhando a ação, ampliando o movimento e
estendendo o tempo, ela extrai do homem todo o sumo, a seiva e o vigor de que
ele é capaz e, em troca, lhe oferece a confiança restabelecida, o orgulho
fortalecido e a vaidade alimentada. Com a virgem, ou com a mulher imatura, as
sensações causadas são outras. Depois de embates ferrenhos, de bolinagens, ou
mesmo com a complementação do êxtase, fica no ar não a quietude e o silêncio
respeitoso da paz, mas as atitudes irrequietas, os gritinhos, gemidos e risos
nervosos, a aflição e a avidez. Elas raramente dão ao homem aquela sensação que
os envaidece - a impressão de um desejo satisfeito. Costuma ficar flutuando no
ar o espectro do ato inacabado, interrompido, adiado, com a promessa de ser
completado numa outra oportunidade. Mas a juventude é mesmo incompleta. Os
jovens, tanto o homem, quanto a mulher, na ânsia de receber, esquecem de se dar
e, agindo desta forma, não conseguem atingir a satisfação plena. Muitos culpam
o excesso de energia como veículo responsável direto por tal comportamento, e
esquecem que este tipo de insatisfação é gerado pelo despreparo, pela falta de
experiência e de equilíbrio.
Era
esta a visão que Bill começava a ter de um assunto tão delicado e
controvertido. Sabia também que não devia generalizar, pois que, para toda a
regra existia a exceção. O amor e o sexo independem de fórmulas e sistemas e só
a matemática é uma ciência exata. Não só é possível se ter uma decepção com uma
mulher madura, como se encontrar, numa jovem, a parceira ideal. Mas o fato é
que Bill sentia-se um aparelho receptor-transmissor - recebia ensinamentos de Margareth
e transmitia para Regina. A mãe usava o corpo de Bill, atravessando, para a
filha, experiência e saber. Ele, tirando partido da situação, não só saboreava
aquela fase de sua vida, que completava a primeira parte de seu aprendizado,
como se sentia privilegiado em ser usado como ponte entre mãe e filha, para o
transporte de aprendizado e emoções condensadas.
Uma
tarde, quando curtia o sublime momento do depois, Bill com a cabeça de
Margareth pousada em seu peito, elogiava a arte e o equilíbrio daquela mulher
fantástica:
-
Você é notável, Margareth! Jamais a esquecerei. Ficará comigo em meu corpo como
uma cicatriz que me faça lembrar apenas um momento feliz de meu passado.
-
Se deixar em você só a lembrança de nossos momentos agradáveis e os frutos de
minha experiência, sentir-me-ei gratificada. Sei que não devo alimentar ilusões
e que nossa separação está cada vez mais próxima, mas não gostaria de falar
nesse tom de despedida.
-
Provavelmente vamos ter que deixar de nos ver, mas será unicamente para seu
próprio bem. Quando minha presença aqui não se fizer mais necessária e a
Aeronáutica for apenas uma página do meu passado, devemos encerrar o nosso
relacionamento, se não quisermos correr o risco de transformar em mentira o que
foi um sentimento verdadeiro. Não posso, não devo, e não pretendo magoá-la.
-
Você está aprendendo muito depressa - falou Margareth, tentando disfarçar a
emoção. Cavalheirismo e gentileza são coisa rara entre os homens de sua idade.
-
Você me ensinou muito mais que isso. Fez com que eu soubesse conter os meus
impulsos e aprendesse a esperar. Aprendi a dosar as minhas emoções diante de
seu perfeito equilíbrio e segurança, suas maiores virtudes. E você, com quem
aprendeu tanta coisa?
-
Os alicerces foram fixados em mim por meus pais. Sou filha de militar e fui
educada dentro dos mais rígidos princípios da ordem e da disciplina. Cedo
aprendi a primeira lição: que existe sempre um lugar certo para cada objeto, e
surge sempre o momento adequado para cada ação. Assim moldei o meu temperamento,
a princípio impulsivo, e aprendi a esperar. Meu marido também tem sido muito
útil. Com sua vida metódica e organizada, deu sequência a meu aprendizado e o
resto decorei nas cartilhas da vida.
-
Muito bem, e por que eu? - perguntou Bill, de repente.
-
Por que você, o que?
-
Por que me escolheu e me deixou entrar na sua vida?
- Por que não? Não quero negar suas
qualidades e deixar de reconhecer seus méritos, mas se não fosse você agora,
teria que ser outro. Toda a mulher que se casa quer estar sempre em primeiro
plano. Eu sempre estive em segundo. Um bom soldado, antes de ser marido, é
militar. Quando nossos filhos nasceram eu passei a terceiro plano. Amo o meu
marido apesar de tudo, e o compreendo. Sinto até que ele ainda me ama, mas sei
também que não se prova o amor com uma declaração passada em cartório e firma
reconhecida. O amor livre, quando muito, pode ser uma expressão poética, mas na
prática do dia a dia se distancia muito da verdade. O amor é um sentimento
prisioneiro. É como um pássaro preso a uma gaiola, que para cantar precisa ter
água e ração substituídas diariamente. Precisa de atenção e cuidados especiais.
Se deixarmos a gaiola aberta o amor voa e vai cantar para outro alguém; se
negligenciarmos o seu sustento ele morre.
-
Mas se o seu amor por seu marido ainda existe, você prova com isto que sempre
recebeu dele água e alpiste...
-
Em doses homeopáticas - interrompeu Margareth. O suficiente apenas para não
morrer, mas jamais para cantar. Em compensação a portinhola do meu cativeiro sempre
esteve aberta. Para não perder o dom do canto, exercito minha voz, vez por
outra, para ouvidos que escolho e que possam se interessar em ouvir-me.
-
E por que não voou para longe, de vez?
-
A rígida educação que recebi cortou minhas asas. Fiquei sem condições para voos
maiores. O máximo que consegui foi cair da gaiola três vezes e você foi a minha
terceira queda. De repente senti a necessidade de cantar e voar outra vez.
Talvez o meu último canto... meu último voo. Um voo cego, rasante, em rumo
errado. Curto, para não perder o caminho de volta. Senti a necessidade de
provar a mim mesma de que seria ainda capaz de encantar um jovem com meu canto
rouco e cansado.
-
Um canto suave, afinado e melodioso. Maravilhoso, enfim! - falou Bill, com
emoção.
Naquele
instante Bill beijou Margareth com ternura, amor e respeito. Os dois ficaram
ainda algum tempo em silêncio com os olhos embaçados. Gostariam de prolongar
aquela tarde indefinidamente, mas o tempo se esgotara. De repente ele sentiu a
necessidade de devolver aquela preciosa ave à sua gaiola de origem.
No
dia seguinte, Bill e Regina combinaram passar juntos o próximo domingo.
Marcaram encontro na praia e lá então ele apresentaria Fernando a ela. Depois
iriam conhecer o estúdio de seu maior amigo e "melhor fotógrafo do
mundo"!
CAPÍTULO 18
Um dia muito extenso
Giacomo
estava em grande forma. Fizera a travessia a nado com relativa facilidade. Na
praia escura e deserta, procurou um abrigo entre as rochas para se esconder do
frio e descansar. Tudo, até ali, correra dentro do plano traçado. Ele era
esperado entre onze da noite e uma hora da madrugada. Àquela hora, no local
previamente estabelecido, seu contato já deveria estar lhe aguardando. Olhando
para o seu relógio, Giacomo comprovou que ainda tinha a seu favor quarenta e
poucos minutos, e achou que poderia dar-se ao luxo de fumar um cigarro para
descarregar a tensão.
Subiu
a encosta do morro com certa dificuldade, pois além da escuridão e de
desconhecer o caminho, o local era íngreme e sinuoso. Já na estrada, acendeu
três vezes seguidas sua lanterna e esperou. Não houve resposta e pela primeira
vez, naquele dia, ele ficou preocupado. - "Estaria no lugar certo, ou
teria errado o caminho?" - pensou. Aquela era a parte mais importante do
plano, e se algo não desse certo ele ficaria irremediavelmente perdido. Voltar
atrás seria arriscado e difícil; permanecer na França, sem a cobertura de uma
pessoa amiga, seria praticamente impossível. Faltavam cinco minutos para uma
hora da madrugada quando ouviu um ruído estranho. Tirou o punhal da bota e, sem
fazer barulho, trocou rapidamente de lugar. Pensou em acender de novo a sua
lanterna mas sentiu um frio a lhe correr pela espinha. De repente viu o sinal.
Do outro lado da estrada, a uma certa distância, por trás de uns arbustos, pôde
ver, por três vezes seguidas, a mesma luz como se fosse um grande vaga-lume.
Respondeu e esperou. Logo em seguida percebeu que um pequeno vulto surgia
detrás do mato rasteiro e caminhava em sua direção. Quando chegou bem perto
dele, Giacomo pôde notar que se tratava de um homem idoso e baixote, vestido
dentro de uma roupa escura como a noite, e com um gorro de lã azul marinho por
sobre a cabeça. Seu rosto, parcialmente coberto por longas barbas brancas,
apresentava uma pele queimada pelo sol, marcada pelo tempo e cansada de
desilusões.
-
Monsieur Spata? - perguntou o recém-chegado.
-
Sim, quem é o senhor? - falou Giacomo, no mais puro francês.
-
Vim a mando do Dr. Louch. Ele não pôde vir mas posso lhe garantir que o senhor estará
seguro em minhas mãos.
-
Ótimo! Já estava começando a duvidar de minha segurança. Quando vou ver o Dr.
Louch?
-
Talvez amanhã. Está aqui há muito tempo?
-
Há uns quarenta minutos, mais ou menos, e não nego que já estava começando a me
preocupar.
-
Estive aqui antes mas tive que me afastar do local, pois dois motociclistas
alemães estiveram rondando esta área durante algum tempo. Sabe andar de
bicicleta?
-
Sei, por que?
Trouxe
duas. Moro a uns três quilômetros daqui e o senhor terá que pernoitar na minha
casa.
-
Só terei prazer com isso, e muito obrigado por ter vindo me receber.
-
O senhor, a mim, não tem o que agradecer. Se alguma dívida tiver, será com o
Dr. Louch. Vamos andando em direção de onde vim. Ali, por trás dos arbustos,
deixei as duas bicicletas.
Ao
olhar as bicicletas, Giacomo entendeu o ruído que ouvira momentos antes, e que
não conseguira identificar.
Monsieur
Rocheteau, seu anfitrião, era um homem amargurado, rústico, de poucas palavras,
mas muito hospitaleiro. Vivia da pesca, humildemente. Tinha um pequeno barco
nos fundos de casa e, ao lado dele, sobre um cavalete, um velho motor de popa
quase obsoleto que raramente era usado ou por falta de peças, ou por ausência
de combustível. O velho pescador tinha que buscar o sustento, seu e de sua
família, com o auxílio dos remos.
A
casa, de construção antiga, era pobre e estava mal conservada, mas, apesar
disso, era agradável e simpática. Havia uma grande sala com uma pequena lareira
no centro, uma cozinha, um banheiro e três pequenos quartos construídos em
meia-água.
A
esposa e cinco filhos, sem contar os dois que morreram, constituíam a família
de Monsieur Rocheteau. Àquela hora estavam na casa, com eles, um casal de
gêmeos de 7 anos, considerados temporãos, e a filha Ondine de 18. Da filha mais
velha evitou comentar, dizendo apenas que não morava mais ali, e falou que
tinham um filho homem que estava servindo ao exército e que por lá raramente
aparecia.
O
trabalho pesado e a pobreza embruteceram Ondine, que aparentava ter mais idade.
Apesar das roupas grosseiras e da fisionomia cansada, podia-se notar que por
trás de toda aquela aparência desleixada se escondia uma bonita moça, com seus
olhos graúdos, claros e expressivos e uma pele morena, bem bronzeada pelo sol
da região. Tinha um corpo aparentemente bem feito, mal realçado por um vestido
comprido de fazenda pobre e pesada. Giacomo a observava enquanto ela, em
silêncio, arrumava a mesa.
Madame
Rocheteau na cozinha preparava alguma coisa, quando seu marido, que tinha se
ausentado por instantes, retornava à sala.
-
Suas roupas ainda estão molhadas - falou à Giacomo, ao entrar. Vista estas
aqui; são de meu filho. Ele tem o seu corpo.
-
"Merci, monsieur". Não precisava se incomodar.
Giacomo
só se deu conta de que estava com fome, ao sentar-se à mesa. Tomou uma
deliciosa sopa de cebola, comeu pão de centeio, queijo e bebeu uma caneca de
vinho. Ondine serviu a mesa sem tirar seus olhos graúdos do visitante e, sempre
que podia roçava seu corpo no dele. Monsieur Rocheteau lia jornal, sentado numa
espreguiçadeira, enquanto fumava seu cachimbo. Ele usava um fumo muito
ordinário que exalava pela sala um cheiro forte e desagradável. Ao seu lado,
sentada numa poltrona esburacada, sua mulher cerzia meias de lã. As atitudes
provocantes de Ondine, a princípio discretas, passaram a ser acintosas e
Giacomo já não se sentia tão à vontade. Ele podia jurar que os pais da jovem
também estavam notando. Ela insistia em lhe servir mais vinho e ele, por
educação, acabava aceitando. Sempre que se debruçava para encher a caneca do
visitante, Ondine roçava os fartos seios no ombro do rapaz. Este, ao perceber
que seu anfitrião cochilava vez por outra em cima do jornal, resolveu falar:
-
Não poderia ter melhor acolhida. Na verdade não encontro palavras para
agradecer a farta refeição que me foi servida e tudo o mais que fizeram por mim
até aqui.
Houve
um silêncio constrangedor e, diante disso, Giacomo resolveu continuar falando,
exercitando com isso o seu francês correto e fluente:
-
Lamento o trabalho que estou dando e, se me permitem, gostaria agora de
descansar e deixar que vocês descansem também.
-
Um pedido de Dr. Louch para nós é uma ordem - falou por fim Monsieur Rocheteau.
Seu quarto já está arrumado e daqui a poucas horas o céu estará clareando. Hoje
o dia foi muito extenso e cansativo e todos nós estamos precisando de um bom
sono - e falando para a filha, acrescentou: - Mostre a ele os aposentos,
Ondine.
Ela
o levou até o quarto do irmão, que ficava nos fundos da casa. Era o menor dos
três e tinha uma pequena janela que dava para o quintal. Ondine ocupava o
quarto do meio, com os irmãos gêmeos, e seus pais ficaram com o primeiro e mais
espaçoso. Ela acendeu uma luz na cabeceira da cama, puxou as cobertas e
entregou a Giacomo uma toalha limpa. Antes de sair falou pela primeira vez
naquela noite:
-
Se estiver precisando de mais alguma coisa é só falar - e acrescentou com
malícia e voz suave - durmo no quarto ao lado e tenho o sono leve. Vou deixar a
porta encostada para o caso de precisar de mim. Boa noite.
Aquele
dia fora para Giacomo o mais longo e emocionante de toda a sua vida. Ainda
excitado com tudo o que lhe ocorreu, exausto e tonto de vinho, não conseguia
pegar no sono. Agitava-se sob as cobertas na tentativa inútil de ordenar os
acontecimentos daquelas últimas 24 horas. Os fatos foram tirados da ordem por
sua cabeça que rodava e embaralhava tudo. Entre uma imagem e outra surgia a de
Ondine e ele só foi perceber que, dentre as várias aparições, uma delas era
realmente verdadeira, quando a jovem se meteu por baixo das cobertas e tocou
seu corpo no dele.
-
O que está fazendo aqui? - perguntou Giacomo, como se estivesse falando a um
fantasma.
-
Vim completar as honras da casa - sussurrou Ondine.
-
Você está louca? Volte já para o seu quarto. Preciso dormir...
-
Eu sabia que você ainda estava acordado. Se não fosse esta certeza, não teria
vindo.
-
Como pôde ter certeza disso?
-
Senti que você estava muito tenso, e sei que pessoas assim nesse estado
precisam de algo para relaxar.
-
Já imaginou o que será de mim se seus pais perceberem o que está acontecendo?
-
Não se preocupe. Eles têm o sono muito pesado, e afinal nós não vamos fazer
tanto barulho assim, não é?
-
Que tal se deixarmos para discutir esse assunto amanhã, heim?
-
Em tempo de guerra não se deve fazer planos para o futuro, mesmo que esse
futuro esteja bem próximo. Cada momento deve ser vivido com a maior intensidade
porque o amanhã é incerto.
-
Hoje já vivi todos os momentos que tinha direito, e posso jurar que serei incapaz
de viver mais alguma coisa sem antes dormir um pouco. Mas não se preocupe, pois
posso lhe garantir que não permitirei que acabem o mundo antes de eu ver Paris,
e de nos dar uma nova oportunidade.
-
Não haverá uma nova oportunidade. Você deverá partir pela manhã e provavelmente
eu jamais o verei. Só temos esta noite.
-
Noite? Daqui a pouco amanhece e eu estou exausto!
-
Sempre ouvi dizer que o homem italiano é o melhor amante do mundo e você não
vai querer me decepcionar agora, não é?
-
Não acredite em tudo que ouve. Nós exportamos esta imagem para o resto do mundo
mas, creia, é pura propaganda... De mais a mais, na situação em que me
encontro, não posso ser melhor do que ninguém em coisa alguma...
-
Saberei dar os descontos necessários, "mon amour". Relaxe-se e deixe
que eu faça tudo por nós dois.
Ondine
não parou um só momento de acariciar suavemente o corpo de Giacomo, por sob as
cobertas, enquanto falavam. Ela não usava nada por baixo do longo camisolão que
vestia. O carinho e o efeito do vinho foram minando as suas já enfraquecidas
resistências e ele acabou por se entregar passivamente, a princípio. Embora
sabendo que estava abusando da confiança e da hospitalidade dos donos da casa
achou que seria tolice resistir. Logo depois que se fez silêncio, Giacomo ficou
fortemente excitado. Beijaram-se como se o amor fosse um sentimento capaz de
surgir, em toda a sua plenitude, de um momento para o outro. Ondine rolou na
cama e tomou posição de joelhos, por cima do corpo dele. Da pequena janela,
através de um vidro partido, entrava o vento frio da madrugada. Ondine montou
lentamente e fechou os olhos. Naquele momento imaginou estar na praia,
cavalgando sobre um lindo corcel, com a forte brisa marítima a esvoaçar os seus
longos cabelos. O roçar dos sexos e as respirações ofegantes povoavam o quarto
de ruídos mas, para Ondine, o que ouvia, era o mar em fúria batendo contra os
rochedos. De repente o corcel tropeçou num lençol de água e os dois corpos
rolaram pela praia. Naquele momento ela confundia unhas afiadas com areia
áspera, suor com água salitrosa, cheiro de sexo com maresia e orgasmo com
espuma. E juntos, a um só tempo, soltaram um longo e abafado gemido.
Ondine
acendeu dois cigarros, colocou um entre os lábios de Giacomo e falou:
-
Estou feliz por dar a você a minha primeira noite de amor.
Sobressaltado,
Giacomo sentou na cama, num movimento rápido.
-
O que está tentando me dizer?
-
A pura verdade...
-
Quer dizer então que você era...
-
Virgem? - completou Ondine a pergunta. Não seja tolinho “mon amour”, e não
deixe que uma preocupação estrague esse nosso momento de felicidade...
-
Você ainda não me respondeu...
-
Só o fato de você não ter notado a diferença me surpreende e me envaidece.
Claro que sou mulher. Os soldados nazistas me descobriram pouco tempo depois de
chegarem por aqui. Fui violentada por três brutamontes arianos e consegui
esconder de meus pais, até hoje, esse triste acontecimento. A partir do momento
em que soube que estava para chegar, e do objetivo de sua viagem, comecei a me
interessar por você. Confesso que tive medo ao me por em seus braços. Medo de
que estivesse morta para o amor, mas você me fez vibrar de prazer e me
proporcionou um momento de indescritível emoção. Jamais em minha vida poderei
esquecer esta noite, "mon amour", e obrigada por me ter restituído à
vida.
Sem
dizer uma só palavra, Giacomo tomou Ondine em seus braços e a beijou. Foi um
beijo despido de sexo e revestido da maior ternura. Ao mesmo tempo em que
Ondine, em passadas curtas e macias, passava pela porta e deixava o quarto, o
primeiro raio de sol da manhã penetrava pela janela, suavemente.
Para
Giacomo aquele dia, além de longo e emocionante, tivera um final surpreendente.
Ele
só foi acordar às dez horas da manhã, com alguém batendo em sua porta.
-
Pode entrar - falou depois de bocejar e esfregar os olhos.
Num
instante surgiu diante dele, imaculadamente de branco, a figura de Dr. Louch.
Depois de um abraço, carregado de emoção, falou o doutor:
-
Vim lhe buscar. Estou com uma ambulância estacionada aí fora e um pequeno problema...
-
Qual é o problema?
-
O motorista...
-
O que tem ele?
-
Não o conheço. O motorista que vinha comigo até aqui me era de inteira
confiança, mas foi designado para um outro serviço de emergência e não pôde
regressar ao hospital até a hora marcada. Na impossibilidade de esperá-lo por
tempo indeterminado, devido a outros compromissos já assumidos por mim, peguei
o primeiro que encontrei em disponibilidade e vim.
-
Esse incidente pode alterar os nossos planos, não?
-
Um pouco. A partir deste momento, você é um velho conhecido meu que está com
uma forte crise de apendicite e mal pode se locomover.
Enquanto
conversavam, Giacomo percebera que alguém já tinha estado ali em seu quarto,
pois suas roupas estavam secas e passadas a ferro, sobre uma cadeira, e em cima
de uma pequena mesa colocaram uma grande jarra de água e uma bacia. Enquanto
ouvia Dr. Louch o instruindo a respeito de como deveria proceder, lavou o
rosto, escovou os dentes e vestiu-se rapidamente. Só não se barbeou para não
tirar do rosto aquela expressão abatida que sempre fica em quem tem a barba por
fazer. Ao se olhar no espelho pôde comprovar: a aparência condizia com o tipo
que teria que representar.
Naquela
hora a família Rocheteau estava distribuída em atividades diversas. O velho,
que saíra cedo para pescar, deveria estar na cidade comprando mantimentos para
a casa; a mulher lavava roupas no quintal, depois de ter cuidado da pequena
horta e da criação que era constituída de uma cabra de leite, um casal de
porcos e algumas poucas galinhas; o casal de gêmeos, com a natural curiosidade
infantil, rondava a ambulância na porta da rua e finalmente, Ondine, na
cozinha, preparava o almoço. Giacomo estava acabando de passar o pente nos
cabelos quando ela surgiu na porta do quarto, empunhando uma bandeja com o seu
desjejum. Ele não conseguiu disfarçar o espanto diante de tamanha
transformação. Não, aquela não era a mulher que estivera em seus braços a
poucas horas atrás. Era uma menina! Ondine vestia uma saia rodada, de fazenda
leve e florida. Usava uma blusa verde, de alças, com acentuado decote. Tinha os
cabelos presos por uma fita também verde e um tom levemente rosado nos lábios.
Além de toda aquela expressão de felicidade, ela trazia um brilho de vida em
seus olhos.
-
Dr. Louch me disse que você está muito doente e precisa de se alimentar - falou
Ondine ao entrar, piscando os olhos para o doutor. Me parece que você teve um
sono muito agitado esta noite...
-
Por que?
-
Do meu quarto ouvi muitos ruídos vindos daqui. Teve algum pesadelo?
-
Não foi bem um pesadelo, foi um sonho. Um lindo sonho, por sinal - falou com
malícia e um sorriso no olhar.
Sentindo
que havia algo diferente no ar, Dr. Louch deixou os dois a sós e foi até os
fundos da casa, para cumprimentar Madame Rocheteau. Enquanto tomava o café,
Giacomo conversava com Ondine.
-
Quase não a reconheci, há pouco, quando entrou aqui. A blusa, a saia, esta fita
em seus cabelos, devolveram a você a juventude perdida. Você está linda!
-
Pouco adiantaria as roupas e os cuidados que tive com a minha aparência, se não
estivesse me sentindo bonita por dentro, como realmente estou.
-
E por que então se arrumou desse jeito?
-
Porque tive receio de que você não enxergasse o meu interior e quis que levasse
de mim a melhor imagem. Quero que saiba que foi você quem me transformou,
devolvendo-me a alegria de viver.
-
Gostaria de lhe dizer, Ondine, que sempre que puder...
-
Não me prometa nada, chéri - interrompeu Ondine. Você aqui já cumpriu com êxito
sua missão. Será designado para outras, bem mais importantes e arriscadas.
Provavelmente jamais nos veremos mas, se isto acontecer, devemos encarar o
passado como se tivesse sido apenas um lindo sonho, pois só assim vamos ter
condições de ser bons amigos no futuro.
Dr.
Louch pigarreou da porta, interrompendo o beijo de despedida. Giacomo,
contraindo o rosto para simular uma imagem de dor, caminhou até a ambulância
com dificuldade, apoiando-se em Ondine e no velho amigo. À distância, Madame
Rocheteau acompanhava a encenação. Os gêmeos, assustados, nada entenderam da
situação.
-
Adeus, chéri - falou Ondine.
-
Adeus, mon amour - disse o rapaz.
O
motorista ajudou a acomodar Giacomo no interior da ambulância, e ouviu do Dr.
Louch algumas recomendações:
-
Dirija com atenção redobrada. O estado dele merece cuidados especiais. Dei-lhe
um sedativo e me parece que a dor já está cedendo. Talvez precise operar.
Quando chegarmos ao centro da cidade use a sirene, se for necessário.
-
Dr. Louch, sentado ao lado de Giacomo na parte de trás do veículo, falou
baixinho:
-
Sabe dirigir?
-
Sei, por que?
-
Então já está com um emprego garantido. Você vai ser motorista de ambulância e
trabalhar para a Cruz Vermelha Internacional.
CAPÍTULO 19
O jantar de despedida
O
domingo estava iluminado por um sol acanhado e o vento corria livre, levantando
a areia, encrespando as águas e intimidando os banhistas. Poucos, naquela
manhã, se aventuraram a um mergulho no frio mar de Copacabana. Os que ali se
encontravam, na sua maioria, pertenciam aos grupos de frequentadores habituais,
que costumam ir à praia estando ou não fazendo bom tempo. São os que vão para
praticar esportes, fazer exercícios e manter o "papo" em dia.
Afastados
do grupo de amigos comuns, Bill e Fernando conversavam com Regina, que acabara
de chegar.
-
Esta é Regina, de quem já lhe falei - disse Bill.
-
Você não é o assunto predileto dele, é o único - falou Fernando pilheriando e
sorrindo para a moça.
-
Obrigada pela mentirinha agradável, mas se conheço Bill como penso, sei que ele
é erudito e volúvel demais para se prender a um só assunto.
Todos
riram. Regina tirou as sandálias, a calça comprida de jeans e a blusa de malha
que vestia, e despontou dentro de um discreto maiô de duas peças. Resolveu dar
um mergulho, no que foi acompanhada por Bill. Da areia, a uma certa distância,
Fernando observava admirado a disposição dos dois que enfrentavam o frio e o
mar agitado. Entre brincadeiras, mergulhos e troca de carícias, uma onda maior
os pegou distraídos no quebra mar e, aquele beijo que trocavam, tão doce no
início, teve um sabor de sal, espuma e areia. Os dois corpos rolaram juntos até
a praia e, por momentos, ficaram entrelaçados. Aquela cena, que misturou a
violência do mar com a ternura do amor, impressionou Fernando que ficou
imaginando a bela sequência de fotos que poderia ter tirado se estivesse ali
com sua câmera. Aqueles flagrantes, se tivessem sido registrados, ganhariam na
certa o título de "sobreviventes do amor".
Novamente
juntos, os três voltaram a conversar.
-
Tomei a liberdade de convidar Regina para conhecer o seu estúdio, Fernando.
Estou certo de que ela saberá apreciar a sua arte.
-
Fez muito bem - disse o rapaz e, olhando para Regina perguntou: - Você gosta de
fotografia?
-
Muito, mas não creio que saiba distinguir uma foto perfeita de uma outra tirada
com arte.
-
É fácil. Uma fotografia tecnicamente perfeita é aquela em que o objetivo a ser
focalizado aparece bem enquadrado, sem distorções, sombras ou claridade em
demasia. Os modelos e objetos estão sempre estáticos à sua frente, em pose,
esperando por você. Na fotografia artística é diferente, a pose é substituída
pelo instantâneo. Você tem que registrar a ação, o momento, o fato, e só assim
consegue captar os detalhes da vida, tais como felicidade, tragédia, miséria,
dor, o absurdo inusitado. As curiosidades da vida vegetal e animal e toda a
gama de sentimentos e emoções humanas. As posições se invertem. Enquanto na
pose todos esperam por você, no instantâneo, você terá que esperar pelo momento
adequado com a paciência de um espião. Afinal, um bom fotógrafo é aquele que
espiona a vida, usando de todos os meios e artifícios de que dispõe para
surpreender a surpresa: esconderijos, disfarces, teleobjetiva e etc. A emoção
não para, não faz pose, ela acontece e se transforma e você terá que estar
atento para captá-la no seu momento maior.
-
Maravilhosa explicação, Fernando! Vou tentar atingir o sentido mais amplo desta
arte. Até aqui só entendi a fotografia como o melhor veículo de que dispomos
para nos ajudar a recordar uma pessoa querida ou um momento agradável.
-
Você me parece uma moça inteligente e sensível e, se ainda não entende tanto do
assunto assim como diz, ao lado de Bill, em pouco tempo, será uma
"expert".
Chega,
Fernando - falou Bill. Não precisa impressionar tanto a garota com sua lábia.
Não esqueça que ela é minha namorada e eu posso ficar com ciúmes. Que tal se
fôssemos agora até o seu estúdio ?
-
Quando quiserem, ou melhor... eu empresto as chaves e vocês vão na frente.
Tenho um probleminha ainda para resolver por aqui e, logo logo vou me juntar a
vocês, ok?
-
Se quiser, podemos esperar por você - disse Bill.
-
Não há necessidade. Aproveitem o tempo livre e tirem algumas fotos. Tenho
máquina e filmes por lá à disposição e espero que não façam cerimônias. Quero
que se sintam à vontade, certo?
Logo
que entraram no estúdio, Regina perguntou a Bill onde ficava o chuveiro.
Precisava tirar o sal e a areia do corpo. Depois de mostrar a ela o caminho,
ele ficou na sala admirando a aparelhagem. De repente, usando de sua fértil
imaginação, passou a se sentir em "Hollywood", dentro de um grande
estúdio cinematográfico. Imaginou-se na pele de um famoso diretor, pronto para
rodar um importante filme. "Luz, câmera, ação" - pensou. Imediatamente
iluminou o ambiente, pegou a câmera e espalhou as roupas de Regina pelo chão:
calça, blusa e sandália, deixando a última peça próxima à porta do banheiro. Do
lado de fora já se podia ouvir o barulho do chuveiro. Bill começou a disparar a
máquina, focalizando as peças de roupa da moça, espalhadas pelo caminho. Com um
leve toque, a porta que estava apenas encostada abriu-se e ele entrou. Em
seguida, com o auxílio do "flash", voltou a disparar focalizando os
contornos do corpo de Regina, desenhados na cortina plástica do boxe. Ao abrir
a cortina Bill ficou extasiado diante do que viu. Ainda tentou tirar algumas
fotos, mas já não sentia tanta firmeza nas mãos. Seria inútil insistir. Deixou
a câmera de lado, despiu o calção e entrou no boxe. Mais feliz do que surpresa,
Regina o recebeu de braços abertos sob a forte ducha. Bill pensou estar
plagiando aquela cena, de um filme qualquer que vira, e só caiu na realidade
quando se lembrou de Margareth. Cena parecida acontecera com eles e, ao lembrar
dos detalhes, os repetiu. Momentos depois, inteiramente nus e ainda molhados,
corriam pela sala e se atiravam nos almofadões. E ali, quase tudo que poderia
acontecer, aconteceu num abrir e piscar de olhos. Afinal era aquela a primeira
vez, em mais de um ano e meio de namoro, que podiam gozar de toda a
privacidade, e estavam famintos de amor e segurança. Regina, entre gemidos de
prazer, falava ao ouvido de Bill:
-
Me guardei para você. Sou toda sua. Quero que me faça mulher.
-
Não posso.
-
Por que, você não me ama?
-
Justamente por isso é que não posso. Podemos nos satisfazer de muitas maneiras
sem que sintamos remorsos depois.
-
Esta sua atitude é covarde. Você não me ama o suficiente.
-
Pelo contrário. Covarde eu seria se me aproveitasse de sua fraqueza, se não me
importasse com o que pudesse lhe acontecer depois...
-
Espero que esteja falando a verdade. Se amanhã descobrir que você mentiu pra
mim, jamais o perdoarei.
-
Quero que este momento fique marcado em você pela ternura e não pelo
arrependimento.
Antes
que Regina dissesse mais alguma coisa, ele a beijou com emoção.
Bill
atingiu três vezes o máximo do prazer, e Regina perdeu as contas de orgasmos
que teve. Tudo acontecera muito rapidamente, sem pausas, sem intervalos.
Extenuado, Bill levantou-se e, sob o chuveiro, procurou refazer as energias. De
volta à sala, ele encontrou Regina deitada no sofá. Estava ainda despida e, em
seu corpo, apenas uma corrente dourada em volta do pescoço, da qual pendia um
vistoso medalhão. Foi aí que Bill teve consciência do corpo escultural que
tivera em seus braços, e ao seu inteiro dispor, durante duas horas de aflição.
Controlando seus instintos, retomando a calma e o equilíbrio, deu seqüência ao
trabalho que interrompera. Segurando a câmera com mãos firmes, procurou o
melhor ângulo. Regina, a cada disparo do "flash", mudava de posição
como se fosse uma modelo profissional experiente. Assim ela fazia desfilar o
seu corpo com sensualidade, graça e luxúria, ora realçando os seios fartos,
redondos e rijos, ora mostrando as coxas roliças, pernas bem torneadas e os pés
delicados. De bruços, exibia as nádegas divinas e suavemente empinadas e,
virando-se de frente apresentava, abaixo da planície, a pequena elevação
coberta por uma grama castanha e espessa, que cobria parcialmente e envolvia em
segredos e mistérios, o caminho do tesouro proibido.
Bill
sentia as pernas trêmulas. O esforço que fizera para manter intacta uma frágil
membrana, o deixara naquele estado. Sabia que o que sentia não era um simples
cansaço físico. Mas, diante das provocantes poses de Regina, novamente se
excitou, suas reações invadiram suas reflexões e, aos poucos, lentamente, ele
se sentiu ressuscitar das cinzas. Regina, ao perceber, concentrou toda a
luxúria em seus próprios olhos, e seus lábios umedeceram. Mais uma vez a câmera
foi abandonada, passando do plano principal para um outro sem importância.
Jogada num canto qualquer da sala, ela se conformou em ser apenas uma
testemunha cega de uma cena delirante. Bill tentou se mover mas foi Regina quem
se antecipou e tomou as iniciativas. Levantando-se de um salto, atirou-se sobre
Bill e o jogou em cima dos almofadões. Dobrou o corpo sobre seus joelhos, e com
a ponta da língua percorreu todo aquele corpo moreno, atlético e musculoso.
Bill, surpreso e embevecido, fechou os olhos e sentiu aqueles lábios macios a
morder a sua carne, a lamber seus músculos, a beijar seus nervos e a sugar seu
néctar. E depois, só restou o silêncio.
Deixaram
o apartamento antes de Fernando aparecer. Na rua, Bill tranquilizou Regina:
-
Não se preocupe com as fotos. Ninguém as verá. Eu mesmo as revelarei.
Em
seu penúltimo dia no quartel as brincadeiras foram inevitáveis. No entanto,
seus companheiros nada fizeram que o prejudicasse. Bill era muito querido e
respeitado na tropa. Dias antes, fora convidado pelo Coronel Carneiro, para
naquela noite jantar com ele em sua casa. Chamado ao gabinete do seu
comandante, ouviu dele palavras elogiosas:
-
Você foi um soldado exemplar e, em todo esse tempo em que sou militar, quero
que saiba que não tive ordenança melhor. Vou sentir a sua falta, mas isso faz
parte de nossa rotina. Cada ano transformamos crianças grandes em homens de
verdade, dando-lhes noções de dever cívico e de amor à pátria. Transformamos
gente raquítica em atletas fortes e bem nutridos. Cuidamos tanto do seu físico
como de seu espírito. Se souberem usar, na vida civil, os ensinamentos que
durante dois anos aqui adquiriram, estarão todos aptos para desenvolverem com
eficiência qualquer tipo de atividade. O corpo são e a mente sã, aliados à
disciplina, formam o maior conjunto de virtudes do homem, capazes de levar
qualquer cidadão ao êxito. Você será um vitorioso, e eu aposto em seu sucesso.
Bill
emocionou-se com aquele pequeno discurso e, ao mesmo tempo, sentiu-se um pouco
envergonhado. Afinal ele não fizera por merecer tanta confiança assim.
O
jantar não poderia ter sido melhor: um saboroso risoto de camarão com batata
palha e salada, regado a vinho e refrigerante. A empregada serviu à mesa, de
uniforme, e todos estavam vestidos como se fossem comer no mais fino dos
restaurantes. Depois de servida a sobremesa, foram para a sala de estar esperar
pelo café. Em dado momento, Bill
percebeu que o Coronel fazia um sinal qualquer para a filha. Esta, ao entender
o pai, saiu da sala por instantes, retornando minutos depois, com um pequeno
embrulho nas mãos.
-
Queremos que receba esta lembrança como prova de nossa amizade e gratidão -
falou Regina para Bill.
O
rapaz desembrulhou com cuidado, mostrando-se surpreso com o valioso relógio
folheado a ouro que recebeu, e logo o colocou no pulso.
-
Esperamos que ele o acompanhe nos principais momentos de sua vida - continuou
Regina - e assim tenha mais um motivo para se lembrar de nós.
-
As atenções e o carinho que recebi durante todo esse tempo de convivência,
amiga e afetuosa, seriam o bastante para me deixar grato pelo resto de minha
vida. Se alguma coisa fiz, de bom, foi apenas para retribuir o muito que
recebi. Agradeço de coração o presente, mas quero deixar bem claro que não
precisaria ter um objeto tão valioso comigo para me lembrar de vocês.
No
olhar de Regininha, o desejo de beijá-lo; no olhar de Margareth, o orgulho pelo
desempenho hábil e cavalheiresco de seu aluno; no olhar do Coronel, a gratidão
por tudo de bom que Bill fez por sua pequena família.
-
Você merece, meu filho - falou o Coronel. Em todo o tempo que estive ocupado,
ou viajando, você soube prestar diversos favores à minha esposa e à minha
filha. Seus serviços foram eficientes. Seu apoio e companhia, nas horas
difíceis, inestimáveis. Portanto, só temos o que agradecer. Além do mais, quero
que saiba que estou a par de seu namoro com Regininha e faço muito gosto com
isso. Dou minha permissão para que venha falar com ela nos fins de semana, e se
já está pensando em cuidar de seu futuro imediatamente, procure o meu irmão
nesse endereço - entregou a Bill um cartão. Já falei com ele a seu respeito e,
estou certo de que não só vai empregá-lo, como lhe oferecer todas as condições
para seu progresso na empresa. Tudo irá depender de você.
-
Agradeço mais uma vez e quero que esteja certo de que, a qualquer momento que
eu precisar, farei uso deste cartão com todo o prazer. Vou parar um pouco para
pensar. Estou muito confuso, cheio de dúvidas, e não quero tomar uma decisão
precipitada que faça com que eu venha a me arrepender depois.
-
Bem pensado, meu rapaz - falou o Coronel.
-
Meu pai deseja que eu vá trabalhar com ele - continuou Bill. Tenho ainda meus
estudos para concluir. Vou pensar em tudo com muito carinho, Coronel, e pode
estar certo de que decidirei pelo o que achar melhor.
-
Ótimo! Assim é que se fala. E agora que me diz de esticarmos esta noite?
-
Como assim? - perguntou Bill.
-
Há muito tempo que não levo minha mulher para dançar, e se não se importa de
dormir um pouco mais tarde, poderíamos ir a uma boate, que me diz?
Houve
um momento de silêncio. Nos rostos de Margareth e Regina, uma radiante
expectativa.
-
Acho que não estou preparado para isso esta noite, senhor.
-
Não se preocupe. As despesas correrão por minha conta. Você é meu convidado.
Passamos por sua casa, e esperamos no carro que você suba e troque de roupa, se
assim o desejar. Que tal?
-
Está bem - falou Bill com convicção. Afinal, não é todo dia que se deixa a vida
militar...
Na
boate, Bill dançou com Regina e com Margareth e, pela última vez, sentiu a
maciez e o calor daqueles corpos.
CAPÍTULO 20
Gênova
Era
pouco mais de onze horas da manhã seguinte, quando o radiotelegrafista de bordo
comunicou a Angelo, na torre de comando, ter recebido uma mensagem estranha:
-
Comandante, acabo de captar uma mensagem que confesso não entendi...
-
O que dizia? - perguntou Angelo, secamente.
-
Apenas duas palavras que foram repetidas três vezes: MERCADORIA ENTREGUE.
-
Também não entendi, mas não se preocupe. Quero crer ter havido um engano
qualquer. Esta mensagem deve ter sido endereçada a outro barco. Na verdade isto
está me cheirando a contrabando.
O
assunto morreu ali e Angelo acabou sorrindo, assim que seu radiotelegrafista,
com uma cara de idiota, deixou a torre.
O Gina D'Oro, naquela altura, estava em manobra de pesca próximo da
localidade de Alassio. Tranquilizado pela mensagem recebida e satisfeito pela
pesca realizada Angelo deu a ordem de regresso e, pouco tempo depois, seu belo
pesqueiro atracava no porto de Gênova com seus porões abarrotados.
Dona
Benedetta, que soubera momentos antes sobre a chegada do Gina D'Oro, já estava
no escritório do genro quando este chegou. Ela, assim que soube das notícias,
deixou cair duas lágrimas de seu rosto: uma de paz e a outra de saudade.
Naquele momento, Angelo combinou com a sogra como dariam, em duas versões
distintas, a notícia do desaparecimento de Giacomo:
-
Para as autoridades italianas terei que comunicar o desaparecimento, conforme o
meu registro no livro de bordo. Para o meu sogro, teremos que nos arriscar e
contar uma parte da verdadeira história. Diremos que Giacomo fugiu sem que
alguém visse e pudesse evitar, mas que já nos chegaram notícias de que ele está
bem e em segurança. Pediremos ao velho Spata que nos prometa sigilo absoluto
sobre o fato, pois caso contrário, poderá por em risco não só a nossa segurança
como a de toda nossa família. Para todos os efeitos, a notícia do
desaparecimento deverá prevalecer oficialmente. Deus queira que meu sogro
entenda que esta é a melhor maneira de aceitarmos o fato - concluiu Angelo.
Dona
Benedetta escolhera as palavras certas para contar ao marido o acontecido.
Mesmo cercando a notícia de todo o cuidado, o velho não se conformou ao
ouvi-la. O choque causado o levou à cama, deixando-o seriamente enfermo. Tempos
depois, ao se recuperar, Giuseppino Spata não voltou a ser mais o mesmo homem. Deixou
de sorrir e passou a falar pouco. Tinha os olhos sempre distantes e as palavras
amargas.
-
Preferiria que Giacomo tivesse morrido por nossos ideais, a estar vivo como um
covarde ou um traidor - falou certo dia, ao ouvir o nome do filho.
Se
para as autoridades italianas Giacomo estava oficialmente morto, para o velho
Giuseppino Spata, seu pai, sentimentalmente Giacomo morrera também.
Paris
O
prestígio de Dr. Louch era impressionante. Suas ligações com gente importante
lhe davam condições de executar um trabalho eficiente em prol da Resistência.
Poucos dias se passaram após a chegada de Giacomo à França, e já ele estava
empregado como motorista da Cruz Vermelha. Mediante tal função, transitava
livremente por todo o território francês. A bem da verdade, os riscos sempre
existem em tempo de guerra, e surgem quando menos se espera, mas Giacomo tinha,
a seu favor, não só a cobertura de uma famosa entidade internacional, como
também a nova identidade que adotara, para lhe darem certa tranquilidade. A
falsificação de seus documentos não poderia ter ficado mais perfeita. Constava
em seus papéis ser ele francês, nascido em Paris, e filho de pais italianos.
Aos quinze anos sua família mudou-se para a Itália, e lá ele completou a sua
educação. Com a morte dos pais, há dois anos atrás, resolveu voltar e tentar a
sorte na França, sua verdadeira pátria. Diante desses fatos, era fácil explicar
porque falava bem os dois idiomas, e porque também esquecera o seu sotaque
parisiense.
A
pessoa encarregada de falsificar os documentos de Giacomo descobriu que, num
bairro pobre de Gênova, um miserável casal tivera morte misteriosa e deixara um
único filho que mais tarde foi dado como desaparecido. Assim surgiu Giacomo do
desconhecido, com novo nome e parentesco. Existia ainda uma série de
acontecimentos forjados, para justificar sua estada no país gaulês, há mais de
ano e meio como, endereços, atividades, etc. De acordo com os seus documentos,
Giacomo dera entrada na França muito tempo antes dela ter sido invadida, mas na
verdade chegara há pouco mais de quinze dias.
O
batismo de fogo de Giacomo se deu no pequeno sítio, em "Gréteil". Ali
ele foi apresentado a Pierre e sua turma, por Dr. Louch.
-
Podem confiar no rapaz - falou o velho médico. Esse eu conheço desde menino. É
valente, inteligente e de toda a confiança. Está aqui para somar e reforçar
nossas fileiras. Será mais uma peça importante para a nossa engrenagem.
Giacomo
foi aprovado com louvor. Não poderia haver pessoa mais gabaritada para indicar
alguém, ao grupo, que Dr. Louch. Pierre era o único ali que sabia de toda a
verdade a respeito do italiano. Dr. Louch lhe contara tudo nos mínimos
detalhes, e ele, Pierre, se impressionara favoravelmente com a história. Para o
jovem líder, Giacomo já era um herói em potencial. Seu desprendimento, sua
obstinação, sua renúncia, eram fatores decisivos para fazê-lo merecedor da
admiração e do respeito de Pierre. A amizade entre os dois nasceu rapidamente.
Pierre já estava restabelecido do ferimento no ombro e, ali, naquele momento,
planejava novos atentados. Sugestões eram dadas, informações eram prestadas e
todos participavam das discussões, exceto Giacomo e Dr. Louch, que sentados
lado a lado, apenas observavam. Ouvindo os debates, Giacomo pôde compreender
porque Pierre assumira a posição de liderança do grupo. Com que entusiasmo,
determinação e objetividade ele falava. Com que facilidade ele transmitia, ao
mesmo tempo, força e coragem, paciência e resignação. Pierre não se impôs ali
pela força física, e sim por sua inteligência e comunicabilidade. Foi eleito
líder democraticamente, por seus méritos pessoais.
Durante
o período em que estivera se recuperando do ferimento, Pierre chegara a
preocupar um pouco seus companheiros. Mudara a forma de comportamento. Adotara
um olhar triste e ausente. Falava pouco e sem aquele entusiasmo habitual. O afastamento temporário
o deixara nostálgico e sentimental. Sentia saudades da família e dela há muito
não recebia notícias. Nada sabia ainda do que acontecera à sua irmã Germaine,
mas um pressentimento estranho, de que algo não ia bem, não o deixava em paz.
Foi preciso que alguma coisa diferente, como aquela reunião, acontecesse, para
tirá-lo da apatia em que se via possuído. Ali, diante do grupo, com a presença
do Dr. Louch, seu grande amigo e confidente, e de um novo companheiro, ganhava
alma nova, vibrante e entusiasmada. E, naquela noite, ao fim da reunião, falara
olhando em direção a Giacomo:
-
Vamos esmagar as cabeças desses "boches", uma a uma, até devolver a
paz e a liberdade, não só à França, mas como ao resto do mundo!
E
como faziam ao fim de cada reunião, ergueram todos as suas canecas de vinho num
brinde à vitória.
Rio de Janeiro
Que
faria o Coronel Carneiro, a ele, Bill, se visse aquele retrato? Aquela pergunta
ficaria para sempre sem resposta.
Naquele
momento Bill colava em seu álbum a última foto colorida de Regina. Deitada num
sofá e inteiramente nua, tinha ela no rosto uma expressão de sexo inacabado. Um
misto de êxtase, insatisfação e angústia.
Bill considerava aquela foto, além de erótica, uma pequena obra de arte.
Ali, no álbum de retrato, como também no pequeno caderno de capa preta de
couro, com o nome gravado em dourado, ele encerrava duas fases importantes de
sua vida: os 17 anos no mundo do Encantado, e os dois anos de serviço militar.
Bill
resolveu, de uma vez só, dois problemas que estavam pendentes: decidiu voltar
aos estudos, e rompeu seu namoro com Regina. Enquanto estivesse estudando, os
pais lhe garantiriam uma substancial mesada, e assim ele decidiu que só
passaria a trabalhar no momento em que se interessasse por uma profissão.
Fernando,
seu amigo fotógrafo, passou a usar tudo o que se relacionava com fotografia,
como meio de vida. Com a ajuda dos pais montou uma bela e sortida loja no
Leblon, onde vendia de tudo - de um simples filme ao mais sofisticado aparelho
importado. Trabalhava em conjunto com os melhores laboratórios, aceitava
qualquer tipo de serviço fotográfico e, para isso, mantinha a seu lado alguns
bons profissionais. Bill, sempre que precisava de um dinheiro extra, aceitava
um serviço e, assim, não só deixava de sobrecarregar os pais, como ia se
especializando numa profissão.
Seu
último contato com Regina deu-se duas semanas depois da data de sua baixa. O
encontro aconteceu na praia, no lugar de costume, e foi uma despedida fria, sem
um único beijo sequer. Regina chorou muito e não aceitou com facilidade a
separação. Bill procurou adotar a atitude mais cavalheiresca possível no
momento. Ao chegar em casa, depois, falou com Margareth pelo telefone. Ela
entendeu os seus argumentos e lhe desejou muita sorte em seus novos
empreendimentos. Ao Coronel Carneiro resolveu escrever uma carta repleta de
agradecimentos, explicações e desculpas. Estava certo de que, com aquele gesto,
poderia continuar a merecer a confiança e a amizade daquela família. Assim ele
estava tentando ser não só honesto consigo mesmo, como procurando deixar aberta
uma porta para voltar, um dia, se sentisse precisão.
Afinal
Bill sentia-se livre. Livre das limitações da infância e de certo tipo de
ignorância. Livre de compromissos rígidos que o escravizavam. Livre de elos
sentimentais que o aprisionavam. Enfim, ele sentia-se imensamente livre para
gozar, pela primeira vez com toda a liberdade, aquele maravilhoso mundo que se
descortinava diante de seus olhos, da varanda do apartamento de Copacabana.
Daquele dia em diante ele ia passar a curtir, intensamente, a sua nova vida na
zona sul.
SEGUNDA PARTE – CAPÍTULO 21
O início da fase adulta
Bill,
debruçado sobre a grade da varanda do apartamento de Copacabana, sorvia com
prazer o uísque On the rocks, de boa procedência, enquanto admirava o trânsito
agitado de carros e pedestres apressados, a oito andares abaixo de onde estava.
Gostaria de saber para onde iriam, naquela noite de sábado, aquelas miniaturas
de gente que se cruzavam em ritmo acelerado. Parecia que estavam todos
fantasiados a procura de um grande baile de carnaval, fora de época própria.
Aquela era uma das poucas fórmulas que o habitante da Zona Sul encontrava para
exercer o seu direito democrático, abalar os costumes e agredir a sociedade. A
agressão, consciente ou inconsciente, a falta de dinheiro e o mau gosto, eram
ingredientes mais usados para fazer crescer aquele grande bolo de contrastes.
Copacabana
é um bairro que vive em eterna vigília. Por ter uma vida intensa e contínua
favorece os contrastes. Enquanto uma parte de sua população regressa ao lar a
outra sai, à procura de prazer ou da sobrevivência. Diante desse eterno quadro
de desencontros a moda, criada pelos grandes mestres da alta costura, nas ruas
se desintegra e perde todo o seu sentido ditatorial. Assim, a moda imposta por
seus criadores fica restrita a ambientes fechados e proibida de sair às ruas,
sob pena de se desmoralizar e se tornar vulgar. Com isso a moda foi se
individualizando cada vez mais e já se pode ver, a qualquer hora do dia ou da
noite, uma profusão de tipos heterogêneos se cruzando a todo momento.
Naquele
sábado, da varanda de seu apartamento, àquela hora da noite, Bill podia
assistir e compreender aquele curioso desfile. Dali ele podia ver o encontro de
um vestido longo com um biquíni mal disfarçado por uma toalha ou saída de
praia. O esbarrão de um peito nu num outro engravatado e a pisadela que um
chinelo recebeu de um salto alto.
Nas
ruas, o movimento era intenso. Os carros pareciam um bando de gatos selvagens
de várias cores e tamanhos com os grandes olhos acesos, fixos numa só direção,
miando com estridência e angústia, diante de um grande olho vermelho retentor.
Aos sons e aos ruídos constantes juntavam-se as chamadas nervosas dos luminosos
de cores berrantes, que buscavam para si a atenção dos transeuntes. Grande
parte do comércio permanecia aberto e suas vitrines bem iluminadas contribuíam,
também, com o grande espetáculo noturno. Dois tipos de shows diferentes eram
apresentados para plateias distintas. Para o público mais exigente e de maior
poder aquisitivo, eram armados semanalmente, por mãos hábeis de artistas
anônimos, espetáculos de classe, onde a arte e o bom gosto transformavam as
vitrines em palcos a apresentavam poucos personagens bem distribuídos, vestindo
uma ou duas cores combinadas. Os preços eram abstratos e ficavam na imaginação
do espectador, como devem ficar os desfechos de todo espetáculo de arte.
Para
os shows destinados ao grande público consumidor, as vitrines eram
transformadas em autênticos picadeiros, e os sapatos, bolsas, meias, camisas,
vestidos, saias, blusas, calças e cuecas, faziam as vezes dos palhaços,
mágicos, equilibristas, trapezistas, domadores e animais amestrados. Todos
empilhados, nos poucos metros quadrados de uma vitrine, numa profusão de cores
berrantes e contrastantes, se apresentavam a um só tempo, como num autêntico
espetáculo circense. Se numa loja a exclusividade era disputada a preço de
ouro, na outra a quantidade era disputada pelo menor preço.
O
apartamento de Bill ficava no último andar de um edifício de construção
recente, localizado na Av. N.S. de Copacabana, na altura do Posto 4. Com apenas
dois apartamentos por andar e um acabamento luxuoso, o prédio ficava quase na
esquina de outra rua de grande movimento. Seus pais compraram o apartamento na
planta, quando do lançamento do empreendimento, e aguardaram tão somente o
término das obras para efetuarem a mudança. A localização não poderia ser
melhor, pois ficava próximo do maior conjunto de lojas, restaurantes e cinemas
do bairro, e, se cada bairro tivesse coração, era ali onde estavam que o
coração de Copacabana pulsava mais forte.
Bill,
debruçado sobre seu novo mundo, na varanda do oitavo andar, teve as divagações
interrompidas pelo pai:
-
Daqui a pouco os convidados estarão chegando... Você está animado para a festa?
-
Muito pouco. Acho que deveria estar mais.
-
Hoje você completa a maioridade, e esta data será marcante em sua vida.
Descontraia-se e procure fazer este dia feliz.
-
Vou fazer o possível, no entanto gostaria de descobrir antes o motivo que me
fez ficar tenso e preocupado.
-
O que você está sentindo é natural. Eu também me senti assim, quando fiz 21
anos. A partir de agora você será um adulto responsável por seus atos. Assim
você se apresentará diante dos convidados. De repente parece que a gente perde
toda a proteção, como um pinto fora da casca, e se atemoriza diante de um mundo
de deveres e obrigações. Você está preocupado com a nova imagem que terá que
mostrar aos parentes e amigos. Mas não se preocupe, tudo correrá bem e eu
estarei ao seu lado para o apoiar. No seu copo só tem gelo. Vamos até a
biblioteca que eu lhe prepararei uma dose dupla do meu melhor scotch.
Caminharam
juntos para o interior do apartamento, com o pai passando o braço em torno do
ombro do filho. Bill estava bem mais alto que o pai. Com 1,82 m de altura,
corpo atlético e bem bronzeado, cabelos louros, olhos verdes e dentes
perfeitos, poderia ser manequim, modelo publicitário ou até galã de cinema e
televisão.
-
Já decidiu o que fazer do seu futuro, profissionalmente, quero dizer, ou vai
continuar apenas estudando?
-
Vou continuar os estudos, mas pretendo ganhar dinheiro o mais rápido possível.
-
Enquanto estiver estudando não precisa se preocupar com dinheiro.
-
Sei disso, mas já não me sinto bem recebendo mesada. Acho que já tenho
condições de me manter com meu próprio trabalho.
-
Como fotógrafo? - perguntou o pai, com um pouco de descrença na voz.
-
Para começar, dá pro gasto. Sou ambicioso e sei que em breve encontrarei algo
que me dê muito dinheiro.
-
Por que não vem trabalhar comigo, enquanto procura seu ideal? Não só me será
útil, como ganhará bem e terá tempo suficiente para estudar.
-
Se eu soubesse que lhe poderia ser útil há muito que já estava trabalhando a
seu lado. Na verdade nunca acreditei nisso, pois não me sinto capaz de render
bem, fazendo algo de que não gosto.
-
Pois muito bem, não vou mais insistir. De qualquer forma aceite ao menos o que
lhe vou oferecer...
-
O que?
-
As suas despesas com relação aos estudos, livros, roupas e alimentação,
continuarão por minha conta e, os trocados que conseguir com fotografia, você
os empregará nas suas pequenas despesas na rua, tais como divertimentos,
garotas e gasolina para o carro.
-
Que carro?
-
O que comprei para você de presente de aniversário, e que já está na garagem do
prédio. Aqui estão as chaves de seu "fusca" zerinho.
A
surpresa foi grande e a emoção, maior. As chaves tilintaram nas mãos trêmulas
de Bill. Ele beijou o rosto do pai e, sem dizer uma só palavra, saiu correndo
do apartamento em direção à garagem do prédio. Bill examinou cada detalhe do
presente, como uma criança embevecida. O carro era amarelo, sua cor favorita, e
estava todo equipado. Sentado diante do volante, aspirou o ar e sentiu o
inconfundível e agradável cheiro de carro novo.
De
volta à varanda, e agora bem mais feliz, Bill aguardava a chegada dos
convidados. Os pais elaboraram cuidadosamente uma lista onde nomes de pessoas
importantes não podiam deixar de constar. Afinal era aquela a primeira grande
festa no novo apartamento, e todo o cuidado seria pouco para o sucesso do
evento. Até aquele momento tudo tinha corrido na mais perfeita ordem. Os garçons
e os músicos contratados já tinham chegado e o fino buffet já estava pronto
para ser servido. De tudo que fora providenciado, Bill só lamentava o reduzido
número de convites que fora reservado para os seus amigos do Encantado.
Num
abrir e fechar de olhos, todas as dependências do espaçoso apartamento foram tomadas.
Entre os poucos parentes de Bill que podiam comparecer estavam presentes seus
tios Giorgio e Natalina com os três filhos, dois dos quais já casados e, entre
eles, Marcia, sua prima, cada dia mais bonita. Dr. Fagundes, competente
pediatra que acompanhou seus passos até a puberdade, foi até lá com a esposa
para abraçar o aniversariante que também era seu afilhado de batismo. A grande
surpresa da noite, para Bill, foi a presença na festa da tia Carina. Ela viera
da Itália, para conhecer o sobrinho e o Rio de Janeiro também. Entre os poucos
que compareceram vindos do Encantado, incluía-se o Padre Marcelo, Dr.
Demóstenes Bruno, eminente advogado e deputado cassado, e Joana, sua
ex-namorada, agora em toda a plenitude de seus dezoito anos. Veio acompanhada pelo
irmão que era um ano mais velho que ela.
A
grande maioria dos presentes era composta por moradores da Zona Sul. Durante
aqueles quatro anos, não só Bill, como também seus pais formaram um novo e
vasto círculo social. Muitas das pessoas que estavam ali, Bill não as conhecia.
Eram os legítimos representantes do mundo dos negócios. Todos ricos,
importantes, influentes, vitoriosos enfim, dentro de suas atividades. E entre
os prósperos comerciantes, industriais e banqueiros, haviam também militares,
políticos e altos funcionários ligados à fiscalização e à segurança da cidade,
verdadeiros guardiães da nossa sociedade.
Bill,
apesar das várias doses de uísque que ingerira, não estava se sentindo tão à
vontade como gostaria. Não fosse a presença em grande número de seus amigos de
praia, e alguns poucos ex-companheiros de farda, aquela comemoração para ele
seria enfadonha e sem sentido. Por mais que evitasse, Bill não podia deixar de
traçar um paralelo e tecer comparações entre aquela festa e a última realizada em
sua homenagem, na antiga casa do Encantado. A começar pela quantidade de
pessoas presentes, em número infinitamente superior em vista do maior espaço, a
festa realizada no longínquo subúrbio fora totalmente diferente. Lá, a alegria,
a simplicidade e a espontaneidade se faziam sentir a cada momento. A mistura de
raças, credos e condições sociais dera ao acontecimento uma atmosfera de
autenticidade dentro de um arco-íris de sonho e poesia.
Ali,
naquele momento, ao cruzar com aqueles tipos estranhos, Bill não conseguia
sentir o calor humano. Era como se a pele de cada um tivesse recebido uma
camada de verniz, como proteção e, impermeabilizados, tivessem perdido a
sensibilidade. Tudo ali lhe parecia artificial, esnobe e mentiroso. A pompa e a
exibição agressiva davam um ar irreal e falso, como falsas deveriam ser algumas
joias ali exibidas, como falsos deveriam ser alguns títulos ali declarados e,
efêmeros, alguns postos ali representados. Se num palco fora representada uma
comédia alegre e feliz, no outro uma farsa medíocre e melancólica estava sendo
mostrada. Ao ver seu amigo Fernando registrando com sua câmera alguns
instantâneos daquele acontecimento, Bill comparou aquela festa com uma grande
foto tirada em preto e branco e depois retocada a cores, artificialmente.
Bill
só tinha dois desejos naquele momento: sumir ou se embriagar, mas sabia que
jamais poderia fazer tais coisas. Notando que suportaria mais uma dose de
uísque e sentindo a necessidade de bebê-la, correu avidamente os olhos pelo
salão, a procura de um dos garçons. Mas o que seus olhos viram foi Joana, que
ao lado do piano, na outra extremidade da sala, conversava animadamente com um
rapaz, que a princípio não conseguiu identificar. Estava linda, num vistoso
vestido branco que contrastava com sua pele morena jambo. Aquela visão o trouxe
de volta de suas divagações e ele estremeceu. Um sentimento que não conhecia
tomou seu corpo de assalto. Seria ciúmes? - pensou. Em toda a sua vida jamais
sentira algo semelhante. De repente percebeu que toda a sua festa estava ali em
Joana, e antes que roubassem o mais puro elo que o ligava ao seu passado feliz,
Bill tomou-a pela mão e não a largou mais.
Fátima,
a estonteante loura que fora caso amoroso de Bill e Fernando simultaneamente,
estava desacompanhada e a todos os rapazes dava atenção. Fazia daquela festa
seu pequeno reino, e já tinha uma boa quantidade de súditos a seus pés. Ela,
atendendo a um aceno de Bill, foi juntar-se ao aniversariante.
-
Preciso de um favor seu - disse o rapaz.
-
Você manda, bonitão - respondeu Fátima, medindo Joana com os olhos.
-
Aquele rapaz que está ali é irmão desta minha amiga, e por ser tímido e não
conhecer quase ninguém aqui, precisa de auxílio. Noto que ele está muito
deslocado e gostaria que você lhe dedicasse uma atenção toda especial. Garanto
que não vai se arrepender em colaborar.
-
Quanto a isso, não tenho a menor dúvida. Eu sei cobrar os meus favores - disse
ela, piscando os olhos para Bill.
Fátima
acabou se divertindo em encantar o pobre rapaz e em fazê-lo acreditar que estava
caída por ele. Naquele instante tocava uma música romântica e ambos dançavam de
rostos colados. Bill e Joana também dançavam, e divertiam-se com a cena à
distância.
-
Seu irmão entrou em órbita e vai demorar a por os pés no chão.
-
Provavelmente ele irá se machucar, mas espero que saiba tirar proveito dessa
nova experiência. Fátima é do tipo made in Zona Sul, totalmente diferente das
moças com quem meu irmão se relaciona. É melhor que ele sofra desilusões agora
do que mais tarde, quando pensar que já é homem suficiente para assumir
compromissos maiores.
Bill
concordou com um aceno de cabeça, no mesmo momento em que a música terminava.
-
Venha - disse ele, segurando Joana pela mão - vou lhe mostrar os presentes que
recebi.
Joana
não pôde deixar de soltar uma exclamação, ao ver a cama do rapaz repleta de
objetos valiosos. Não foi fácil descobrir, entre tantos presentes, o que ela
dera a Bill. Mas lá estava, entre uma
câmera fotográfica e um barbeador elétrico, uma bonita agenda de capa de couro,
com a seguinte dedicatória: "Não se esqueça de mim. Estou na letra J.
Salve 25 de março de 1967, Joana."
-
Nunca vi um aniversariante receber tantos presentes assim - comentou a moça.
-
E não me pergunte de quem os recebi, pois, para ser sincero, da maioria aí eu já
não me lembro quem deu.
-
Isso é natural. Na certa você irá se lembrar das pessoas que lhe deram os
presentes mais valiosos...
-
Não acredito que me julgue assim - interrompeu Bill. Provavelmente irei me
lembrar das pessoas que me presentearam por amor e amizade e não por dever
social. Quer um exemplo?
Joana
respondeu com um movimento de cabeça.
-
Está vendo aquele barbeador elétrico ali? Pois bem, não sei quem me deu, ao
passo que a câmera ao lado, foi presente de Fernando, meu melhor amigo.
Bill
fez uma pausa, acendeu um cigarro, pôs a mão no ombro de Joana, e quando já ia
saindo do quarto falou displicentemente:
-
Ah... já ia me esquecendo. Gostei muito de uma agenda que ganhei. Foi presente
de alguém muito especial para mim.
Joana
sorriu encabulada.
-
Agora venha. Vou lhe mostrar um presente que não deu para botar em cima da
cama.
Na
garagem do prédio, Bill mostrou orgulhoso o seu automóvel.
-
Entre aí... Você terá o privilégio de ser a primeira pessoa a passear no meu
carro.
Pouco
tempo depois, Bill e Joana caminhavam de mãos dadas pelas areias de Copacabana.
Ela tirou os sapatos de salto alto, e sentiu a fofura da areia sob seus pés. Em
volta dos dois, só o sussurro do vento e das águas espraiadas. Acima deles, só
a lua como guardiã e companheira.
-
Você não deveria ter abandonado seus convidados...
-
Tenho abandonado coisas muito mais importantes nestes últimos anos.
-
O que, por exemplo?
-
Você.
-
Nunca me considerei abandonada. Não nego que no início fiquei magoada, mas logo
compreendi que você não teve culpa.
-
Não tente me defender. Eu sei que fui culpado. Lembro-me que lhe disse que a
distância não mudaria a nossa situação, e naquele momento lhe prometi amor.
-
Amor não se promete; amor se dá. Não, você não teve culpa. Mudaram o seu mundo
de lugar e neste em que você vive, agora, eu não faço parte.
-
Engana-se. Mesmo à distância você nunca deixou de estar presente. Em cada novo
rosto de mulher buscava suas feições, em cada corpo buscava seus contornos, em
cada coração buscava seus sentimentos. Foram buscas inúteis e frustrantes...
-
Sabe porque você não me encontrou? Porque na verdade você nunca o desejou. E
sabe porque lhe perdoei? Porque por um momento me coloquei em seu lugar. Estou
certa de que teria agido da mesma forma, se tivéssemos invertido as nossas
posições.
-
Nisso eu não posso acreditar. Existe uma diferença fundamental entre nós: você
é moça e eu sou homem.
-
Mas somos feitos da mesma matéria: carne, osso e coração. Provavelmente eu
teria passado por outros tipos de experiência, mas a ânsia de liberdade e a
premência de novas emoções teria sido a mesma. Assim, foi muito normal que você
tivesse sentido desejo de conhecer toda a gama do comportamento humano. Aqui,
nesse seu mundo, você encontrará uma variedade de gente disponível para ser
cobaia de seu laboratório de sentimentos.
-
Não posso negar que tenha razão em muita coisa, mas acontece que eu amo você.
-
Talvez até isso seja possível. O que não creio é que seja realmente capaz, no
momento, de ter consciência desse amor. Você vive uma fase em que emprega todo
o seu amor em si próprio. Só depois de adquirir toda experiência necessária
para a vida adulta é que você se sentirá capaz de escolher o melhor caminho.
-
E quando você acha que estarei apto para isso?
-
Só você poderá descobrir. As pessoas são como as frutas: umas amadurecem
depressa, enquanto outras custam a amadurecer. Depende muito da qualidade da
semente, da terra, dos cuidados, etc.
-
E você, como se sente no momento?
-
Com necessidade de aprender um pouco mais, mas consciente do que sou e do que
quero. Pouca coisa mudei, da menina que você conheceu e viu crescer. Sou do
tipo comum, sem segredos e subterfúgios. Daquelas pessoas que põem seus
sentimentos a nu, sem serem propriamente ingênuas. Não possuo anticorpos e
estou constantemente exposta aos vírus do mal, muito embora nada faça para
mudar este meu comportamento.
-
Você me surpreende! Como conseguiu amadurecer tanto, vivendo num mundo mais
simples e limitado?
-
Nós fazemos o nosso mundo. Ele está em nossa mente. Os que vivem limitadamente,
como eu, não são obrigatoriamente ignorantes a respeito do que acontece nos
outros mundos. A teoria às vezes surpreende a prática. Num mundo menor, e mais tranquilo,
temos mais tempo para reflexões. As leis de Deus e as dos homens podem conter
os nossos desejos, frear o nosso corpo, mas jamais conseguem deter a nossa
imaginação.
-
Perfeito. Mas, e eu, que posso fazer para provar que ainda a amo?
-
Não faça nada. O amor é um sentimento simples, espontâneo. O que fizer para
prová-lo será artificial, e perderá o seu valor. Vamos dar tempo ao tempo. Viva
a sua vida e deixe que eu viva a minha.
-
Sei que não tenho o direito de lhe pedir que me espere, mas gostaria de saber o
que vou ter que fazer quando chegar à conclusão de que não posso viver sem você.
-
Se o amor que sinto por você agora for verdadeiro, serei sempre sua. Por isso,
não se preocupe nem com a distância nem com o tempo que irá nos separar mais
uma vez.
-
Eu sinto que estou mudando e tenho medo. Medo de que você não encontre, no dia
em que eu a procurar, o Bill que você conheceu.
-
Por mais que você tenha mudado, e por mais ainda que venha a se modificar, eu
sempre o reconhecerei. Existem as "raízes", das quais nunca podemos
nos livrar. Não conseguimos extirpar de nossas entranhas esta base que nos deu
vida e nos fez crescer. Por pior que sejam os caminhos que tenhamos que
trilhar, por maior que sejam as transformações pelas quais tenhamos que passar,
a vida sempre nos reserva uma oportunidade para voltarmos às nossas origens.
Cabe-nos descobrir o momento, e deixar que o bom senso aproveite a ocasião.
A
brisa marítima esvoaçava os negros cabelos de Joana, e seus olhos graúdos e
escuros brilhavam na escuridão. Fez-se silêncio entre os dois, e pararam de
caminhar. De frente para Joana, com as mãos entrelaçadas nas dela, Bill puxou-a
lentamente em sua direção. Pela primeira vez, naquela noite, seus lábios se
encontraram. A princípio suavemente e, logo em seguida com volúpia. Em
instantes Bill pôde sentir a potência de seu sexo e, ao notar um estremecimento
no corpo de Joana, percebeu que ela já o tinha sentido. Teve desejos de rolar
com aquele corpo macio e cheiroso pela areia, e descarregar nele toda a carga de
seus sonhos eróticos suburbanos, mas se conteve. De repente envergonhou-se de
seus pensamentos e interrompeu o beijo, afastando-se bruscamente daquela carne
tenra e proibida. Pela primeira vez, em quatro anos, Bill pôde sentir a força
de suas raízes. De mãos dadas, e ainda em silêncio, foram caminhando em direção
ao carro, e poucos minutos depois estavam de volta à festa.
Ao
entrar na sala Bill pôde notar que seus pais conversavam animadamente, numa
roda de pessoas onde figuras importantes se destacavam, e ao passar pela
varanda, deu de cara com Fátima e o irmão de Joana entre beijos e abraços.
Discretamente abandonou o local e suspirou aliviado, mas quando já estava certo
de que sua ausência e a da moça não tinham sido notadas, ouviu Fernando falar
ao seu ouvido:
-
Espero que amanhã me conte como foi a estreia do carro.
A
festa terminou, para Bill, no exato momento em que Joana foi embora. Do alto da
varanda ele assistiu a partida dos últimos convidados. Ele sabia que, para os
pais, a festa fora um autêntico sucesso. Para ele fora um pouco nostálgica, mas
soubera tirar um grande proveito. Há muito não tivera tanta oportunidade para
divagar e refletir sobre seus dois mundos diversos. Bill sabia que pela segunda
vez se despedira de Joana, mas não tinha ainda noção de quanto tempo duraria
aquela última separação. Naquele momento ele só tinha duas certezas - que a
amava e que não estava ainda preparado para fazê-la entrar em sua vida. Joana
não cabia naquele mundo em que vivia, por maior que ele fosse. Sabia também que
se no futuro o destino os unisse, ele teria que construir um mundo inteiramente
novo para os dois. Não se sentia capaz de abdicar da liberdade sem fronteira
que divisava a sua frente, nem tampouco estava disposto a viver duas vidas
distintas. Para viver com Joana ele sabia que teria que voltar às suas raízes,
ou então tentar fazer o possível para não se afastar muito delas.
O
apartamento mergulhou no mais profundo silêncio, e Bill só conseguiu ouvir a
voz de sua consciência. Mais tenso do que tonto, não conseguia sentir sono. De
repente, sentindo medo da solidão, serviu-se de mais um drink, e embriagado,
conseguiu desfalecer.
CAPÍTULO 22
Paris, dezembro de 1940
Às
4 horas da tarde de terça-feira, 24 de dezembro, véspera de natal, um caminhão
de entregas de mercadoria parou em frente ao pequeno restaurante da família
Fontaine. Uma grande caixa de madeira foi retirada do seu interior e levada por
dois homens, pela entrada lateral, para os fundos do estabelecimento. Monsieur
Fontaine, surpreso, falou para os carregadores:
-
Deve estar havendo algum engano. Não estamos esperando nenhuma entrega para
hoje.
-
Nós sabemos disso, senhor - falou o mais alto, com nariz de boxer. Este é um
pequeno presente de natal de um de seus fornecedores.
O
velho Fontaine passou a mão pelos ralos cabelos e não pôde disfarçar sua
expressão preocupada.
-
Se for uma brincadeira de mau gosto, garanto-lhes que escolheram o pior dia
para isso. Não posso identificar qual o fornecedor que poderia querer me
presentear...
-
Não se preocupe, senhor - falou o outro, baixote atarracado. Se abrir o
caixote, logo verá quem lhe mandou o presente. O natal é uma data para a
confraternização das pessoas e não para brincadeiras de mau gosto.
Monsieur
Fontaine abriu cuidadosamente o caixote e ficou paralisado com o que viu.
Surpresa e alegria contrairam suas faces e umedeceram seus olhos. Do interior
da grande caixa surgiu Pierre, seu filho. No rosto do rapaz, além da estampada
alegria, uma boa dose de preocupação pela emoção que causava ao velho pai. Os
dois ficaram abraçados em silêncio por um bom pedaço de tempo.
-
Onde está mamãe? Quero vê-la. Como estão as manas Germaine e Noelle? Nunca
pensei que saudade doesse tanto. Perdoe-me a maneira como tive que entrar aqui,
mas acontece que foi a maneira mais segura que encontramos. Sei que estou sendo
procurado, não queria arriscar a minha vida e muito menos a de vocês...
Pierre
falava sem parar e só interrompeu quando a mãe e a irmã caçula chegaram e se
penduraram no seu pescoço.
-
Onde está Germaine?
O
silêncio foi constrangedor. Pierre insistiu na pergunta, e percebeu quando o
pai fez um sinal para sua mãe. Madame Fontaine afastou-se da cozinha, levando
Noelle pela mão. Em pouco tempo seu pai lhe narrara os últimos acontecimentos.
Nos olhos de Pierre, chispas de ódio.
-
Eu vou matá-lo! Prometo ao senhor que vou lhe devolver a nossa Germaine. Aquele
Coronel de merda vai pagar caro a sua ousadia.
-
Nós temos a proteção dele que também nos garantiu a sua vida, Pierre. Se o
matar, todos nós pagaremos por isso. Germaine jamais poderá voltar para nós se
o Coronel for assassinado. Seus passos estão sendo observados e você será o
primeiro suspeito. Pense nisso, Pierre. Enquanto ela estiver com ele, todos nós
estaremos seguros. O Coronel tem sido um inimigo útil.
-
Parece-me que o senhor está achando cômoda esta situação.
-
Os jovens, como você, usam demais o coração. Com o passar do tempo nós
aprendemos a usar mais o cérebro, a razão. No dia em que o Coronel nos roubou
Germaine, tive gana de matá-lo com minhas próprias mãos, mas se o tivesse
feito, você hoje estaria provavelmente morto e toda a nossa família destruída.
Acho bom darmos tempo ao tempo e esperarmos o momento oportuno para agirmos.
Fique tranquilo. Conheço bem a minha filha e sei que todo o ouro do mundo não
será capaz de mudar seus sentimentos. Como prisioneira, ela nunca se renderá e
estará sempre mais livre que seu carcereiro. Ele sim, será um eterno
prisioneiro de sua consciência.
-
Mas só em pensar que a esta hora ela poderá estar em seus braços, me dá repulsa
e vergonha.
-
Repulsa, sim; vergonha, não. O espírito de Germaine continuará imaculado. Ela
cedeu apenas a matéria em troca de sua vida, Pierre, e da nossa segurança. Foi
um ato de coragem e desprendimento. Ela só poderá ser, para nós, um motivo de
orgulho e um exemplo de dignidade. Sua irmã está nesta luta, tanto quanto você,
com o mesmo patriotismo, com a mesma força, com o mesmo ideal. Não importa,
para a França, com que tipo de arma tenhamos que lutar. Lutamos com a arma que
temos nas mãos. O que importa, realmente, é que todo cidadão participe desta
luta, porque o objetivo a alcançar é um só: a nossa liberdade, a nossa vitória.
Aquela
era a maneira com que Monsieur Fontaine extravasava o seu patriotismo. Toda vez
que tinha a oportunidade de usar da palavra, o fazia, inicialmente, em tom
brando e pausado. Aos poucos, porém, ia se emocionando, e sempre acabava
elevando a voz em tom de discurso. Com a sabedoria advinda da experiência que
adquirira ao cabo dos longos anos vividos, ele orientava os mais jovens, e
desta forma encontrava um jeito de participar.
-
O que sabe Noelle a respeito do paradeiro de nossa irmã? - perguntou Pierre,
preocupado.
-
Para ela, Germaine foi morar num hospital. Foi requisitada pelo governo para
servir ao seu país, cuidando dos enfermos.
-
E o que Noelle diz disso?
-
Embora sinta saudades, o que é perfeitamente natural, sente orgulho da irmã, e
diz que quando crescer vai ser enfermeira também.
Os
dois homens que serviam como carregadores eram operários de uma pequena
indústria, no interior, e estavam de folga naquele dia. Eram pessoas de
confiança e, sempre que podiam, colaboravam com os maquis. Naquele momento
estavam no salão do restaurante degustando vinho e queijo, que a eles foi
servido por Madame Fontaine. Ainda na cozinha Pierre tinha novamente toda a
pequena família a sua volta. Surpreendeu a todos quando distribuiu presentes
que trouxera, junto com ele, na grande caixa de madeira. Para o pai, charutos,
para a mãe um lindo xale de lã; e para Noelle, sua irmã caçula, uma boneca de
pano. Quando Noelle se afastou para brincar, Pierre aproveitou para falar, com
entusiasmo, de suas atividades durante aqueles longos meses de afastamento.
Falou da importância da participação de sua turma, da coragem e patriotismo de
seus comandados, e dos futuros passos que pretendiam dar. Omitiu apenas os
verdadeiros nomes daqueles que participavam do grupo, não só por princípio,
como também por desconhecer a maioria deles. Era uma norma, dentro da
organização dos maquis, que seus componentes usassem nomes falsos ou apelidos.
Essa medida tinha como objetivo proteger a identidade de cada um. Se um dos
participantes fosse capturado, por mais que sofresse pressões e torturas,
jamais poderia revelar o que na verdade não sabia. De repente Pierre ouviu,
vindo do salão, uma alegre e conhecida canção francesa cantada em dueto pelas
desafinadas vozes dos falsos carregadores. Aquela era a senha combinada. Algo
de errado deveria estar acontecendo. Mais que depressa entrou na grande caixa e
pediu aos pais que a fechasse. Dois soldados da "SS" saltaram de um carro
militar e, carregados de embrulhos, entraram no restaurante. Um deles, depois
de pousar as caixas envoltas em fino papel de presente sobre uma das mesas, foi
imediatamente em direção aos fundos do estabelecimento. Ao deparar com o casal,
olhou de relance todo o interior da casa antes de falar, como se quisesse se
certificar de que ninguém mais além dos proprietários, estava ali, naquele
momento. Em seguida entregou um grande envelope timbrado com a cruz suástica, e
falou num péssimo francês, como se tivesse decorado apenas aquelas palavras:
-
Sou portador de encomendas de Fraulein Germaine e votos de Feliz Natal, do Alto
Comando Alemão.
O
mensageiro esperou apenas que o cartão fosse lido, para completar:
-
Os embrulhos estão sobre a mesa da sala. Onde quer que os deixe?
-
Não se preocupe - falou o velho Fontaine. Pode deixar lá mesmo.
O
soldado, levantando a perna, apoiou o pé sobre o grande caixote de madeira que
estava no centro da cozinha, e amarrou o cadarço de sua bota. No interior da
caixa, Pierre se esforçava para manter presa a respiração. Naquele mesmo
momento, no salão, o outro soldado aproveitava para examinar os documentos dos
dois únicos fregueses da casa. Tentando disfarçar o medo, dentro daquele
ambiente de angustiante tensão, Madame Fontaine falou para o marido:
-
Vamos até a sala, meu velho. Estou louca para saber o que nossa filha nos
mandou.
-
Ótimo! - falou o soldado, retirando o pé da caixa. Só podemos partir depois que
os senhores examinarem a encomenda. Estas foram as ordens que recebemos.
Em
pouco tempo os embrulhos foram desfeitos, e por mais que tentassem demonstrar
contentamento, a alegria e a felicidade não faziam parte do conjunto de
sentimentos estampados nos semblantes dos pais da jovem prisioneira. Eram
presentes caros, que só poderiam ter sido escolhidos por pessoa de requintado
gosto. Provavelmente, Germaine nem teria participado da escolha de tais
objetos. Na verdade, ela não fora preparada para o luxo e a ostentação.
Algum
tempo depois dos soldados terem partido, Pierre também partiu. Saiu do
restaurante da mesma forma como entrou, embalado, como mercadoria, dentro da
grande caixa de madeira. Monsieur Fontaine ofereceu uma dose do mais puro
cognac à mulher. Ambos sentiam a necessidade de beber algo que os
restabelecesse de tantas emoções. No canto do salão, a nova boneca de pano que
Pierre dera a Noelle estava recostada na parede com o ar triste do abandono.
Nos braços da menina, com os olhos verdes e graúdos bem abertos, a linda boneca
de porcelana, presente da mana Germaine, parecia entender a suave canção de
ninar que Noelle cantava para ela.
Às
21h30min daquele mesmo dia Germaine, já penteada e vestida com um longo e
finíssimo vestido que o Coronel Kurt Staden a presenteara, acabava de se
maquilar, sentada em frente ao espelho da penteadeira, quando ele se aproximou
e a beijou de leve no rosto. De pé, admirando a mulher através do espelho, o
Coronel pôs em volta de seu pescoço uma valiosa gargantilha de esmeraldas.
-
Feliz Natal, meu amor.
-
Desejo a você também, Coronel.
CAPÍTULO 23
Um pouco de saudade e nostalgia
O
Leblon se preparava para receber mais uma noite de sábado, quando Bill entrou
na loja de Fernando.
-
Aqui estão os filmes do casamento - disse Bill, entregando ao amigo um envelope
pardo.
-
Como foi o trabalho? - perguntou Fernando.
-
Correu tudo bem. Acho que consegui tirar algumas fotos muito boas...
-
Foi até bom você me dizer isso, pois quem olhar para essa sua cara fechada só
vai poder pensar que você não gostou do serviço que realizou.
-
Se estou mal humorado, na certa será por outro motivo.
-
Qual? Posso saber?
-
Quando eu descobrir, prometo lhe contar...
-
Pois trate de descobrir logo, antes que este seu mal humor constante venha a
lhe prejudicar.
-
O que você quer dizer com isso?
-
Quero dizer que você tem estado ultimamente assim, e talvez ainda não tenha se
dado conta disso. A turma lá da praia já começou a falar. Alguns já vieram me
perguntar o que está acontecendo com você.
-
Eu não sabia que este meu mau humor já era de domínio público. O que é que você
acha que está se passando comigo?
-
Como eu vou poder saber? Só sei que desde a festa de aniversário para cá, você
não tem sido o mesmo...
-
Você acha isso?
-
Acho, e só não encontro é um motivo que possa justificar sua mudança de
atitude. A festa foi muito boa e bem concorrida. Todos os parentes e amigos que
lhe querem bem, estiveram lá. Você ganhou uma infinidade de presentes,
inclusive um carro novo... O que desejava mais?
-
Talvez eu tenha recebido mais do que merecia, e isso me tenha trazido um
problema de consciência...
-
Não creio nessa hipótese. O mais provável é que você tenha feito uma descoberta
que o esteja preocupando...
-
Qual descoberta? - perguntou Bill, ao mesmo tempo em que nervosamente acendia
um cigarro.
-
Que você já está crescidinho, por exemplo, para fazer e dizer besteiras. Ou
talvez, quem sabe, tenha descoberto algo bem mais importante...
-
O que, por exemplo? - falou Bill, com irritação na voz.
Fernando
fez uma pausa, coçou a cabeça e completou:
-
Vai ver que você está apaixonado por alguém e não quer aceitar o fato...
Bill
deu uma gargalhada forçada e falou:
-
Eu, apaixonado? Só esta sua cabeça oca poderia pensar tal coisa. Pois fique
sabendo que se eu estivesse me apaixonado por alguém, você seria o primeiro a
saber. Nunca houve segredo entre nós, e não seria agora que eu iria esconder um
problema dessa natureza...
-
Nisso eu acredito, mas, suponhamos que você não tenha ainda se conscientizado
do fato. Que não esteja acreditando
nele... Como poderia me falar a respeito de um óbvio que você ainda não
aceitou, hem?
-
Não sou nenhum retardado mental e não acredito que isso que você disse possa
estar acontecendo comigo, mas já que você é o doutor sabe-tudo, poderia me
dizer por quem estou apaixonado?
-
Certeza eu não posso ter, mas quem sabe você não esteja amando aquela garotinha
suburbana? - falou Fernando, com ironia na voz.
-
Não admito que fale assim dela.
-
Assim, como?
-
Com desdém. Eu percebi com que desprezo você usou a palavra
"suburbana"... Pois fique você sabendo que ela não se compara a essas
piranhas que a gente tem fisgado por aí, não, ouviu? Joana é uma boa moça. Foi
a minha primeira namorada e eu gosto muito dela. Não admito que você fale assim
de alguém que mal conhece. É melhor pararmos por aqui.
-
Claro. Não precisamos falar mais nada. Você já me disse tudo. Espero tê-lo
ajudado, pois só foi essa a minha intenção. Talvez agora que você tenha
encontrado o motivo que o tem perturbado tanto...
-
Ora vá pro inferno! - interrompeu Bill, aborrecido, e virando-se caminhou em
direção à porta da rua.
-
Hei, espere um pouco... Aonde vai?
-
Ainda não sei...
-
Apareça mais tarde no bar do Antonio para tomar um chopinho com a turma. Aos
sábados sempre surge por lá um convite para uma festinha. Você está precisando
de diversão...
-
Obrigado por me lembrar, mas já estou crescidinho para saber do que preciso. Se
eu não aparecer mais tarde no "Antonio", me encontro com você amanhã
na praia. Tchau - despediu-se Bill, saindo rápido, porta a fora.
As
primeiras luzes do bairro já estavam acesas. O sol acabara de mergulhar no
Atlântico, mas deixara o mormaço nas ruas envolvendo os passantes. Um bafo de
ar quente saía da boca da noite.
Pelo
primeiro bar que passou, Bill entrou e bebeu uma tulipa de chopp bem gelado,
com um belo colarinho. Em seguida, caminhou até o local onde tinha deixado o
carro estacionado. Abriu a porta, sentou-se ao volante, girou a chave na
ignição, e quando o motor respondeu, arrancou sem saber pra onde ir. Perguntas
e respostas, passado e presente, lembranças e reflexões atormentavam Bill, que
dirigia como um autômato, perdido no tempo e no espaço, e só se encontrava
quando tinha que frear abruptamente, diante de um sinal luminoso em vermelho.
Quatro
anos passaram por Bill num abrir e fechar de olhos. Ele sentia desta forma,
muito embora não tivesse ainda consciência de que esse fenômeno não atingia só
a ele, e sim a todos os seres humanos que transitaram pelos doces caminhos da
juventude. A criança não sente o tempo passar; o velho se arrasta com o tempo,
e o jovem, querendo fazer tudo a um só tempo, quando desperta para a realidade
já não é tão jovem. E quanto mais o mundo crescer e maior for a sua agitação,
mais curtos e rápidos serão os anos da juventude. Os anos do bairro de Encantado
ficaram para trás, como distante ficou deles aquele Bill, garoto suburbano.
Naquele
momento, um Volks amarelo deslizava lentamente sem rumo certo, levando Bill ao
volante. Passara pelo Leblon, Ipanema e Copacabana, e deixara pra trás uma
infinidade de bares cheios de sons e luzes, onde comidas e bebidas com nomes
sofisticados eram servidas a preços salgados. No momento em que colecionava
estas imagens, Bill lembrou do "Cruz de Malta", o barzinho que ficava
na esquina da rua em que tinham morado. Era o último, no Encantado, a cerrar
suas portas, e o primeiro no gosto popular. Enquanto no seu interior os adultos
se serviam de cerveja sempre bem gelada com uma deliciosa linguiça portuguesa
como tira-gosto, nas mesinhas que ficavam na calçada, sob um velho toldo de
lona desbotada, as crianças se deliciavam bebendo refresco de groselha e
comendo sanduíche de mortadela. A velha guarda estava sempre presente para
jogar dama, sueca ou pif-paf, enquanto a juventude por lá se reunia para
discutir futebol e provocar o orgulho lusitano de Seu Manoel. Baixo, troncudo,
careca e bigodudo, conhecido como Seu Manoel da Cruz, era o proprietário do bar
uma figura tradicional do local. De sorriso largo e braços sempre abertos,
sabia receber como ninguém. Com as crianças tinha um carinho todo especial e,
vez por outra, para elas, distribuía balas gratuitamente. Não se importava em
fiar aos fregueses costumeiros e só não dava crédito para cigarros e bebidas
alcoólicas. Intransigente, neste ponto, costumava afirmar que não se devia sustentar
o vício alheio. Só dois assuntos costumavam tirar o seu bom humor: críticas à
sua pátria distante e ao Vasco da Gama, clube de seu coração. Ficava brabo e
não media tamanho, chegando às vias de fato se a provocação partisse de um
marmanjo. Como bom descendente de Camões, tinha uma coragem suicida e não
admitia ser roubado. Nas poucas vezes em que tentaram assaltar seu botequim
respondeu às ameaças com um grosso porrete, que tinha sempre escondido sob o
balcão. Dessa forma, evitando os assaltos, punha ainda a correr os assaltantes.
Em decorrência de tais fatos, seu prestígio aumentou, e sua coragem era
decantada em verso e prosa pelos moradores das redondezas. Assim era o mundo do
Seu Manoel da Cruz, no pequeno mundo do Encantado.
Lentamente,
sem perceber, Bill foi pisando com mais força no acelerador e, de repente, como
que por encanto, viu seu carro parado em frente ao "Cruz de Malta".
-
Ó Lúcia - gritou Seu Manoel, em direção da cozinha - vem até aqui, mulher. Vem
ver se o que eu estou vendo é verdade.
A
recepção a Bill foi calorosa.
-
Cresceste bastante, ó gajo. Estás um rapagão. Quase não te reconheci. Quando
desceste do carro, pensei que fosses outro. Que era apenas parecido com um
garoto que aqui vi crescer. O que vieste fazer por estas bandas?
-
Vim para ver se encontro esse garoto.
Seu
Manoel fez uma cara de quem não entendeu, coçou a careca e perguntou:
-
O que queres beber?
Bill
já ia pedindo um refresco de groselha quando lembrou que era maior de idade e
que, aquela era a primeira oportunidade que tinha ali, para matar um desejo de
infância.
-
Manda uma cerveja estupidamente gelada e um pratinho com linguiça portuguesa -
falou Bill, esbanjando prazer.
-
O que está esperando, mulher? Pega lá a cerveja e prepara a linguiça no
capricho que o freguês aqui merece. Traga dois copos em uma porção bem
reforçada da linguiça, porque eu vou fazer companhia aqui ao amigo.
-
Onde está a turma? - perguntou Bill.
-
Ainda é um tanto cedo. Daqui a pouco eles começam a chegar, um a um.
-
O movimento continua bom?
-
Caiu um pouco. Só a velharia continua fiel. A rapaziada está mudada. Nos fins
de semana os jovens não ficam mais por aqui, não. Passam apenas de raspão e
seguem direto para a Zona Sul. Isto aqui, aos sábados, virou ponto de
referência. Eles chegam como se viessem assinar o livro de ponto, se juntam,
formam o grupo, e seguem em frente.
-
E não fica mais ninguém da minha antiga turma?
-
Ficam apenas os que porventura estiverem duros, com os bolsos furados, mas que
sabem que têm crédito na casa. Mas a vida é assim mesmo. Tudo tem o seu tempo
certo, sua época. Eu tive a minha e aproveitei enquanto pude. Como vou poder
concorrer hoje, por aqui, com os bares da Zona Sul? Lá é que está o quente,
como dizem os rapazes. É por lá que estão os cinemas, os inferninhos, as
mulheres... A turma daqui custou a encontrar o caminho da mina, e agora que
encontrou, tão cedo não vai querer largar o filão.
-
E por que você não vende isto aqui e abre um barzinho na Zona Sul? Com esse seu
jeito todo especial de servir, de agradar, tenho certeza de que faria o maior
sucesso por lá.
Nos
olhos do Seu Manoel surgiu um brilho indecifrável e, logo em seguida em seu rosto
despontou um sorriso amargo.
-
Eu já vivi bastante. Quando criança, em Portugal, eu já trabalhava para ajudar
meus pais que eram muito pobres. Vim para o Brasil ao completar minha
maioridade, e aqui fiz de tudo para ganhar a vida. O pouco que ganhava
guardava, pois logo aprendi a economizar. Naquela época podia-se poupar, e eu
colocava minhas economias dentro de uma caixa vazia de charutos, ou dentro do
forro do colchão. O dinheiro podia ficar mofado, mas não perdia o seu valor. E
o mais importante é que o dinheiro ficava em nossas mãos. Só nós poderíamos
tocá-lo, e só a nós ele deveria beneficiar. Hoje eu sei que é diferente e, às
custas do nosso dinheiro, os ricos vão ficando cada vez mais ricos. Bem, mas
isto não importa agora, o que interessa é que pude juntar o suficiente para
comprar esta casa, de sociedade com um patrício. No início ela era pequena, mas
com o passar do tempo, nós a aumentamos. Mais tarde, meu sócio querendo entrar
para outros negócios, me vendeu a parte dele e aqui eu fui ficando, e por aqui
estou há quase trinta anos. Vi este bairro crescer e várias famílias por aqui
chegarem, como os seus pais, por exemplo. Acompanhei o crescimento de muitas
crianças e as vi tornarem-se adultas, assim como você. Aqui tive meus filhos e
os criei com sacrifício, dando a eles todas as condições de se tornarem homens
de bem. Hoje estão todos bem encaminhados na vida, graças a Deus, e já não
precisam mais de mim. Aqui adquiri o hábito de conhecer pessoas. Saber como
são, onde moram, como vivem e a que famílias pertencem. Conhecendo-as, aprendi
a confiar nelas e a lhes dar crédito. Hoje, se quisesse, poderia parar de
trabalhar e passaria então a viver de rendimentos, mas não o faço, pois sei que
é o trabalho que me mantém vivo, e não o dinheiro. Hoje, com os recursos de que
disponho e com a minha disposição, poderia me transferir para a Zona Sul e
começar tudo de novo, mas pergunto: valeria a pena? Compensaria deixar aqui
tudo o que plantei ao longo de todos esses anos? Iria me adaptar a uma nova
vida, onde os hábitos e o comportamento das pessoas são totalmente diferentes?
Poderia, por lá, fazer o que agora faço aqui a seu lado todo esse tempo? Não,
meu rapaz, eu sei que não poderia, e por isso é que sei também que não valeria
a pena. Por aqui eu já tive muitos fregueses. Hoje tenho alguns bons amigos, e
não os troco por dinheiro nenhum deste mundo.
Os
olhos de Bill brilhavam de admiração, quando falou:
-
O senhor me convenceu. Este bairro é seu, e agora que o conquistou não poderia
abandoná-lo. Seria traição. Não, não valeria a pena.
-
E você, como está lá por Copacabana? - Seu Manoel fez a pergunta, depois de um
breve silêncio, para tentar disfarçar a emoção.
Uma
pergunta aparentemente fácil fez Bill pensar duas vezes antes de responder.
-
Gosto de lá. Hoje não moraria aqui, se dependesse apenas de minha vontade. No
entanto, se tivesse que viver minha infância, novamente, não trocaria o
Encantado por qualquer outro lugar do mundo. Confesso que de início estranhei
bastante a mudança. Custei a me adaptar. Sinto ainda hoje, vez por outra, que
Copacabana me assusta, e isto sempre acontece quando olho pra dentro de mim,
bem lá no fundo, e descubro que sou ainda um suburbano.
-
Não tenha medo, meu rapaz. Vá em frente. Para os que têm a cabeça no lugar
talvez não exista, no Brasil, melhor local para se morar que Copacabana.
Principalmente para os jovens, como você. Não tanto pelas belezas aparentes que
os olhos podem enxergar, mas pelo mundo de oportunidades que a mente pode
descobrir.
De
vez em quando a conversa entre os dois era interrompida, para que Seu Manoel
pudesse atender um freguês que chegava. Naquela altura várias garrafas vazias
de cerveja já se amontoavam sobre a pequena mesa em que estavam. Ao sentir a
cabeça pesada, Bill pediu a conta:
-
A conversa está muito agradável mas eu ainda pretendo dar uma volta pelo
bairro. Quanto é minha despesa?
-
Não me deve nada. Eu comi e bebi mais que você, e não seria justo cobrar por
isso. É normal que uma pessoa pague para ter um prazer, mas é um absurdo que
ela cobre por tê-lo sentido, e eu só tive prazer com sua visita.
Na
despedida, depois dos abraços, a promessa de Bill em voltar breve para um novo
"papo" e dar a Seu Manoel uma forra nas despesas.
Enquanto
dirigia lentamente pelas tranquilas ruas do Encantado, Bill tentava organizar
seus pensamentos. Durante o tempo em que estivera ali, no "Cruz de
Malta", pôde rever alguns poucos amigos. Alguma coisa lhe dizia que Seu
Manoel soubera, através de um deles, a respeito da sua festa de Copacabana. Se
isso fosse verdade, nada o bom lusitano deixara transparecer enquanto
conversaram, mas, na certa, deveria ter ficado magoado por não ter sido
convidado. Bill errara por omissão, e não conseguia se perdoar por isso.
Bill
estacionou o carro em frente à casa em que nascera. Havia movimento de gente no
seu interior. A luz da varanda estava acesa e, de onde estava podia ver, por
cima do baixo muro, o estado de abandono em que se encontrava o jardim. Pensou
em sua mãe, e no quanto ela ficaria triste se visse aquilo. Afinal, foram
tantos anos de cuidado e dedicação àquele pedaço de terra, que Bill podia ver
naquele momento, à sua frente, a imagem de sua mãe podando a roseira usando
grossas luvas. Ali estava ela regando a grama, revolvendo a terra com as
delicadas mãos.
De
repente Bill se viu tentando equilibrar o corpo sobre uma linha divisória
imaginável. Uma linha que tinha o poder de separar dois mundos: 17 anos vividos
num, e 4 anos vividos noutro. Foi aí que passou a comparar suas duas vidas.
Teria realmente vivido duas vidas distintas, ou seria um homem de dupla
personalidade? Um Bill não reconhecia o outro. Eram completamente estranhos. A
semelhança física não era o bastante, e só a lembrança de fatos ocorridos em
que apenas ele fora testemunha ocular, poderia lhe devolver a certeza de que
ele era uma só pessoa. Mas não precisou esperar muito tempo para ter tal
comprovação. Ao olhar para o quintal daquela casa, lembrou do dia em que subiu
no último galho da frondosa mangueira, e de lá viu, por entre uma janela
entreaberta da casa defronte, sua vizinha totalmente nua, no momento em que
trocava de roupa. Extasiado, diante daquela visão, quase caiu da árvore.
Guardou segredo sobre o fato pois não desejava ver sua mangueira desgalhada.
Sim, agora ele podia ter certeza de que era o mesmo Bill do Encantado, só que
totalmente modificado.
Mais
uma vez pôs o carro em movimento e continuou a rodar pelo bairro. Passou pela
ex-escola e lembrou dos tempos em que tinha a sua casa constantemente cheia de
colegas que vinham para estudar com ele, e depois jogar bola no quintal. Ah!
como era diferente, aquela vida, da que agora estava vivendo! Como era raro
receber a visita de um colega em seu apartamento de Copacabana! - pensou.
A
igreja já estava fechada, quando ele estacionou o carro em frente, e, não fosse
isso, teria entrado. Igreja deveria ser como pronto-socorro: não deveria fechar
nunca - pensou. Há quatro anos que não conseguia tempo para marcar um encontro
com o seu Deus. Só em pensar que durante tantos anos fora assíduo frequentador
das missas dominicais, estremeceu. Em silêncio, dentro do carro, fez uma prece.
Bill
passou pela casa de Joana e teve vontade de entrar. Parou o carro um pouco
adiante, saltou e caminhou de volta até o portão. A casa estava às escuras e
ele ficou sem saber o que fazer. A rua estava deserta e ele não pôde
compreender de onde saiu e de como apareceu, à sua frente, um rapaz, conhecido,
que lhe falou:
-
Oi, Bill. Como vai você? Está procurando a Joana?
-
Sim, gostaria de vê-la, mas não é nada importante. Estou apenas visitando o
bairro e revendo os amigos.
-
Joana não está em casa. Foi com o irmão a uma festa em Piedade.
-
Sabe o endereço? - perguntou Bill, apenas por perguntar.
-
Não, não sei. Ouvi dizer que é numa casa que fica bem próxima da Faculdade.
-
Não tem importância. Eu não iria mesmo lá.
-
Quer deixar algum recado para ela?
-
Não. Se quiser, diga apenas que eu estive por aqui.
Durante
o tempo em que esteve rodando com seu carro por ali, Bill pôde notar alguns
casais de namorados conversando de mãos dadas nos portões e varandas das casas.
Ali, para se namorar, não bastavam aos rapazes a atração física, ou mesmo o
amor. Era necessário bem mais que isso. Paciência, compreensão e, sobretudo, respeito,
faziam parte de um conjunto de sentimentos. Também era verdade, e Bill não
desconhecia, que haviam os casos dos namoros às escondidas, onde os rapazes
conseguiam sempre ir um pouco além do permitido em suas investidas. Mas estes
eram minoria, pois poucos queriam correr o risco de terem que enfrentar a fúria
dos pais e dos irmãos mais velhos das moças. Elas, por sua vez, evitavam tal
tipo de relacionamento com receio de ficarem mal faladas pelo bairro. Assim era
o comportamento nos anos sessenta, não só nos subúrbios do Rio como, com mais
rigidez, nas pequenas cidades do interior do país.
Bill
não pôde deixar de sorrir quando lembrou que houvera tempo em que encarara o
namoro como um sério compromisso, e o sexo como uma forma criada por Deus para
dar à humanidade o meio da procriação e o sentido de família. Fora disso lhe
ensinaram que o sexo era pecado e, nas poucas vezes que pecou, pediu perdão
arrependido.
Lembrou
de Joana e sentiu um forte desejo de estar com ela na tal festa, em Piedade.
Bill sabia que isto seria impraticável, mas imaginou-se entrando na festa como
penetra, e surpreendendo Joana nos braços de outro, ao compasso de uma música
romântica. Tal imagem o perturbou tanto que, enciumado, arrancou com o carro
fazendo cantar o pneu. Diminuiu a marcha ao passar de novo pelo "Cruz de
Malta", e pôde ver Seu Manoel por trás do balcão, atendendo um freguês. Um
sorriso de paz e amor aflorou em seu rosto. Como era bom comprovar - pensou ele
- a existência daquela singela figura humana! Um homem crédulo e um comerciante
honesto, capaz de fiar e de estar sempre pronto para dar um voto de confiança
às pessoas, e, por isso mesmo, receber delas o respeito e a admiração. Como era
bom saber também que poderia haver ainda, no mundo, lugares como aquele, onde pessoas
como Seu Manoel ainda existiam. Copacabana era um bairro bem maior, e
justamente por ser grande demais, ele lá não caberia. Na certa iria à falência
em pouco tempo, caso não mudasse sua maneira de proceder.
As
luzes do Encantado foram ficando para trás, enquanto Bill dirigia de volta à
Zona Sul. Os quilômetros que ligavam um bairro ao outro não eram tantos, mas o
abismo que os separava era imenso e profundo. Se de um lado Bill encontrava o
luxo, o conforto e as facilidades, do outro podia sentir o calor humano, a
confiança e o sentido comunitário. Qual dos dois mundos era o certo, o
verdadeiro? Bill não sabia responder à pergunta que sua mente acabara de fazer.
Sabia apenas que em Copacabana tivera que reformular todo o seu conceito sobre
a moral vigente. O curioso era que entendia que, em ambos os bairros, as leis
eram iguais para todos, mas o comportamento das pessoas é que era diferente. Se
de um lado deixava-se de fazer alguma coisa por ser pecado, do outro, pecado
seria deixar de se fazer. Se de um lado o recato do corpo humano era admirado,
do outro, a exibição era exigida. Se de um lado a palavra de um cidadão teria
que ser respeitada, do outro, deveria ser compreendida. E foi divagando sobre
esse tema que Bill chegou à Zona Sul.
O
bar do Antonio ficava em Ipanema, e quando Bill entrou não encontrou um só
rosto conhecido. Dirigiu-se ao homem que ficava por trás da caixa registradora
e perguntou:
-
Sabe se a minha turma esteve hoje aqui, e se alguém deixou algum recado para
mim?
O
homem mastigava nervosamente um palito, enquanto que, com o olhar aguçado,
fiscalizava garções e fregueses a um só tempo.
-
Como é o seu nome? - perguntou ele, sem interesse, e sem se fixar no seu
interlocutor.
-
Todos me conhecem como Bill.
O
homem passou rapidamente a vista por alguns bilhetes escritos em pedaços de
papéis diversos, e respondeu:
-
Não, para Bill não tem nada.
-
Bem, é que minha turma costuma se reunir neste bar aos sábados e é possível que
já tenha estado aqui. Será que...
-
Fale com aquele garçom ali - interrompeu o homem bruscamente, apontando para um
garçom baixote e calvo. Há uma hora atrás ele estava servindo a um grupo
barulhento de rapazes e moças. Talvez ele saiba alguma coisa.
Por
falta de uma informação concreta, Bill, desanimado, resolveu ir para casa
dormir. Ah... se aquele bar fosse o "Cruz de Malta" - pensou - as
coisas seriam bem diferentes.
A decepção de não ter encontrado os amigos, e
nem sequer um recado, logo se desfez. Bill sentia que aquela noite fora
proveitosa, e que a visita ao Encantado lhe fizera bem. Além de ter matado a
saudade do bairro e dos amigos, ouvira também algumas respostas a certas
perguntas que há muito tempo fazia. Mas o que ele não sabia é que não tinha
conseguido atingir o âmago da questão. Bill não tinha se dado conta ainda de
uma verdade irretocável e definitiva. A verdade que diz que todo o ser humano
passa pela fase da definição: o momento em que já é um pouco tarde para ser
criança, e um tanto cedo para ser adulto. Bill foi uma vítima dessa fase. Se ele
tivesse ido morar em Copacabana quando criança, teria se adaptado facilmente, e
as diferenças que poderia sentir seriam de ordem geográfica, e nunca de ordens
sociais. Se a mudança tivesse ocorrido depois dele ter atingido a fase adulta,
provavelmente tais diferenças já lhe seriam familiares. Mas, ao se transferir
na fase da definição, perdeu-se no emaranhado de acontecimentos inéditos do
comportamento humano. Frente a tantas facilidades viu-se tentado e, diante de
tantas encruzilhadas, viu-se perdido. Percebendo a grande diferença entre os
seus dois mundos, passou a acreditar que durante 17 anos cuidara demais do
espírito, e que era chegada a hora de dar vazão à matéria. A verdade é que em
pouco tempo estava entregue às exigências prementes da carne. E foi
substituindo certos valores morais que durante tanto tempo ditaram as normas de
seu comportamento, que Bill passou a conviver com uma nova personalidade.
É
verdade que o ingresso de Bill na Aeronáutica se deu pouco tempo depois dele
ter se transferido para a Zona Sul, e isso fez com que ele fosse se acostumando
aos poucos com o novo bairro. Não fosse este acontecimento, e na certa o
impacto teria sido muito maior. Na verdade, ele só foi se dar conta do novo
mundo que tinha pela frente quando deu baixa, dois anos depois, e passou a
curtir com intensidade a total liberdade. Durante o tempo em que esteve
servindo às Forças Armadas, Bill aprendeu muita coisa. De seus superiores
recebeu orientações de civismo, assuntos aeronáuticos, rígida disciplina e
severa educação física. Com seus companheiros de farda, gente oriunda de
diversas camadas sociais, Bill aprendeu, não só para usar como para se
defender, toda a sorte de molecagem e malandragem. Com a esposa e com a filha
de seu Comandante aprendeu que o sexo é um saboroso e saudável passatempo, e
que pecado, no caso, seria a procriação indébita.
Naquela
noite, já em seu quarto, Bill buscava o sono através da leitura de um romance.
De repente, pousou o livro sobre a mesinha de cabeceira e apagou a luz do
abajur. E ao se ver envolvido pela mais negra escuridão, sentiu acender uma luz
em sua memória, e antes de adormecer, recordou as últimas palavras ditas pelo
Coronel Carneiro, um dia antes de sua baixa:
-
Você será um vitorioso, e eu confio no seu sucesso.
CAPÍTULO 24
Paris, Primavera de 194l
A
primavera espalhava flores pelos campos, nos arredores de Paris. Naquele ano
ela chegara forte, explodindo de repente num cataclismo de cores. Cada flor que
desabrochava parecia querer falar, parecia querer dizer que estava ali
presente, independente da guerra e da ocupação do solo francês pelos alemães.
Colorindo a paisagem, a primavera distribuía otimismo àquele povo oprimido. Em
sua mensagem silenciosa, ela falava mais que as palavras vazias e as falsas
promessas dos opressores e traidores da pátria. E dizia que por maior que fosse
a força inimiga, insignificante ela seria diante da força da natureza. O homem
poderia mudar o curso de um rio, mas jamais conseguiria destruir sua nascente.
Um
velho Renault cinza atravessava o campo em direção à Paris. Dr. Louch dirigia
em marcha moderada o pequeno veículo, tendo ao seu lado Giacomo que, absorvido
pela paisagem, parecia sonhar acordado. A manhã estava radiosa naquele sábado
de maio. Há pouco tinham passado por um grupo de camponesas que cantavam
enquanto cuidavam da colheita. Giacomo acenara com a mão, e elas responderam
alegremente. A estrada estava quase deserta e apenas alguns poucos veículos
militares tinham cruzado com o carro de Dr. Louch, como que a lembrar que
estavam em guerra. Tanto o doutor quanto Giacomo estavam vindo de Nancy, onde
trabalhavam num hospital. Há muito que ambos não tiravam um dia de folga e
estavam precisando de descanso e distração. O doutor conseguira para ele aquele
fim de semana livre, e resolvera passear na Cidade Luz. Para Giacomo aquela
viagem tinha um sabor todo especial, e talvez por isso ele estivesse sentindo a
primavera com maior intensidade. Afinal ele não iria a Paris apenas para passar
um fim de semana, e sim para ficar. Dr.
Louch, usando de todo o seu prestígio, conseguira para Giacomo a transferência
tão sonhada pelo genovês, que já, a partir da próxima segunda-feira, dia 19,
estaria a serviço de um dos maiores hospitais da capital francesa. Giacomo
estava radiante. Tudo aquilo lhe parecia um sonho, e por isso permanecia calado
por tanto tempo. Não queria partir a frágil imagem de felicidade que carregava
no rosto com o som de suas palavras. Foi Dr. Louch quem primeiro quebrou o
silêncio:
-
Quer dirigir um pouco?
-
O que disse? - perguntou distraído.
-
Perguntei se não quer dirigir.
-
Só se o senhor estiver cansado. Caso contrário...
-
Cansado, eu? - interrompeu o doutor. Você não me conhece. Sou capaz de
atravessar o país de norte a sul, leste a oeste, parando apenas para
reabastecer... Gosto de dirigir nas estradas onde a liberdade se faz mais
presente. Sou um homem do campo, e nada é melhor do que a gente sentir o cheiro
da terra úmida, do mato, das flores. Ver um cavalo correndo pela campina, as
aves soltas, o gado pastando na relva. Assim, em contato com a natureza, é que
podemos sentir melhor a presença de Deus. Não sinto mais prazer em dirigir nas
grandes cidades, onde o excesso de carros, sinais e pedestres já me põe
nervoso. Quando esta guerra imunda terminar, vou comprar um pedaço de terra na
região da Bourgogne e vou fazer o meu próprio vinho. Quero morrer cheirando a
uva.
-
Eu também gosto da natureza e da vida do campo. Entretanto, prefiro o mar...
-
E por que está tão ansioso para chegar em Paris?
-
Já imaginou Paris com um oceano a banhá-la? Penso que seria a única cidade no
mundo perfeita...
-
Provavelmente teria um outro espírito, outro tipo de gente, outros costumes.
Não seria Paris. Não existe cidade perfeita, nem a mais bela. Vários
ingredientes são indispensáveis para se fazer uma bela cidade, tais como sua
localização e belezas naturais, a qualidade do clima, e, principalmente, o povo
que nela vai habitar. O dinheiro e a mão do homem também se fazem necessários
para completar a obra iniciada pela natureza. Juntar tudo o que há de melhor
num só recanto da terra seria injusto para Deus, e impossível para o homem.
-
O senhor já viajou muito, não?
-
Adquiri de meu pai o seu espírito cigano, e posso dizer que além de ter viajado
por toda a França, pude ainda conhecer algumas das mais importantes cidades do
mundo.
-
E o senhor nasceu aonde?
-
Em Fixin, perto de Dijon, na região da Bourgogne. Foi lá que vivi os primeiros
anos de minha infância, e depois não parei mais de viajar. Meu pai negociava
com terras e com o que obtinha delas. Comprava sítios e fazendas mal cuidadas,
fazia os melhoramentos necessários e, geralmente as vendia com um bom lucro.
Ele costumava se dividir entre a criação de animais e a agricultura. Ora
negociava com bovinos, suínos e ovinos, ora com trigo e uva, que eram suas
especialidades. Suas atividades eram assim diversificadas porque elas dependiam
muito da região que escolhia para morar. Meu pai sempre soube ganhar dinheiro,
pois só se metia em negócios que conhecia profundamente, e este sempre foi seu
maior segredo...
-
Então seu pai fez uma grande fortuna, não?
-
Poderia ter feito uma das maiores fortunas da França, não fosse o seu lado
cigano, aventureiro e romântico. A mesma habilidade que possuía para ganhar
muito dinheiro, tinha para gastá-lo. Nos períodos em que se dedicava ao trabalho,
não poderia haver homem mais responsável, competente e trabalhador. Mas quando
concluía um bom negócio, trocava de cidade e passava a viver como um
milionário, sem se preocupar em ganhar dinheiro durante algum tempo. Porém,
mesmo assim, enquanto se distraía e gastava, ia estudando as possibilidades de
negócios daquela região.
-
Mas se isso não fosse possível?
-
Papai nos deixava ali e viajava antes que seu dinheiro acabasse de todo.
-
E vocês ficavam desamparados? Abandonados à própria sorte?
-
Isso nunca aconteceu. Papai jamais abriu mão de guardar algumas reservas. Antes
de viajar ele deixava com mamãe uma quantia em dinheiro suficiente para
vivermos, pelo menos seis meses, sem passarmos necessidades. Além disso,
deixava também com ela um pequeno cofre com a recomendação de que só deveria
ser aberto se ele morresse ou se não desse sinal de vida até que estivessem
esgotados todos os nossos recursos.
Giacomo
acendeu um cigarro. Ele estava tão absorto pela narrativa, que nem percebia a
bela paisagem que se descortinava a sua frente. Esqueceu da guerra e até de que
estava indo para Paris. Naquele momento descobrira que também ele tinha alma
cigana, e muito se identificava com aquele rico personagem, pai do Dr. Louch.
Curioso, fez novas perguntas, para não deixar morrer o assunto.
-
Era sempre assim que acontecia? De que maneira seu pai gastava boa parte do
dinheiro? Como ele conseguia depois se recuperar?
-
Calma, meu rapaz. Vamos por partes...
Dr.
Christian Louch fumava muito pouco, mas naquele momento aproveitou para acender
também um cigarro. Depois da primeira tragada, continuou com a narrativa.
-
Invariavelmente era assim que meu pai agia. Sempre que fechava um bom negócio,
mudava de cidade e passava a gozar a vida intensamente. Aplicava tudo o que
ficava em seu poder, nos três maiores vícios do homem: bebida, jogo e mulher.
Com as bebidas e com as mulheres, sabia que não ia ter retorno de capital, mas
com o jogo conseguia, às vezes, duplicar ou até triplicar a fortuna.
-
E, quando isto acontecia, o que ele fazia?
-
Ou ele comprava propriedades e ficava ali por algum tempo, ou aplicava parte
dos lucros no melhor negócio da região e partia com a família para outras
plagas...
-
E se ele perdesse no jogo e não desse sorte nos negócios?
-
Papai dizia que só dependia da sorte para o jogo. Para os negócios era uma
questão de visão e competência. Recomeçar quase da estaca zero, parecia lhe dar
prazer. Ele gostava do desafio. Quando perdia no jogo, se revestia de um poder
de luta ainda maior. E o processo era sempre o mesmo: dinheiro e cofre nas mãos
de mamãe, e partia sem nos dizer para onde. Quando não regressava antes de seis
meses, mandava-nos algum dinheiro e notícias. O certo é que só voltava
vitorioso, trazendo um mundo de presentes para todos nós, e era sempre assim
que nós o víamos chegar...
-
Para seu pai este tipo de vida deveria ser muito excitante, mas para sua mãe,
como foi que ela conseguiu se adaptar?
-
Eles cresceram juntos e mamãe não teve oportunidade de conhecer outro homem.
Meu pai foi seu primeiro e único amor. Ela o aceitou como ele sempre foi. Um
homem cheio de contrastes, onde as virtudes e os defeitos se chocavam
violentamente mas não o impediam de ter uma personalidade forte e marcante.
Antes de casar papai teve muitas aventuras amorosas, mas voltava sempre para
mamãe. Quando conseguia juntar dinheiro, fruto de seu trabalho no campo, fugia
de casa e só voltava quando estava sem tostão. Quando isto acontecia, vovô
costumava surrá-lo e ouvia de papai sempre a mesma ameaça: - "um dia eu
fujo pra valer, e só volto quando estiver rico!". Com receio de que papai
um dia concretizasse tal ameaça, vovô procurou encontrar um meio de prendê-lo à
terra. Certo dia fez a ele uma proposta que achou irrecusável: - "no dia
em que você estiver certo de seu amor por uma mulher digna de seus sentimentos,
e resolver casar e constituir família, terá de mim, como dote, o melhor pedaço
de terra, capaz de produzir a melhor uva e o mais puro vinho da região".
Apaixonado por mamãe, e cansado de perder o pouco dinheiro que ganhava depois
de meses de árduo trabalho em suas viagens frustradas, papai aceitou a proposta
e, pouco tempo depois estava casado. Durante sete anos ele viveu ali, cuidando
da terra, colhendo a melhor uva e produzindo o mais puro vinho do local.
Reconstruiu a casa, ampliando-a e modernizando-a. Comprou outras pequenas
propriedades, duplicou os vinhedos e ali viu nascer os seus cinco filhos: dois
homens e três mulheres. Pouco tempo depois do nascimento de Madelaine, minha
irmã caçula, vovô morreu e tudo se modificou...
-
Por que? O que aconteceu?
-
Minha mãe teve um parto difícil e quase morreu por falta de maiores recursos, e
esta foi a gota d'água que faltava para papai começar a sua vida errante.
Impossibilitada de ter mais filhos, mamãe caiu em profunda depressão. Em vista
disso, e sem ter a presença de vovô marcando seus passos, papai propôs
mudarem-se para uma cidade maior, onde na certa teriam melhores condições de
vida para educarem os filhos. Na verdade, era papai que há muito estava
irrequieto, e já não se sentia satisfeito com o que conquistara, independente
de seu crescente sucesso nos negócios. Quanto mais crescia, mais se sentia
preso à terra e isso o incomodava. Mamãe, totalmente transtornada, acabou
cedendo e papai aguardou a melhor oportunidade para vender tudo, obtendo um
substancial lucro com a transação.
-
E de Fixim, vocês foram pra onde?
-
Fomos para Dijon. Lá meu pai comprou uma bela casa, pôs os filhos mais velhos
no melhor colégio da cidade e iniciou um novo negócio. Mas, em menos de seis
meses, sentindo que não se adaptava à vida da cidade, papai desfez o que
começou, e passou a fazer pequenas viagens. Moramos apenas um ano em Dijon, e
depois disso não paramos mais de viajar.
-
E estas viagens constantes não prejudicavam os estudos das crianças?
-
Prejudicaram muito, e era o que mamãe mais lamentava. Por ela, todos nós
teríamos estudado e na verdade, só eu consegui concluir meus estudos.
-
E como o conseguiu?
-
Vendo que dos filhos era eu quem mais tinha
gosto pelos estudos, mamãe, pela primeira vez, fez valer a sua
autoridade e conseguiu que fôssemos morar em Paris.
-
E seu pai, não queria que vocês estudassem?
-
Nunca se opôs, como também jamais fez muita questão. Bastava que um dos filhos
se formasse em advocacia ou veterinária, dizia, para que ele pudesse morrer
feliz.
-
E como vocês foram se bater em Paris?
-
Assim que duas de minhas irmãs se casaram e que meu irmão mais velho se tornou
independente, mamãe começou a bater o pé. Discutiram muito, mas tanto a
obstinação dela quanto seus argumentos foram mais fortes. Eu e Madelaine,
precisávamos estudar, dizia mamãe. Nós éramos as últimas esperanças. Se
concluíssemos nossos estudos, poderíamos ser de grande utilidade para cuidar e
administrar o patrimônio da família. Este foi o argumento decisivo que pôs por
terra as últimas resistências de papai e, pouco tempo depois, estávamos morando
na Capital.
-
E como foi feita a mudança de vocês para Paris?
-
Um pouco diferente das demais. Naquele momento, papai estava muito bem de vida,
com propriedades espalhadas pelos quatro cantos da França. Assim ele decidiu
vender apenas uma parte do que tinha, apurando com isso o suficiente para
comprar uma boa casa num subúrbio parisiense e começar por lá um novo negócio.
Diga-se, de passagem, que antes disso papai já se desfizera de três
propriedades. A maior delas, e mais rica, com vasta plantação de trigo, dera de
presente a meu irmão mais velho, seu filho predileto. Essas terras ficavam em
Combourg, na região da Bretagne. Para minhas irmãs que haviam se casado, papai
dera como dote, para uma, um bom pedaço de terra em Fixin para cultivo de uva
e, para a outra, terras em Mazamet para criação de ovinos.
-
E como foi a estada de vocês em Paris?
-
Ah... Maravilhosa, inquietante, surpreendente e imprevisível! Papai que
conhecia Paris de passagem, nas poucas vezes que por lá teve que ir a negócio,
ficou tão empolgado com a Cidade Luz, que comprou um automóvel e contratou um
chofer. Passou a levar uma vida de milionário, que era o que sempre fazia
quando trocava de cidade. Movida pelo entusiasmo de papai ou levada por seu
braço, mamãe logo conheceu os melhores teatros, restaurantes e casas de modas.
Mas, como sempre acontecia nas grandes cidades, os negócios de papai não foram
bem, e em menos de dois anos já estava às portas da falência. Mamãe, eu e
Madelaine nos demos muito bem em Paris e logo já estávamos bem ambientados.
Papai, ao se conscientizar de seus fracassos profissionais na Capital, voltou a
fazer as suas viagens pelo interior do país, e por lá passava a maior parte do
tempo. Em algumas destas viagens, mamãe o acompanhava e, quando isso acontecia,
ficávamos aos cuidados de uma governanta, que a esta altura, era por nós
considerada uma amiga da família. Eficiente, dedicada e, principalmente,
econômica, Louise, como era seu nome, fazia das tripas coração para poder
equilibrar as despesas da casa. Às vezes ficava sem receber seu ordenado por
vários meses sem se queixar. Logo ela aprendeu a confiar em nossa amizade, pois
papai, sempre que seus negócios iam bem, fazia questão não só de acertar as
contas com Louise como de gratificá-la com dinheiro extra e presentes caros. Os
altos e baixos de nossas vidas logo fizeram por despertar o olhar curioso da
vizinhança, que passou a nos ver como os mais ricos do local em determinados
períodos, e os mais pobres em outros.
Mas,
em tudo isto, um fato novo aconteceu: tanto os meus estudos quanto os de
Madelaine jamais foram interrompidos e nossa casa em Paris nunca foi vendida.
Um ano antes de concluir meu curso de veterinária, Madelaine começou a estudar
advocacia. Na verdade, tanto eu quanto ela abdicávamos de nossos ideais para
agradar papai. Pouco tempo depois de me formar papai morreu, e minha irmã
interrompeu os seus estudos logo em seguida para tentar ser escritora, seu
sonho maior. Começou por onde todo escritor principiante começa, colaborando
para jornais e revistas de pouca expressão. Mais tarde, conseguiu publicar dois
livros. Com o romance, obteve fracasso de crítica e de público, e com o de
poesias, apesar de algumas críticas elogiosas de gente importante do mundo
literário, não conseguiu atingir o público leitor. Madelaine, aceitando o
fracasso, logo se desencorajou e, se ainda por algum tempo publicou seus
trabalhos em jornais e revistas, foi em atenção a pessoas amigas que
acreditavam no seu valor. Como esses trabalhos pouco lhe rendiam, conseguiu um
emprego fixo numa editora e passou a se manter sem depender dos recursos da
família. Nessa empresa ela fez de tudo, inclusiva tradução de livros...
-
E hoje, o que faz ela? Ainda é viva, não? - perguntou Giacomo, aproveitando a
pausa que fizera Dr. Louch para acender um cigarro.
-
Sim, está viva, e me parece que sempre gozou de boa saúde, pois nunca parou de
trabalhar. Hoje, bem conceituada, ela faz parte da diretoria da tal editora.
Quero crer que, em virtude de seu temperamento muito autoritário e
independente, Madelaine nunca tenha chegado a se casar, muito embora tenha tido
um filho, fruto do grande amor de sua vida. Eles moram juntos em nossa casa em
Paris, para onde estou indo agora, passar este fim de semana.
-
Estou ansioso por conhecê-los!
-
Ótimo! Você irá almoçar conosco amanhã. Estou certo de que irá gostar muito de
Madelaine. Ela, apesar de muito culta, é uma criatura simples que adora receber
e não despreza um boa conversa. Estou certo também que saberá apreciá-lo.
-
E eu já a admiro pelo pouco que sei a seu respeito.
Dr.
Louch ficou algum tempo em silêncio com o pensamento distante, como se
estivesse compondo a figura da irmã, que há muito tempo não via. Giacomo
acendeu um cigarro e, depois de uma longa tragada, puxou de novo a conversa.
-
E os outros irmãos, como estão?
-
Bem, minha irmã que morava em Mazamet faleceu ainda jovem, vítima de seu fraco
coração, deixando três filhos pequenos, na ocasião. Seu marido casou de novo e
ainda mora com a família no mesmo local. Pelo que soube, ele é hoje um próspero
criador de cordeiros e ovelhas. Minha outra irmã, a que mora em Fixin, ficou
viúva e depois da morte do marido vendeu parte da propriedade, comprou algumas
casas por lá, e hoje vive da renda desses aluguéis. Ela teve cinco filhos: um
morreu, três moram em Paris, e a caçula casou-se com um humilde lavrador da
região e vive com uma certa dificuldade. Meu irmão mais velho, o que saiu mais
parecido com papai, tentando imitá-lo se deu mal. Casou-se cedo e depois de
conseguir juntar um bom dinheiro, fruto dos lucros com o trigo, tentou
empregá-lo em outros negócios que não deram certo, e tão endividado ficou que
teve de vender grande parte da propriedade. Com seu temperamento farrista e
mulherengo criou um ambiente insustentável dentro de casa. Certo dia saiu para
uma pequena viagem de negócios e não mais voltou. Minha cunhada ficou com a
casa, um pedaço de terra que sobrou, e uma criança na barriga, que veio a
falecer ao nascer. Foram golpes rudes que a fizeram sofrer e a passar por
sérias dificuldades. Na verdade, ela só veio a ter sorte quando tempos depois
encontrou num simples homem do campo, trabalhador e ambicioso, o companheiro
ideal. Não se casaram mas vivem hoje muito felizes com os três filhos
provenientes desta união. Financeiramente, também estão bem e negociam com peles
e couros.
-
E seu irmão, o que aconteceu com ele?
-
Sabe-se muito pouco a seu respeito. Depois que vendeu suas terras em Combourg
para pagar dívidas, e separou-se de minha cunhada, vagou por toda a França,
fazendo bons e maus negócios. Na verdade, mais maus do que bons. Há mais de
cinco anos que nossa família não ouve
falar dele. Não sabemos o seu paradeiro e nem ao menos se ainda está vivo. Sua
última aparição se deu em Paris quando, aparentando estar doente e em grandes
dificuldades, disse à Madelaine que estava prestes a fechar o melhor negócio de
sua vida. Tomou dela algum dinheiro emprestado e desapareceu pelos caminhos de
seus sonhos. Sua maior falha foi ter tentado imitar papai. Meu pai foi único.
Viveu para vencer desafios e surpreender e, no entanto, tudo o que fez jamais
foi surpresa para mamãe. Ela morreu de velhice e preocupação na nossa casa em
Paris, nos braços de Madelaine, após um ano sem ter notícia de meu irmão. Suas
últimas palavras foram de indagação pelo filho desaparecido e, sempre que se
referia a ele, trocava o seu nome pelo de meu pai.
-
E seu pai, de que morreu?
-
Para explicar a sua morte, tenho que ir um pouco além. Quando a notícia chegou
a Paris, através de seu capataz, amigo e confidente, mamãe pela primeira vez
abriu o pequeno cofre que ele sempre deixava aos seus cuidados toda vez que
viajava. No fundo deste pequeno objeto de metal, ela encontrou apenas três
documentos: dois registros de propriedade devidamente quitados e uma carta para
mim endereçada. As propriedades eram a nossa casa em Paris e a maior e mais
rica fazenda entre todas que conseguiu possuir. Ficava localizada em Mirebeau,
bem próximo de Dijon e da região da Bourgogne. As terras eram férteis e
propícias tanto para a agricultura como para a pecuária. Assim que conheci
estas terras, senti que papai tinha descoberto ali o local ideal em que pudesse
unir tudo o que sempre fez. Lá ele plantava e criava. Colhia uva e engordava o
gado. Além da casa sede, grande e confortável, muitas outras construções
ficavam espalhadas por aquela imensidão de metros quadrados, podendo se
destacar um abatedouro, um frigorífico, uma grande adega, galpões e currais. De
um lado da fazenda ficavam os vinhedos e outras plantações menores, e do outro,
as terras livres destinadas ao pasto. O capataz, quando nos levou a notícia,
entregou-nos um pequeno testamento escrito por papai momentos antes de morrer.
No tal papel podia-se ler, através de letras trêmulas, o último desejo de
papai. Pedia ele que mantivéssemos em nosso poder, pelo maior espaço de tempo
que nos fosse possível, aquelas duas propriedades que ficariam como herança,
para mamãe a metade, e a outra parte para ser dividida comigo e Madelaine.
Justificava ele, no documento, que os outros filhos já estavam bem encaminhados
e que por isso não precisavam receber parte desses bens.
-
Mas, afinal, de que morreu seu pai? - perguntou Giacomo, cheio de curiosidade.
-
Na carta que ele me deixou, de certa forma deu a entender que previa como seria
a sua morte. Ele esperava um dia ser vítima de uma vingança, e foi justamente o
que ocorreu. No entanto, sua morte teve duas versões, pois para minha mãe e os
demais parentes, o capataz de papai contou que ele fora vítima de uma bala
perdida durante uma discussão numa mesa de jogo de cartas, dentro de um bar.
Uma morte puramente acidental, frisou o capataz, pois que papai apenas assistia
ao jogo e nada tinha a ver com a desavença. No entanto, mais tarde aquele homem
enorme, de expressão abrutalhada e voz macia, a quem papai confiava os seus
mais íntimos segredos, me revelou a verdadeira história. Tudo começou com a
última conquista amorosa de papai, de início igual a tantas outras que
terminavam de forma satisfatória para as partes envolvidas. Entretanto, para
este derradeiro caso, não foi encontrada uma solução conciliatória, capaz de
evitar a tragédia. Papai, como pude comprovar através da carta que me deixou,
só se envolvia com mulheres jovens e virgens, verdadeiras ninfas. Ao morrer,
aos quarenta e oito anos, aparentava ter muito menos, pois era do tipo atlético
- alto e forte - e sabia cuidar da aparência. Tinha a pele bem bronzeada e os
olhos azuis bem claros. Tinha ainda os dentes perfeitos, usava um grosso bigode
e conservava uma vasta cabeleira levemente prateada. Além da boa aparência, era
de temperamento alegre e comunicativo. Por ser muito viajado, não lhe faltava
assunto para longas conversas. Para completar, vestia-se bem e era esbanjador,
e com isso dava a impressão de estar sempre nadando em dinheiro. Que garota
sonhadora e inexperiente, do interior, seria capaz de não se interessar por um
tipo de homem assim? Meu pai tinha consciência disso e sabia usar todo os
recursos de que dispunha. Só não usava a força física. Não, isso nunca. Jamais
seria capaz de possuir uma mulher contra a sua vontade. Assim, as conquistas
foram acontecendo e a cada caso consumado, presentes, promessas e por fim o
abandono. Enquanto umas se conformavam com a sorte ou guardavam segredo por
medo da reação dos pais, outras davam com a língua nos dentes, principalmente aquelas
em que o volume do ventre era maior do que a necessidade de guardar o segredo.
Por serem suas vítimas, na sua maioria, oriundas de famílias humildes, papai
logo conseguia abafar o escândalo com indenizações, doando criações ou
propriedades, ou ambas as coisas. Com isso, durante vinte anos, papai espalhou
fortuna e filhos pelos quatro cantos do território francês...
-
E por que não deu certo desta última vez? Qual o motivo que levou o pai ou os
responsáveis pela moça a apelarem para a vingança extrema?
-
Não foi bem pela defesa da honra, como se poderia pensar a princípio, e sim por
ambição. O pai da moça em questão, segundo relato de papai ao seu capataz, não
aceitou o que lhe foi oferecido em troca do seu silêncio. Exigiu muito mais.
Papai subiu a oferta até achar que o que propunha era mais do que justo. O pai
da moça, depois de não só aceitar as terras como tomar posse das mesmas, jurou
vingança. O homem que atirou em papai era desconhecido por aquelas bandas, e
foi visto, momentos antes, conversando com um dos irmãos da moça. Logo depois
entrava no bar e no jogo de cartas com o firme propósito de provocar uma
discussão e de atirar, covardemente, à queima-roupa, em papai.
-
E que aconteceu logo a seguir? - perguntou Giacomo, interessado pelo desfecho da
história.
-
Agindo com eficiência e rapidez, o criminoso conseguiu fugir sem deixar rastro,
e as poucas pessoas que presenciaram o fato não conseguiram depois
identificá-lo. Papai foi socorrido ainda no local, mas veio a falecer na manhã
do dia seguinte. Enquanto esteve lúcido preferiu não acusar ninguém, e pediu a
seu capataz que guardasse segredo a respeito do que sabia. A todos, inclusive
para a polícia, papai fez questão de dizer que fora vítima de um tiro
acidental...
-
E como tudo terminou?
-
A polícia da região, deficiente e sem uma acusação ou dados capazes de ajudar
na elucidação do ocorrido, pouco tempo depois dava o caso por encerrado, por
falta de provas.
-
E você, o que fez quando soube da verdadeira história?
-
Viajei até lá, fiz perguntas. Estive também em lugarejos próximos, enfim, fiz
tudo o que me era possível fazer para encontrar o homem que atirou em papai,
pois só assim poderia chegar até o mandante, o verdadeiro criminoso. Todo o meu
empenho foi em vão. Nem uma pista me foi dada, capaz de me levar até o matador
de aluguel. Desesperançado acabei por desistir, e dias depois estava de novo em
Paris.
-
E sua mãe, chegou a saber da verdade?
-
Nunca, como também, tenho certeza, jamais aceitou a versão que lhe foi contada.
-
E você, o que fez depois?
-
Durante pouco mais de um ano morei em nossa propriedade em Mirebeau, mas não
fui feliz como agricultor, criador ou negociante. Na verdade, só consegui ser
útil lá como veterinário. Mamãe e Madelaine continuaram em Paris e nos
visitávamos sempre que podíamos. Mesmo bem assessorado pelo capataz de papai,
que foi trabalhar comigo, um dia entendi que aquele não era meu negócio e que
se insistisse acabaria pondo a perder todas aquelas terras. Para nossa sorte
recebi uma oferta que considerei irrecusável e, de comum acordo com mamãe e
Madelaine, vendemos as terras a aplicamos o dinheiro em negócios seguros, que
nos podiam render o suficiente para vivermos durante muito tempo com relativa
facilidade. Foi aí que ao voltar a Paris pude realizar o maior sonho de minha
vida: estudar medicina.
-
E quanto tempo você morou em Paris?
-
Até me formar. Logo depois, seguindo em parte os passos de papai, fui exercer
minha profissão em pequenas cidades do interior. Vivi trocando de cidade,
sempre levado por motivos sentimentais, até que um dia ultrapassei fronteiras e
me radiquei durante alguns anos em Gênova, sua terra natal e, o resto você já
sabe.
-
Nem tudo. Não sei, por exemplo, quando se casou...
-
Nunca me casei.
-
Mas o senhor tem dois filhos, não?
-
É verdade. São frutos do único amor de minha vida.
-
E por que não se casou, posso saber?
-
Por covardia, por egoísmo. Por não querer abrir mão da minha individualidade,
nem do meu jeito cigano. Não quis repetir os mesmos erros de meu pai e, sendo
eu também um homem que nunca desejou viver muito tempo no mesmo lugar, não
desejava fazer sofrer uma mulher com minhas andanças pelo mundo a fora, como
quem cria raízes em pequenos jarros.
-
E este seu grande amor, quando e onde aconteceu?
-
Você tinha quatro anos e eu morava em Gênova na época, quando fui a Nice a
passeio. Ela era uma mulher vivida, quando eu a conheci. Tivera uma amarga
experiência com o primeiro homem de sua vida, um artista mambembe. Nosso amor
foi imediato, inevitável e sem promessas.
Dr.
Christian Louch interrompeu a narrativa. Pela primeira vez, naquele dia,
emocionou-se ou, pelo menos, não conseguiu disfarçar a emoção. Parou o carro no
acostamento com os olhos embaçados. Giacomo percebeu e procurou disfarçar.
-
Quer que eu dirija um pouco? - perguntou o rapaz, quebrando o silêncio.
-
Se não se incomodar - respondeu o doutor, esfregando os olhos na manga da
camisa. Estou sentindo a vista cansada.
Assim
que Giacomo repôs o carro na estrada, o doutor recomeçou a contar a sua
história. Seus olhos ganhavam agora um intenso brilho. Era como se ele
estivesse vendo nitidamente o que narrava.
-
Margot era o seu nome. Era loura, do tipo mignon. Tinha um rosto meigo e as
expressões cansadas. Era enfermeira e trabalhava no principal hospital de Nice.
Embora tivesse um aspecto frágil, era uma mulher de uma força interior
incrível. Eu, quarentão e experiente, fui tomado de surpresa por sua
sensibilidade e compreensão. Margot, dez anos mais jovem que eu, me ensinou uma
lição de vida que jamais esqueci. Ela dizia que as pessoas que vivem presas ao
passado, ou as que se preocupam em demasia com o futuro, não conseguem viver o
presente. Margot nada exigiu de mim a não ser o nosso momento juntos, quando
ela me queria todo, inteiro, sem planos ou recordações. No dia em que tive de
regressar a Gênova e nos despedimos pela primeira vez, ela não quis ouvir de
mim uma só promessa, mas ficou muito feliz quando lhe disse que tinha vivido os
melhores momentos de minha vida ao lado dela. Só pude voltar a vê-la um ano
depois, e a encontrei com o nosso primeiro filho. Na verdade, ela já estava
grávida quando parti, e escondeu de mim o fato. Depois disso, durante pouco
mais de um ano, sempre que podia passava com ela os fins de semana. Na última
vez que a deixei, Margot estava em princípios da segunda gravidez, e talvez por
covardia passei muitos meses sem aparecer. Quando voltei a Nice, com o firme
propósito de legalizar nossa situação, encontrei duas crianças órfãs de mãe.
Foi aí que compreendi o quanto tinha vivido com medo de ser feliz. Arranjei
emprego no mesmo hospital em que Margot trabalhara, comprei uma casinha em
Nice, e por lá fiquei até criar meus filhos. Está aí a história de minha vida.
-
Estou tão convencido de que ela daria um bom romance que, se eu tivesse queda
para literatura, não hesitaria em escrevê-lo. Além de ter uma história
envolvente, teria também fascinantes personagens para descrever como o seu pai,
por exemplo. Vamos admitir que eu estivesse escrevendo um livro sobre sua vida,
como acha que deveria concluí-lo?
-
Bem, como estamos em guerra, e muita coisa ainda poderá acontecer, visualizar
agora um final seria um tanto prematuro. No momento só posso falar sobre minhas
preocupações com meus filhos que vivem correndo sérios riscos. Tanto o mais
velho, que vive prestando relevantes serviços à Resistência como bombeiro em
Paris, como o caçula, que ao lado de Pierre luta pelos maquis. Ambos podem ser
descobertos e presos a qualquer momento...
-
Mas se tudo acabar bem, como pretende o senhor terminar seus dias?
Dr.
Louch ficou algum tempo em silêncio com um sorriso nos olhos como se estivesse
sonhando com um final feliz, e depois falou:
-
Estou preparado para a solidão e a morte, e sei que elas me esperam. Vou me
manter no celibato, pois não faria mais sentido me casar. Sempre vi na mulher
uma companheira e nunca uma apólice de seguro. Dinheiro não consegui juntar,
mas tenho quatro propriedades nos lugares em que mais tempo vivi. Casas em
Gênova, Nice e Nancy, e um pequeno apartamento em Paris. Assim que esta guerra
imunda acabar, venderei tudo. Uma parte do dinheiro arrecadado será destinada
para meus filhos, e com o que me sobrar comprarei um bom pedaço de terra em
Fixin e lá, entre uvas e vinho, terminarei meus dias. Eis aí o final do romance.
Sem originalidade como a maioria dos romances, mas verdadeiro.
-
Naturalmente, toda história romanceada tende a sofrer alterações, mas o final
bem que poderia ser esse, pois não existe nada mais comovente do que o
reencontro do homem com suas origens.
Naquele
dia, antes de chegarem a Paris, eles ainda passaram no pequeno sítio em
Creteil, onde puderam comer, rever os amigos e recolher informações. No rumo da
Capital, já com o Dr. Louch de volta ao volante do seu pequeno automóvel,
tiveram seus documentos minuciosamente examinados nas duas barreiras que
encontraram pela frente. Ao cair da tarde entravam em Paris sem mais
incidentes. À noite jantaram no restaurante da família Fontaine em
Saint-Germain-des-Prés.
CAPÍTULO 25
Rio de Janeiro, Primavera de 1967
-
Por que sua mãe não promove um desfile de modas para lançar os novos modelos
primavera-verão lá da butique? - perguntou Bill, de surpresa.
Mariinha,
não acreditando no que acabara de ouvir, respondeu com outra pergunta:
-
Como é que é?
-
Foi o que eu disse. Um big desfile cairia muito bem. Além de dar categoria à
casa, promoveria os modelos exclusivos. Sua mãe trabalha com modelos
exclusivos, não?
-
Uma boa parte costuma ser. Mas do que é que você está falando? Quando foi que
começou a se interessar por moda?
-
Você sabe que eu não ligo muito para esse tipo de coisa, mas entendo um pouco
do negócio. Minha mãe tem assinatura das melhores revistas francesas
especializadas no assunto. Estar por dentro da moda para ela é como respirar ar
puro todos os dias. Sempre arranjo um tempinho para dar umas folheadas nas tais
revistas, só para ter o prazer de discutir com mamãe sobre o assunto.
-
E como ela reage?
-
Fica feliz, muito embora já tenha percebido que eu discuto este assunto com ela
apenas para agradá-la. O interessante é que, quando em francês discorro sobre
os meus pontos de vista a respeito da moda, procurando dar à minha voz um tom
afetado ela sorri e costuma dizer que prefere me ver sentindo a moda do que ditando-a.
-
Mas afinal você ainda não me explicou o porquê deste seu súbito interesse...
-
Porque estou farto de trabalhar em festinhas e recepções e gostaria agora de
realizar um trabalho fotográfico diferente...
-
E quando você teve esta ideia?
-
Agora mesmo, aqui. Enquanto conversávamos, passou por nós uma mulher com um
andar tão afetado, que conseguiu monopolizar as atenções. Você não percebeu
porque estava de costas para ela. Alta, esguia, até certo ponto elegante, ela
passou por nós vestindo uma saída de praia longa, em tecido acetinado, e me deu
a impressão de estar deslizando e não, caminhando simplesmente. E olha que
fazer desta fofa areia uma passarela, não deve ser fácil...
-
Não creio que mamãe aceite esta sua ideia facilmente. Afinal um desfile de
modas é muito dispendioso e trabalhoso também. Estou quase certa de que ela irá
lhe dizer que nunca precisou lançar mão de tal expediente para vender os seus
modelos, e que está muito contente com a pequena mas fiel e seleta clientela já
conquistada...
-
Se você achar melhor que eu fale direto com ela sobre o assunto, é só
esperarmos o momento certo. Argumentos eu os tenho de sobra, e acredito em meu
poder de persuasão, não se preocupe...
-
Eu sei que você tem lábia e charme suficientes, mas suponhamos que ela aceite a
ideia e não tenha o dinheiro para o empreendimento.
-
O importante é que ela me dê um crédito de confiança, pois estou certo de que
dinheiro não será o problema. Afinal, ela não irá gastar nem a metade do que
qualquer outra pessoa teria que dispor para realizar este tipo de promoção.
Mariinha
olhando os guarda-sóis de praia ao vento, em diversificadas estamparias,
imaginou saias rodadas desfilando na passarela. Por alguns instantes ficaram em
silêncio.
-
Pronto - falou Bill - já estou com todo o esquema montado. Confie em mim.
Há
muito que a praia do Leblon não recebia tantos banhistas como naquele domingo
de sol aberto. Mariinha voltou de um novo mergulho e encontrou Bill com o olhar
vago. Sacudiu seus longos e lisos cabelos castanhos, sentou-se sobre uma grande
toalha estampada com florões e, em silêncio, começou a passar mais uma vez pelo
corpo seu óleo bronzeador. “- Como Bill já poderia ter todo um esquema montado
para realizar um desfile de modas, se a ideia lhe ocorrera há poucos minutos
atrás?" - pensou ela.
Mariinha
possuía uma altura acima da média para uma mulher brasileira. Embora magra, de
quadris estreitos e pouco busto, tinha um rosto de boneca de porcelana, com um
incrível par de olhos verdes. Aparentava mais idade do que os seus reais 19
anos. Era ela a mais recente conquista de Bill, e há quase 4 meses eram vistos
juntos diariamente. Mariinha morava com a mãe, que era viúva, num luxuoso
apartamento, que ocupava todo um quinto andar de um edifício no Leblon. Muito
compenetrada e responsável, Mariinha dividia seu tempo entre seus estudos de
Direito e a butique de D. Dulce, sua mãe. A loja, decorada com muito bom gosto,
ficava na parte térrea do prédio em que moravam e, foi justamente lá que Bill a
conheceu. Numa tarde de maio, véspera do dia das mães, Bill, ao passar pela
butique, bateu com os olhos numa vistosa bolsa preta de couro e desejou
comprá-la. Ao mesmo tempo em que examinava a bolsa, viu através da vitrine o
rosto de Mariinha e pensou estar vendo uma boneca de porcelana, tal a
delicadeza dos traços fisionômicos da moça, e a pureza de sua cútis que
brilhava, ajudada por suave maquilagem. Quando Bill entrou na loja já não sabia
se era pela bolsa que pensara comprar para sua mãe, ou pela dona daquele rosto que
o encantara.
Dois
dias depois de ter conversado com Mariinha sobre sua ideia, Bill encontrou a
oportunidade para apresentar à D. Dulce sua sugestão e planos para o desfile.
No fim do expediente daquela terça-feira a loja estava vazia, e D. Dulce vestia
um manequim quando Bill entrou. Depois dos cumprimentos habituais, o rapaz
perguntou:
-
E Mariinha, onde está?
-
Lá nos fundos, no escritório. Está fazendo um servicinho pra mim, mas já deve
estar acabando...
-
Como vão os negócios?
-
Sem grandes novidades e com os altos e baixos normais do comércio de roupas...
-
E como foi o movimento hoje?
-
Normalmente às terças-feiras o movimento costuma ser pequeno, mas não posso me
queixar, pois o que conta realmente é o saldo favorável no final de cada mês.
Até aqui a loja tem dado um lucro suficiente para nos manter.
-
Com a chegada agora da Primavera e, logo em seguida, do Verão, creio que a
tendência será aumentar as vendas consideravelmente, não?
-
De um modo geral, o comércio do vestuário aqui no Rio costuma faturar bem mais
no verão. As roupas leves têm preço menor, e o desgaste com o uso no calor é
maior. No entanto, não é exatamente isto que acontece neste meu tipo de
negócio. O aquecimento das vendas nesta época do ano, aqui na minha butique, é
quase imperceptível...
-
E por que ocorre este fenômeno?
-
Porque existem dois tipos de clientes: a que compra roupa para vestir e a que
compra roupa para exibir, e as minhas clientes, na sua maioria, estão
classificadas no segundo grupo. Como as roupas de verão são confeccionadas em
tecidos mais leves e menos resistentes, costumam durar menos. Além disso,
suja-se mais roupa com o calor e, vem daí a necessidade de se comprar mais.
Junte-se a isso que as roupas de verão costumam apresentar uma vasta variedade
de modelos e de preços, oferecendo à cliente uma maior opção. Eis aí os
principais motivos que fazem crescer o volume das vendas no comércio do
vestuário nas estações quentes do ano.
-
Mas não no seu tipo de negócio, não é isso que quer dizer?
-
Sim, porque minhas clientes são especiais. Para elas, o preço e a durabilidade
das roupas não contam, pois para quem tem o costume de cobrir o corpo com a
vaidade, tudo o mais é consequência...
-
Pelo que pude deduzir, suas clientes sentem necessidade de estrear um vestido
novo a cada vez que saem, não fazendo por isso diferença para elas a época do
ano em que estão, não é?
-
Certo, e se vendo um pouco mais no verão, é porque elas saem um pouco menos no
inverno... E assim, enquanto outras butiques concorrentes entram em crise, e algumas
são obrigadas a fechar, eu vou conseguindo manter o equilíbrio de minhas
vendas. Entra ano e sai ano, e minha posição se mantém inalterada. Minha
clientela não é grande mas é constante e fiel.
-
Mas creio que se possa fazer algo capaz de mudar o rumo das coisas para melhor,
não?
-
E porque mudar, se as coisas como estão me satisfazem plenamente?
-
Pela ambição natural do ser humano. Para fugir da estagnação. Só os fracos e
pobres de espírito não conseguem encontrar forças para lutar pelo que têm direito.
Só as criaturas passivas e conformadas não ambicionam chegar ao topo da fama e
do sucesso, e não creio que a senhora esteja incluída neste tipo de gente...
-
Por que diz isso
-
Falo assim em função da natureza de seu negócio...
-
Onde você quer chegar?
-
Em seu caso, por exemplo. Quem, como a senhora, se propõe a negociar com a
vaidade alheia, por certo deverá ser uma pessoa ambiciosa. Sua ambição existe,
isto é um fato. Ela está adormecida e possivelmente a senhora não se deu conta
disso.
-
Se sou ou não ambiciosa, não sei. O que sei é que não permito que a ambição
sobrepuje minha paz de espírito.
-
Bem mais importante que a ambição e a paz de espírito é o equilíbrio, pois é
através dele que se poderá conviver com a paz e a ambição amigavelmente, sem
que uma interfira na outra. Para cada ser humano uma escada lhe é reservada.
Muitos não sobem por medo ou incompetência. Outros sobem sem estar preparados
para isso, e caem ou ficam pelo caminho. Só alguns poucos conseguem chegar ao topo.
Mas é fundamental que todos tentem sempre, quantas vezes se fizer necessário,
enquanto tiverem vida. O importante é saber onde a escada poderá nos levar.
Sabendo isso, o resto é ter paciência, determinação e cuidado. Deve-se subir
cada degrau por vez, experimentando-o antes. Em seguida pisa-se firme e não se
deve olhar para baixo...
-
E onde eu estou em tudo isso?
-
Parada no meio da escada. Acredito até que saiba a que ponto sua escada poderá
levá-la, mas acontece que sua ambição está adormecida e precisa de alguém que a
desperte...
-
E por acaso você seria este alguém?
-
E por que não?
-
E o que é que você entende do comércio de roupas e da moda, enfim?
-
Bem menos que a senhora, quero crer, mas o suficiente para poder ajudá-la.
-
E de que forma você poderia me ser útil?
-
Promovendo a casa, procurando envolvê-la numa atmosfera de mistério e
sofisticação. Estou certo de que, com isso, traria novas clientes para a sua
butique e despertaria maior interesse nas habituais, sem com isso baixar o
nível ou ferir a classe e o estilo da casa.
-
E como isso seria possível?
-
Organizando, para começar, um grande desfile de modas com o objetivo de lançar
os novos modelos exclusivos para Primavera-Verão.
-
Que original! Nunca ouvi falar em coisa igual. Jamais uma butique lançou mão de
tal expediente para tentar fazer aumentar suas vendas. Como teve esta brilhante
ideia? - falou de forma irônica.
-
Aceito a ironia, mas pode estar certa de que nunca falei tão sério em toda a
minha vida...
-
Quanto a isso não tenho a menor dúvida.
-
A ideia em si pode não ser original, eu sei, mas funciona. As mais sofisticadas
butiques que já fizeram uso deste tipo de promoção obtiveram resultados
positivos, na maioria dos casos...
-
Eu sei, mas o que você desconhece é que essas casas trabalham de uma forma
diferente da minha. Normalmente fazem parceria com nomes da alta costura, ou
com pequenas indústrias que trabalham com modelos exclusivos. De mais a mais,
vários interesses entram em jogo num desfile de modas, tais como marcas, etiquetas,
assinaturas famosas e etc. O dinheiro gasto, apesar de alto, costuma ser
dividido. Se eu entrar numa jogada destas, entrarei sozinha. O risco será todo
e unicamente meu. Além disso, não basta que se tenha o dinheiro para investir,
faz-se necessário também que se tenha uma pessoa capaz de organizar e promover
o desfile, ou até uma firma especializada no assunto, de preferência...
-
Pois muito bem, vou procurar ser mais objetivo. Eu me proponho a organizar o
desfile e estou tão certo de seu sucesso, que estou pronto também a assinar um
termo de garantia responsabilizando-me por um eventual prejuízo. Assim a
senhora não correrá risco de espécie alguma pois, se eu fracassar, terei que
reembolsá-la tostão por tostão.
-
E se conseguir êxito, o que pretende de mim?
-
Não quero nada em troca, a não ser o prazer de alcançar uma grande vitória!
-
Mas isto não seria justo...
-
Mas é unicamente o que desejo.
-
Sejamos honestos. Não creio que esteja querendo apenas me ajudar, ou que esteja
tentando com isso dar uma satisfação ao seu ego. Teria este desfile para você
um sabor de desafio? A quem quer provar sua capacidade, a mim ou a você
próprio?
-
Quem somos nós diante da moda, se não ínfimas partículas? Não, isto seria muito
pouco para me dar satisfação. Eu quero bem mais que isto. Eu desejo, entre
outras coisas, que meu trabalho seja visto e comentado pelo alto mundo da
moda...
-
Pois muito bem, se é isto o que deseja, já deve pelo menos ter um esboço sobre
quando, como e onde pretende realizar o desfile, não?
-
Já tenho todo o esquema montado, é só acioná-lo.
-
Admitamos que eu tope a parada... De quanto vou ter que dispor em dinheiro?
-
Creio que devo gastar apenas a quarta parte do que uma casa como essa
necessitaria...
-
E de quanto seria esta quarta parte? - Interrompeu D. Dulce.
-
É a única coisa que ainda não posso precisar mas, dentro de quinze dias, na
máximo, poderei responder-lhe.
-
E o que pode me adiantar a respeito de seus planos?
-
Conhece Jean Louis Marchand?
-
Nunca ouvi falar...
-
Pois bem, dentro de pouco tempo ele será um grande nome da alta costura,
badalado e cortejado pela imprensa, e os modelos que vamos lançar levarão a sua
assinatura...
-
Isto não será possível pois já tenho Magda, uma excelente modista.
-
Este foi o seu primeiro erro - interrompeu Bill. De um modo geral, a mulher não
confia noutra mulher, principalmente quando se trata de assuntos ligados
diretamente a ela, mulher, como sua saúde íntima e sua beleza. É na figura do
homem que a mulher vê seu médico ginecologista, seu massagista, seu
cabeleireiro e etc. Assim também é na moda, que através dos séculos vem sendo
ditada pelo homem.
-
Você não está me dizendo nada de novo... Esta tese é antiga e sempre foi bem
defendida...
-
Eu seria ingênuo - interrompeu Bill - se pensasse estar levantando uma tese
nova, mas me vi obrigado a fazê-lo pois me parece que a senhora não crê no
assunto, muito embora não o desconheça. Mas a estatística não mente, e os
números estão aí mesmo para comprovar o que digo.
-
Não se trata disso, nem minha opinião sobre o assunto está em jogo. O que quero
dizer é que não posso substituir Magda. Não seria justo. Cometeria uma das
maiores ingratidões de minha vida com uma pessoa amiga, fiel, e antes de tudo
capaz. Magda foi quem melhor costurou pra mim, e foi daí que me veio a idéia de
abrir a butique. Devo a ela grande parte do que até aqui consegui...
-
Mas quem foi que falou que terá que despedi-la. E é bom que seja mesmo muito
competente, pois se foi de vital importância até aqui, de agora em diante será
imprescindível, só que de uma maneira diferente. No mundo nada se cria e tudo
se transforma. Chegou a hora da senhora fazer por Magda o que penso que ainda
não fez. De recompensá-la por todos esses anos de luta e dedicação...
-
Como assim? Não estou lhe entendendo...
-
Para começar, dê a ela um substancial aumento em seu ordenado e, em seguida,
lhe ofereça participação no que ela produzir.
-
Mas como posso fazer isso, e ao mesmo tempo contratar um costureiro famoso?
Você ficou maluco?
-
Mas quem falou aqui em contratar um costureiro famoso? O que a senhora terá que
fazer é arranjar uma promoção para Magda. A partir de agora ela será Jean Louis
Marchand, e só poucas pessoas poderão saber disso...
-
Quer dizer que Jean Louis Marchand não existe?
-
Nunca existiu, a não ser na minha imaginação.
-
Ah, já começo a entender... Mas isso é uma loucura!
-
E o que é a moda?
-
Mas como poderemos guardar este segredo por muito tempo? E se esta farsa for
descoberta, como ficarei? Provavelmente arruinada!
-
Absolutamente. Se posso fazer nascer um personagem, saberei também como
ocultá-lo. Confie em mim, pois sei perfeitamente como e quando fazer com que o
nome de Jean Louis Marchand venha a público.
-
Não posso negar que seu plano me excita ao mesmo tempo que me apavora. Eu sei
que as pessoas não gostam de se sentir ludibriadas, e é por isso que receio
correr tamanho risco...
-
A vida é feita de riscos, e o primeiro, corremos logo ao nascer. E é a partir
daquele momento que passamos a correr toda a sorte de riscos, em quase tudo que
fazemos, e isto é um fato. E por que somos obrigados a passar por tantos riscos
assim? Porque a vida é um jogo permanente no qual temos sempre que apostar. E
se a aposta é um risco, quanto mais arriscamos, mais chances teremos de ganhar.
E isto é mais que um fato, é uma proporção aritmética. Do risco não vamos poder
fugir, mas estou certo de que se alguma perda tivermos, ela será coberta pelo
inusitado da promoção. Imagine uma personalidade autossuficiente, irreverente e
que, embora extremamente vaidosa, prefira se manter oculta enquanto muitos
escrevem sobre ela. Pense no que a opinião pública irá dizer, quando, sacudida
pela curiosidade que este tipo, envolto em mistério, por certo despertará.
Reflita e me diga se vale ou não vale a pena tentar.
Por
algum tempo fizeram silêncio. Enquanto ele, em pensamento, criava situações,
ela imaginava-as. Foi D. Dulce quem voltou a falar:
-
Se você tivesse acabado de me apresentar uma proposta para realizar apenas um
desfile, simplesmente eu a teria recusado. No entanto, diante do absurdo, de um
plano aparentemente louco, prometo que vou pensar sobre o assunto.
-
E quando acha que pode me dar sua resposta?
-
Assim que você estiver de posse do orçamento definitivo, e em condições de me
adiantar os demais detalhes do plano.
-
Perfeito, ficamos assim combinados.
Mariinha,
que tinha se juntado aos dois quase no fim da conversa, pouco pôde entender do
que ouviu, mas logo depois teve sua curiosidade saciada por Bill, enquanto
passeavam de mãos dadas próximo da orla marítima. Mariinha vibrou com o plano
do namorado, e a ele prometeu irrestrita colaboração. No fim, falou com
entusiasmo:
-
Estou confiante de que mamãe irá aceitar a sua ideia, meu amor, e acredito
plenamente em seu sucesso.
Bill
estava eufórico demais. Assim que chegou em casa telefonou para Fernando e
combinou com ele um encontro para aquela noite. Precisava contar a novidade
para o amigo.
-
Você me surpreende - falou Fernando, depois de ouvir sobre a conversa que Bill
tivera com D. Dulce, e sobre algumas providências que o amigo pretendia tomar
imediatamente: - Quanto você espera ganhar se tudo der certo? Sim, porque é por dinheiro que você vai fazer
isso, não?
-
Não - respondeu Bill, secamente.
-
Se não é por dinheiro, por qual motivo então? Nunca ouvi você falar em
moda... Ah, já sei. Você está tentando
impressionar mãe e filha ao mesmo tempo, não é? Claro, só poderia ser isso.
Você está apaixonado por Mariinha e pretende conquistar D. Dulce também, não?
Quer formar um novo triângulo amoroso para reviver um outro que tanto marcou
sua vida, não é verdade?
-
Por ser meu melhor amigo, pensei que me conhecesse melhor. Não diga tantas
tolices e nem faça com que eu me arrependa de ter vindo lhe falar - disse Bill,
num tom aborrecido. Nada do que falou faz sentido. É Mariinha quem está
apaixonada por mim, e não eu por ela, logo nada preciso fazer para
impressioná-la e D. Dulce, acredite ou não, não faz meu tipo...
-
Pombas! Se não é por dinheiro nem por mulher, desisto. Juro que não estou mais
entendendo você.
-
Quer dizer que é só sexo e dinheiro que contam? É só nessas coisas que sua
cabeça consegue pensar?
-
Mas você já pensou assim também, não? Ou eu estou enganado? Estou queimando de
curiosidade. O que você descobriu de tão importante como sexo e dinheiro para
motivá-lo?
-
Eu ainda acredito que tanto o sexo quanto o dinheiro são imprescindíveis e que
caminham juntos, mas não podemos nos limitar a isso. Não devemos viver
restritos a este círculo vicioso de dinheiro para o sexo, e sexo para o
dinheiro...
-
Mais uma vez, repito, você me surpreende! Nunca pensei que fosse encontrar tão
depressa uma nova filosofia de vida. Talvez até a razão esteja com você, e eu
vou esperar para ver.
-
Os cientistas afirmam que o sexo já nasce com a criança, mas é um sexo
inconsciente, instintivo. Lentamente ele vai sendo desenvolvido até que a
criança dele tenha percepção. A criança continua crescendo, e neste segundo
estágio ela vai recebendo dos pais, dos educadores e da própria vida, enfim, o
aprendizado teórico sobre a matéria. E é só quando atinge o terceiro estágio, a
puberdade, é que o indivíduo está apto para por em prática o que começou a
aprender desde o primeiro momento de sua vida.
-
E por que está me dizendo tudo isso? Me julga um imbecil?
-
Estou tentando demonstrar com que cuidado a natureza prepara o ser humano para
o sexo, e, se não fosse assim, se alguém de repente, abruptamente, fosse
despertado para o sexo, receberia tal impacto, que seu cérebro seria afetado e
poderia sofrer danos irreparáveis.
-
E daí, professor, aonde pretende chegar?
-
Até a idade adulta, quando paramos de crescer externamente e nos deparamos com
duas opções...
-
Que opções?
-
Ou paramos no tempo e no espaço, ou continuamos a crescer, só que agora,
internamente. E, ao optarmos pelo segundo caso, passamos a descortinar novos
horizontes e a descobrir novos interesses que não sejam apenas sexo e dinheiro.
-
Sensacional! - exclamou Fernando, com ironia. Procure exemplificar, por favor.
-
Pois muito bem. Você já tentou fazer algo grandioso, diferente de tudo o que
habitualmente faz e do que se julga capaz? Sim, um desafio puro e simples, sem
subterfúgios e segundas intenções, onde a vaidade e a exibição cederão lugar ao
simples desejo de ver sobrepujada a própria força? Pois bem, o desfile que
pretendo realizar, será para mim um grande desafio. Você ainda há pouco disse
que nunca me ouviu falar em moda, logo, em sã consciência, não deverá apostar
em mim. Se o fizer será por amizade, por conhecer minha determinação e confiar
na minha capacidade de trabalho, mas jamais por dar crédito aos meus
conhecimentos no assunto, estou certo?
-
Sim, está, mas continuo a acreditar que por trás de tudo isso existe algo mais
que você ainda não me revelou, e volto a afirmar que todos os caminhos nos
levam à Roma.
-
O que você quer dizer com isso?
-
Quero dizer que se você for bem sucedido ganhará prestígio, que o prestígio lhe
trará dinheiro e não creio que você desconheça que são esses dois predicados no
homem que mais atraem as mulheres. Elas gostam de andar ao lado do homem que
tem prestígio e do homem que tem dinheiro. Juntando a isso a sua juventude e
boa aparência, você será um alvo perfeito.
-
Mas assim você está desprezando o intelecto. A mulher também sabe apreciar um
homem culto e...
-
Sim, eu sei - interrompeu - mas se ele for pobre e desconhecido terá dela
apenas tempo suficiente para demonstrar seu valor durante um prosa agradável,
sem maiores implicações sentimentais que possam depois comprometer a mulher...
-
Então você desconhece o fato de que a história registrou, através dos tempos,
casos de mulheres belas, ricas e famosas que se envolveram com homens, até
então desconhecidos, apenas por amor...
-
Não, não desconheço, mas sempre achei injusto e desleal. O amor, embora
inocente, sempre foi o suspeito número um de casos desta natureza. O amor
sempre foi a vítima, enquanto que a frustração e a vaidade feminina foram
sempre os verdadeiros culpados. Estas mulheres que fizeram história eram
criaturas sexualmente insatisfeitas que, ao descobrir num novo amante
potencialidades também no campo artístico-cultural, investiam neles seu
prestígio, na esperança de torná-los ricos e famosos para tê-los depois no
mesmo pé de igualdade.
-
Assim você está negando a história...
-
Não, apenas interpretando-a a meu modo. Desde que o mundo é mundo que a mulher
espera que a cultura no homem venha acompanhada de algo mais visível, como a
fama, a fortuna, ou ambas as coisas. Para a mulher, cultura no homem é um
acessório de luxo, como uma forração de couro num "Jaguar". De pouco
vale para ela um homem culto escondido no anonimato ou atolado em dívidas. Este
tipo de homem a mulher costuma desprezar porque, apesar de ser um intelectual,
não teve inteligência suficiente para comercializar sua cultura e com isso se
tornar um vitorioso. As pessoas costumam confundir cultura com inteligência.
-
Mas então, para você, a mulher não passa de uma mercenária.
-
Não chego a afirmar tanto, mas acredito que por ser a mulher muito prática,
sabe usar a razão bem mais que a emoção. Ela sabe, por exemplo, que cultura é
um bem adquirido, e que a inteligência é um dom desenvolvível...
-
Você está generalizando perigosamente. Existem mulheres desinteressadas que...
-
Perdoe-me - interrompeu - se não fui feliz e lhe dei a impressão de estar
generalizando. É claro que existe um outro tipo de mulher, mas não a
desinteressada como diz, pois esta não creio que exista. O que existe realmente,
é a mulher acomodada, conformada. Aquela que ao se sentir inferior por se
julgar pobre, feia e sem atrativos, não encontra forças para lutar e assim se
torna incapaz de escolher, de exigir da vida o melhor. Para essas não importa
que o homem seja feio, burro e pobre, ela até o prefere assim, pois é na
obscuridade e na insignificância desse homem que ela se sente mais protegida.
Mas quando eu ainda há pouco falava da mulher, estava me referindo a mulher com
"M" maiúsculo. A mulher símbolo, a mulher outdoor, a mulher mito.
Aquela que consegue reunir beleza e inteligência, cultura e sofisticação,
elegância e simpatia. Que saiba ser sexy sem ser vulgar. Enfim, a mulher que
todos nós homens desejamos.
-
Dentre os predicados que enumerou, você não falou na honestidade. Foi
proposital ou foi por esquecimento? Ou você não acredita também que haja mulher
honesta?
-
Claro que acredito, e se não falei em honestidade, é porque não acho que seja
um predicado fundamental. Para a mulher, a honestidade não deve ser dever ou
qualidade, e sim uma opção. Ela será honesta enquanto a honestidade lhe convier
ou lhe favorecer, e deixará de sê-lo pelo mesmo motivo. Bem, mas do que
estávamos falando mesmo, heim?
Os
dois acabaram rindo, e logo depois era Bill quem voltava a falar:
-
Se não me engano, eu estava tentando falar sobre os meus planos para o desfile,
quando você atacou com este tratado sobre a mulher.
-
É verdade, e eu estou curioso para ouvir o que você tem a me dizer. Mas me diga
antes uma coisa, para encerrarmos este assunto. Existe ou não uma mulher por
trás de tudo isso?
-
Existe.
-
Eu sabia... Claro que teria que existir, ou você já não seria mais o Bill, meu
amigo de tanto tempo...
-
Bem, mas esta mulher que vi apenas uma vez, e de uma certa distância, não é o
motivo principal. Quando muito poderá ser a motivação maior para que eu realize
algo diferente. Para mim, o objetivo principal é organizar um desfile de modas,
mas será também um desafio que me propus a enfrentar e vencer desde o dia em
que conheci Estela.
-
Estela!? E onde foi que você conheceu esta mulher que tanto o impressionou?
-
Num desfile de modas no Copacabana Palace Hotel, promovido por uma grande
fábrica de São Paulo. Fui acompanhando Mariinha, que por sua vez foi lá comprar
alguns modelos para a butique de sua mãe.
-
Já sei, e Estela era uma dessas granfinas cheias de dinheiro...
-
Nada disso - interrompeu Bill.
-
Um manequim elegante, então? - arriscou Fernando mais uma vez.
-
Errou de novo. Estela estava lá para fazer a cobertura do acontecimento para a
mais importante revista do país onde trabalha como editora de moda. E acredite,
foi a mulher com mais charme, classe e elegância que eu já vi em toda a minha
vida!
-
E ela o viu?
-
Nem me notou, o que eu achei ótimo, pois só assim me deu tempo de arquitetar
meu plano.
-
Você tentou se aproximar dela?
-
Não, mas pude descobrir depois quase tudo a seu respeito. Agora não será
interessante para mim que eu me apresente a ela, e sim, que ela venha a me
conhecer. Pretendo me colocar como um alvo, pois sei que assim poderei lutar em
igualdade de condições.
-
Já sei, você será o responsável direto pelo desfile e ela a convidada. Se tudo
der certo, você terá todos os méritos e assim espera que ela venha a se
interessar por você, e por seu trabalho, não é assim?
-
Perfeito! E aí então é que vamos ver quem tem mais charme...
-
E se você fracassar?
-
O fracasso nunca fez parte dos meus planos, mas se isso acontecer, eu terei de
esquecer que um dia vi uma mulher interessante e irresistível - e Bill foi
saindo de fininho, com um sorriso de segurança em seu rosto.
CAPÍTULO 26
Paris, Verão
de 1942
Para
Giacomo o tempo em Paris passara depressa. A ocupação nazista não conseguiu
destruir de todo o espírito da Capital francesa. A beleza da grande metrópole
era indestrutível, e até o frenesi que ela costuma despertar nas pessoas que a
visitam, ainda era sentido. O perfume incomparável e o fino vinho continuavam a
ser apreciados, respectivamente, nas mulheres e nas mesas. Por ser uma cidade
eminentemente feminina, Paris continuava a distribuir aroma e teimosia. Se a
guerra impunha restrições e racionamentos, logo era encontrado um substituto
para os artigos escassos. Se os veículos motorizados rareavam, as bicicletas proliferavam;
se a alegria espontânea era suprimida, os espetáculos cômicos se multiplicavam.
Nos cinemas, nos teatros e nas tradicionais casas de espetáculos de variedades,
a afluência de público era cada vez maior. Assim, boa parte da população
encontrava como e onde se distrair, e tais divertimentos tinham para a dor do
povo um efeito anestésico.
Um
pouco mais de um ano já tinha se passado sem que Giacomo se desse conta.
Trabalhava em sistema de rodízio, dava plantões e ainda, devido a um pedido de
seu superior, resolveu fazer um curso intensivo de enfermagem para melhor
atender as necessidades da Cruz Vermelha. Seu ritmo de vida era intenso e,
quando estava de folga no hospital podia ser encontrado nos melhores centros
noturnos de diversão onde, além de se divertir, servia à Resistência mantendo
contatos, conhecendo pessoas, recolhendo e passando informações. Por ser muito
comunicativo e por ter vindo bem recomendado, logo conseguiu fazer um bom
relacionamento com os novos companheiros de trabalho, apesar de sua origem
italiana despertar reservas. Marcel Martinelli era o nome que constava nos
documentos pelo qual era conhecido. Assim que chegou soube do quanto estava
sendo aguardado, e isso, para quem passou boa parte da adolescência sonhando um
dia conhecer a Capital da França, fez com que Giacomo se sentisse gratificado.
Seu
primeiro fim de semana em Paris, ao lado do Dr. Louch, não poderia ter sido
melhor. O aroma do campo parecia ter chegado à cidade junto com eles, ao cair
da tarde daquele sábado primaveril. Depois de atravessar as principais
avenidas, o carro de Dr. Louch parou em frente a um prédio antigo de três
andares, numa rua estreita e de pouco movimento. A partir daquele momento, ali
seria o endereço de Giacomo enquanto estivesse em Paris. A "Organização"
se incumbira de reservar para ele as acomodações, depois de um estudo prévio do
local, que além de discreto era acessível.
Ficava a poucas quadras do centro da cidade e era servido pelo Metrô. No
prédio não havia elevador. O quarto, de frente para a rua, ficava no último
pavimento e era bem espaçoso. Havia nele ainda, camuflada pelo forro, uma saída
de emergência que poderia permitir a Giacomo sua fuga pelos telhados do prédio.
O mobiliário era simples, mas suficiente para um rapaz solteiro: cama,
guarda-roupa, mesa de cabeceira, pia com espelho e um pequeno fogão. O banheiro
ficava nos fundos do corredor, e os hóspedes ainda podiam usar o telefone que
ficava no hall do prédio.
Giacomo
desfez as malas, barbeou-se, tomou banho, e ficou na janela apreciando a vista
enquanto aguardava a chegada do Dr. Louch que tinha ido visitar a irmã. Às oito
horas da noite estavam eles dois em Saint-Germais-des-Prés, jantando com os
Fontaines. Comeram e beberam muito, e assim que as portas do restaurante foram
fechadas, puderam conversar mais à vontade. Logo que soube que Giacomo fora
membro do grupo liderado por seu filho Pierre, Monsieur Fontaine passou a
dedicar ao rapaz um carinho todo especial.
Passava
de meia-noite quando deixaram o restaurante e Dr. Louch, embora cansado, não se
negou a servir de guia turístico a Giacomo que ainda encontrava disposição para
uma ronda pelos principais bares daquele bairro boêmio. Lá pelas tantas
entraram num cabaré onde o vozerio, aliado ao som dos metais, era ensurdecedor.
Mal podendo escutar o que eles próprios diziam, passaram a se comunicar por
sinais. Uma nuvem espessa de fumaça transformava as pessoas em vultos trêmulos
à distância. Apesar do ambiente sufocante, a música era de primeira qualidade e
o show que estava sendo apresentado naquele momento parecia ser interessante.
Espremidos numa mesa de canto conseguida com dificuldade, pediram conhaque e
ficaram apreciando os movimentos exóticos de uma casal de dançarinos. A certa
altura, Dr. Louch pousou a cabeça sobre a mesa para descansar a vista e
adormeceu. Ao ser despertado por uma nota aguda do pistão, percebeu que Giacomo
não estava mais ali a seu lado, e ficou preocupado. Depois de indagar a um e a
outro e de distribuir gorjetas entre os garçons, foi encontrar o amigo num
hotelzinho barato, a poucos metros de onde estavam. Giacomo dormia um sono
profundo e roncava com o nariz enfiado entre dois fartos seios de uma
profissional de strip-tease.
O
tom marinho já não reinava absoluto no azul do céu quando o pequeno Renault do
Dr. Louch deixou o bairro boêmio. Os tons celeste e turquesa já se faziam
presentes e, interpondo-se entre eles, alguns filetes de maravilha. Tudo levava
a crer que aquelas cores no céu eram prenúncio de um domingo de sol radioso
dentro da Primavera parisiense. Devido ao adiantado da hora, o Dr. Louch
resolveu levar o amigo direto para a casa de sua irmã Madelaine. Afinal o
domingo já estava amanhecendo, e Giacomo fora convidado para almoçar naquele
dia com os Louchs.
Os
primeiros raios de sol já tinham penetrado no quarto, através da cortina,
quando os dois conseguiram adormecer. Às dez horas da manhã, vendo que o irmão
não levantava, Madelaine apareceu trazendo café e brioches numa bandeja e se
surpreendeu com a presença do amigo do doutor. Às duas da tarde o almoço foi
servido e logo Giacomo se embevecia com a hospitalidade e o carinho da
anfitriã.
-
Sou um privilegiado - disse ele - pois em menos de 24 horas tive a oportunidade
de conhecer duas famílias maravilhosas! Desde que deixei a casa de meus pais
não me sentia tão à vontade.
-
Qual é a sua impressão de Paris? - perguntou Madelaine.
-
Do pouco que pude ver, só posso ter palavras elogiosas, e fico imaginando como
seria esta cidade se estivesse gozando de plena liberdade...
-
Muito em breve você a verá livre. Assim como nunca imaginávamos ser possível
ver nossa cidade tomada por outro povo, não acreditamos que esta ocupação
perdure por muito tempo. A invasão inimiga não nos surpreendeu tanto quanto a
traição de alguns compatriotas, e foi por isso que capitulamos sem luta.
Vejamos a Inglaterra. O que é a Inglaterra, senão uma grande ilha? Mas não é
uma ilha que possa ser descrita como um simples acidente geográfico, não. A Inglaterra
é um pedaço de terra cercada de orgulho por todos os lados. O povo inglês não
se entrega, e se um dia o poderio alemão conseguir varrer a Inglaterra do mapa,
restará o orgulho britânico boiando à flor d'água ao lado dos destroços.
-
Mas o povo francês já se refez do impacto surpresa e já despertou para a
realidade - falou Giacomo.
-
Sim, já lutamos bravamente - comentou Dr. Louch - e todas as nossas forças
estão sendo mobilizadas.
-
Sim, é verdade. Estávamos adormecidos como um vulcão extinto, mas já iniciamos
lentamente o processo de erupção. Nossa luta é subterrânea. Vem de baixo pra
cima. E quando as lavas do patriotismo se espalharem pela superfície,
transformaremos em cinzas os nossos inimigos - falou Madelaine, dando maior
ênfase às últimas palavras.
- A
índole do nosso povo é pacífica - comentou Dr. Louch. Nós cultuamos a arte e a
liberdade por serem elas formas primordiais de vida e, por isso, não temos
intimidade com a violência. Mas que não se iludam os nossos inimigos, e não
confundam um pacifista com um covarde...
-
Sim, porque quanto mais livre e pacífico for um povo, mais valente ele poderá
se tornar ao ver tolhida a sua liberdade. Quem sempre foi livre e de repente
passa a ser escravo, pode ver na morte uma forma de liberdade. E quando isto
acontece a um cidadão comum, ele adquire uma coragem suicida e passa a ser um
herói em potencial.
A
cultura, a eloquência, o orgulho, o patriotismo e sobretudo a simplicidade de
Madelaine cativavam Giacomo cada vez mais. Durante muito tempo ainda conversaram
sobre a guerra e suas consequências. Ela sabia muito a respeito de Giacomo e
por isso ele pouco precisou falar sobre sua vida.
-
Sempre defendi a tese de que os destinos dos povos estão traçados - disse ela.
Assim como teríamos que passar por estas provações, você teria que vir lutar
por nossa liberdade. Você, Giacomo, é um exemplo típico do que pretendo provar.
Quis o destino que meu irmão fosse morar em Gênova, que conhecesse sua família,
e que em parte fosse ele o responsável por sua cura. Adveio daí em você, talvez
até subconscientemente como forma de gratidão, uma amizade por nossa terra, por
nosso povo e um desejo que durante muito tempo acalentou de um dia vir até aqui
para nos conhecer. Livre do mal que poderia lhe tirar a vida, ou aprisioná-lo
para sempre numa cadeira de rodas, você cresceu dentro de um dos primordiais
princípios da liberdade - o direito de se locomover, de ir e vir livremente.
Quando a guerra sacudiu o mundo e nazismo e fascismo passaram a formar o mesmo
bloco, você sentiu pela segunda vez sua liberdade ameaçada. Ao ver seus pais
adeptos de um regime de força, você se sentiu tolhido em mais um de seus
direitos - o direito da palavra, e logo entendeu que nem dentro de sua própria
casa poderia expressar seus sentimentos. E antes que lhe roubassem o direito de
pensar, você decidiu fugir. E para onde deveria ir se não para a França de seu
amigo Christian Louch, o homem que você conheceu e aprendeu a admirar, e que
sabia ser tão livre quanto você? Mas como poderia se sentir livre, aqui, se a
França já tinha sido ocupada quando por ela se decidiu? Foi aí que você fez a
descoberta mais importante de toda a sua vida, e compreendeu que a liberdade
pode ser como a felicidade, um estado de espírito. E foi sabendo que aqui não
estaria livre, mas se sentiria como tal, que resolveu vir para nos ajudar a
recuperar a nossa liberdade.
Mais
de um ano separava Giacomo daquele seu primeiro fim de semana em Paris, e
durante todo aquele tempo fez por merecer a confiança que nele foi depositada.
O verão de 1942 chegara trazendo novas esperanças e, naquela quarta-feira
ensolarada, ele estava de folga. Chegou exausto do hospital, depois de ter dado
48 horas de plantão. Após um banho reconfortante, recostou-se na cama para ler
um jornal e acabou adormecendo. Acordou sobressaltado com alguém batendo na
porta.
-
Sou um bom gourmet, posso entrar?
Para
Giacomo, aquelas palavras representavam uma senha, e era um meio seguro que
tinha para identificar alguém ligado à Resistência. Ainda sonolento, ele deu
passagem a um homem baixo, muito magro, e que aparentava ter mais de sessenta
anos.
-
Entre e fique à vontade. O que deseja, senhor?
-
Sou proprietário desse prédio e, como já deve ter notado, não moro aqui. A
partir desse momento, serei seu principal contato em Paris...
-
Muito prazer, senhor...
-
Mauriac. Pode me chamar de Mauriac.
-
Marcel Martinelli, às suas ordens.
-
Não se preocupe. Sei tudo a seu respeito. Você é parisiense, mas teve que morar
muito tempo na Itália por causa de seus pais, e logo que eles morreram você
resolveu voltar para sua pátria, não é verdade?
-
Perfeito - disse Giacomo, engolindo o riso.
-
Entre outras coisas, estou aqui para trocarmos informações. Fale-me do que tem
feito ultimamente e me de notícias de Pierre e seu grupo.
Durante
algum tempo conversaram e, depois de um instante de silêncio, voltou a falar o
senhor Mauriac:
-
Sabe por que está em Paris?
-
Bem, durante muito tempo tentei minha transferência para cá...
- E
pensa que foi Dr. Louch que a conseguiu, não?
-
Sim, é o que penso.
-
Bem, o doutor goza de muito prestígio, e você foi bem recomendado por ele, mas
na verdade você está aqui por seus próprios méritos e porque entendemos que em
Paris nos seria de maior utilidade. Você passou em todos os testes a que foi
submetido durante todo o tempo em que esteve vigiado, e posso lhe dizer que até
aqui não anotamos um só deslize. Espero que não fique ofendido com o que vou
lhe dizer, mas sua origem italiana fez despertar suspeitas, e fomos obrigados a
tomar todas as precauções.
-
Não estou ofendido, muito pelo contrário. Suas palavras conseguiram aliviar o
peso que carrego no meu nome de família. Só posso dizer que estou feliz de
merecer agora a confiança de vocês...
-
Em tempo de guerra todos são suspeitos. Assim como é possível descobrir um
traidor entre os amigos, podemos encontrar um cooperador entre os inimigos. Por
isso vivemos a espionar uns aos outros. É bom não esquecer que confiança tem
limite. Você até aqui só foi testado por nossos amigos, e não sabe ainda o que
vem a ser uma tentação inimiga. Os nazistas nem sempre usam a força como meio
de persuasão para recrutar aliados à sua causa ou para obter informações. Só os
burros e os desesperados é que costumam agir sempre com violência. Um dia você
poderá ser tentado a trocar o que sabe por muito dinheiro e proteção, e aí
então é que seu caráter, coragem e patriotismo poderão ter um melhor
julgamento.
-
Espero que esta ocasião, se chegar, responda por mim. Dou mais valor à
liberdade do que a minha própria vida, que é a única coisa que pela liberdade
posso trocar...
-
Pois bem, quero que saiba que até aqui você tem sido muito importante para nós.
O bom relacionamento que vem conseguindo manter com pessoas influentes faz com
que esteja sempre a par dos principais acontecimentos da cidade. Com isso tem
conseguido enviar preciosas informações para o interior do país. Só posso dizer
que até aqui estamos satisfeitos por ter sido você, entre tantos, o escolhido
para desempenhar tal função.
- E
por que acha realmente que preferiram a mim?
-
Além da coragem e sangue frio que já nos tinha provado, a sua ficha foi a mais
completa que nos foi apresentada, e certos requisitos pesaram muito a seu favor
tais como saber nadar, dirigir, atirar, dominar bem os idiomas francês, inglês
e italiano, além das noções que possui da língua alemã. E, o mais importante de
tudo, é o acesso que tem a certas áreas e o trânsito livre, por servir à Cruz
Vermelha Internacional. Por esse conjunto de predicados você foi o escolhido, e
por estar se saindo muito bem, é que mandaram-me até aqui para comunicar-lhe
que acaba de ser designado para uma missão especial...
-
Que tipo de missão? Estou ansioso para fazer algo diferente...
-
Chegamos à conclusão de que estamos sendo traídos. Alguém do nosso grupo ou
ligado a ele é um agente duplo, e você terá que descobri-lo para nós...
- E
como chegaram a esta conclusão?
-
Vários indícios nos levaram a esse raciocínio, sendo que o mais importante é
que percebemos que algumas mensagens codificadas foram cair em mãos inimigas...
-
Não teria o inimigo escutado as conversas através de um aparelho telefônico
grampeado, ou mesmo captado transmissões de um rádio amador, e depois decifrado
as mensagens?
-
Estas hipóteses foram afastadas, pois as mensagens as quais nos referimos,
foram passadas ao pé do ouvido de um agente para outro, e nem mesmo foram
escritas.
-
Bem, neste caso, penso que tudo fica mais fácil. É só investigarmos as pessoas
envolvidas no circuito...
-
Parece simples, mas não é. O número de agentes e informantes que costumam
formar esta corrente é bem maior do que se possa imaginar, e são pessoas que, por nos terem prestado
relevantes serviços, fizeram por merecer nossa inteira confiança. Como vê, esta
será uma missão delicada que irá exigir de você muito mais do que tudo que fez
até aqui. Você terá que pôr em ação todo o potencial de que dispõe. Ponha em
evidência o seu poder de persuasão, e mostre-se ao mesmo tempo frio, sutil,
paciente e obstinado. Não se deixe levar por aparências, pois se seguir uma pista
falsa poderá destruir um dos nossos homens, e fará com que o verdadeiro traidor
jamais seja descoberto. E agora que está a par de tudo, eu pergunto, podemos
contar com você?
-
Perfeitamente, mas antes gostaria de saber como vocês descobriram que algumas de
nossas mensagens foram parar em mãos inimigas.
- O
mais evidente dos fatos é que lamentavelmente alguns de nossos homens foram
capturados das maneiras mais estranhas possíveis, inclusive um garoto de quinze
anos, e em todos estes casos estas pessoas eram receptadoras das tais
mensagens. Tem mais alguma pergunta a fazer?
-
Sim, quando e por onde devo começar?
- O
mais rápido possível. Você receberá nomes e endereços de pessoas para
investigar, e , toda vez que isto acontecer, procure logo gravar na memória os
dados para não ter que manter em seu poder listas comprometedoras. E lembre-se
bem, só use a violência em caso extremo. Sua missão é descobrir quem está nos
traindo, que tanto pode ser um homem como uma mulher. Mas é importante que nos
entregue esta pessoa viva, pois nós sabemos o que fazer com ela. Assim que
descobrir algo concreto, ou sempre que precisar de auxílio, procure-me.
- E
como devo fazer para encontrá-lo?
-
Na esquina desta rua, como você já deve saber, há uma tabacaria. Vá até lá e
compre um maço de cigarros desta marca - mostrou um maço de cigarros a Giacomo.
Em seguida, atravesse a rua e deixe os cigarros com o dono da loja de consertos
de bicicletas. Não precisará dizer uma só palavra, pois ele saberá que os
cigarros são para mim, e eu saberei que é você que quer falar comigo. Assim que
puder, entro em contato com você.
Assim
que Monsieur Mauriac saiu, Giacomo tentou dormir e não conseguiu. Exausto e
tenso ao mesmo tempo, ficou rolando na cama na tentativa inútil de recuperar o
sono perdido. Levantou-se, trocou de roupa e saiu. Usou o Metrô para ir até o
centro. Parou para olhar algumas vitrines, almoçou num pequeno restaurante e,
em seguida, entrou num cinema. Não conseguiu ver o filme porque dormiu até
terminar a sessão.
"Em
tempo de guerra todos são suspeitos" - dissera o velho Mauriac. Será que
recebi a árdua missão para investigar nomes, para poder ser investigado melhor?
- pensou Giacomo.
CAPÍTULO 27
O desfile
Bill
fez o levantamento das despesas em menos de duas semanas e o apresentou a D.
Dulce antes do prazo combinado. Ela não só concordou com o orçamento, como com
todos os itens do plano, dando ao rapaz carta branca para trabalhar. E ele
trabalhou como um mouro. Com determinação e constância incríveis, a ponto de
abdicar de tudo que lhe poderia desviar da meta a atingir. Seu primeiro passo
foi levantar nomes e endereços de pessoas da alta sociedade que não poderiam
deixar de fazer parte da lista de convidados. Além de alguns parentes e amigos
de Bill terem colaborado com ele nesta tarefa, um cronista social também foi
mobilizado, e sua participação foi de grande valia.
Os
pais de Bill tinham amigos influentes e bem relacionados e, desta forma, não
foi difícil ao rapaz conseguir um bom local para o desfile. Um dos principais
clubes da Zona Sul concordara em ceder sem ônus suas instalações, e um de seus
salões, amplo e confortável, ficara reservado e pronto para ser usado no
momento oportuno.
Bill
fez questão de desenhar o convite, impresso na gráfica do pai de um de seus
amigos. Em sua confecção foi usado papel de primeira e Bill só teve que pagar o
custo do material empregado.
Tomadas
as primeiras providências, Bill passou à segunda etapa que seria a da escolha
dos profissionais capazes de desenvolver tudo o que ele já havia projetado. E
assim foram contratados um cenógrafo, um técnico de som e outro de iluminação,
3 manequins e um quinteto musical. Bill pretendia que seu desfile se
constituísse num marco, e para isso seria preciso que fosse diferente de tudo
que já havia sido apresentado no gênero. Um verdadeiro show de luzes, cores,
sons e ritmos, que pudesse proporcionar uma atmosfera capaz de valorizar cada
detalhe dos modelos a serem ali apresentados, pois estes sim é que deveriam ser
os verdadeiros astros do grande espetáculo. E foi assim, dentro desse espírito
criativo, que ele passou a interferir em todos os setores da produção,
apresentando sugestões para efeitos de luz, para a composição do palco e da
passarela e para a escolha do repertório musical.
Além
das três manequins profissionais contratadas com a finalidade de apresentarem
os modelos clássicos da coleção, cinco belas garotas, todas com invejável
plástica e muito ritmo, comporiam o desfile, e a elas caberia a apresentação
dos modelos jovens e esportivos. Tinham sido selecionadas entre tantas outras
que, como elas, faziam parte das amizades de Bill e sua turma. Como não eram
profissionais e nem sequer tinham tido experiências anteriores, bastaria que se
apresentassem da maneira mais informal possível. Ao invés de desfilar teriam
apenas que dançar com a graça e o charme os sucessos musicais do momento, como
sempre faziam nas festas e boates que costumavam frequentar. Para que isso
fosse possível, Bill providenciara uma trilha sonora, e a gravação das músicas
em fita seria projetada pela moderna aparelhagem de som que o clube dispunha.
Um
conhecido locutor de rádio, de voz suave e bem impostada, que costumava jogar
voleibol na praia com a rapaziada, quando soube a respeito do desfile ficou tão
empolgado com as ideias de Bill, que se propôs a fazer a apresentação sem
cobrar um só níquel por seu trabalho. Seu entusiasmo ficou evidenciado quando
declarou que, para um artista, nem sempre o dinheiro é o fundamental e
participar daquele desfile poderia ser para ele promocionalmente um bom
negócio.
Simultaneamente
a estas providências, D. Magda trabalhava arduamente com sua equipe na
confecção dos modelos, na sua maioria de sua própria criação. Mas, para
surpresa de todos, Bill resolveu participar também deste setor, ajudando a
selecionar os modelos, desenhando alguns e recriando outros, todos inspirados
nas revistas francesas de sua mãe.
Mas
Bill sabia que ainda estava faltando o principal. Mais importante que as partes
técnicas e artísticas era o lado promocional, e era neste último que ele iria
investir a maior parte do seu potencial imaginativo. A partir daquele momento ele
sabia que teria que concentrar todas as suas forças no serviço de relações
públicas, pois a verba de que dispunha para a publicidade era quase nenhuma.
Chegara a hora de seu contato com a imprensa, de acionar a máquina publicitária
- jornais, revistas, rádio, cinema e televisão. Bill desejava uma cobertura
completa, maciça, mas sem ter prestígio pessoal e dinheiro para tanto, entendeu
que para ter o apoio dos veículos de comunicação, teria que oferecer a eles
algo em troca. Bill já tinha pensado nisso antes mesmo de tomar qualquer
providência para o desfile. A ideia fecundara o ventre de sua imaginação e
ganhara forma. Chegara a hora de fazer nascer Jean Louis Marchand, o costureiro
francês que começava a revolucionar a moda na Europa.
A
primeira nota, publicada num jornal de médio porte, foi o suficiente para fazer
levantar a poeira da curiosidade. Saiu numa seção dedicada à mulher, na edição
de domingo, e dizia assim o título da matéria: "VEM AO RIO FAMOSO
COSTUREIRO FRANCÊS". E em seguida, dizia o texto: "Desembarcará no
Galeão, no próximo dia 15, o costureiro francês Jean Louis Marchand, que está
conseguindo revolucionar a moda na Europa. Jean Louis, que já esteve algumas
vezes no Rio a passeio, é amigo pessoal de D. Dulce Heemann de Castro, proprietária
de famosa butique no Leblon. Profissionalmente, esta é a primeira vez que vem
ao Brasil, pois aqui irá lançar a coleção primavera-verão criada por ele
especialmente para o nosso país. Depois do grandioso desfile que será realizado
nos salões de um conhecido clube da Zona Sul, os modelos de Jean Louis serão
colocados à venda, com exclusividade, pela butique Blanche-Noir."
Esta
nota serviu como ponto de partida para a grande campanha que Bill pretendia
desencadear. Ela não fora endereçada ao grande público, e sim à própria
imprensa especializada, que logo mordeu a isca e passou a se interessar pela
figura do costureiro. O telefone da butique de D. Dulce chamou algumas vezes em
busca de novas informações. Ela, instruída por Bill, limitou-se a dizer que realmente
era amiga de Jean Louis, e que tal amizade nascera em Paris quando de uma de
suas primeiras visitas à Capital da moda. Naquela época - acrescentou D. Dulce
- Jean Louis era um ilustre desconhecido que acabara de ganhar um importante
concurso e seu talento começava a ser apreciado no universo da alta costura. E
para concluir, informou com certo orgulho que Jean Louis ficara hospedado em
sua casa de campo em Friburgo quando de sua última estada no Brasil. Mais
informações não poderia prestar, já que a organização do desfile estava a cargo
de um profissional competente, e , portanto, a única pessoa gabaritada e
indicada a fornecer maiores esclarecimentos.
Assim,
desta forma, foi construída a ponte que fez ligar Bill aos meios de
comunicação, e a partir do momento em que passou a ser procurado, ele não se
fez de rogado. De sua cabeça fluíam dados e informações curiosas que logo se
transformavam em notícia. Como uma bola de neve, o noticiário cresceu e, tanto
a expectativa da chegada do costureiro quanto os preparativos para o desfile,
passaram a ser comentados quase que diariamente pela imprensa. Para que
determinada emissora de televisão noticiasse o assunto num de seus programas
vespertinos, Bill prometeu a presença do costureiro, logo que este chegasse ao Brasil,
no citado programa, para uma entrevista exclusiva.
Jean
Louis Marchand já era uma realidade, e aos poucos o grande público passava a
tomar conhecimento de sua existência. Mas para Bill, tudo isso era apenas o
começo. Ele sabia que ia ter um grande problema pela frente, e já começava a se
preparar para enfrentá-lo. Em certos casos, a imprensa prefere desmentir
determinadas notícias do que perder a oportunidade de divulgá-las, e foi
imaginando a imprensa em forma de um grande peixe, que Bill jogou sua isca
certo de vê-la abocanhada. O imediatismo dos órgãos de divulgação faz com que
certas notícias sejam divulgadas antes mesmo de verificada sua procedência.
Quando não desperta interesse e não é contestada, a notícia morre no
esquecimento sem que se possa ter certeza sobre sua autenticidade. Mas no caso
inverso, quando o fato divulgado tem boa repercussão, os principais órgãos da
imprensa sentem-se na obrigação de investigar a origem do que apressadamente
foi publicado. E assim aconteceu no caso do costureiro francês, pois logo o
principal jornal da cidade, com correspondente em Paris, publicava uma matéria,
acusando Jean Louis Marchand de embusteiro, já que seu nome era totalmente
desconhecido entre os "papas" da alta costura francesa. Logo em
seguida chegava a vez de um famoso colunista social aproveitar a oportunidade
para demonstrar seu perfeito conhecimento do grand mond, publicando em sua
coluna uma nota irônica, na qual afirmava que jamais ouvira falar no nome do
tal costureiro.
A
comédia estava sendo bem representada, pois até a desconfiança que começava a
desabar sobre o personagem central, fazia parte do enredo. Este era um risco
que Bill contava correr, e se preparara para ele. Um problema para o qual a
solução já havia sido encontrada. O certo é que ele não poderia permitir que o
nome de Jean Louis fosse riscado do noticiário, e isso fatalmente ocorreria se
o descrédito sobre seu valor ou até mesmo sobre sua existência tomasse conta de
toda a imprensa. E para evitar que isso acontecesse, Bill voltou a acionar
aquele que foi o responsável pela primeira nota publicada, e que viria a ser
seu grande aliado naquela campanha. Seria ele, portanto, a mola mestra que
comandaria toda aquela engrenagem. Um jornalista capaz de saber de toda verdade
e guardar o mais absoluto sigilo. Sua missão seria a de dar credibilidade ao
costureiro, apresentando provas concretas e capazes de não deixar dúvidas
quanto ao valor de Jean Louis e de sua vinda ao Brasil. Depois de pesquisas
preliminares, Bill descobriu em Mário Jordão o jornalista talhado para
desempenhar tal papel. Mário Jordão era um jovem e ambicioso repórter,
inescrupuloso como a maioria dos ambiciosos. Seus trabalhos na imprensa já
tinham chamado a atenção para o seu nome. De uma feita, ao escrever uma série
de reportagens sobre um médium capaz de curar qualquer tipo de doença através
de operações espirituais, fez por promover sobremaneira um Cento Espírita de
Nova Iguaçu, antes obscuro, levando até lá uma multidão de fanáticos em busca
de soluções para as suas mazelas. O sucesso foi tão grande que em pouco tempo a
caridade estava sendo comercializada através de plásticos adesivos para
automóveis e outros objetos vendáveis. Não passou muito tempo e o mesmo
repórter fazia vir a público um grande trabalho comunitário realizado por um
padre italiano, em sua paróquia, num subúrbio do Rio. E foi dessa forma que
Mário Jordão conseguiu ficar de bem com Deus e com o Diabo. Outras reportagens
dele também dariam grandes manchetes, como a que fez sobre um vôo rasante de um
disco voador sobre a Barra da Tijuca. As fotos ficaram tão perfeitas que por
pouco não se via o rosto de um dos tripulantes da nave através das escotilhas.
A filosofia do jornal para o qual Mário Jordão vinha trabalhando era de que a
notícia verdadeira deveria ser aquela que fizesse vender mais jornais e Bill
logo compreendeu que não poderia ter feito melhor escolha. Sim, Jordão seria
aliado na imprensa e Bill poderia confiar a ele seu segredo, pois descobrira o
seu preço. Além das vantagens financeiras, Bill prometeu-lhe muito mais. Ele
seria o repórter eleito para dar os grandes furos. Só a ele as informações
principais seriam prestadas e, desta forma, o contrato entre os dois foi
selado. Na verdade, o que firmaram não foi um simples contrato e sim uma parceria
com pacto de honra. Ficou combinado entre os dois que o repórter jamais
revelaria a verdade e Bill, por sua vez, jamais contaria às autoridades o que
descobrira sobre a maior das fraquezas daquele profissional da imprensa, a
respeito de entorpecentes.
A
primeira bomba não se fez por esperar. Numa manhã de terça-feira estava nas
bancas, no canto da primeira página do matutino, uma foto de um desenho de
vestido com a seguinte legenda: "Um furo na moda". O pequeno texto,
logo abaixo da fotografia, dizia: "Nossa reportagem, conseguindo
antecipar-se ao desfile do famoso estilista francês da alta costura Jean Louis
Marchand, fotografou um de seus desenhos, num descuido dos responsáveis por sua
vinda ao Brasil. No momento em que D. Dulce voltava a atenção para uma de suas
mais famosas clientes, nosso fotógrafo percebeu que sobre o balcão da butique
patrocinadora do desfile repousava um grande envelope pardo recém chegado de
Paris. Dele foi retirado o modelo acima, sendo este fotografado logo em seguida".
O
objetivo foi alcançado, e neste mesmo dia vários repórteres procuraram Bill,
que aproveitou para se queixar, num tom de voz revoltado:
-
O repórter responsável pela publicação desta foto - apontou o jornal - fez um
serviço sujo, antiético, e abusou de nossa confiança. Violar correspondência é
crime! Podem escrever aí, arrematou Bill de forma exaltada, estamos pensando em
processar este jornal. O modelo fotografado não mais fará parte de nossa
coleção.
O
mesmo cronista social, que dias antes publicara em sua coluna uma nota irônica
demonstrando descrédito sobre as qualidades de Jean Louis Marchand, e até pondo
em dúvida a sua existência, foi sacudido por um telefonema de alguém que se
dizia empregado do Copacabana Palace Hotel. A partir do dia 15 do corrente, o
estilista francês estaria hospedado lá - garantia uma voz masculina através do
fio - e, para isso, uma suíte já tinha sido reservada em nome de Jean Louis.
Imediatamente o cronista procurou apurar o fato junto à direção do Hotel e,
assim que o viu confirmado, não teve dúvida de dar a notícia em primeira mão em
sua coluna. E foi assim que um humilde empregado do Copacabana Palace conseguiu
receber duas boas gorjetas.
Sempre
que uma notícia sobre determinado assunto, ao ser divulgada, faz despertar
interesse, toda a imprensa sai em campo em busca de novas notícias. Cada órgão
- jornal, rádio e televisão - busca descobrir um fato novo para ser o primeiro
a informar. E foi assim que as companhias aéreas que costumam fazer a linha
Paris-Rio foram procuradas por repórteres ávidos de saber se o nome de Jean
Louis Marchand constava de alguma lista de passageiros. Como as empresas
tivessem afirmado que tal nome não constava em nenhuma relação, várias
hipóteses foram aventadas, e entre elas a de que Jean Louis pudesse vir a ser
um nome fictício, e que o estilista tivesse comprado a passagem em seu
verdadeiro nome.
Cada
povo costuma ter as notícias que merece. No Brasil, o futebol, o crime e os
escândalos com corrupção envolvendo figuras de grande expressão popular costumam
ser, entre outros, os assuntos preferidos. A moda internacional sempre foi um
privilégio de poucos, e fazer dela notícia de real interesse foi para Bill uma
tarefa das mais difíceis. Mas a fórmula para isso já havia sido descoberta há
muito tempo, e foi assim que ele conseguiu transformar em contagioso um assunto
que jamais seria contagiante. Como quem
estivesse espalhando vírus, Bill espalhou notícias que logo tomaram
conta da cidade como um surto epidêmico. Numa delas ele especificou a data, a hora,
o número do vôo e o nome da Companhia que traria Jean Louis Marchand ao Brasil.
Assim todos ficariam sabendo que no próximo dia l5 de corrente, o costureiro
desembarcaria no Galeão e, àquela altura, toda a imprensa já estaria de
prontidão para dar cobertura ao evento. Por sugestão de Bill, Mário Jordão
entrevistou uma nova rica, emergente da sociedade, e ela não se furtou a falar
sobre o estilista francês. Por vaidade procurou demonstrar que deveria ter sido
uma das primeiras brasileiras a conhecer, pessoalmente, o costureiro:
-
"Jean é uma gracinha! Não consigo imaginar como um homem franzino e miúdo
consegue guardar tanto talento e energia. As francesas o adoram, e nós vamos
adorá-lo também, tenho certeza. Comprei um modelito básico dele que é um encanto!
É um vestidinho leve, porém muito original. Pretendo ir ao aeroporto com ele
para recepcioná-lo. Serei a primeira a abraçá-lo após o desfile" -
completou.
Bill
não contava com essa e ficou surpreso com a descrição que a emergente fizera
sobre o costureiro. Na manhã do dia 14 uma nova bomba explodiu no noticiário.
Mário Jordão, no maior furo de reportagem sobre a matéria, fazia publicar, com
grande destaque na primeira página de seu jornal uma foto de Jean Louis
desembarcando no Galeão. A foto mostrava o costureiro sendo beijado por D.
Dulce e, em segundo plano, podia-se ver ainda Bill e um carregador empurrando
um carrinho atulhado de malas. Jean Louis era, realmente, um homem franzino e
de baixa estatura. Estava elegantemente vestido, usando sobretudo e chapéu, e
tinha o rosto parcialmente encoberto por um grande óculos escuro. A foto não
poderia ter saído melhor, e Bill sorriu de satisfação ao vê-la publicada. Todos
os detalhes que deveriam ser mostrados estavam ali nitidamente, e se Bill não
conseguira reconhecer seu amigo Baraúna no papel do costureiro, por aquela foto
Jean Louis jamais seria identificado.
O
alvoroço na imprensa foi total. Uma romaria de repórteres passou a andar de um
lado para outro, em busca de informações. Prevendo a invasão, a butique
Blanche-Noir fechara as portas e toda a imprensa acabou por se concentrar na
recepção do Copacabana Palace Hotel. Por sua vez, tentando evitar um tumulto
maior, a direção do Hotel resolveu distribuir uma nota, na qual confirmava a
reserva da suíte de número ll7 para Jean Louis Marchand, e que a mesma só teria
validade a partir do dia seguinte. Adiantava a referida nota que a bagagem do
costureiro já havia chegado e que estava no depósito do hotel, mas que ele por
lá não havia aparecido. Com isso os repórteres foram se dispersando, exceto um,
que resolveu dar plantão na portaria. Aventando sobre essa hipótese, Bill
tomara as devidas precauções e, foi assim que lá pelas 2 horas da madrugada do
dia 15 um táxi parou na entrada principal do hotel, e de seu interior saltaram
Bill e Baraúna. Trôpego, com a barba por fazer, e vestido da mesma maneira como
havia aparecido na fotografia do jornal, porém com o sobretudo sob o braço
devido ao calor, Baraúna, representando o costureiro francês, apoiava-se em
Bill, fazendo crer que estava totalmente embriagado. O assédio e as fotos
começaram a partir do instante em que Bill foi reconhecido pelo repórter,
quando solicitou as chaves da suíte ao funcionário que estava por trás do
balcão da recepção. Ao mesmo tempo em que tentava explicar a situação, Bill
pedia desculpas ao repórter em virtude do estado em que se encontrava o
costureiro.
-
Estávamos numa festinha íntima quando Jean Louis resolveu de repente vir para o
hotel. Não encontrando meios de demovê-lo de tal decisão, acabei por ceder. No
momento ele está inconsciente e nada poderá dizer. Se evitar que estas fotos
saiam publicadas, prometo-lhe um entrevista exclusiva.
A
suíte 117 não havia sido ainda desocupada, e para contemporizar o problema, a
gerência do hotel acomodou o costureiro num apartamento de luxo que estava
vago, a fim de que ele pudesse repousar até que suas acomodações estivessem
prontas para recebê-lo.
A
frustração da imprensa ficou evidenciada pela manhã, quando apenas dois jornais
noticiaram sobre Jean Louis. Enquanto uma nota da Mário Jordão comentava a
respeito da festa que fora preparada para o costureiro num apartamento de
cobertura da Av. Vieira Souto, o jornal do repórter que ficara de plantão no
hotel, publicava foto e matéria da chegada do costureiro embriagado ao
Copacabana Palace.
A
partir daquele dia até a hora do desfile, Bill não teve mais um minuto de
sossego. Nada do que prometeu em nome de Jean Louis ele pôde cumprir, e assim,
nem a entrevista coletiva nem o aparecimento do costureiro num programa de
televisão aconteceram. Bill se desmanchava em desculpas, explicando que Jean
Louis não gostara de alguns modelos depois de confeccionados, e resolveu
refazer os desenhos. Era por isso que se mantinha isolado em sua suíte, não
admitindo ser incomodado enquanto criava.
A
suíte 117 ficava de esquina, no corredor, com vistas para o mar e para a
piscina. Foi de lá que durante três dias Bill coordenou a maior parte da
divulgação, redigindo, assinando e distribuindo para toda a imprensa notas em nome
de Jean Louis. Enquanto isso, seu amigo Baraúna comia e bebia do bom e do
melhor, e de binóculo apreciava o desfile constante de mulheres lindas em torno
da piscina, num autêntico mercado de carne de primeira qualidade. Da janela,
enquanto saboreava um coctail de lagosta, parcialmente encoberto pela cortina
para não ser notado, Baraúna não perdia um só detalhe e parecia perceber o que
estava se passando a poucos metros abaixo de onde estava. Com sua fértil
imaginação, ele comparava algumas mulheres ali expostas como verdadeiros
objetos de arte prontos para serem leiloados. E tão viva lhe era esta imagem
que podia ouvir, vez por outra, o bater do martelo. Ah... como ele gostaria de
estar tomando parte daquele leilão, lado a lado com aqueles homens maduros de
aspecto senhoril. E enquanto pensava nessa possibilidade, Baraúna sonhava
sonhos curtos. Se num determinado sonho ele se via de posse de uma carteira de
notas do mais puro crocodilo recheada de dólares, no outro ele podia usar o
talão de cheques sem preocupação, pois sua conta no Banco era ilimitada. Embora
curtos, os sonhos se interligavam e, se num momento ele se via possuidor de um
título de nobreza, no sonho seguinte ele traficava influências. O fato é que
naquele momento Baraúna daria o que pudesse para ter o direito de apresentar o
lance maior e arrebatar a mulher mais valiosa daquele leilão imaginário.
Abriria mão do pouco que a natureza lhe dera e não hesitaria em trocar sua
esbeltez, como também sua vasta cabeleira, pelas protuberantes barrigas e
reluzentes carecas que naquele momento ornamentavam a pérgula da piscina. Mas
de onde estava, nem o cheiro do perfume daquelas carnes frescas, algumas
importadas, podia sentir..
Baraúna
interrompeu seus sonhos e divagações para limpar a lente com a ponta da cortina
e, ao recolocar o binóculo diante dos olhos, pôde enxergar o que sua mente se
negava a acreditar: a mulher mais exuberante que vira em toda a vida! Baraúna
quis gritar seu lance, mas o grito morreu na garganta. Se pudesse, escancararia
a janela e gritaria a plenos pulmões: "Eh, vocês aí... eu sou Jean Louis
Marchand, o famoso costureiro francês, mas não sou bicha não. O que eu sou
mesmo é tarado por mulher". Ao se agitar, Baraúna fez mover a cortina e
com isso despertou a curiosidade de olhares que se voltaram em direção à janela
da suíte onde presumia-se estar o costureiro. Naquele momento ele teve a
impressão de que seu hipotético grito fora ouvido em toda a pérgula. Mas mesmo
sabendo que tudo aquilo não passava de uma ilusão, pois as mulheres que estavam
no hotel não faziam parte da mordomia a que tinha direito, Baraúna negava-se a
abandonar seu sonho e, em pensamento, ia possuindo uma a uma, numa autêntica
masturbação mental. E como dizem que o sexo frustrado faz gerar a fome, em
represália ao que lhe era negado, Baraúna pedia a Bill mais comida. Este, por
sua vez, ao fazer o pedido através do telefone, falava em francês num tom
afrescalhado. Mesmo sem ser visto durante o tempo em que esteve hospedado, Jean
Louis Marchand teve sua voz reconhecida por boa parte dos empregados do hotel.
Ao
cair da tarde do terceiro dia, Baraúna deixava o hotel em roupas comuns, sem
óculos escuros ou chapéu que pudessem identificá-lo como Jean Louis Marchand,
passando por entre repórteres e fotógrafos sem ser notado. Desta forma fora
preparada a fuga do costureiro, pois horas depois, Bill, da suíte, telefonava
para a recepção pedindo que encerrassem a conta e mandassem apanhar a bagagem
do hóspede, explicando que o costureiro abandonara o hotel cansado que estava com
o assédio da imprensa. Para os repórteres Bill deu uma outra versão, dizendo
que Jean Louis optara por um isolamento maior, capaz de lhe proporcionar a paz
e a tranquilidade necessárias para que pudesse concluir as suas criações. A casa de campo de D. Dulce, em Friburgo,
fora o local escolhido e era por lá que ele deveria ficar até as vésperas do
desfile.
Decepcionada
com as atitudes de Jean Louis Marchand a imprensa, depois de fazer acusações
diversas ao costureiro, resolveu silenciar como uma forma de boicote ao seu
desfile. Mesmo achando que o objetivo já havia sido alcançado, pois a
curiosidade pela figura do costureiro e pelo seu desfile já havia sido
despertada, Bill começou a se preocupar com a ausência de notícias, e
aproveitando-se de uma declaração feita por um dos mais famosos estilista
tupiniquins, na qual Jean Louis era acusado de impostor, irresponsável e
grosseiro, Bill resolveu tirar o último coelho da cartola. A resposta de Jean
Louis não se fez tardar, e com isso a guerra entre os dois foi declarada.
Enquanto o brasileiro teimava em afirmar que o francês não passava de um
embusteiro, farsante e impostor, Jean Louis respondia que no Brasil só havia um
costureiro que era um autêntico estilista criador, com seu nome reconhecido
internacionalmente, e que os demais, como aquele que o estava acusando, não
passavam de insignificantes cortadores de pano sem nenhum poder de criação -
verdadeiros macacos de imitação da alta costura europeia. Com essa explosiva e,
ao mesmo tempo, hábil declaração, Bill fez com que a ira de 99% dos costureiros
brasileiros fosse toda descarregada em cima de Jean Louis, e que o nome mais
expressivo de nossa alta costura se tornasse o maior aliado do francês. As
acusações e os insultos foram tornando-se cada vez mais agressivos a ponto de
um famoso programa de debates pela televisão propor um encontro, para logo após
o desfile, entre os dois maiores rivais, diante das câmeras da TV. Bill, o
criador e responsável único por toda aquela agitação, divertia-se enquanto
ajudava a espalhar plumas e paetês pra tudo quanto era lado. Era ele o portador
das palavras do francês, distribuindo notas assinadas pelo costureiro nas
redações dos jornais e das revistas, e fitas gravadas com a voz de Jean Louis
para as emissoras de rádio. Assim conseguiu que o noticiário se mantivesse
aceso até a véspera do desfile.
Chegou
finalmente o grande dia. Era o primeiro sábado de novembro e o início do
desfile estava marcado para 17 horas. Bill saiu cedo de casa depois de um
reforçado café da manhã, e só foi visto pela primeira vez quando chegou ao
clube Caiçaras, na Lagoa Rodrigo de Freitas, uma hora antes do desfile começar.
Estava elegantemente vestido num terno de colete, feito sob encomenda, em
finíssimo tergal quadriculado num tom azul céu e com um cravo vermelho na
lapela. Chamavam ainda a atenção a gravata Pierre Cardin de seda pura, em três
tonalidades de azul, e os sapatos pretos de cromo italiano. Mas o que
surpreendeu a todos foi a sua fisionomia descansada, jovial e alegre, pois no
dia anterior chegara a preocupar os amigos e familiares com seu estado de
exaustão. Para quem, há mais de sessenta dias vinha trabalhando
incessantemente, um milagre havia sido operado. Só que Bill não comungava desta
opinião. Gozava de boa saúde e era jovem demais para apelar para milagres.
Bastou a ele um pequeno truque para apresentar-se com tão boa aparência.
Resolveu que no dia do desfile desligar-se-ia de todos os problemas e só os
enfrentaria no momento certo. Para isso buscou refúgio numa Academia de Cultura
Física e por lá passou grande parte do dia. Tomou massagem, banho turco, ducha
escocesa, fez o cabelo, a barba e as unhas e, o que é mais importante, repousou
o corpo e a mente. Algumas horas apenas foram suficientes para devolver a Bill
a energia gasta durante 60 dias. Milagre? Não, pois a juventude em si já é o
grande milagre da vida.
Para
a maioria das mulheres, o rosto de Bill era uma autêntica vitrine de joias: o
ouro, nos cabelos; nos olhos, duas esmeraldas e na boca, um colar de pérolas.
Ao lado de D. Dulce, na entrada principal do salão, Bill ia recebendo um por um
dos convidados. A afluência foi maciça e todos os veículos da comunicação se
fizeram presentes. Um verdadeiro batalhão de fotógrafos, cinegrafistas,
repórteres, locutores, camera-men e etc. De todas as bocas saíam uma só
pergunta, e para ela Bill tinha a mesma resposta: "Jean Louis será
apresentado a todos no fim do desfile. Estamos aguardando sua presença a
qualquer momento".
O
amplo salão foi pequeno para abrigar a imprensa, os convidados e os penetras
que conseguiram burlar o forte esquema de segurança. Quase todos os amigos de
Bill estavam a seu lado, colaborando de uma forma ou de outra. Sufocado por um
colarinho apertado, Baraúna coordenava a segurança particular do amigo. Apesar
de franzino e baixote, era faixa preta de judô e campeão em sua categoria. Fernando,
o fotógrafo, ao lado de Mariinha, colaborava no serviço de relações públicas e,
entre todos, o espírito de equipe ficou evidenciado.
Mesmo
sabendo que tinha exigido demais de seus contratados durante os cansativos
ensaios, Bill não esperava um entrosamento tão perfeito entre os setores como o
que ocorreu antes, durante e ao término do desfile. No som, na luz, na música,
na apresentação dos modelos, na classe das manequins profissionais, na graça e
no ritmo das garotas, na decoração do salão, palco e passarela e, por fim, na
originalidade e na beleza das roupas apresentadas, não foi notada uma falha
sequer. Sentindo a reação favorável e imediata no público e na imprensa, Bill
começou a calcular o volume das encomendas e o teor dos comentários que sairiam
publicados no dia seguinte.
Assim
que o último modelo acabou de desfilar o público prorrompeu em palmas e gritos
de bravo. No primeiro momento de silêncio, o locutor, mestre de cerimônia,
tomou a palavra para agradecer a todos que direta ou indiretamente tinham
colaborado para o sucesso do desfile, e aproveitou também a oportunidade para
tecer elogios a toda a equipe, não só aos que se apresentaram diante do
público, como também àqueles que nos bastidores trabalharam no anonimato com
tanta eficiência e, antes de encerrar a sua participação, acrescentou:
-
Gostaria agora de chamar ao palco os três maiores responsáveis por este
desfile. Inicialmente trago até vocês a pessoa que com coragem e desprendimento
acreditou na possibilidade de sua realização: Senhora Dulce Hermann de Castro,
proprietária da butique Blanche-Noir, patrocinadora do desfile.
D.
Dulce subiu ao palco e foi muita aplaudida.
-
Em seguida vamos receber - continuou o mestre de cerimônia - um jovem de grande
valor. Estou certo de que a partir deste momento, seu nome será lembrado sempre
que se fizer um desfile de modas em nossa terra. Foi ele quem idealizou,
coordenou e comandou todo este desfile. Para receber os nossos aplausos, chamo
agora o jovem Bill Morrison...
Os
aplausos foram calorosos e demorados.
-
E para finalizar - voltou a falar - espero apresentar neste momento, a todos os
presentes, a figura mais discutida e controvertida dos últimos tempos no mundo
da moda. Aquele que, por sua arte hoje aqui comprovada, por sua irreverência,
seu dinamismo e inteligência, conseguiu monopolizar a opinião pública,
acirrando os ânimos e dividindo opiniões desde o momento que desembarcou no
Brasil. Sua participação foi tão importante na criação dos modelos como na
divulgação do desfile. Depois de impor seu nome por toda a Europa, veio até nós
para lançar sua coleção primavera-verão, certo de que aqui também terá seu nome
consagrado.
Um
murmurinho crescente falava bem sobre a expectativa do público.
-
Com os nossos aplausos vamos receber Jean Louis Marchand - completou.
Todos
prenderam a respiração. Silêncio igual só se poderia comparar com o de um
funeral de um grande ídolo popular. No início todos os olhos correram para uma
só direção: o palco. Em seguida, os olhos vagavam em todas as direções, como se
quisessem adivinhar de onde deveria surgir a figura do costureiro, já que
ninguém ali o tinha visto chegar ao clube. Bill, o responsável por toda aquela
farsa, esfregava as mãos nervosamente enquanto corria os olhos pelos quatro
cantos do salão como se tivesse ele também a esperança de encontrar a figura de
Jean Louis entre os presentes. A expectativa era tão contagiante que até Bill
viu-se envolvido por ela. O silêncio não durou mais de 30 segundos e logo um
murmúrio de vozes crescia ameaçadoramente. E antes que a expectativa gerasse
indignação, o repórter Mário Jordão subiu ao palco e entregou a Bill um pequeno
envelope. Este, depois de correr os olhos pelo papel, solicitou silêncio a fim
de fazer um comunicado. Antes, explicou a presença ali no palco do dinâmico
repórter Mário Jordão, o único no Brasil que conseguiu entrevistar o estilista
francês e a última pessoa a estar com ele, sendo por isso portador daquela
mensagem do costureiro. No momento em que o murmúrio diminuiu de intensidade,
Bill começou a ler a nota, frisando antes, que embora o texto estivesse escrito
em francês, o traduziria para o público presente:
-
"Lamento não poder estar aí compartilhando com todos vocês do sucesso que
tenho certeza foi alcançado. Em momento algum duvidei disso, pois jamais havia
trabalhado ao lado de uma equipe tão maravilhosa e capaz. Quando, num trabalho
em conjunto, consegue-se unir competência, amor, dedicação e profissionalismo,
o resultado não poderia ser outro. À você, Dulce querida amiga, primeira pessoa
no Brasil a confiar em mim, o meu muito obrigado. À você, Bill, que com
invejável talento criou todas as condições para a realização de um trabalho
correto, o meu muito obrigado. À você Magda, e sua eficiente e maravilhosa
equipe de costureiras, sem a qual seria impossível dar forma às minhas
criações, meu muito obrigado. À toda a equipe, do mais humilde ao mais graduado
técnico, o meu obrigado. E, finalmente, aos homens da imprensa que, fazendo uso
do prestígio de seus órgãos de divulgação, ajudaram de maneira decisiva a
transformar numa grande realidade um audacioso projeto, o meu muito obrigado. A
respeito de minha ausência, posso dizer que conto com a compreensão e o perdão
de todos vocês, pois ao receber um telegrama informando-me de que minha mãe
fora acometida de um mal súbito, não hesitei em regressar a Paris, pois é a ela
que devo dizer o meu primeiro muito obrigado".
Bill
emocionou-se com o que ele próprio escrevera e concluiu a leitura daquela
mensagem com a voz embargada. Sabia que a frustração de todos ali presentes,
com a ausência da polêmica figura do costureiro, poderia gerar uma ação
incontrolável de revolta e, em silêncio fez uma prece à Deus pedindo proteção.
O
silêncio que se fez a seguir foi dramático. Foram segundos que duraram uma
eternidade. Bill podia ver o silêncio que para ele era um grande monstro sem
rosto, com o dedo indicador apontado em sua direção. Podia ouvir o som da
respiração da plateia, como se um só peito estivesse para explodir. Acuado e
parado no tempo ele ficou entre o fracasso e a consagração. E foi quando os entusiásticos aplausos
puseram o monstro a correr, que Bill pôde perceber que a frustração do público
pela ausência do costureiro francês fora abafada pela beleza do espetáculo.
Enquanto
a plateia, com entusiasmo, respondia favoravelmente ao que acabara de assistir,
a imprensa ficava dividida em suas opiniões e parte dela achava que não só fora
vítima como também coautora de uma grande farsa.
Ao
final de tudo deu-se um fato curioso e digno de registro. Aconteceu próximo ao
portão principal do Clube, quando imprensa e público juntos comprimiam-se
diante da saída. Naquele momento, Baraúna e seu pessoal ajudavam a escoar a
pequena multidão, enquanto a polícia procurava manter a ordem, quando alguém ao
seu lado comentou em tom de desabafo: - "Esse tal de Jean Louis não passa
de um grandissíssimo veado!" Tomando para si o insulto, Baraúna partiu
para a agressão e, não fosse a pronta interferência dos policiais, ajudados
pela turma do deixa-disso, aquele incidente teria gerado um tumulto de grandes
proporções. Seguro pelos policiais, mas ainda indignado, Baraúna gritava a
plenos pulmões: - "Veado é a puta que o pariu". Foi a nota
desabonadora do espetáculo.
Certa
de que o desfile seria um sucesso, D. Dulce providenciara um coquetel em sua
residência para alguns poucos convidados. E lá, diante de uma euforia coletiva,
no ápice das comemorações, Bill mostrava-se apático, indiferente mesmo às
homenagens que lhe estavam sendo prestadas. Bill não parava de beber, e
enquanto alguns atribuíam a sua apatia à grande quantidade de álcool ingerida
por ele, outros viam na estafa o motivo principal.
E
ali, entre aqueles que circundavam Bill, buscando encontrar uma justificativa
capaz de desculpar seu estranho procedimento, só Fernando, seu maior amigo,
estava próximo de descobrir a verdadeira razão. E foi justamente com ele que
Bill logo depois desabafou:
-
São todos uns tolos, uns idiotas. Pensam que sou um vitorioso quando na
verdade, pela primeira vez em toda a minha vida, sinto-me derrotado. Você me
conhece, meu amigo, e sabe porque estou assim. Tanto trabalho inútil... tudo em
vão. Fiz tudo isso por ela e para ela, e ela não veio. E sabe o que fez aquela
vaca? Mandou um foca, um principiante que nem sequer se fez acompanhar de um fotógrafo.
Estela jamais poderá julgar o meu desfile mesmo que amanhã a imprensa se
desmanche em elogios. A beleza tem que ser vista para ser sentida. Ela fez
pouco caso de mim, Fernando, e vai me pagar por isso. Vou me vingar. Mesmo que
viva mil anos eu jamais a perdoarei...
Fernando
ainda tentou confortá-lo, mas Bill estava distante demais para ouvir o que o
amigo dizia.
Bill
tinha uma parte de seu corpo submersa na espuma macia. O sofá era confortável e
ele parecia estar flutuando, sentado em cima de uma grande nuvem. Em seus
sonhos, procurava encontrar o rosto de Estela, entre tantos a sua frente.
Quando pensou ter encontrado o rosto que tanto buscava, tentou levantar-se, e
ao fazê-lo, entornou a taça de champanhe sobre o peito.
Naquele
momento Bill estava de volta ao grande salão do apartamento de D. Dulce, e
quando percebeu onde estava, chorou.
CAPÍTULO 28
Paris, Outono de 1943
Durante
aqueles três longos anos, apenas por duas vezes a família Fontaine tivera
permissão para visitar a filha Germaine na luxuosa suíte do hotel em que
estava, na Av. Marceau. Como uma prisioneira de luxo, ela assim se apresentou
nessas duas oportunidades na presença dos pais. Estava com uma aparência muito
bem cuidada e um pouco mais gorda e, em ambas as vezes, vestiu caros vestidos e
ostentou jóias de grande valor. Desta forma, Germaine atendia às imposições do
Coronel Kurt Staden, para que ela pudesse rever seus pais. Suas palavras
otimistas e tranquilizadoras foram ditas num tom de voz extremamente falso. O
olhar opaco chamou mais a atenção que o brilho das jóias, e assim ficou
patente, a cada minuto, a profunda dor que sentia. Em nenhuma das duas vezes
Germaine tivera oportunidade de ficar a sós com os pais. Uma mulher do Serviço
Secreto Alemão, disfarçada em arrumadeira, esteve presente o tempo todo.
Previa-se,
para aquele ano, um inverno rigoroso. Os intermitentes ventos de outono eram
fortes e frios. Corria o mês de novembro e há quase um ano que a família
Fontaine não visitava a filha, nem dela sabia notícia. Numa tarde em que os
fortes ventos espalhavam folhas e temores pelas ruas da cidade, algo de novo
aconteceu. Saint-Germain-des-Prés estava deserta. No restaurante da família
Fontaine, as providências contra o vento já haviam sido tomadas. A porta
principal estava fechada apenas no trinco e as três grandes janelas corrediças,
com os seus vidros quadriculados e coloridos, estavam descidas. Do lado de fora
da casa, o toldo de lona gasta e as mesas e cadeiras de vime já tinham sido
recolhidos. Enquanto na cozinha Madame Fontaine preparava o jantar para os
poucos fregueses que por lá costumavam aparecer à noite, seu marido, no salão,
trocava as toalhas das mesas. De repente, urrando como um animal ferido, o
vento passava pela porta que fora aberta, e derrubava cadeiras com sua fúria.
Precedido pelo vento, surgia no interior da casa a figura do Coronal Kurt
Staden. Ele estava só e à paisana. Dentro da Mercedes preta, estacionada na
porta, ficara o motorista. Depois dos cumprimentos formais e do conhaque que
ambos beberam, falou Monsieur Fontaine:
-
Como está a minha filha? Quando vamos vê-la? O que o trouxe aqui?
-
Acalme-se, monsieur - falou o Coronel, num tom frio de voz. Ela está bem, mas
ainda não sei quando poderão vê-la. É justamente sobre sua filha que vim aqui
lhe falar.
-
Algum problema com ela?
-
De certa forma, sim. Meus superiores não estão satisfeitos com a situação, e eu
tenho sido alvo de críticas. Fui transferido para Berlim, e devo embarcar
dentro de uma semana... O senhor já ouviu falar de um homem conhecido como
Prescot ?
-
Não, nunca ouvi - falou com insegurança, depois de alguma hesitação.
-
Bem, isto agora não importa - continuou o Coronel. O fato é que este homem foi
um dos nossos melhores informantes, e através dele vários inimigos nossos foram
presos. Prescot foi brutalmente assassinado no início deste ano, e o prazo que
me deram para capturar os responsáveis pelo atentado há muito se esgotou. Muita
gente tive que mandar prender e torturar, e alguns, provavelmente inocentes,
acabaram morrendo. E o mais grave nisso tudo é que, de concreto sobre o caso,
nada ficou provado...
O
tom da voz do Coronel era de certa forma surpreendente e, pela primeira vez,
Monsieur Fontaine pôde perceber algum sentimento em suas palavras.
-
E o que tem a ver minha filha com o caso?
-
Muito, monsieur, muito... Nosso Serviço Secreto tanto sabe a respeito do
parentesco dela com Pierre como está certo de que tal atentado foi praticado
por seu filho ou membros de seu grupo. Estando Germaine sob minha proteção,
fiquei em situação extremamente delicada. Assim que eu deixar Paris terei que
entregá-la ao "SS" e não poderei mais ser responsável por seu destino.
Por isso estou aqui, para lhe comunicar que por motivo de força maior deixo de
cumprir minha palavra empenhada. A partir do momento de meu embarque vocês
deixarão de ter a minha proteção.
-
Apesar de nossas divergências e de estarmos lutando em campos opostos, sinto em
suas palavras o homem de bem que o senhor é. E agora, o que posso fazer para
lhe pagar este favor, e qual a solução para resolver este problema? - perguntou
o velho, com voz aflita.
-
Em primeiro lugar, não estou lhe fazendo favor algum, e sim, tentando aliviar o
peso de minha consciência. Em segundo lugar, quero que saiba que não sou eu
quem estipula os preços e sim o meu governo, mas posso lhe assegurar que o
preço cobrado por ele para solucionar tal problema é muito alto, e não creio
que o senhor esteja disposto a pagá-lo...
-
Assim mesmo fale, Coronel. Quem sabe a gente não encontra uma solução para tudo
isso?
-
Pois bem, é a vida e a segurança de todos vocês, por Pierre. Não vejo outra
solução.
-
Mas isso é pedir demais a um pai, Coronel. Eu jamais seria capaz de entregar
meu filho...
-
Já lhe pedi que fizesse isso há algum tempo, monsieur, mas hoje não estou aqui
com este objetivo. No entanto, não vejo como resolver o problema de vocês de
outra forma...
-
Deve haver outra solução...
-
Pois encontre-a, monsieur. Tem uma semana para pensar no assunto, e faço votos
que encontre uma saída.
Mais
uma vez, as palavras do Coronel surpreenderam o velho Fontaine.
-
Se o senhor soubesse como nos ajudar, faria isso? - arriscou Monsieur Fontaine.
-
Não. Não faria - falou o Coronel, com decisão. Se assim agisse estaria traindo
o meu país, e eu prefiro a morte a isso. Mas posso lhe assegurar, mais uma vez,
que vocês só poderão ter um pouco de paz quando nós capturarmos Pierre. E olha
que faltou pouco para tê-lo em nosso poder. Não fosse meu coração ter me
traído, e a esta hora Pierre já estaria preso...
-
O que o senhor quer dizer com isso?
-
Que há algum tempo atrás, tive duas pistas para capturá-lo e escolhi
conscientemente a mais difícil e improvável..
-
Por que fez isso?
-
Por sua filha, e pelo grande amor que sinto por ela. Germaine jamais me
perdoaria se eu fosse o responsável pela captura de seu irmão. É a primeira vez
que falo sobre isso, e conto com seu silêncio. Germaine desconhece esse fato e
espero que continue a ignorá-lo. Tudo tenho feito para conquistar o amor de sua
filha e, se nunca o conseguir, não quero dela apenas gratidão. O que fiz me
custou muitas horas de insônia. Durante muito tempo vivi imprensado entre o
prazer e a vergonha de ter falhado. E agora volto a repetir, o senhor tem uma
semana para se decidir. Ou entrega Pierre, ou descobre uma fórmula mágica capaz
de resolver o problema. Agora, se não for capaz de uma coisa nem outra,
aconselho-o a se preparar para o pior. Provavelmente o senhor não voltará a me
ver; portanto, Monsieur Fontaine, adeus e boa sorte. Gostaria de lhe ter
conhecido, e a sua família, em tempo de paz. Tenho certeza que seríamos bons
amigos...
-
Tenho certeza. Adeus, Coronel - falou Fontaine emocionado. Deus me ajudará a
encontrar uma solução.
-
Se isto acontecer, agradeça a Ele por mim.
Antes
de ultrapassar a porta o Coronel voltou a falar. Seus olhos permaneciam frios,
mas sua voz ganhava uma modulação suave e até um tanto doce:
-
Pense, monsieur, pense. E por favor, salve nossa Germaine.
O
caso Prescot começou no fim do verão do ano anterior. Era uma bela manhã de sol
e Giacomo tinha um encontro marcado no último andar da Torre Eiffel, com um desconhecido.
Estava ali há mais de uma hora sem que nada lhe acontecesse. Olhou o relógio,
encostou-se na grade, e quando já estava começando a se impacientar, ouviu uma
voz feminina a sussurrar em seu ouvido:
-
Beije-me logo, depressa.
Virou-se
rápido e deu de frente com uma jovem e bela mulher, que sem lhe dar tempo
agarrou-se ao seu pescoço e beijou-o na boca. Passado o impacto inicial, mas
ainda um tanto atônito, Giacomo correspondeu ao beijo. Aquela boca desconhecida
era doce e tinha o hálito de hortelã.
-
Não precisa exagerar - disse ela baixinho, para logo depois completar num tom
de voz bem mais alto. Me perdoe o atraso, mon amour.
-
Quem é você? - perguntou, sussurrando.
-
Um bom gourmet - respondeu baixinho.
Daí
em diante, passaram a falar alternadamente, ora em tom de voz alto, ora em
sussurros.
-
O que tem para me dizer? - perguntou Giacomo.
-
Eu te amo, e estava saudosa - disse ela, sorrindo, e a seguir acrescentou:
Estamos sendo observados. Precisamos despistar. Temos que representar um casal
apaixonado. Lamento ter que obrigá-lo a isso.
-
Por mim, tudo bem - falou com malícia. Se for pelo bem da pátria, não me aborreço - completou sorrindo.
-
Que acha de me convidar para almoçar?
-
Seria uma boa ideia se hoje eu não estivesse com pouco dinheiro...
-
Dinheiro não será problema, afinal não é o meu que vou gastar.
-
Posso saber, onde pretende me levar?
-
Ao restaurante, no primeiro andar. Conhece?
-
Não, mas se a comida for boa como é a vista da paisagem... Sabe que esta é a
primeira vez que uma bela jovem me convida para pagar o almoço?
-
Em tempos de guerra tudo pode acontecer. Por isso é bom não se acostumar, pois
a paz logo virá.
Ainda
era um tanto cedo, e talvez por isso o movimento no restaurante era pequeno.
Assim, puderam conversar mais à vontade, numa mesa discreta, enquanto
almoçavam.
-
Por que escolheram a Torre Eiffel? - perguntou Giacomo.
-
Por ser um local público com grande movimento de turistas, apesar da guerra,
onde as pessoas chegam e se vão a todo instante, e por ser bem apropriado para
um encontro de casais.
-
É, reconheço que não podiam ter escolhido melhor, tanto o local como meu
contato...
-
Sem romantismo, por favor.
-
Mesmo depois daquele beijo ardente?
-
Sei que lhe mandaram procurar um vulto sem rosto - falou ela, mudando de
assunto - e que ainda não o encontrou.
-
Sim, é verdade. Deram-me uma extensa lista com nomes de várias pessoas sob
suspeição e eu as investiguei, uma a uma, e nada encontrei contra elas.
-
Estas pessoas eram suspeitas demais e este foi o nosso maior erro. Perdemos
tempo com isso. Agora você terá que investigar apenas cinco nomes. Todos eles
de pessoas aparentemente insuspeitas e que nos têm prestado relevantes
serviços. Já ouviu falar em espião duplo? Aquele que fornece informações para
ambos os lados? Estes são os mais perigosos. Guarde esta lista com muito
cuidado - disse ela, entregando um folha de papel dobrada. Assim que decorar
nomes e endereços, destrua este papel.
Assim
que deixaram a Torre Eiffel, seguiram a pé, de mãos dadas, pela Av.de la
Bourdonnais. A todo instante, a jovem mulher olhava em torno como que para
certificar-se de que não estavam sendo seguidos.
-
Como é o seu nome? - perguntou Giacomo, quebrando o silêncio entre os dois.
-
Por que devo dizer meu nome, se não sei o seu?
-
Não seja por isso, eu me chamo...
-
Não diga, prefiro não saber...
-
Não acredito que não saiba. Como pôde me reconhecer quando nos encontramos?
-
Apenas pelos dados físicos que recebi a seu respeito, e pela maneira como vinha
vestido para o nosso encontro.
-
Mentira. Como pôde saber com que roupa eu viria, se nem mesmo eu sabia como
iria me vestir antes de sair de casa?
-
Recebi um telefonema de alguém que viu você saindo. Satisfeito agora?
-
Começo a acreditar que vamos vencer esta
guerra. Não sabia que estávamos tão organizados...
-
E eu não sei como foram escolher um amador para missões tão importantes. Espero
ao menos que você saiba o quanto são organizados os alemães, e com que
facilidade os "SS" têm chegado até nós. Tome cuidado, bonitão, senão
você não vai estar vivo para ver nossa vitória.
-
Ah, como eu gostaria que sua preocupação por mim fosse sincera. Desculpe se a
decepciono, mas devo lhe fazer mais uma pergunta...
-
Faça.
-
Quando vamos nos separar?
-
Já se cansou de mim?
-
Não é bem isso, mas penso que o que tínhamos a dizer um ao outro já foi dito e
então...
-
Esqueceu que estamos namorando? Para manter as aparências, quero dizer. Vê,
quantas tolices ainda podemos falar? Se quiser, podemos conversar sobre
amenidades. Falaremos sobre o tempo, a natureza, as artes, os esportes... ou se
preferir, podemos caminhar de mãos dadas, em silêncio...
-
Quando foi que fez sexo pela última vez?
-
Não é da sua conta.
-
As únicas coisas que poderiam me fazer lembrar que somos namorados, são estas
rixas tolas que temos tido. Que tal uma trégua e começarmos tudo de novo?
-
Podemos tentar...
-
Ótimo, assim é que se fala, e bom seria se pudéssemos aproveitar melhor esta
linda tarde de sol...
-
Como, por exemplo?
-
Poderíamos ir ao meu ou ao seu apartamento, mas se preferir conheço um
hotelzinho discreto aqui perto que...
-
Chega de tolices - interrompeu a jovem. Espero apenas que me acompanhe em
silêncio, e quando chegar o momento exato de nos separarmos, eu o avisarei.
Ainda
caminharam algum tempo, e quando passaram pela primeira estação do Metrô que
encontraram, ela o fez entrar. O vagão em que entraram estava superlotado e,
por isso, tiveram que ficar colados um no outro. Estavam muito tempo em
silêncio, olhos nos olhos, quando ela sussurrou:
-
Lamento ter tomado tanto o seu tempo, mas tive que seguir as instruções. Em
determinado momento desconfiei que estávamos sendo observados e por isso tive
que despistar. Vou descer na próxima estação e você poderá saltar na outra.
Estou certa de que saberá encontrar o caminho de casa. Espero que tenha cuidado
e boa sorte...
-
Quando acredita que podemos nos ver novamente? Gostaria, como retribuição, de
lhe pagar um jantar.
-
A não ser por intermédio de nossa organização, o que não creio que venha a
acontecer, não vejo como nos reencontrarmos.
-
Pois vou lamentar muito. Apesar de tudo, passei momentos agradáveis. Você me
atrai, e estou certo de que se a visse mais vezes, acabaria por me apaixonar e
fazê-la apaixonar-se por mim.
-
E este é um dos motivos pelo qual nunca me mandam contatar duas vezes com o
mesmo homem. Não devemos correr este tipo de risco. As pessoas apaixonadas
cometem erros primários. Esqueça que me conheceu, para o nosso bem. Pensar em
mim seria a maior tolice...
-
E se não estivéssemos em guerra, eu teria chance?
Ela
sorriu de forma enigmática. E no momento em que o trem ia parando na estação,
Giacomo tomou a jovem bruscamente em seus braços e sussurrou em seu ouvido:
-
Se passamos boa parte do dia como namorados, é como tal que devemos nos
despedir - e a beijou na boca com ternura e desejo.
O
trem partiu vagarosamente enquanto, na plataforma, a jovem andava em sentido
contrário e, no último instante ela voltou-se e acenou com um lindo sorriso.
Giacomo podia jurar que a havia atingido. Porém, esta foi a última vez que a
viu.
Seguindo
as instruções à risca, Giacomo só leu a lista quando chegou em casa. Ao bater
com os olhos no papel, sentiu um calafrio na espinha. Dos cinco nomes e
endereços ali escritos, quatro lhe eram muito familiares, e entre esses estava
o do Dr. Christian Louch. Indignado, ao ver o nome do amigo na lista dos
prováveis traidores, afastou imediatamente de sua cabeça a idéia de ter que
investigá-lo. Entre os seus conhecidos estavam, além do doutor, o dono de uma
livraria, o barman de um cabaré e uma atriz famosa. Prescot era o quinto nome
da lista, e a respeito desta pessoa ele nada sabia e nem sequer a conhecia de
vista. Talvez por este motivo, ou levado por sua intuição, foi que Giacomo
resolveu investigar Prescot em primeiro lugar.
Em
pouco tempo Giacomo fez um levantamento completo a respeito de Prescot e nada
descobriu que o desabonasse, muito pelo contrário. Todas as informações que
recebeu e o que pôde constatar, é que se tratava de um homem um tanto rude mas
de imenso coração. Era natural de Marselle e estava morando em Paris há dois
anos. Estava aposentado. Passara a maior parte de sua vida na Marinha Mercante
e, através dela, conhecera o mundo todo. Tinha o nariz grande e achatado e os
olhos miúdos. Era baixo, calvo, gordo, tinha uma barriga avantajada, mas
conservava ainda os braços musculosos. Vivia de pequenos biscates, mas
distribuía o pouco que ganhava com as crianças do bairro pobre em que morava, e
com velhas e decadentes prostitutas. Era um homem de temperamento alegre e
muito guloso por doces e bolos. Bebia muito conhaque e, quando embriagado,
adorava cantar. Raramente era visto pela manhã, mas todos os dias, ao cair da
tarde, podia ser encontrado cercado de crianças, no jardim público próximo de
sua casa. Costumava passar as noites em bares com música alegre e mulheres
fáceis. Habitualmente regressava à casa pela madrugada sempre em companhia de
uma decaída em fim de carreira, e quem estivesse mais embriagado apoiava-se no
outro. Como colaborador da Resistência, encontrara uma maneira sui-generis de
trabalhar. Costumava incluir, no meio das histórias encantadas que contava às
crianças, as informações que recebia e as crianças, por sua vez, passavam
adiante as mensagens que conseguiam captar. Desta forma, Prescot passou a ser
de grande utilidade, não só por sua eficiência como também por ser uma pessoa
insuspeita aos olhos e aos ouvidos do inimigo.
Assim
era Prescot aos olhos das pessoas que orbitavam em torno do seu pequeno mundo,
e assim ele foi visto também por Giacomo que, procurando ganhar tempo, passou a
concentrar as suas atenções nos outros nomes de sua lista. Afastando
definitivamente o nome do Dr. Louch, e o de Prescot temporariamente, como
suspeitos, Giacomo passou a investigar simultaneamente as três pessoas
restantes, sendo que a atriz famosa era a que mais lhe chamava a atenção, por
suas estreitas ligações com os alemães.
O
verão se fora e o outono de 1942 já estava quase chegando ao fim sem que
Giacomo visse progressos em suas investigações, quando um fato novo aconteceu.
Eram nove horas da noite quando Giacomo chegou em casa depois de mais um dia de
trabalho no hospital. Tomou um banho, vestiu um pijama e deitou-se. Como estava
sem sono, pegou um livro pra ler e o silêncio era tanto que o simples desfolhar
de páginas o incomodou. Repôs o livro sobre a banca de cabeceira e foi até a
janela. Enquanto sua vista se perdia na rua deserta, a mente rebuscava imagens
passadas numa tentativa angustiante de encontrar um ponto de partida. Uma
sombra se fez presente em algumas dessas imagens revividas, e era como se
Giacomo se desse conta de que por algumas vezes tivesse sido seguido. De
repente, um impulso o fez vestir-se e em poucos minutos acordava as esquinas
com o ruído de seus sapatos.
O
cabaré que Prescot mais freqüentava estava quase deserto e naquela noite ele
não se fazia presente. No momento em que Giacomo escolhia uma mesa entre tantas
desocupadas, percebeu que num canto escuro da casa, uma mulher solitária
soluçava. Naquele instante ele pensou em sua família distante e na namorada que
deixara em Gênova. Sim, ele também estava imensamente só, e levado por aquela
sensação de abandono, foi em direção daquela mulher na esperança de juntar com
a dela, sua solidão.
-
Posso me sentar com você?
-
Não costumo trabalhar no dia do meu aniversário - falou ela sem olhar, mantendo
o rosto escondido entre as mãos.
-
Eu me chamo Marcel, e gostaria de lhe oferecer uma bebida.
-
Não insista, merda! Escolha outra. Já disse que não estou de serviço - e
olhando para Giacomo, pela primeira vez, acrescentou: - Eh! Você é jovem e
bonito! Pode arranjar coisa melhor... Não quero sua piedade nem seu dinheiro...
Você tem dinheiro, não tem?
-
Sim, algum, mas...
-
Só os velhos, bêbedos e porcos costumam me procurar, ou então os homens que
estão na mesma merda em que estou...
-
Você falou sério?
-
Falei sério, o que?
-
Hoje é mesmo seu aniversário?
-
Claro que é, por que? Duvida? Por eu ser uma prostituta não tenho a obrigação
de ser mentirosa, tenho? Prostituta também comemora aniversário, pois quando
ela nasce é tão pura como qualquer outro bebê.
-
Calma, não estou duvidando, é que pensei que fosse uma desculpa que você me deu
para não aceitar minha companhia...
-
Tenho ódio da mentira e só minto quando forçada, assim mesmo para beneficiar
alguém ou alguma coisa.
-
Você é uma pessoa honesta e eu fico contente com isto.
-
Eu, honesta? - deu uma risada. Por que diz isso?
-
Porque apesar de alugar seu corpo, você não vende sua verdade... Posso me
sentar?
-
A cadeira está vazia e você não vai pagar nada por isso...
-
Acho justo que não queira trabalhar no seu aniversário - falou Giacomo, ao
sentar. É um direito seu, e ninguém pode lhe obrigar. Por isso, peço apenas que
me deixe lhe pagar uma bebida...
-
A troco de que?
-
De sua companhia, simplesmente...
-
Você é ingênuo, maluco ou quer gozar com minha cara? Nos tempos de hoje, onde
dinheiro é difícil de se ganhar, você quer gastar o seu comigo, sem mais nem
menos, quando mulheres jovens e bonitas estão se trocando por um bom prato de
comida... Custo a acreditar.
-
Não vim aqui a procura de sexo. Estou me sentindo hoje muito solitário e
gostaria apenas de ter alguém com quem pudesse conversar. Só isso.
-
E por que eu?
-
E por que a guerra, a fome, a miséria e a solidão? Por que tem que ter sempre
um porquê para tudo? Escolhi você porque estava chorando e eu vi na sua dor a
minha solidão. Depois, quando disse que era seu aniversário, senti desejo de
comemorá-lo.
-
Sabe quando foi a última vez que um homem me procurou que não fosse para sexo?
-
Não.
-
Nem eu também. Faz tanto tempo, que não me lembro. Bem, já que faz tanta
questão de me pagar uma bebida, gostaria de beber champagne, pode ser?
Giacomo
providenciara tudo com o gerente do Cabaret, e a surpresa não poderia ser
maior. No momento em que os músicos tocavam algo apropriado, fez-se escuro
total e um garçom entrou com uma vela acesa sobre um pequeno bolo. Giacomo foi
até o palco e falou ao microfone:
-
Gostaria de oferecer aos presentes uma taça de champagne e que todos ergam-na
num brinde à nossa amiga Danielle, hoje aniversariante.
Durante
algum tempo a emoção de Danielle contagiou as demais mulheres presentes que a
beijaram e a abraçaram entre lágrimas. Houve um trégua na rivalidade, na
competição e ficou mais uma vez patente o quão intensa é a solidariedade nesse
tipo de gente em determinados momentos da vida. Até o maitre, homem
habitualmente frio por dever de ofício, falou com a voz um pouco embargada:
-
Há muito que não se via nada parecido por aqui.
No
auge da comemoração, quando todas as luzes foram acesas, Giacomo pôde notar no
rosto da aniversariante as marcas do tempo e da vida que levava, além de um
grande hematoma sobre a vista esquerda. Se calcular a idade de uma mulher já é
difícil, de uma prostituta torna-se quase impossível.
Depois
que os músicos ofereceram uma música para a aniversariante, o ambiente da casa
voltou ao normal, dentro da penumbra habitual. E por tudo que ali acontecera,
Giacomo fizera por conquistar a admiração dos presentes e a gratidão de
Danielle.
-
Agora que somos amigos, você pode me contar por que estava chorando quando eu
aqui cheguei?
-
Você já tinha conseguido me fazer esquecer o motivo...
-
Me perdoe, então. Não perguntei por mal, nem por indiscrição. Pensei que
quisesse desabafar com alguém, mas se prefere não falar sobre o assunto...
-
Não tem importância. Talvez seja até bom falar. Há muito que não tenho com quem
desabafar e você já conquistou minha confiança.
-
Desabafe. Pode falar à vontade.
-
De um modo geral, os homens se acham no direito de nos bater só por levarmos a
vida que levamos. Isto não é justo. Não gosto de violência, e em toda minha
vida só admiti apanhar dos homens que amei.
-
Está amando alguém, no momento?
-
Não. Ninguém mais se interessa por mim...
-
Então quem foi o responsável por este hematoma no seu olho?
- Um velho bêbedo e miserável, do qual vou
me vingar, como me vinguei de todos que me espancaram sem ter direito...
-
Quem é ele, posso saber?
-
De que adianta dizer seu nome? Ele é muito querido e goza de bastante prestígio
por aqui. Ninguém vai acreditar em mim...
-
Eu acredito, e gostaria de saber quem e por que pôde lhe fazer mal.
-
Já ouviu falar em Prescot?
Não
existe coincidência - pensou Giacomo. O que existe é um fio condutor invisível
de energia que nos faz unir a fatos e pessoas que buscamos descobrir. Se não
fosse um outro Prescot, aquilo teria sido um aviso. Procurou disfarçar sua
angústia, falando com naturalidade.
-
Veja, este nome não me é estranho. Talvez o conheça de vista...
-
Pois bem, éramos amigos. Sempre que eu não tinha o que comer e onde dormir, ele
me levava para sua casa, dava-me um prato de sopa, me deixava ficar por lá e
eu, em troca, lhe dava meu corpo, deixava a casa limpa e a roupa lavada...
-
E o que aconteceu? - perguntou Giacomo, procurando disfarçar seu real
interesse.
-
De uns tempos para cá ele tem me evitado, como a outras também que como eu não
têm onde cair morta. Parece que ficou rico de repente. Tem sido visto com
mulheres jovens e bonitas. Um dia destes, uma delas passou por mim e disse: -
"Desculpe Danielle, mas precisei roubar o seu homem. "A princípio não
entendi a piada, mas quando soube mais tarde que era Prescot o homem a qual ela
se referia, fiquei indignada e a procurei com o intuito de provocá-la: -
"Não sabia que você estava tão decadente. Não precisava me roubar Prescot
para ter um prato de sopa e um cobertor velho para se cobrir..." Ao que ela me respondeu: - "Se é com um
prato de sopa que ele paga por suas rugas e pelancas, fique sabendo que pelo
meu lindo e jovem corpo ele tem pago muito dinheiro. Até joias tem me dado.
Olhe, veja este anel..." Não suportando tanta humilhação, reuni todas as
minhas forças e me atraquei com aquela mulher que julgava ser falsa e
mentirosa, e gritava enquanto cravava minhas unhas em seu rosto: - "Puta!
Cadela, falsa e mentirosa! Como pode um velho pobre gastar dinheiro com uma
vagabunda como você. Como quer que eu acredite numa mentira dessas, sua
ordinária imunda!, disse eu". Mas, depois de muito lhe bater, acabei por
me convencer de que algo do que ouvia podia ter um fundo de verdade, quando ela
entre lágrimas me falou: - "Você pode até me matar, mas o que eu estou lhe
dizendo é verdade. Prescot tem dinheiro escondido naquela casa velha. Onde, eu
não descobri ainda, mas tem. Outro dia, ao me dar todo o dinheiro de sua
carteira, pedi-lhe mais. Ele entrou num pequeno cubículo que faz de escritório
e, pouco tempo depois voltava, trazendo mais dinheiro para mim." Deixei-a
ir, e fiquei esperando uma oportunidade para me certificar do que acabara de
ouvir.
-
Descobriu alguma coisa? - perguntou Giacomo, curioso.
-
Ontem Prescot apareceu por aqui, e eu aproveitei para chorar minhas mágoas. Disse-lhe
que hoje seria meu aniversário e que gostaria de comprar um vestido novo.
Acabamos a noite em sua casa. Depois de me usar, Prescot me deu algum dinheiro.
- "Tome isto aqui, é o que eu posso lhe dar. Não como pagamento, pois bem sabe que não tenho
condições para isso, mas para que compre
alguma coisa pelo seu aniversário" - falou ele, em tom paternal. Usando de
toda a minha arte, chorei o quanto pude dizendo que, embora compreendesse a sua
situação, de muito pouco poderia me adiantar aquela quantia, pois não daria
para comprar uma blusa sequer. Prescot entrou no pequeno compartimento, tendo o
cuidado de fechar a porta ao passar. Esperei um instante e logo depois rodava a
maçaneta cuidadosamente, procurando não fazer ruído. Ouvi um rangido estranho.
Assim que introduzi minha cabeça no cubículo, deparei com a figura de Prescot
de costas, agachado no chão. Curiosa para saber o que ele fazia naquela
posição, dei dois passos e tentei olhar por sobre a sua cabeça. O assoalho
rangeu forte e ele voltou-se em minha direção. Com um salto felino pôs-se de pé
e, ao mesmo tempo em que gritava, acertava-me um forte soco no rosto,
atirando-me de encontro à porta. - "Saia já daqui, sua decaída velha! Se
pensa que vai tomar o meu dinheiro, está muito enganada. Tenho ódio de gente
bisbilhoteira. Ponha-se já na rua antes que eu lhe bata com mais força."
Refeita do susto, ainda tentei argumentar: "Eu sei que você tem dinheiro
escondido, pois até jóias tem dado a outras mulheres, portanto, não custava
nada me dar o suficiente para um vestido. "Ao que ele me respondeu:
"O dinheiro que eu tenho é para gastar com mulheres jovens, limpas e
bonitas, e não com um trapo sujo e velho como você." Aquelas palavras me
encheram de ódio e me fizeram avançar nele com todo o meu ímpeto, gritando:
"Pois se quer meu silêncio, é bom me dar mais dinheiro." Prescot
apesar de velho é muito forte e, depois de me dominar, acertou-me um violento
soco no olho, atirando-me longe. Caída no chão e ainda tonta, gritei com todas
as forças do meu pulmão: "Você vai me pagar, velho frouxo e covarde! Vou
contar a todo mundo que tem dinheiro escondido sob o assoalho da casa. Todo
mundo vai lhe querer roubar e até lhe matar para ficar com seu dinheiro!"
Prescot me levantou do chão pelos cabelos e sussurrou, entre dentes: "Se
você contar a alguém o que viu aqui será o mesmo que assinar o seu próprio
atestado de óbito. Eu não tocarei num só fio de seu cabelo, mas meus amigos
farão um serviço tão limpo que nem seu corpo pelancudo será encontrado. Estou
tão certo do seu silêncio, que agora vou lhe deixar ir à vontade. Não me
procure nunca mais e não fale do meu nome a ninguém. Faça de conta que jamais
me conheceu." Estas foram as últimas palavras que ouvi de Prescot e que eu
jamais pensei contar a alguém, não fosse você ter me inspirado hoje tanta
confiança. Não espero que acredite, mas quero que esteja certo de que mais cedo
ou mais tarde eu me vingarei dele. Gostaria que guardasse segredo de tudo o que
lhe contei. Prescot tem muitos amigos e poderia realmente encontrar alguém
capaz de me matar...
-
Em primeiro lugar, quero que saiba que acredito em tudo o que me disse - falou
Giacomo. Em segundo lugar, peço-lhe que não conte isso a mais ninguém e que não
faça nada, por hora, contra Prescot. No momento não posso lhe dizer mais nada,
mas quero que acredite em mim e deixe este caso por minha conta. Se puder,
procure descobrir mais coisas sobre Prescot, mas aja com muita prudência e
discrição. Breve você terá notícias minhas.
Por
hora Prescot era o maior suspeito, e merecedor de maiores investigações. Mas o
que Giacomo havia apurado, até então, era pouco para incriminá-lo. Precisava de
provas contundentes. Assim, começou a agir. Com a ajuda de seu contato,
Monsieur Mauriac, uma cilada foi armada para tentar fisgar o peixe. Giacomo
elaborara um plano simples e eficaz, capaz de não deixar dúvidas quanto ao
envolvimento de Prescot com os nazistas. Uma mensagem foi entregue a ele,
dentro de um envelope lacrado, por um dos ouvintes assíduos de suas histórias,
um garoto de quinze anos, ao cair de uma tarde no banco da pracinha. O garoto
lhe dissera apenas:
-
"Leia, decore e depois destrua. Daqui a duas horas alguém passará por aqui
numa bicicleta pintada com as cores da França. Transmita a essa pessoa a
mensagem e é só."
Já
em casa, Prescot abriu o envelope com as mãos trêmulas e leu o que estava
escrito: "A festa será amanhã, e as quatro cabeças deverão ir." A
hora e o local completavam a mensagem meio codificada. Duas horas depois
Prescot transmitia o que gravara na memória a um homem de meia idade que
passara pela praça montado na bicicleta que tinha as cores indicadas.
Prescot
só foi visto ao fim da tarde do dia seguinte. Estava mais bem disposto e alegre
do que de costume e pródigo em sorrisos e presentes, distribuindo balas e doces
com as crianças da praça. Com a aproximação da noite as crianças foram
abandonando o local e, exatamente às 19 horas, Prescot estava de volta à sua
casa. Ele ocupava a parte dos fundos de um prédio antigo de dois pavimentos.
Com uma cortina, dividira um grande salão em duas partes. A primeira usava como
sala de estar e cozinha ao mesmo tempo, pois a um canto tinha um pequeno fogão,
pia e um armário com panelas, pratos e mantimentos. Do outro lado da cortina
ficava o seu quarto, que tinha ainda duas portas internas, que davam uma para
um banheiro e para o pequeno cubículo que usava como escritório. Naquela noite
ele arrumara tudo com muito capricho, e até velas colocara num antigo castiçal
de prata. O jantar também seria especial e, entre outras coisas, conseguira
arranjar costeletas de porco. Dias antes Prescot conhecera uma bela e jovem
mulher que o impressionara bastante. Era uma profissional especial, habituada a
escolher seus clientes. O assédio a ela foi tão direto e constante que a jovem
acabou por ceder diante, afinal, de uma proposta que achou irrecusável. Naquela
noite ela estaria ali para jantar com ele, e Prescot não cabia de ansiedade e
desejo. Embora o encontro estivesse marcado para as 20 horas eram mais de 21
quando a mulher apareceu. Assim que ela ultrapassou a porta, Prescot teve o
cuidado de passar a chave e os grossos trincos. Estava preocupado e contrariado
com a demora e mostrava-se por demais impaciente. Assim que terminaram o jantar
Prescot disse à mulher:
-
Vou tomar um banho rápido. Tire toda a sua roupa, puxe as cobertas e deite-se
ali. Infelizmente, por causa de seu atraso, teremos que deixar o romance para
outra ocasião. Hoje já perdemos muito tempo, e daqui a pouco tenho um
compromisso com uns amigos que vêm aqui me buscar.
Prescot
era um homem regido mais pelo instinto do que pelo intelecto e, se comia e
bebia demais, mais bloqueada ficava sua mente. Na verdade ele não conseguia
entender porque aquela mulher ainda estava vestida a sua frente. Por que ela
estava tentando ganhar tempo, desde que chegara? Enfurecido, gritou:
-
Vai tirar logo esta roupa, ou quer que eu mesmo as tire?
-
Estava esperando você sair do banheiro. Não costumo me deitar com um homem, sem
antes me assear - respondeu, calmamente.
-
E o que está esperando? Vá logo, não temos mais tempo a perder - gritou
Prescot, completamente nu, parado no centro do quarto.
Algum
tempo se passou sem que a mulher saísse do banheiro, quando Prescot,
enfurecido, socava a porta enquanto gritava:
-
Saia já daí, ou irá se arrepender...
Prescot
já não sabia mais o que sentia, se fúria ou excitação, quando ouviu a voz suave
da mulher:
-
Só saio daqui quando você estiver deitado e com os olhos fechados. Quero lhe
fazer uma surpresa...
-
Diabo de mulher maluca que fui arranjar - resmungou ele, enquanto deitava.
Pronto, pode vir. Já estou com os olhos fechados.
A
mulher saiu enrolada numa toalha e com as mãos para trás. Ajoelhou-se diante da
cama, soltou a toalha e começou a acariciar Prescot que até aquele momento
mantinha os olhos fechados. De repente, num
movimento brusco, puxou a mulher para a cama, e quando já ia penetrá-la
ouviu um estrondo. Deu um salto, correu até a janela, e do ângulo em que estava
só pôde ver um clarão. Instintivamente, começou a se vestir. A mulher também se
assustou, mas ainda teve sangue frio para tirar um pequeno revólver da bolsa
que pousara ao lado da cama ao sair do banheiro.
-
Fique onde está - disse ela, apontando-lhe a arma. Não dê nem mais um passo
senão eu atiro.
Prescot
começou a compreender o que estava acontecendo, mas sua surpresa só ficou
completa quando viu quatro homens armados passarem pela porta que ele jurara
que havia trancado. Um dos homens sangrava muito e apoiava-se num outro. O mais
alto de todos, falou primeiro:
-
Os alemães acabaram de cercar e destruir o local onde íamos nos encontrar, por
isso resolvemos fazer a nossa festinha aqui. Parece que alguém deu a eles o
nosso endereço...
O
Serviço Secreto Alemão investigara a mensagem que Prescot lhe entregara nos
mínimos detalhes. Se para um idiota como Prescot aquela mensagem podia parecer
em código, para os alemães estava tão óbvio, que logo desconfiaram de sua
autenticidade. Eles sabiam que a Resistência dividira o Distrito de Paris em
quatro partes, e que cada uma delas era supervisionada por um membro da
Organização. Logo, se as quatro principais cabeças estivessem presentes, o
encontro, se fosse verdadeiro, seria de grande importância. Baseando-se nisso,
os alemães cercaram o local. Antes da hora marcada ficaram ocultos, vigiando à
distância. Às 22h10min surgiam de todos os lados e invadiam o prédio
abandonado, usando metralhadoras "Schmeisser MP 40" de 9 mm e bombas
de gás. No final de toda a ação militar apenas duas mortes como saldo: um
mendigo que morrera mais intoxicado pelo gás do que da bala perdida que o
atingira, e um enorme gato preto. Mas os alemães, por sua vez, já tinham tomado
outras providências e, momentos antes de invadirem o prédio, mandavam para a
residência de Prescot quatro agentes fortemente armados numa Mercedes cinza,
com a missão de retirá-lo da circulação por algum tempo, ou de eliminá-lo, caso
tivesse sido Prescot, vítima de uma cilada. Mas os homens da Resistência que,
próximo à casa de Prescot, aguardavam apenas o comunicado de que os alemães
tinham mordido a isca, tiveram tempo de agir na frente. A Mercedes cinza
chegara ao local minutos depois de confirmada a traição de Prescot e os
franceses, que escondidos viram o carro chegar, fizeram-no em pedaços.
Prescot,
dizendo-se vítima, negou a traição. A casa foi vasculhada por inteiro, e quando
o dinheiro foi encontrado - parte dele em marcos alemães de ocupação - sob o
assoalho do cubículo, não teve mais como negar sua culpa. Os homens da
Resistência ficaram impressionados com o montante encontrado. Ali mesmo ele foi
rapidamente julgado, condenado e executado. Um dos presentes, pai de um rapaz
que Prescot entregara aos nazistas, foi o seu carrasco. Prescot foi morto por
enforcamento e seu corpo foi encontrado estendido na cama, com as marcas da
corda no pescoço. A barriga fora aberta à faca e, na abertura, junto às
vísceras, uma nota de um marco alemão da ocupação.
Giacomo
solidificara seu prestígio, com o caso "Prescot", que teve fim numa
noite de janeiro de 1943, em pleno inverno europeu. A primavera e o verão
daquele ano já se tinham ido e agora que os ventos de outono começavam a
açoitar Paris, nova missão, tão importante quanto delicada, lhe fora entregue.
Giacomo teria uma semana para esconder, de preferência fora de Paris, a família
Fontaine, e libertar Germaine das mãos de seu carcereiro, o Coronel Kurt
Staden.
CAPÍTULO 29
O preço
A
estafa se fazia presente em todos os rostos, mas ninguém ali estava disposto a
se entregar ao sono antes do veredicto final. Das quase 30 pessoas presentes
àquela recepção, 7 resolveram permanecer em vigília ao lado da anfitriã:
Mariinha, D. Magda, a costureira-estilista, o Sr. Antenor, despachante da
butique, Mário Jordão, que fora à redação do jornal entregar sua matéria sobre
o desfile e já estava de volta e Bill, com seus amigos Fernando e Baraúna. O
domingo estava amanhecendo quando Maria, a criada da casa, entrou no grande
salão trazendo pães quentes e notícias frescas. Enquanto um café bem forte
estava sendo providenciado, os jornais espalhados pelo tapete iam sendo
devorados por todos os presentes.
Houve
unanimidade da crítica quanto ao desfile. Em todos os jornais havia elogios,
mas poucos perdoaram a ausência do costureiro e, apenas um, o de Mário Jordão,
reafirmava tudo o que já tinha publicado antes sobre Jean Louis.
"A
elegância e o bom gosto estão em lua de mel." "Foi criada uma nova
moda para apresentar a Moda." "Espetáculo inolvidável."
"Bill foi o astro maior." "Procura-se um costureiro
foragido." Estas, entre outras, foram as principais manchetes publicadas.
Quem
mais se aproximou da verdade foi a articulista do "O Globo", uma das
mais bem informadas a respeito de moda e sociedade, que entre outras coisas,
escreveu: "Mas afinal quem será este Jean Louis Marchand que aqui chegou
antes do dia e que acabou partindo antes da hora? Quem será este famoso
estilista francês que em seu país ninguém dele tem conhecimento? Não será Jean
Louis fruto de uma fértil imaginação? Não terá ele saído da mesma cabeça que
com capacidade soube criar um desfile tão original? Não estamos propensos a
acreditar que a França nos tenha mandado um costureiro, e sim apenas um nome
para que pudéssemos com ele rebatizar um João Luiz da Silva qualquer, tão
brasileiro quanto o nosso Pelé, e tão bom costureiro quanto os melhores do
mundo. Até que nos provem o contrário, é esta a versão que damos para
esclarecer o que sempre acreditamos ter sido uma grande farsa. Esperamos que
muito em breve possamos dirigir os nossos aplausos para o verdadeiro criador de
tão belos modelos. Os responsáveis pelo desfile ficarão nos devendo a verdade e
ela será descoberta, custe o que custar, pois só assim, retirando do anonimato
aquele que é hoje a mais grata revelação da alta costura, estaremos reparando
uma grande injustiça."
Bill
chegou em casa exausto, atirou-se na cama e passou o domingo inteiro dormindo.
Bem
antes das 8 horas da manhã de segunda-feira Estela já estava trabalhando. Assim
que entrou em seu gabinete particular, ficou surpresa com o que viu. Tudo o que
havia sido publicado pela imprensa no domingo a respeito de Jean Louis Marchand
e seu desfile estava espalhado sobre sua mesa, e no meio de todos aqueles
recortes havia um bilhete escrito a lápis vermelho: "ESTOU A SUA
ESPERA" - Ass. A. Fernandes. Ela não precisaria ser muito esperta para
adivinhar sobre qual assunto deveriam falar. Enquanto mentalmente preparava sua
defesa, Estela fazia movimentos circulares em sua cadeira giratória. A vida e a
morte trocavam de posição a cada instante diante de seus olhos. Eram duas
imagens que se intercalavam enquanto Estela girava seu corpo sem parar. Diante
da janela ela deparava com a vida que fluía no movimento crescente de veículos
que rodavam apressados pelas pistas do Aterro. E era quando ficava de frente
para a porta de seu gabinete que ela podia ver a morte, através do vidro, na
Redação vazia, abandonada, onde as máquinas de escrever, vestidas por mantos
escuros, guardavam o mais respeitoso silêncio.
"Editores
Unidos S/A", uma das maiores empresas gráficas do país, responsável por
uma infinidade de publicações, ocupava vários andares de um moderno edifício na
Esplanada do Castelo, e era ali, no penúltimo andar, que a revista
"Vitrine", uma das mais importantes da Organização, estava instalada.
Pintada
por tinta preta sobre o quadrilátero de vidro da porta, estava a inscrição:
CHEFE DE REPORTAGEM - Estela Ravache. Parecia que a tinta ainda estava fresca,
tal o brilho e a nitidez das letras. Na verdade aquela inscrição fora feita há
menos de 30 dias.
Estela
sorriu ao ler seu nome de trás para frente, e lembrou com que emoção o viu pela
primeira vez fixado sobre o vidro. Há oito anos que ela estava trabalhando para
a revista "Vitrine", e aquela era a sua segunda promoção. Começara
como repórter e há mais de três anos vinha ocupando o cargo de editora de moda.
Abordando assuntos de interesse da mulher, a revista dividia-se em 5 editoriais:
Saúde e Beleza, Arte, Moda, Decoração e Culinária, tendo um responsável para
cada setor.
Culta,
inteligente e extremamente dedicada, Estela fez por merecer a promoção e agora,
como Chefe de Reportagem, ela iria usar a experiência que adquiriu ao longo do
tempo em que, como repórter, pôde cobrir os diversos assuntos. A indicação de
seu nome aconteceu numa reunião de diretoria e naquela oportunidade A. Fernandes,
um dos Diretores da revista fora contrário, mas tivera que se conformar em ser
voto vencido. Não podendo revelar o verdadeiro motivo que o levava a não ver
com bons olhos a indicação do nome de Estela para o cargo, não teve argumentos
capazes de evitar que fosse ela a escolhida. Estela conhecia o fato e o motivo,
e estava pronta para lutar por sua posição. Ela sabia que não podia falhar e,
não ter ido, pessoalmente, ao desfile de Jean Louis fora o seu primeiro erro.
Como Chefe de Reportagem Estela ficava subordinada ao Diretor e, naquele
momento, ela estava reunindo forças e argumentos para enfrentá-lo.
Dentro
do horário habitual o contínuo entrou e lhe serviu um cafezinho, e ela só
percebeu que não tinha agradecido quando o rapaz já havia deixado o gabinete.
Levantou-se e foi ao encontro do seu chefe.
-
Leu os recortes que deixei sobre sua mesa, D. Estela? - perguntou o Sr.
Fernandes, num tom de voz pouco amistoso, ao recebê-la em sua sala.
-
Não - respondeu ela secamente.
-
E por que, posso saber?
-
Porque costumo comprar todos os jornais que saem aos domingos e desde ontem que
estou a par de tudo o que foi publicado sobre a matéria...
-
E já tem opinião formada sobre o assunto, não é verdade?
-
Fiquei surpresa com o que li...
-
Não foi exatamente isto que perguntei...
-
Honestamente, não posso ter ainda uma opinião formada. O que eu disser agora,
direi baseada no que foi escrito e...
-
Vê onde pretendo chegar? Nós, que fazemos parte da maior e melhor revista do
país, no gênero, estamos impossibilitados de opinar...
-
Não é bem assim - interrompeu Estela. Afinal houve unanimidade de opinião. A
crítica foi toda favorável...
-
Não estou me importando com que os outros disseram - interrompeu o Sr.
Fernandes, bruscamente. Para mim, todas as coisas que foram escritas não passam
de simples comentários. Temos uma equipe especializada sobre o assunto e
entendo que só a nós cabe o direito de opinar. Temos este compromisso com os
nossos leitores e não podemos enganá-los.
-
Mas eu mandei um de nossos repórteres fazer a cobertura do desfile e ele voltou
entusiasmado com o que viu...
-
A senhora mandou até lá um jovem inexperiente que nem sequer é contratado da
empresa. Um estagiário deslumbrado que ainda confunde moda com frescura. Não
pude deixar de rir ao ler o que ele escreveu. Além do mais, ele ficou tão
empolgado e surpreso por ter sido o escolhido, que esqueceu de levar um
fotógrafo...
-
Não foi bem assim - interrompeu Estela. O que houve foi um desencontro. Eu era
quem ia...
-
Pelo que eu soube o convite foi pessoal e intransferível. Veio em seu nome -
continuou falando o Sr. Fernandes, como se não estivesse ouvindo o que Estela
tentava explicar. Por que a desatenção? O que fez a senhora de tão importante
durante o sábado que não pôde comparecer ao desfile?
-
É o que eu estou tentando explicar. Como não poderia deixar de ser, a cobertura
do desfile já havia sido providenciada com a devida antecedência, e não só eu
mesma tinha decidido fazê-la, como já havia escalado o fotógrafo Justino para
me acompanhar. Entretanto, no sábado, dois contratempos mudaram o rumo dos
acontecimentos. Justino, que ao sair de casa pela manhã deixara sua filha
doente, foi liberado por mim na hora do almoço para que pudesse tomar as
providências que se faziam necessárias. Combinamos que eu passaria por sua casa
para apanhá-lo, na hora que fosse para o clube. Pouco tempo depois do Justino
ter deixado a Redação fui surpreendida com a chegada do material enviado por
nossos correspondentes na Europa, e que já não estávamos contando para a nossa
edição deste mês. Acontece que, ao constatar a excelente qualidade do material,
resolvi trabalhar nele, procurando selecionar o que havia de melhor entre fotos
e reportagens para a imediata apreciação dos senhores. Foi aí que, envolvida
pelo entusiasmo do que estava fazendo, esqueci-me do tempo e só fui dar conta
do desfile momentos antes da hora marcada para seu início. Naquele instante
achei que não deveria interromper o que estava fazendo, por julgar ser um
trabalho de mais urgência e relevância e, assim, convoquei o Carlinhos, único
repórter disponível na ocasião, para me substituir. Na pressa, esqueci-me de
avisá-lo quanto ao Justino.
-
A senhora acaba de me apresentar uma sequência imperdoável de erros e
equívocos. Ao julgar a importância de suas obrigações não poderia ter sido mais
infeliz. Já passei uma vista pelo que selecionou e a matéria, apesar de boa, só
deverá ser aproveitada na edição do próximo mês. Em contraposição, Jean Louis
vem ocupando o noticiário há quase dois meses e por isso entendo que o desfile
fazia por merecer uma maior atenção de sua parte, já que era uma matéria fresca
e em ebulição. O material que nos chegou da Europa é bom, mas é requentado.
Houve, no mínimo, um erro de avaliação. E agora, como ficamos? Suas desculpas
não bastam para resolver o problema...
-
Em momento algum pensei em me desculpar - interrompeu, Estela. Vim aqui para
relatar fatos e assumir total responsabilidade pelo que ocorreu. Chego até a
admitir meu erro, mas se isto se deu foi porque, em parte, eu nunca dei crédito
a esse tal de Jean Louis Marchand. Aliás, este assunto sempre me cheirou mal.
Continuo a defender a tese de que o que houve foi uma trama muito bem urdida e
que a imprensa, de um modo geral, por seu imediatismo, embarcou nela de forma
ingênua. Um jornal pode se precipitar, mas uma revista, não. Temos o tempo a nos
obrigar a lidar com a verdade dos fatos...
-
Me parece que a senhora desconhece a teoria da relatividade. Pois bem, depois
que Einstein a criou, tudo passou a ser muito relativo, até a verdade. Jean
Louis Marchand existe. A coleção Primavera-Verão, assinada por ele, e mostrada
com sucesso diante do público e da crítica, é uma prova evidente de que Jean é
hoje uma realidade. Não importa se ele é francês, se veio de Paris ou de
Nilópolis, ou se usa um nome falso. Tudo isso poderemos investigar posteriormente,
pois o que nos cabe agora é reparar um grande erro. Como se diz na gíria
jornalística: "comemos barriga". A senhora, D. Estela, deixou-se
levar por uma antipatia gratuita e com isso acabou por negligenciar...
-
A meu ver deveríamos usar detetives em lugar de jornalistas especializados em
alta costura para tratar deste assunto, que é mais policial do que de Moda. Mas
não se preocupe, Sr. Fernandes, creio ter um bom crédito e assim espero ainda
estar fazendo por merecer a confiança da Empresa; portanto, estou pronta para
consertar meu erro.
-
Conto com isso, D. Estela, e desejo que o conserto não venha em forma de
remendo. Espero que seja feito um cerzido capaz de tornar esta falha
imperceptível.
Estela
sabia que tinha que agir depressa e, em menos de uma hora, estava na butique
Blanche-Noir. O movimento na loja era intenso e ela teve que aguardar algum
tempo até que pudesse ser atendida por D. Dulce em seu pequeno escritório.
-
Em primeiro lugar quero parabenizá-la pelo sucesso - falou Estela, procurando
ser gentil. Vim também para agradecer o amável convite em meu nome, e me
desculpar por não ter podido comparecer. Um compromisso de última hora me
prendeu à Redação da revista, e por este motivo fui obrigada a mandar alguém
para me representar...
-
Compreendo, falou D. Dulce, afinal ninguém está livre de um imprevisto. O
importante é que um representante de sua revista esteve lá e pôde testemunhar a
beleza de nosso espetáculo...
-
Sim, é claro, mas acontece que somos muito exigentes quando temos que cobrir um
acontecimento tão importante e posso adiantar que não ficamos nada satisfeitos
com a matéria que nos foi apresentada. O repórter que fez a cobertura do
desfile não era a pessoa mais indicada para o serviço, e sim a única que
dispúnhamos, no momento, para me substituir. Ele é um jovem de futuro, mas
ainda um tanto inexperiente e, entre a surpresa de ter sido convocado e a
pressa em atender tal convocação, afobou-se e saiu sem se fazer acompanhar de
um fotógrafo. Agora estamos com um grande problema, e esperamos que a senhora
nos ajude a resolver...
-
Estão precisando de algumas fotos do desfile, não é isso?
-
Exatamente, e com a máxima urgência. Como já deve saber, a nossa revista é
mensal e costuma estar nas bancas até o dia 10 de cada mês. Estamos na dependência
destas fotos para fecharmos nossa edição. Ficamos assim num grande dilema: ou
dedicamos 6 páginas para uma reportagem ilustrada, com chamada na capa, sobre a
matéria, ou seremos forçados a ignorar o assunto. É verdade que tenho alguns
bons amigos na imprensa e poderia a eles pedir socorro, mas isto eu jamais
faria, pois se o fizesse estaria passando um atestado de incompetência, não só
a mim própria, como à revista para qual trabalho. Portanto, D. Dulce, não vejo
outra pessoa senão a senhora, para nos dizer qual solução devemos dar ao
problema...
-
Bem, todo o produto de consumo vive de sua divulgação e nada seria tão
promocional, para nossa butique, como 6 páginas de reportagem ilustrada em tão
conceituada revista mas, embora interessada em que isso venha a acontecer, nada
mais posso prometer que meu total empenho...
-
E a quem, além da senhora, eu poderia recorrer? Bill Morrison, seria a pessoa
certa?
-
Bem, foi ele o único responsável por toda a organização do desfile, inclusive
por todo o contato direto com os órgãos de divulgação...
-
E como eu poderia chegar até ele? - interrompeu Estela, procurando ser
objetiva.
-
Hoje isto seria impossível. Ele embarcou pela manhã para São Paulo e não
sabemos quando vai voltar.
-
Não sabe de alguém que tenha tirado fotos do desfile e possa estar interessado
em vendê-las... Um fotógrafo amador, por exemplo?
-
A não ser os profissionais da imprensa que foram credenciados e os fotógrafos
da equipe de produção do desfile, ninguém mais teve permissão para entrar portando
câmeras fotográficas.
-
Então o que acha que eu devo fazer?
-
Diga como podemos localizá-la a qualquer hora. Se Bill não entrar em contato
comigo, de São Paulo, ele o fará assim que chegar aqui, e estou certa de que
seu tempo de permanência lá será o menor possível.
Estela
entregou a D. Dulce um cartão de visitas com números de telefones profissionais
e particulares.
-
Peça a Bill para entrar em contato comigo. Só nos interessamos por fotos
exclusivas que ainda não foram publicadas na imprensa, acompanhadas dos
respectivos negativos. Para isso estamos prontos a pagar o que for preciso e
olhando para o relógio em seu pulso, Estela acrescentou: - Tenho menos de 24
horas para dar uma solução a este problema. Se até amanhã às 10 horas estas
fotos não estiverem sobre a minha mesa, serei forçada a desistir da reportagem.
-
Não se preocupe. Se eu conseguir falar com Bill a tempo, estou certa de que ele
encontrará um meio de nos atender.
Procurando
falar da forma mais casual possível, Estela perguntou:
-
Como posso obter o endereço ou o número do telefone de Jean Louis Marchand em
Paris? Gostaria de, em nome da revista Vitrine, parabenizá-lo.
-
Impossível. Apesar de toda a badalação, Jean é uma pessoa extremamente
reservada, para não dizer tímida. Como amiga particular dele, não nego que sei
como localizá-lo. Porém não estou autorizada a fornecer endereço ou o número de
seu telefone. Lamento.
-
Compreendo - respondeu Estela, deixando escapar um pouco de ironia.
Estela
estendeu sua visita o tempo suficiente para admirar alguns modelos que fizeram
parte do desfile, e todos os croquis assinados por Jean Louis. Conseguiu ainda
dados suplementares a respeito do estilista, sobre Bill, e da história da
Blanche-Noir. Ao voltar para a Redação já estava com toda a reportagem escrita
em sua cabeça e agora era só esperar pelas fotos.
Ansiosa
para contar a Bill as novidades, D. Dulce tentou comunicar-se com ele. Como não
conseguiu localizá-lo, espalhou recados por todos os cantos possíveis e
imagináveis. Ao cair da tarde Bill entrou em contato com ela, por telefone, e
ficou surpreso com o que ouviu. Na verdade ele não esperava ter tão cedo uma
oportunidade tão boa para vingar-se.
Já
eram mais de 5 horas da tarde daquela segunda-feira, quando o telefone tocou e
uma voz feminina atendeu:
-
Alô! Borges e Castro, Detetives Associados às suas ordens.
-
Gostaria de falar com o Sr. Castro...
-
Quem deseja falar com ele?
-
Estela Ravache.
-
Um momentinho, por favor. Vou ver se ele pode atender.
Alguns
segundos depois a voz nasal de Castro feria os ouvidos de Estela.
-
Alô, querida! A que devo a honra?
-
Preciso de um favor seu com a máxima urgência...
-
Você manda...
-
Já ouviu falar de um costureiro chamado Jean Louis Marchand?
-
Li pouca coisa a respeito...
-
Pois bem, vou mandar-lhe tudo o que publicaram sobre ele, e desejo que você
investigue toda a história. Para mim esse cara nunca existiu, mas preciso ter
certeza... Provas.
-
Pra você eu só não farei o que for impossível. Deixe comigo, boneca, que eu vou
tratar do caso, pessoalmente, com todo o empenho.
Às
9h50min da manhã do dia seguinte Estela já estava sem esperanças. Todas as
tentativas que fizera para entrar em contato com Bill foram frustradas. No
momento em que passava uma escova nos cabelos para ir até a sala do Sr.
Fernandes foi surpreendida com a chegada de uma encomenda. Um grosso envelope
pardo lhe foi entregue por um rapaz que trabalhava como boy para a butique
Blanche-Noir. Dentro do envelope haviam 12 fotos do desfile e seus respectivos
negativos. Acompanhava a encomenda um cartão de visitas de Bill, com a seguinte
inscrição: "Se estiver disposta a pagar o preço que exijo pelas fotos,
use-as como desejar. Quero que jante comigo esta noite e nem um centavo a
menos”. Ass. Bill.
CAPÍTULO 30
Paris, Inverno
de 1944
Giacomo
estava de volta do interior. Chegava ele à Capital Francesa na véspera do Natal
de 1944. Durante o tempo em que esteve fora, muitas coisas aconteceram não só a
ele, mas à Paris, à França, ao mundo todo. O mundo envelhecera depressa e ele
também. Estava bem mais magro, com o rosto fino e os olhos fundos. Tinha a
barba por fazer e as forças por refazer. Há dias atrás percebeu, ao olhar-se
diante do espelho, que em suas têmporas alguns fios de cabelo tinham se banhado
de prata. Giacomo havia lutado por toda a parte - nas aldeias, no campo, nas
montanhas. Passara frio, fome e sede. Sujara as mãos de sangue, tirando vidas
para poder preservar a sua. Ele e a morte ficaram íntimos, tantas foram as
vezes em que estivera diante dela. A primeira vez aconteceu durante um cerrado
tiroteio. Uma bala inimiga o atingiu, alojando-se em seu pulmão direito. Mal
refeito da operação e ainda com o organismo enfraquecido, foi vítima de
pneumonia e esteve entre a vida e a morte. Fora de perigo, mas ainda
convalescente, foi o único do grupo por ele comandado a cair prisioneiro
durante uma batalha. Giacomo resistiu heroicamente às torturas e por milagre
escapou de ser fuzilado. Germaine, liderando um grupo de camponesas, foi o
veículo que fez operar tal milagre. O Capitão Von Erich, vaidoso e mulherengo,
aniversariava e Germaine fora avisada do fato. O Capitão proclamara, para quem
quisesse ouvir, que a execução de Giacomo seria adiada por um dia. - "Eu
sou um incorrigível sentimental - dizia - e quando aniversario costumo ser
benevolente e generoso".
Os
alemães ocupavam provisoriamente uma fazendola da região de Provins e eram em
número de 30, aproximadamente. Germaine passara o dia reunindo camponesas e à
noite apareceu por lá acompanhada de uma dúzia delas e muitas garrafas de
vinho. A festa improvisada degenerou em bacanal e antes da meia-noite a maioria
dos soldados ou estavam embriagados ou envolvidos por aquele ambiente
pecaminoso e, em ambos os casos, pouco poderiam fazer para repelir um ataque de
surpresa.
Os
maquis, fortemente armados, mas em número bastante inferior, chegaram
rastejando por entre as folhagens e envoltos pelo manto negro da noite. As
sentinelas foram dominadas antes que pudessem dar um tiro sequer. Em qualquer
luta o fator surpresa é uma das armas mais eficientes. Depois de uma pequena
troca de tiros, 5 baixas foram registradas: 3 soldados alemães, um jovem
francês e uma camponesa. As armas nazistas foram apreendidas, as viaturas
destruídas, as fardas queimadas e os soldados, todos nus, foram amarrados uns
pelos outros, exceto o Capitão Von Erich.
Giacomo aproveitou o momento para fazer um pequeno discurso antes de
abandonar o local:
-
Vamos conservá-los vivos. Não é nosso costume executar prisioneiros, pois sabemos
que isto seria um assassínio e não sentimos prazer em matar. E você, Capitão,
por ser aniversariante, permanecerá fardado e terá apenas as mãos amarradas.
Afinal, eu sou também um incorrigível sentimental. Se você sobreviver a esta
guerra, o que espero que aconteça, terá como castigo, a atormentar-lhe até o
fim de seus dias, a lembrança deste seu aniversário.
Agora
estava Giacomo de volta a Paris depois de tão prolongada ausência. Amava aquela
cidade como se fosse sua e achava que parte dela realmente lhe pertencia.
Giacomo era filho de Gênova, mas tinha Paris como sua mãe adotiva. Era véspera
de Natal e a Cidade vivia momentos de euforia. Os alemães tinham sido expulsos
de lá em agosto. Antes, em junho, as tropas aliadas haviam invadido a Normandia
no que fora depois considerada como a maior e mais importante batalha da
Segunda Guerra Mundial.
Paris
viu-se mais uma vez obrigada a mudar seus hábitos e costumes. Teve que
substituir o chucrute pela goma de mascar, o chá e o uísque. E ao livrar-se da
arrogância nazista, passou a conviver com a fleuma britânica misturada à
descontração americana. A língua inglesa era aprendida e a germânica logo
esquecida. Paris era uma cidade livre e ao mesmo tempo ocupada.
Anoiteceu
e o frio nas ruas era intenso. Giacomo buscava um meio de transporte que o
levasse a Saint-Germain-des-Prés. Ali estava ele, caminhando entre a multidão
sem ser notado. Um herói anônimo, sem condecorações, igual a tantos outros que,
como ele, tinham arriscado a vida em favor de um ideal de liberdade e justiça.
Agora, no restaurante da família Fontaine, seus amigos o aguardavam para a ceia
de Natal. Três ausências seriam muito sentidas em torno da mesa: a do Dr.
Christian Louch, de seu filho mais velho Eugene e de Monsieur Raymond Fontaine.
Há
um pouco mais de um ano atrás, exatamente na última semana de outono de 1943,
Giacomo recebeu em seu quarto a visita de Monsieur Mauriac.
- O
plano aí está - falou Mauriac. Não podemos perder mais tempo. Hoje mesmo você
dará fuga ao casal Fontaine e à sua filha Noelle e, daqui a três dias,
libertará Germaine. Vá direto agora ao hospital, pois lá você encontrará uma
ambulância a sua disposição.
O
plano, bem elaborado, estava dividido em duas etapas. Em primeiro lugar se
fazia necessário esconder a família Fontaine, procurando dar um destino
diferente a cada membro. Quando todos estivessem bem protegidos, seria então
acionada a segunda etapa: a fuga de Germaine.
O
plano foi executado à risca. Madame Fontaine foi transportada de ambulância
para o hospital, simulando graves problemas cardíacos. Um falso atestado de
óbito já tinha sido preparado, pois ela deveria falecer pela madrugada e ser
sepultada na tarde do dia seguinte, como realmente ocorreu, só que alguém ou
alguma coisa foi dentro do caixão em seu lugar. Noelle, filha caçula, passaria
uns tempos com uma família amiga residente num bairro granfino de Paris. Madame
Fontaine, que adquirira nova identidade, ficaria morando na casa de Madelaine,
irmã de Dr. Louch, e seu marido, Monsieur Raymond Fontaine, de posse de um
visto concedido pelas autoridades alemães, iria passar uns dias no campo para
se restabelecer do choque, a conselho médico. Assim estava traçado e assim
aconteceu. Entre segunda e quarta-feira a primeira parte do plano foi
executada.
Na
quinta-feira, pela manhã, o Coronel Kurt Staden cantarolava embaixo do
chuveiro. Estava feliz. Germaine proporcionara-lhe uma inesquecível noite de
amor. Exatamente às 7h30min, como estava previsto, ele deixava o hotel na Av.
Marceau. Às 10 horas a arrumadeira entrava na suíte, reservada em nome do
Coronel, empurrando um grande cesto de vime sobre quatro pequenas rodas de
metal. Estava ali para trocar as toalhas e roupas de cama como sempre fazia
naquele dia e hora da semana. Momentos depois, ao deixar a suíte, a arrumadeira
sorriu para o soldado que estava de sentinela no corredor ao lado da porta e
este, tão embevecido ficou com o sorriso da moça, que não percebeu o gemido
angustiado das rodas de metal que giravam estranguladas com o peso acima do que
habitualmente estavam acostumadas a suportar. O elevador, em frente à suíte,
ficava no centro do prédio, num vão cercado por um gradil. O soldado ajudou
gentilmente a arrumadeira a colocar o cesto dentro do elevador. Ela por sua
vez, sem se perturbar, exibiu-lhe um novo sorriso agora em forma de
agradecimento. Dentro do cesto, envolvida por lençóis e toalhas, Germaine foi
obrigada a prender por segundos a respiração. Tudo ia correndo bem quando, de
repente, o elevador enguiçou entre o primeiro andar e o térreo. Foram momentos de
grande tensão, angústia e suspense. A presença do mecânico ali foi logo
providenciada pela direção do hotel mas, como este custou a aparecer, uma nova
medida teve que ser adotada - a retirada da arrumadeira e do cesto de roupas do
interior do elevador pela passagem que ficou aberta entre um andar e outro. O
problema criado chamou a atenção das pessoas que estavam no saguão, entre
estas, dois oficiais da Gestapo. Dois empregados do hotel estavam tentando
retirar o cesto quando um deles sugeriu à arrumadeira que parte da roupa suja
fosse retirada, a fim de aliviar o peso. Pela primeira vez a jovem começou a
sentir medo. O suor escorria-lhe pelas faces ao iniciar a tarefa que lhe foi
sugerida. Estava a ponto de entrar em pânico quando ocorreu um milagre. Ouviu-se
um estalido e em seguida o elevador estremeceu. A arrumadeira lembrou-se de
puxar a porta sanfonada, fechando-a de novo e pediu que fizessem o mesmo com a
porta que ficava no térreo. Ao acionar novamente o botão de emergência viu, com
alívio, o elevador se mover. E como se nada lhe tivesse acontecido ele desceu
lentamente, garboso e indiferente aos olhares curiosos.
O
velho furgão da Tinturaria que servia ao hotel estava estacionado em frente à
porta de serviço, com Giacomo ao volante. Ele teria em torno de 9 horas para
retirar Germaine de Paris, pois o Coronel Kurt Staden só deveria regressar ao
hotel por volta das 7 horas da noite, quando então jantaria com sua amante.
Para ela uma documentação falsa já havia sido preparada. Germaine teria de
passar por uma camponesa que tinha vindo a Paris a passeio e que agora
precisava regressar à sua terra de origem.
O
Coronel Kurt Staden estava feliz e nem de longe poderia desconfiar que Germaine
fora pródiga em carinhos, na noite anterior, como uma forma de gratidão por
tudo de bom que ele fizera para ela e sua família. E assim, com o espírito
renovado, sentindo-se como se fosse um jovem amante apaixonado, o Coronel
conseguiu desvencilhar-se de certos deveres militares e resolveu surpreender
sua bela mulher com a presença, no hotel, na hora do almoço. Entrou na suíte
cantarolando uma canção francesa e trazendo nas mãos uma braçada de flores.
Encontrou o bilhete sobre a penteadeira e leu emocionado: "Kurt, querido -
por mais paradoxal que lhe possa parecer, desejo que a paz se faça breve sem
que haja vencido ou vencedor. Por tudo de bom que você tem e pelo ser humano
que você é, não merece passar pela humilhação da derrota. Se não me foi
possível amá-lo, por estarmos em campos opostos, e pelas circunstâncias que nos
fizeram ficar juntos, aprendi com o correr do tempo a admirá-lo e a respeitar
suas convicções e o direito de tê-las. Espero que sobreviva a esta catástrofe e
que encontre a felicidade que merece. Um abraço afetuoso de Germaine". O
Coronel leu várias vezes o bilhete imaginando que uma mensagem de amor
verdadeiro estivesse ali, em forma codificada. Depois o destruiu. Em seguida
olhou para o telefone. Chegou a tocá-lo com a ponta dos dedos. Ele sabia que
bastaria um só telefonema seu e todas as saídas de Paris seriam bloqueadas.
Todos os veículos seriam minuciosamente vistoriados. Ele sabia que se a Gestapo
fosse mobilizada a tempo, Germaine seria recuperada. Lembrou da morte da Madame
Fontaine e da viagem de seu marido Raymond e começou a juntar as peças do quebra-cabeça.
Claro, tudo não passara de um blefe, uma forma de protegê-los para que Germaine
pudesse ter um caminho livre para a fuga. Sim, ele fora enganado e, pela
primeira vez na vida sentiu prazer com isso. Tirou o fone do gancho e ao invés
de ligar para o Quartel-General, ligou para a recepção e pediu que lhe
mandassem três garrafas de champanhe. Tomou várias taças da borbulhante bebida
enquanto ouvia a quarta sinfonia de Bethoven, sua peça musical favorita.
Embriagou-se. Ria e chorava ao mesmo tempo, numa alegria triste. Seus risos e
soluços estavam sendo agora abafados pela música de Wagner. O relógio de pulso
marcava 4 horas da tarde. No Quartel-General, alguns oficiais o aguardavam para
uma importante reunião. O Coronel Kurt sabia que já havia tempo suficiente para
que Germaine fosse colocada fora do alcance das autoridades nazistas. Alguma
coisa lhe dizia que naquele momento ela deveria estar distante de Paris e bem
protegida. O soldado que estava de sentinela no corredor, ao lado da porta da
suíte, que já havia substituído o outro que ficara de serviço na parte da
manhã, foi sacudido pelo som de um disparo de arma de fogo. Imediatamente
entrou nos aposentos, com o fuzil engatilhado, e ficou estupefato com o quadro
que viu. O Coronel, impecavelmente fardado, estava morto estendido na cama. O
sangue ainda escorria de sua fronte, tingindo de vermelho a fronha branca de
linho que vestia o travesseiro. A mão direita ainda segurava uma pistola Luger
PST, semi-automática, de 9mm, que ele próprio disparara contra sua fronte. Nos
lábios repousava um breve sorriso. Afinal ele fora de encontro à sua paz.
O
alerta foi dado tardiamente. Mais de uma centena de pessoas foi detida e houve
de tudo - prisões, interrogatórios, torturas, traições e fuzilamentos. Houve exumação
do cadáver de Madame Fontaine por ordem da Gestapo, que assim logo pôde
comprovar a farsa de que fora vítima. Os alemães conseguiram apurar que houve
uma troca de identificação: Madame Fontaine assumira a identidade de uma pobre
senhora encontrada morta sem que parentes ou responsáveis reclamassem seu corpo
e que acabou sendo sepultada em lugar da outra. A partir deste momento todos
que, direta ou indiretamente participaram do caso, foram considerados possíveis
culpados, recaindo no motorista da ambulância a suspeita maior por não ter sido
encontrado em parte alguma. Para a Direção do hospital, Giacomo, ou melhor,
Marcel Martinelli, havia entrado de férias. Por tudo isso, foi em Marcel que a
Gestapo resolveu concentrar suas investigações, descobrindo fatos curiosos de
sua vida pregressa. Francês mas sem parentes na França, filho de pais italianos
já falecidos, etc., etc. Podia fazer sentido, podia ser verdadeira, mas aos
desconfiados olhos dos homens da Gestapo o excesso de conveniências os levava a
crer que um plano bem elaborado havia sido executado. Enquanto na Itália as
investigações tinham início, na França, precisamente em Paris, um dado novo foi
apurado através de denúncia de um traidor - dizia das ligações de Marcel
Martinelli com o Dr. Christian Louch. O doutor, homem de muito prestígio, havia
colocado Marcel a serviço da Cruz Vermelha Internacional. Imediatamente uma
ordem de prisão foi enviada à Nancy, mas o doutor, avisado a tempo, já havia
desaparecido. Os nazistas vasculharam sua casa em Paris, mas nada encontraram.
Tanto sua irmã Madelaine quanto Madame Fontaine já tinham abandonado o local e,
escondidas, estavam agora sob a proteção de Monsieur Mauriac.
As
coincidências e ligações das pessoas investigadas eram tantas, que a Gestapo
não tinha mais dúvidas de que estava diante de uma grande rede, organizada e
eficiente, de revolucionários atuantes. Desta forma, ao apertar o cerco em
torno das famílias Louch e Fontaine três preciosas vidas acabaram sendo
sacrificadas. Eugene Louch, o filho mais velho do doutor, foi o único a cair
prisioneiro e a primeira vítima. Morreu por não suportar as torturas, mas não
disse uma só palavra.
Monsieur
Raymond Fontaine foi a segunda vítima. Os nazistas começaram a caçá-lo a partir
do momento em que descobriram que seu restaurante havia sido abandonado, e que
ele deixara Paris para se recuperar da pseudo
morte de sua mulher. Ao deixar a Capital, Monsieur Fontaine foi hospedar-se
numa pequena estalagem nas cercanias de Coulommiers e por lá permaneceu mais de
48 horas. Na manhã do terceiro dia, ao mesmo tempo em que Germaine em Paris
deveria estar sendo libertada, ele saiu para dar um passeio pelo campo e não
mais foi visto naquelas redondezas. O que ele fez foi ir ao encontro do filho
Pierre no pequeno sítio em Creteil, seguindo assim o plano que havia sido
traçado. Fazia um pouco mais de um mês que estava lá, quando os alemães
chegaram. Não houve resistência, pois Pierre e seus comandados haviam saído
momentos antes para mais uma missão. Durante três dias e três noites os
nazistas permaneceram por lá, camuflados, na esperança de por as mãos em Pierre
e em seus seguidores, mas acabaram por se impacientar. A carnificina aconteceu na
manhã do quarto dia quando mulheres, velhos e crianças arderam em chamas dentro
do pequeno celeiro, junto com o feno estocado. Quando os soldados partiram o
sítio todo era uma só fogueira.
A
terceira vítima foi o Dr. Christian Louch. Foi encontrado perto das terras de
sua irmã, em Fixim. Depois que soube da morte de seu filho Eugene o doutor
entrou em forte depressão e jamais voltou a ser o que era antes. Vivia
alternando momentos de lucidez com outros de desequilíbrio total mas, tanto num
estado quanto no outro, ele só tinha um desejo: matar alemão. E foi assim que,
ao se ver cercado pelos soldados nazistas, lutou até morrer. Recebeu uma rajada
de metralhadora e tombou sobre um grande tacho usado para a preparação de
vinho. Teve assim o Dr. Louch um de seus desejos atendido - morreu cheirando à
uva, e levou consigo 5 soldados alemães.
Havia
alegria em torno da mesa. Afinal aquele era o primeiro Natal, depois de quatro
anos, em que podiam estar reunidos sem que estivessem sendo espionados pelos
vigilantes olhos do inimigo. Pierre ocupava a cabeceira da mesa e junto dele
estava sua mãe. Logo a seguir estavam as irmãs Germaine e Noelle. Do outro lado
da mesa estavam Madelaine e seu sobrinho, o filho mais novo do Dr. Louch e, na
outra extremidade, Giacomo ou melhor, Marcel Martinelli. À meia-noite em ponto
todos rezaram agradecendo a Deus por estarem vivos, com saúde e gozando de
liberdade. Pierre rezou uma prece pela alma dos três ausentes queridos.
Foi
o momento de maior emoção.
CAPÍTULO 31
O jantar
Bill
passou a terça-feira inteira na loja de artigos fotográficos de seu amigo
Fernando. A cada vez que o telefone chamava ele estremecia.
-
Agora que a poeira da euforia assentou nos fundos dos seus sapatos, quero que
me responda: quanto o desfile lhe rendeu? - perguntou Fernando, com ironia.
-
Você sabe que eu não ganhei um centavo por meu trabalho.
-
E quanto pagou por ele?
-
Nada. D. Dulce não aceitou meu cheque...
-
Por que? Não tinha fundos?
-
Não me provoque... Você sabe muito bem que os gastos com o desfile foram um
pouco além do orçamento previsto e, pelo que ficou combinado...
-
Você se responsabilizaria pelo que ultrapassasse - completou Fernando. E sendo
você um homem íntegro não poderia faltar com sua palavra, não é mesmo?
-
Não entendo você, ô cara... Vive dizendo que é o meu melhor amigo, e escolhe os
piores momentos para me sacanear... Por que toda essa provocação agora?
-
Justamente por me considerar seu melhor amigo... Não gosto de vê-lo cometer
tolices. Estamos no começo do mês e você ainda há pouco se queixou de já estar
sem dinheiro, e isto depois de ter feito um trabalho estafante e maravilhoso,
pelo qual não cobrou nada. E agora, para completar, acaba de perder uma ótima
oportunidade de ganhar um bom dinheiro...
-
Você está se referindo às fotos?
-
Claro. Eu as revelei e vi que ficaram ótimas. Você escolheu as 12 melhores e
ainda enviou-as acompanhadas dos negativos. Você sabia do quanto estas fotos
eram importantes para a revista "Vitrine" e, portanto, poderia ter
cobrado um bom preço por elas. Eu cheguei a abrir mão da minha parte para o
favorecer, e o que fez você? Cedeu os direitos sobre as fotos em troca de um
jantar que não vai acontecer, perdendo assim uma grande oportunidade de se
vingar de Estela e ainda faturar em cima dela... Por que você fez isso? Por vaidade, cavalheirismo ou burrice?
-
Vou responder por partes. Em primeiro lugar quero lhe dizer que o desfile vai
me render bem mais do que eu esperava. Recebi várias propostas de trabalho e
estou escolhendo a melhor. Sobre as fotos, posso lhe garantir que existem
várias formas de vingança, e eu optei pela que melhor se enquadra à minha
personalidade. As fotos foram vendidas, não se iluda. Eu apenas não cheguei a
fixar o preço exato por elas, mas estou certo de que receberei de Estela muito
mais do que realmente as fotos valem.
-
Não estou tão certo disso não, afinal já estamos quase na hora de fechar e ela
ainda não lhe telefonou...
-
A impaciência é um de seus maiores defeitos, Fernando. Você precisa aprender a
esperar. Eu fiz Estela esperar pelas fotos até o último instante, e estou certo
de que ela pretende usar para comigo as mesmas regras do jogo. Não creio que ela
esteja disposta a aproveitar as fotografias sem me dar uma satisfação...
-
Você não conhece as mulheres...
-
E você as conhece? Eu sempre adotei um princípio de que todas merecem um
crédito de confiança, e posso lhe assegurar que lucrei com isso na maioria das
vezes. Este é um risco, eu sei, que temos que correr. Estela tem o número do
telefone daqui e o de minha casa - estavam no cartão que eu lhe enviei. Talvez
ela prefira falar para a minha residência...
Depois
de uma pequena pausa, Bill falou com decisão:
-
Que tal uma aposta? Estou tão certo de que Estela aceitará jantar comigo, como
de que acabarei por conquistá-la.
-
Aceito a aposta e proponho os seguintes valores: 500 cruzeiros pelo jantar e
1000 pelo complemento, concorda?
-
Concordo. Qual o prazo que me dá?
-
O que você me diz de 30 dias?
-
É mais do que suficiente...
Os
dois já estavam na calçada e antes que as portas corrediças fossem baixadas por
Fernando, o telefone tocou no interior da loja. Bill correu para atender.
Voltou depois de alguns minutos com uma expressão enigmática no rosto. Tocou
com a mão no ombro do amigo e falou:
-
Que tal dar-me 500 cruzeiros por conta?
Não
só as palavras como a tonalidade da voz de Estela chegaram frias aos ouvidos de
Bill. Ela procurou demonstrar-lhe que estavam tratando de negócios. A princípio
tentou falar em cifras, insinuando que preferiria comprar as fotos por uma boa
quantia a aceitar o convite para jantar. E só concordou com a proposta de Bill
quando não viu outra saída. Estela explicou que estava tendo um trabalho muito
estafante e que só poderia aceitar um compromisso noturno quando a revista já
estivesse nas bancas. Bill, delicadamente, forçou uma data, e Estela acabou por
concordar em marcar para o próximo sábado. Para ouvir a confirmação e acertar
os detalhes, Bill ligaria para ela no dia do jantar.
Aquela
semana trouxe a Bill grandes alegrias e uma intensa ansiedade. O seu tempo foi
dividido entre a loja de Fernando e a butique Blanche-Noir pois, afinal, era
nesses dois lugares que ele esperava receber propostas para bons negócios.
Não
se podia dizer que Bill estivesse triste ou alegre, mas era fácil notar que ele
estava diferente e quem mais percebeu isso foi Mariinha.
-
Você parece um picolé - falou ela, depois de beijá-lo.
-
De que sabor? - perguntou Bill, procurando disfarçar.
-
Metade limão, metade chuchu...
-
Por que limão e chuchu?
-
Frio, azedo e sem paladar. Posso saber porque está assim?
-
Como posso lhe responder se é agora que estou sabendo por você como estou?
-
Não brinque... Estou falando sério. O que é que está acontecendo com você?
-
Talvez eu ainda não tenha me recuperado de todo do grande desgaste que tive.
Talvez esteja ansioso demais por um bom negócio, e ainda não tenha conseguido
me decidir por qual deles. O certo é que quando estou cheio de dúvidas não
consigo ser o mesmo. Mas não se preocupe, isto logo vai passar. Afinal, nada
tenho contra você...
-
Nem a favor, eu acho.
As
dúvidas de Mariinha se dissiparam quando, ao se despedir de Bill, ele a beijou
com desejo.
Bill
teve que concentrar seu pensamento em Estela para conseguir o efeito desejado.
A
sexta-feira chegou com novidades. A revista "Vitrine" apareceu nas
bancas e Bill, logo pela manhã, ficou muito satisfeito com o que viu e leu. A
reportagem ocupava 6 páginas. Seis fotos, uma grande e 5 menores, ilustravam o
excelente texto. Uma pequena caixa com orquídeas foi enviada por Bill a Estela.
"Parabéns pela qualidade da matéria e pelo bom aproveitamento das fotos.
Ass. Bill". Estes dizeres estavam no cartão que seguiu com as flores.
À
tardinha, um fato novo mereceu registro. No outro lado da cidade, próximo ao
Cais do Porto, num bar mal cheiroso e frequentado por tipos suspeitos,
aconteceu um encontro aparentemente inesperado. Mário Jordão, o repórter, que
trabalhava num jornal perto dali, estava junto ao balcão bebendo sua habitual
dose de uísque quando alguém esbarrou nele e o fez entornar parte da bebida no
chão.
-
Desculpe-me, distinto... Não foi por mal, é que eu tropecei. Não se preocupe...
Eu faço questão de lhe pagar outra dose...
-
Não precisa se incomodar, eu...
-
É um prazer - interrompeu o estranho e, virando-se para o homem que estava do
outro lado do balcão, pediu: Por favor, distinto, sirva-nos duas doses do
melhor uísque que tiver aí.
Mário
Jordão não sabia mais o que dizer quando o homem que estava a sua frente voltou
a surpreendê-lo.
-
Eh... Eu acho que o conheço. Eu sou o Cardosinho, amigo de infância de Bill.
Lembra de mim?
-
Desculpe, mas não consigo me lembrar...
-
Não tem importância... Também, com aquela confusão toda...
-
Aonde foi que nos conhecemos? - perguntou o repórter, fixando os olhos no
estranho.
-
Bem, nós não chegamos a ser apresentados um ao outro, mas estivemos juntos
algumas vezes lá no clube Caiçaras, durante o desfile...
-
Ah... Você está se referindo a Bill Morrison?
-
É claro, amigão, e de quem mais poderia ser? Minha memória para nomes é um
pouco falha, mas sou bom fisionomista. Eu sei que você é um grande jornalista e
que esteve lá no desfile. Bill, ao apontá-lo pra mim, falou-me que você foi de
grande utilidade. O maior colaborador de todos. O responsável mesmo por toda
aquela história a respeito do tal costureiro francês que o Bill inventou...
-
Eh... espere aí. Eu não sei o que é que está querendo dizer...
-
Não se preocupe - falou o estranho, baixando a voz. Ele também me pediu
segredo. Eu sei que poucas pessoas, como eu e você, sabem da verdade. Mas
agora, que tudo já acabou, penso que não tem importância comentarmos o que
passou, não é verdade?
-
Sinceramente, eu não sei do que você está falando...
-
De Bill e de suas estórias. Ele sempre foi assim criativo. Quando garoto, era
considerado o mentiroso número um do Encantado. Mas com essa estória sobre um
tal de Jean... Jean não sei de que... O costureiro francês de mentira, quero
dizer, ele conseguiu superar todas as outras e fazer sucesso. Eu me orgulho de
ser amigo de Bill. Ele merece o cartaz que fez, pois sempre foi um cara muito
bacana...
-
Olhe aqui, senhor...
-
Geraldo Cardoso dos Anjos. Cardosinho às suas ordens...
-
Pois bem, Sr. Cardosinho, se Bill lhe contou esta estória fantástica a respeito
de Jean Louis Marchand, o estilista francês sobre o qual você está tentando se
referir, saiba que foi uma tremenda gozação de Bill pra cima de você. Para mim ele existe. É verdadeiro. Eu o vi
desembarcar no Galeão, entrevistei-o e com ele estive algumas vezes mais.
Agora, se ele nasceu na França, não posso lhe assegurar, pois não fui
indiscreto ao ponto de lhe pedir que mostrasse-me seu passaporte. O que sei é
que Jean Louis fala francês com sotaque parisiense, descreve a França como
filho da terra e cria maravilhosos modelos de roupas, pois o vi desenhando,
também. O que quer mais que eu diga?
-
Pois bem, amigão, continuo a afirmar que Bill é o maior mentiroso que eu já
conheci, pois se ele não mentiu pra você, mentiu pra mim.
Às
sete horas da noite Bill chegou em casa. Tomou uma ducha morna e recostou-se em
sua cama. O quarto, mergulhado no mais profundo silêncio e iluminado por uma
tênue luz de abajur, criava o ambiente propício para o relaxamento e a descontração
de que Bill tanto precisava. E ali, na penumbra, ele começou a analisar todas
as propostas que havia recebido desde o momento em que dera por encerrado o
desfile.
O
primeiro convite partira de D. Dulce que, entusiasmada com o trabalho de Bill e
diante do sucesso obtido, propôs ao rapaz que ficasse como relações-públicas da
casa, com um razoável ordenado fixo e mais comissões nas vendas. Um diretor de
uma conceituada agência de publicidade dera-lhe seu cartão de visita e na
oportunidade dissera-lhe que o aguardava para uma entrevista. Uma fábrica de
roupas de São Paulo também mostrou-se interessada em tê-lo como organizador dos
desfiles de lançamento de suas criações. Cinco butiques do Rio encomendaram a
Bill desfiles tão originais quanto aquele que acabara de apresentar, e uma
infinidade de oferecimentos menores. Entretanto, a proposta que lhe pareceu ser
a mais vantajosa, partira de uma fábrica de tecidos localizada num longínquo
subúrbio carioca. Para esta fábrica ele deveria trabalhar apenas 6 meses
durante o ano, sob contrato de exclusividade, sendo que noventa dias antes do
inverno e noventa dias antes do verão. O objetivo da fábrica era o de lançar,
através de desfiles de roupas, as novas padronagens de tecidos criados para as
duas principais estações do ano. Dos seis meses, dois seriam de preparativos e
quatro de viagens pelas principais cidades do Brasil, com possibilidades de
apresentações também no exterior. O salário era compensador e, a Bill, pareceu
ser a proposta que lhe possibilitaria um futuro mais que promissor.
De
repente, como se a luz de uma estrela tivesse penetrado em seu quarto, Bill
pôde ver à frente um novo caminho, iluminado. Entusiasmado, levantou-se e foi à
procura da mãe para contar a ela a sua nova ideia. Obtendo aprovação para o que
pretendia realizar, Bill fez duas ligações telefônicas e, às 9 horas da noite
daquela sexta-feira, uma importante reunião teve início no apartamento de D.
Dulce, com a presença de Bill, sua mãe, Fernando e a dona da casa,
naturalmente. Em menos de duas horas Bill pôde ver a proposta aprovada e, ao
final da reunião, uma nova sociedade formada por quatro pessoas com igual
participação: Palco & Passarela Empreendimentos Artísticos Ltda." A
firma teria como objetivo a organização de festas, recepções, vernissage,
desfiles e etc. E, para completar, ministraria ainda um curso para a formação
de manequins profissionais.
O
acordo foi selado com champanhe francês.
O
sábado amanheceu com um sol radioso e Bill foi à praia.
No
final do expediente, na redação da revista "Vitrine", Estela recebeu
uma visita.
-
O senhor Castro deseja falar-lhe - disse a secretária.
-
Mande-o entrar, por favor - respondeu Estela.
-
Alô querida, como está? - falou Castro, com intimidade exagerada e voz
anasalada.
-
Ansiosa por novidades... O que você já conseguiu apurar?
-
Bem, antes de tudo quero que saiba que ainda não dei por terminado meu trabalho,
mas, como você me pediu urgência, vim para prestar contas do que já fiz.
-
Ótimo! Vamos direto ao assunto. Não poderia ter escolhido um dia melhor...
-
Depois de me inteirar de tudo o que saiu publicado pela imprensa a respeito de
Jean Louis, procurei visitar todos os locais onde pudesse apurar a veracidade
do noticiário. E o que foi que eu descobri, hein?
-
Não faça suspense por favor, diga logo...
-
Pois bem, as pedras do jogo de armar se encaixaram perfeitamente. No Copacabana
Palace apurei que Jean Louis esteve lá hospedado durante três dias. Cheguei
mesmo a ver a reserva feita em seu nome, e notas de despesas rubricadas por ele.
Um empregado me garantiu que o viu chegar embriagado, certa madrugada. Outros
disseram-me que ouviram sua voz através do telefone interno. Uma das
arrumadeiras que trocou a roupa de cama, por sinal uma jovem muito graciosa,
disse-me que Jean, apesar de magro e baixote, era muito simpático. Deu-lhe uma
boa gorjeta e repetiu, três vezes: Mercy, mon amour. Uma funcionária da Air
France afirmou que foi feita uma reserva em nome de Jean Louis, e que a
passagem foi naturalmente tirada em seu verdadeiro nome, e que este ela não
poderia revelar por se tratar de informação sigilosa. No Galeão, consegui falar
com o carregador que transportou a bagagem de Jean Louis. Disse-me ele que
ficou contente de ver, no dia seguinte, sua foto no jornal, ao lado do
costureiro, e que por este motivo jamais se esquecerá dos detalhes. Contou-me
que colocou as malas do costureiro num carro marrom, particular, modelo
Itamaraty do ano, e que recebeu de um jovem rapaz, alto e louro, uma boa
gorjeta. Depois de descobrir o endereço, em Friburgo, da dona da butique, fui
até lá e consegui apurar, com os vizinhos, que alguém esteve realmente
hospedado na casa, com as mesmas características atribuídas ao costureiro.
Durante todo o tempo em que esteve lá, apenas por duas vezes foi visto na varanda,
tomando sol. Os vizinhos não sabiam de quem se tratava e foram unânimes em
afirmar que Jean Louis era uma criatura misteriosa e desconfiada. Manteve-se
todo o tempo confinado no interior da casa, como se estivesse evitando qualquer
contato com o mundo exterior. Propositadamente, deixei para investigar por
último o repórter Mário Jordão, por considerá-lo cúmplice do que penso ser uma
farsa. Usando de falsa identidade passei-me por um amigo de infância de Bill.
Joguei verde na esperança de colher maduro e acabei esbarrando numa podre. O
Mário ratificou tudo o que escreveu e acrescentou detalhes de suas ligações e
com Jean Louis quando de sua última estada aqui no Rio. E isto é tudo o que até
aqui consegui apurar...
-
Então quer dizer que o homem existe realmente?
-
Meu aguçado faro me diz que não, e é por este motivo que pretendo continuar com
as minhas investigações...
-
Mas por que? Se tudo se encaixa tão bem...
-
Justamente por isso. Sempre desconfiei das coisas muito certinhas. Está tudo
perfeito demais e, se eu algum dia chegar à conclusão de que minhas
desconfianças tiveram fundamento, serei forçado a prestar reverência a uma
certa pessoa...
E
antes que Castro completasse o que pretendia dizer, o telefone tocou e logo em
seguida a voz da secretária de Estela se fez ouvir através do interfone:
-
D. Estela, o senhor Morrison está na linha três.
Castro
sentiu um frio a percorrer-lhe a espinha.
-
Aonde deseja que a apanhe? - perguntou Bill, depois dos cumprimentos normais.
-
Não precisa se incomodar, basta que me diga aonde quer que o encontre - falou
Estela, procurando ser bem formal.
-
Já ouviu falar no restaurante "Napoleão Bonaparte"?
-
Nunca estive lá, mas sei onde fica. Entre 20 e 21 horas está bem pra você?
-
Pode ser... Sendo assim, quem chegar primeiro espera pelo outro, certo?
-
Combinado. Até mais tarde - falou Estela e desligou sem esperar pela resposta.
-
Perdoe minha curiosidade, mas foi com Bill Morrison que acabou de marcar um
encontro? - perguntou Castro.
-
Foi, por que?
-
Incrível coincidência! Era justamente sobre Bill que ainda há pouco eu estava
tentando me referir quando o telefone tocou...
-
Conhece-o pessoalmente?
-
Não, só por retrato e por algumas informações que recebi.
-
O que acha dele?
-
Ou ele é apenas um jovem dinâmico, ambicioso e com um bom faro para negócio, ou
é simplesmente um pequeno gênio. Se Jean Louis for fruto de sua imaginação,
como penso, fico com a segunda hipótese. E antes que eu me vá, escute o que vou
lhe dizer: se está pretendendo manter qualquer tipo de relacionamento com Bill
Morrison, cuidado! Procure não confiar muito na sua própria experiência ou nos
seus inegáveis encantos, pois, se assim fizer, poderá acabar sendo envolvida
por uma mente jovem mas diabólica.
-
Até certo ponto já fui envolvida... De tudo o que você me disse, hoje, foram
estes conselhos o que mais gostei de ouvir. Mas não se preocupe, pois estarei
alerta como um escoteiro. Jantarei com Bill, esta noite, mas farei ver a ele
que esse nosso encontro não terá outra finalidade a não ser a de
proporcionar-nos uma oportunidade para concluirmos um negócio que havia ficado
pendente. Estou certa de que após o jantar nada mais teremos a dizer um ao
outro.
O
táxi parou em frente ao "Napoleão Bonaparte" exatamente às 20h30min.
O porteiro abriu a porta do carro para Estela e, assim que ela entrou no
restaurante, o maitre veio em sua direção.
-
Em que posso servi-la, madame?
-
Vim encontrar-me com o Sr. Bill Morrison, que espero tenha reservado uma
mesa...
-
Queira seguir-me, por favor.
A
mesa, reservada por Bill, não poderia ter localização melhor e, assim que
Estela sentou, o maitre voltou a falar:
-
O Sr. Morrison acabou de telefonar e pediu-nos para avisá-la de que já está a
caminho e não deve demorar-se. Não gostaria de tomar um drinque enquanto
espera, madame ?
-
Seria ótimo. Obrigada.
-
Pedirei um garçom para servi-la.
Estela
gostou do que viu e passou a imaginar o porquê de Bill ter escolhido aquele
restaurante já que, antes dele, ninguém mais tivera a ideia de levá-la até lá.
O
luxo não era ostensivo, mas se fazia presente a cada detalhe. As paredes eram
revestidas por madeira escura e havia réplicas de quadros de pintores famosos
decorando-as. Não tendo o objetivo de ofuscar, nem de esconder, a iluminação da
casa era repousante.
Bill
chegou 15 minutos depois.
-
Desculpe fazê-la esperar - falou Bill, depois de se apresentar.
-
Não precisa se desculpar - respondeu Estela, consultando o seu relógio. Estamos
ambos dentro do horário.
-
Eu sei, mas eu deveria ter chegado primeiro. Um cavalheiro não deve fazer uma
dama esperar...
-
Estamos em pleno século XX, lembra-se? Certas atitudes hoje em dia são
perfeitamente dispensáveis...
-
Já ouvi isso algumas vezes, mas quem, como eu, foi educado nos mais rígidos
princípios de cavalheirismo à moda antiga, tem uma certa dificuldade em se
adaptar...
Estavam
esgrimindo entre si e ambos sabiam disso, só que em vez de floretes, usavam
palavras. O garçom aproximou-se, atendendo a um aceno de Bill e interrompeu o
duelo com sua presença.
-
Aceita mais um drinque? - perguntou Bill a Estela.
-
Não, obrigada.
-
Para mim, um Martine seco, por favor. E assim que o garçom se afastou, Bill
dirigiu-se à Estela - Apreciei muito o seu estilo...Gostei da maneira como
escreveu a reportagem. Se eu não tivesse notado sua ausência, seria capaz de
jurar que você esteve presente ao desfile.
-
Esta é uma vantagem de quem trabalha para revistas. Temos mais tempo pra criar
e, quando não somos testemunhas oculares de um fato, misturamos pesquisa com
imaginação e às vezes conseguimos obter bons resultados. E depois de uma
pequena pausa, completou: E antes que me esqueça, obrigada pelas orquídeas...
-
Você as mereceu... E em seguida, acrescentou: Importa-se que eu peça agora o jantar?
-
À vontade.
Salvatore,
o maitre, apresentou as sugestões e Bill chamou-o pelo nome. Foi servido um
prato da cozinha italiana. O vinho, apropriado para a ocasião, Bill fez questão
de escolher. Era de uma marca francesa famosa e de um ano de boa safra.
Admiração
e respeito foram os primeiros sentimentos que se fizeram presentes entre os
dois. Durante o jantar pouco falaram, mas houve uma significativa troca de
olhares. Vez por outra, um flagrava o outro olhando e, quando olharam-se ao
mesmo tempo, sorriram sutilmente.
Enquanto
Estela apreciava a elegância de Bill, que vestia a mesma roupa que mandara
fazer para ir ao desfile, ele, por sua vez, esforçava-se para esconder a sua
admiração. Naquele momento Estela lhe pareceu mais bonita do que da primeira
vez que a tinha visto. Usava um vestido verde vaporoso, com um pequeno decote
na frente e um outro mais acentuado nas costas, que destacava a pele morena
sedosa e levemente bronzeada pelo sol. Esbelta, sem ser magra, Estela media
aproximadamente 1,70m. Os cabelos eram castanhos escuros, lisos e caiam-lhe nos
ombros. Os olhos amendoados eram de tonalidade castanho-esverdeados, o nariz
tinha um traço delicado e a boca era pequena. Havia um brilho róseo, discreto,
sobre os lábios carnudos.
Podia-se
sentir sensualidade em cada detalhe, mas foi nos lábios que Bill se fixou mais
tempo. Sua imaginação disparou e ele não encontrou meios de freá-la. Naquele
momento ele se imaginou alvo de todas as atenções e era como se estivesse
completamente nu a exibir o seu estado de excitação.
Para
a sobremesa Bill havia pedido morangos com creme, e Estela, torta de chocolate.
E assim que provou da torta ela comentou:
-
Você hoje me fez perder o controle...
-
Por que? - perguntou Bill, sem entender direito.
-
Acabei por liberar minha gula e estou comendo mais do que deveria. Há tempos
que evito doces após as refeições.
-
Bem, como eu nunca consigo me privar do que gosto de fazer, não tenho ideia do
que possa estar sentindo, mas espero que seja uma sensação agradável. Você
costuma fazer dieta?
-
É a única maneira de que disponho para me manter em forma. Gostaria de fazer
ginástica e praticar esportes, mas não tenho tempo para isso. Mas não me importo, já me acostumei ao ritmo
de vida que levo. Além do mais, minha força de vontade tem me ajudado bastante.
É com facilidade que eu me privo de certas coisas que gosto. Basta que eu
entenda que elas poderão ser prejudiciais a mim. Entre uma satisfação perigosa,
e o complexo de culpa, livro-me dos dois.
-
Por exemplo? Além da gastronomia, naturalmente...
-
O hábito de fumar... Eu sei que o fumo faz mal à saúde, mas eu não me importo.
Eu domino meu hábito, fumo pouco, controlo meus cigarros e sei que posso parar
no momento que desejar...
-
E por que não faz isso?
-
Porque fiz uma vez e engordei... Dos males, o menor.
-
Bem, já que descobrimos uma de nossas diferenças, que tal tentarmos agora algo
em comum?
O
garçom apareceu naquele momento e Bill aproveitou para pedir dois cafezinhos.
-
Pelo jeito, você costuma vir aqui muitas vezes, não?
-
Nem tanto quanto possa parecer - só quando desejo impressionar alguém...
-
E porque pretende me impressionar?
-
Porque gosto de manter boas relações com a imprensa...
-
Foi bom eu saber disso. Vou lhe apresentar ao Sr. Fernandes, o Diretor da
Revista. Ele vai gostar de jantar com você...
Com
um largo sorriso, Bill exibiu seus dentes perfeitos. Estela sorriu logo a
seguir. Embora espontâneos os sorrisos, parecia que ambos participavam de um
comercial de pasta de dentes.
Do
lado direito, sobre um tablado, um quarteto executava músicas suaves em
surdina. No centro da mesa, entre Bill e Estela, havia um castiçal de prata e a
chama da vela parecia acompanhar os compassos da melodia. A atmosfera estava
propícia para o romance. Foi Bill quem voltou a falar:
-
O jornalismo sempre foi sua vocação?
-
Não, foi apenas uma opção. Minha mãe chegou a ser uma boa modista e eu, quando
menina, desejava ser manequim. Cheguei a tomar parte de alguns desfiles...
-
E por que não continuou?
-
Depois que meu pai ficou bem de vida, não admitiu mais que nós trabalhássemos.
Muito tempo depois, quando precisei trabalhar, já não tinha idade para ser
manequim. Quando surgiu uma oportunidade para trabalhar na revista
"Vitrine", resolvi aceitar o desafio. Logo aprendi a profissão de
repórter e hoje estou muito contente com o que faço. E você, é fotógrafo
profissional?
-
Não. Faço da fotografia um hobby...
-
É pena, você poderia fazer bela carreira na profissão. Gostei muito das fotos
que me mandou...
-
E quanto acha que elas valem?
-
Agora quase nada, pois já foram publicadas... E na verdade eu nem precisei
avaliá-las, pois você, quando as mandou, já foi com o preço estipulado,
lembra-se?
-
Mas foi um preço simbólico...
-
E que eu estou tendo prazer em pagar... Mas agora me diga - o que aconteceria
se eu não tivesse concordado com o que me pediu pelas fotos?
-
Eu as teria dado do mesmo jeito, e depois procuraria descobrir uma nova maneira
para que nos conhecêssemos...
De
repente Antonino, um dos músicos, parou ao lado dos dois. Durante alguns
momentos ele teceu, nas cordas de seu violino, uma colcha de retalhos de
músicas francesas e italianas.
-
Bravo Antonino! E obrigado pela deferência - disse Bill, gratificando-o em
seguida.
Aproveitando
um momento de silêncio entre os dois, Bill chamou o garçom e pediu a conta. Em
seguida foi Estela quem falou:
-
Perdoe a minha curiosidade, mas posso saber qual é a sua verdadeira vocação?
-
Ser rico... Muitos querem enriquecer por ambição, mas eu não. Desde criança que
sinto vocação para ser rico.
-
E como pretende ficar rico?
-
Ganhando muito dinheiro, é claro.
Estela
sorriu.
-
Explorando a vaidade da mulher - continuou ele.
Fui bem sucedido com o desfile, como sabe, e por este motivo tenho
recebido excelentes ofertas de emprego. No entanto, decidi trabalhar por conta
própria. Estou iniciando um novo negócio que envolve desfiles e outras coisas
mais. Quero ser meu próprio patrão, pois sei que esta é uma regra básica para quem
deseja enriquecer.
Bill
pagou a conta e ficou esperando o troco. No momento em que o garçom dirigia-se
ao Caixa, Estela comentou:
-
Durante todo o tempo em que estivemos aqui, aquele senhor que está no Caixa não
tirou os olhos de nossa mesa...
-
Também notei. Eu, no lugar dele, teria feito o mesmo. Sua beleza já deve estar
íntima de olhares indiscretos. Por isso, espero que o perdoe.
Bill
deixou uma boa gorjeta para o garçom e gratificou também o maitre Salvatore que
trouxe uma rosa vermelha em botão para Estela e os acompanhou até a porta. Já
do lado de fora Bill teve que dar mais uma gorjeta. Desta vez foi para o
porteiro-manobrista que lhe entregou o carro, depois de abrir a porta para
Estela.
Bill
deu a partida no Itamaraty marrom de seu pai, depois de convencer Estela a
esticar a noite num barzinho, na Barra da Tijuca, onde poderiam dançar e ouvir
boa música. O bar, muito simples e rústico, contrastava violentamente com o
"Napoleão Bonaparte". A maior parte das mesas ficava ao ar livre e o
salão reservado para dança era coberto por palhas de coqueiro. Um grupo de
sambistas se apresentava, no momento em que Bill entrou com Estela, e fazia com
que todos ali participassem, cantando e dançando junto com eles. O ambiente
descontraído contagiou Estela que depois da segunda dose de uísque com água de
coco sentiu-se perfeitamente à vontade.
Orquestras
famosas, em gravações, substituíram a música ao vivo e, ao apresentarem uma sequência
de melodias românticas, Bill tirou Estela para dançar. Ao sentir o contato
daquele corpo macio, e o suave perfume que dele emanava, Bill ficou excitado.
Ele percebeu que ela sentira a sua ereção e que também estava a ponto de
explodir, e antes que isso acontecesse Bill foi se afastando aos poucos,
discretamente.
Ao
deixarem o bar, Estela fez um pedido inusitado - queria caminhar descalça pelas
areias da praia e molhar os pés nas águas do mar. Sua cabeça estava rodando um
pouco, mas os pensamentos estavam ordenados. Estela esperava terminar a noite
nos braços de Bill. Não era só desejo que ela sentia e sim uma necessidade
premente de ser possuída por ele. Seria só aquela vez e depois ela o esqueceria
como fizera com tantos outros homens.
Estela
estava certa de que Bill conseguira ler seus pensamentos, mas, se ele os leu,
tentou ignorá-los.
Bill
estacionou o carro na porta do edifício em que Estela estava morando. Trocaram
rápidas palavras e só no último instante foi que ele a beijou. Foi um beijo longo, molhado, carregado de amor
e sexo. E antes que Estela o convidasse para ir até o seu apartamento, ele
falou:
-
Ligo pra você amanhã.
CAPÍTULO 32
Paris,
Primavera de 1945
Era
um domingo de maio, de sol aberto e temperatura agradável. Como de hábito, o
restaurante da família Fontaine não abria naquele dia e Germaine aproveitara
para passear com Giacomo pela cidade. A vida em Paris voltara à normalidade, e
a paz já reinava em toda a Europa. Descontraídos, curiosos, trajando roupas
esportivas e portando uma câmera fotográfica, davam, a todos a impressão de
serem um casal de turistas recém-chegados à Cidade. E assim, reforçando o que
aparentavam ser, resolveram percorrer um verdadeiro itinerário turístico. De
Sant-Germain-des-Prés foram até a Catedral de Notre-Dame para admirar aquela
maravilhosa arte gótica. Passaram pelo Musée de Cluny, Sorbonne, Palais e
Jardin Du Luxembourg. Seguiram pelo Boul. de Montparnasse em direção à Ecole
Militaire, Tour Eiffel, Palais de Chaillot e, seguindo a Av.Kleber foram até o
Arc de Triomphe. Giacomo e Germaine terminaram o dia numa pequena embarcação
sobre o rio Seine e, enlaçados, pareciam navegar em direção ao crepúsculo. Era
um momento de indescritível ternura para aqueles dois seres marcados por
profundas cicatrizes da guerra. Giacomo não parecia mais o homem magro e
abatido que chegara a Paris há cinco meses atrás. Estava morando e trabalhando
com a família Fontaine e em pouco tempo dominara os segredos de sua nova
profissão. Aprendera um pouco de arte culinária e de como abastecer de gêneros
alimentícios um restaurante, mas era no contato direto com os fregueses que ele
demonstrava seu maior valor. Podia-se dizer que já estava sendo um substituto à
altura de Monsieur Raymond Fontaine, já que Pierre, o filho mais velho da
família, resolvera aceitar um emprego numa pequena indústria eletrônica, e se
preparava para voltar aos estudos de engenharia.
O
barco deslizava sereno nas tranqüilas águas do rio, enquanto Giacomo e Germaine
procuravam falar a respeito dos fatos que marcaram suas vidas a partir do
momento em que se conheceram. O amor entre os dois nasceu na primeira troca de
olhar, mas ambos procuraram esconder seus sentimentos. O amor sempre foi uma
arma de dois gumes. Assim como pode tornar uma pessoa extremamente forte, pode
fazê-la irremediavelmente fraca, e em tempo de guerra a fraqueza é um pecado
imperdoável. Giacomo fugiu do amor por medo de ser traído por ele. Germaine,
por medo, também fugiu, muito embora suas razões tivessem sido outras. Não
vendo como separar o sexo do amor, teve receio de falhar e já estava cansada
para continuar fingindo. Mas o amor é um sentimento teimoso que, quando
contrariado, torna-se mais forte e, fortalecido, derruba barreiras, vence
qualquer tipo de resistência e acaba sendo um mal ou um bem inevitável. E assim
ele explodiu, chamuscando de desejo e ternura, unindo dois corações carentes.
Juntos, há mais de um ano e meio, eles podiam recordar agora os momentos
agradáveis, felizes, dramáticos mas extremamente compensadores que tinham tido
oportunidade de passar lado a lado. E tudo começou naquela manhã de outubro de
1943, quando Giacomo tirou Germaine das mãos do Coronel Kurt Staden. O percurso
do hotel à tinturaria fora feito sem maiores problemas. O grande portão de
madeira foi fechado assim que o "furgão" entrou no corredor lateral
que servia como garagem do estabelecimento. O veículo foi rapidamente
descarregado e momentos depois Germaine saía do interior de um dos cestos de
vime. Giacomo ficou extasiado com a imagem. Ao que lhe foi dado a ver,
pareceu-lhe uma cena de um história encantada. Alguma fada na certa passara por
ali e tocara, com a ponta de seu bastão mágico, fazendo transformar panos sujos
numa princesa. Os dois se olharam por instantes e a apresentação foi feita logo
em seguida:
-
Esta é a mulher que fará com que toda a Gestapo, dentro de poucas horas, se
volte contra nós - falou um dos homens e, apontando para Giacomo, completou - e
este é Marcel Martinelli. Foi ele que idealizou o plano para sua fuga e quem a
trouxe até aqui.
Nos
olhos de Germaine havia algo mais que admiração.
-
Não sei como agradecer - falou ela. Soube, pela arrumadeira do hotel, que a
estas horas minha família já não corre perigo...
-
Não tenha tantas ilusões assim - falou Giacomo, procurando dar um tom frio à
voz. A segurança que procuramos oferecer é um tanto relativa nos dias de hoje.
De pouco valem planejamento e audácia se não contarmos com boa dose de sorte e
a proteção divina. Vencemos a primeira etapa, mas ainda teremos muitos perigos
pela frente. E quero que fique bem claro que o que estamos fazendo não é um
favor específico a você ou à sua família e sim a uma causa, portanto nada tem a
agradecer...
Giacomo
estava sendo um tanto rude. Era evidente a necessidade que sentia de
proteger-se daqueles olhos verde-esmeralda que o olhavam tão fixamente.
Nervoso, amedrontado, procurou transformar suas rudes palavras numa couraça
capaz de torná-lo invulnerável àquela tentação loura. Germaine, sem entender o
que se passava, falou em tom magoado:
-
Se o que está fazendo é pela libertação de nosso país, causa mais nobre não
pode haver e mais motivos tenho para agradecer. E como eu e minha família fomos
envolvidos neste episódio, quero que saiba que somos gratos e que em breve
encontrarei meios de retribuir o bem que estamos recebendo...
-
Estamos perdendo tempo com conversa inútil. Se não estivermos longe de Paris
quando o Coronel descobrir que você o deixou, estaremos fritos. Em menos de
duas horas nosso trem sairá da Gare de Lyon. Iremos para Bourgogne. Em Beaune,
sua nova família espera por você. Tire estas roupas caras, cubra os cabelos com
um lenço e não use maquilagem. Você agora é uma mulher do campo e como tal deve
se comportar. Aquela maleta ali é sua. Nela você encontrará roupas adequadas,
sua nova documentação, passagem e visto de embarque. Eu embarcarei no mesmo
trem e estarei no mesmo vagão, mas não devemos ficar juntos. Você, com sua nova
identificação, estará mais protegida do que eu que poderei ser alvo de
investigações por ter transportado sua família para o hospital. Provavelmente
terei que abandonar o trem antes de chegar ao destino marcado em minha
passagem. Esta é a maneira que vou ter para despistar os alemães, mas não se
preocupe pois logo me juntarei a você em Beaune.
O
trem partiu com uma hora de atraso mas já estava bem distante de Paris quando a
Gestapo foi notificada do suicídio do Coronel e do desaparecimento de sua
amante francesa. No momento em que o nome de Marcel Martinelli começou a ser
investigado, Giacomo já não estava mais como passageiro no trem. Durante três
dias ele e Germaine ficaram separados e, em todo esse tempo, só fizeram pensar
um no outro. Ao se reencontrarem, ambos tentaram disfarçar a emoção que sentiam
mas a cada instante eram traídos por tal sentimento.
-
Você está abatida... Não estão lhe tratando bem? - perguntou Giacomo.
-
Melhor do que podia esperar, mas acontece que há três noites não consigo dormir
direito, pois já estava me sentindo responsável pelo que de mal pudesse lhe ter
acontecido...
-
Se alguém tem que ser responsável por alguém, esta pessoa sou eu. Prometi
entregar você a seus pais em perfeito estado e espero cumprir com minha
palavra.
Durante
dez meses ficaram juntos e juntos viveram os mais diversos tipos de
experiência, dos mais felizes aos mais dramáticos. Em duas oportunidades
Germaine servira à Giacomo como enfermeira e, em ambas as vezes, demonstrou
eficiência e cuidados incomuns. Com isso o amor ficou fortalecido e já não
conseguiam esconder um do outro o que sentiam, muito embora ainda não tivessem
se tocado ou sequer falado sobre o assunto. Foi ele quem tomou a primeira
iniciativa quando estava se restabelecendo da pneumonia que por pouco não lhe
tirou a vida. A cena foi rápida e inesperada. Germaine estava ao lado da
cabeceira da cama onde Giacomo se encontrava e acabara de lhe servir um xarope.
Ele, aproveitando-se da proximidade do rosto da jovem, tentou beijá-la ao mesmo
tempo em que falava:
-
Esta é a única maneira que disponho, no momento, para agradecer tudo o que tem
feito por mim.
Germaine,
inexplicavelmente, desviou os lábios e o beijo tocou-lhe as faces.
-
Você ainda está um tanto enfraquecido para sentir grandes emoções - falou ela,
tentando amenizar seu gesto.
Giacomo
não conseguiu esconder sua decepção e resolveu, intimamente, que dele não
partiria uma outra atitude semelhante. Para isso tentou evitar estar a sós com
Germaine que, sempre que podia, provocava-o. Mas uma armadilha preparada pelo
destino fez com que o inevitável acontecesse e acabasse por unir os dois
definitivamente. E tudo aconteceu pouco tempo depois de Giacomo ter conseguido
livrar-se do Capitão Von Erich que o mantivera preso durante quatro dias. A
participação de Germaine nesse episódio fora decisiva. Sua coragem e frieza
foram dignas dos maiores elogios. Ao apresentar-se aos olhos do inimigo dentro
de suas humildes vestes de camponesa, ela sabia que na verdade estava ali
inteiramente nua, pois acabara de se despir de toda a sua vaidade, orgulho e
amor próprio. Com a incumbência de promover uma noite de orgia capaz de
distrair as atenções dos soldados inimigos, reuniu um grupo de camponesas, que
como ela estavam dispostas ao sacrifício de se entregarem àquelas bestas
humanas famintas de sexo. E o que aconteceu foi, antes de tudo, um ato conjunto
de suprema renúncia.
Novamente
integrado ao grupo que tinha sob seu comando, Giacomo recebeu ordens para
dinamitar uma ponte por onde deveria passar um comboio alemão com um grande
carregamento de armas. Todo o grupo foi mobilizado para executar a missão,
ficando Giacomo e Germaine a uma certa distância da ponte, abrigados num
pequeno celeiro. Enquanto ele, ao lado de um aparelho transmissor-receptor,
recebia informações sobre a posição inimiga, ela preparava uma pequena refeição
para os rapazes. O ambiente era de grande tensão quando ele falou:
-
Cuidado com este fogo. Temos que evitar que o inimigo perceba qualquer sinal de
vida por aqui...
-
Não se preocupe. Aprendi uma técnica especial capaz de fazer com que a fumaça
não ganhe proporções perigosas, e os rapazes estão precisando de comer uma
comida quente, o que já não fazem há alguns dias.
- É
melhor que comam comida fria do que deixem de comer para sempre...
-
Confie em mim, na minha técnica. Por tudo que fiz até aqui não creio que possa
negar a minha eficiência... Este fogo que acabei de acender é parecido com o
que estamos carregando dentro de nós. Ele será capaz de cozinhar os alimentos
da mesma forma como os nossos sentimentos estão sendo cozinhados - sem
fumaça...
-
Não posso negar que você tem aprendido técnicas especiais e as tem usado nas
ocasiões mais diversas com grande êxito. Esta guerra tem lhe ensinado
bastante...
-
Não o suficiente, pois não aprendi ainda uma técnica capaz de fazer com que o
homem que eu amo me deseje sem restrições...
-
Não se lamente por isso... Não se pode usar apenas a técnica, para casos do
coração, e por isso a culpa não cabe só a você. O amor envolve outros
sentimentos, tais como coragem, desprendimento e até renúncia...
- E
por que só temos feito renunciar ao que sentimos um pelo outro?
-
Talvez até em nome do próprio amor... Por acharmos inoportuno o momento que
vivemos...
-
Você saberá distinguir o momento certo?
Giacomo
começou a captar uma mensagem pelo rádio e a pergunta de Germaine ficou no ar.
O trem inimigo aproximava-se rapidamente do local e as providências finais
tinham que ser tomadas de imediato. Usando o rádio, Giacomo transmitiu a seus
comandados as últimas instruções. Todos tinham que abandonar a ponte e procurar
proteção. Quando o comboio atingisse o vão central era o momento certo para que
toda a carga de dinamite fosse acionada.
O
estrondo abalou a terra e fez tremer o celeiro. O impacto violento fez com que
Germaine se atirasse sobre Giacomo e os dois caíssem em cima de um monte de
feno. Enquanto dois corações ali batiam forte, do lado de fora se fez silêncio.
Germaine deitada sobre o corpo de Giacomo olhava-o nos olhos. Ele mantinha-se
imóvel enquanto ela, com as pontas dos dedos, tocava em seus cabelos para em
seguida roçar de leve os seus lábios nos dele. Giacomo tentou dizer alguma
coisa, mas ela pousou sua mão sobre a boca do rapaz impedindo-o de falar. Ele
ainda tentou se mover mas não encontrou forças. Era como se estivesse
hipnotizado. Germaine era uma serpente deslizando sobre um corpo inerte. Ao
movimentar suavemente os quadris, ela fazia com que toda a rígida musculatura
de Giacomo fosse tocada pela maciez das carnes de suas coxas e seios. Era como
se uma esponja estivesse ali absorvendo um sabonete. E quando ela começou a
sentir que Giacomo crescia sob seu ventre, sussurrou em seu ouvido:
-
Pode não ser este o momento certo, mas talvez seja o último.
Estas
palavras fizeram acender o estopim e Giacomo explodiu como a dinamite. Os
corpos sedentos rolaram pelo feno, esqueceram do tempo e não ouviram as
metralhadoras que lá fora, vez por outra, cuspiam fogo. Tão alheios a tudo
estavam que não notaram quando o primeiro guerrilheiro chegou de volta ao
celeiro e os viu ali. O rapaz, compreendendo o que se passava, respeitosamente
virou-se de costas para a cena e ficou montando guarda na porta do pequeno
galpão. E, quando os outros companheiros chegaram, ele falou:
-
Não entrem agora. O chefe está comemorando a nossa vitória.
Germaine
logo compreendeu que para o amor ela já estava apta, mas para o sexo ainda lhe
faltava algo. Por mais que tivesse se esforçado não conseguira atingir o
orgasmo. Seu maior prazer residiu na satisfação plena que acabara de
proporcionar ao homem que tanto amava. O Coronel Kurt Staden esteve ali
presente entre os dois todo o tempo, mas só Germaine pôde vê-lo. Aquela imagem
indesejada, inoportuna e fria estava ali para puni-la e impedi-la de sentir
prazer. Aquele fantasma intruso estava ali para dizer-lhe que o sexo podia ser
um ato indecoroso e sujo. E quanto mais Germaine tentou lutar para expulsar de
sua mente as amargas recordações que tanto marcaram o seu recente passado, mais
ela se afastou do presente e do momento supremo do êxtase.
O
tempo, bálsamo incomparável para curar certos males, foi o remédio que Germaine
usou para cicatrizar as feridas. Ela entendeu que a imagem do Coronel não podia
ser apagada de um momento para outro como se faz com uma lâmpada. A partir do
instante em que começou a entender desta forma, Germaine mudou de tática e, ao
invés de lutar desesperadamente contra aquela presença incômoda que tanto a
inibia, passou a enfrentá-la corajosamente, e assim agindo percebeu que estava
no caminho certo. O relacionamento íntimo entre Giacomo e Germaine
intensificava-se à medida em que o tempo passava, enquanto a imagem do Coronel
surgia diante dela cada vez mais desbotada. Descolorida, transformou-se numa
sombra sem rosto. Foi diminuindo de tamanho até virar um ponto escuro, distante
e acabar por diluir-se totalmente. No dia em que isto aconteceu, Germaine não
conseguiu encontrar palavras que pudessem exprimir o gozo intenso que sentiu.
Na quietude serena do depois, entendeu que estava curada e que como mulher se completara.
Estavam
em junho de 1943 e logo depois que a Primavera cedesse lugar ao Verão, Giacomo
e Germaine completariam oito meses juntos. Entretanto, fato bem mais importante
aconteceu antes disso. Na manhã do dia 6, domingo, com um tempo tenebroso, as
tropas aliadas invadiram a Normandia. O mundo acabava de tomar conhecimento do
segredo mais bem guardado de todas as guerras. Giacomo fora informado de que
algo grandioso estava sendo preparado, mas não sabia onde e quando deveria
acontecer. Aquela invasão traz novos rumos para a guerra. Batalhas ferozes vão
sendo travadas numa luta cada vez mais encarniçada. Giacomo participa dos
combates com seu grupo e vê de perto a decisão, o ímpeto e o poderio das tropas
aliadas. Passa a acreditar na vitória ao invés de sonhar com ela. Sua crença é
fortalecida dois meses depois, com a retomada de Paris pelos aliados. Essa
auspiciosa notícia faz com que ele decida enviar Germaine de volta à sua terra
e aos braços de sua família. Ela reluta e pede para ficar ao seu lado até o fim
mas Giacomo não concorda e, nos últimos dias de agosto, Germaine chega à
capital francesa. Com a separação, Giacomo se descontrola. Perde a habitual
frieza e expõe-se ao perigo a toda hora. Pensa em resolver tudo sozinho como se
dependesse dele e de sua coragem o fim da guerra. Procurava ir sempre além do
que lhe era designado para fazer. Era preciso expulsar os alemães do território
francês urgentemente, ou eliminá-los um a um - pensava ele - pois só assim
teria Germaine em seus braços novamente. De nada lhe valeria a vida sem ela. Se
para os companheiros Giacomo representava um exemplo de bravura, para os seus
superiores era um motivo de preocupação. Sem perceber que estava sendo vigiado,
de perto, não soube disfarçar o seu desequilíbrio e, ao cometer mais um
desatino, foi recolhido a um hospital para tratamento mental. Durante 30 dias
ficou internado e na noite do dia 24, véspera de Natal, chegava a Paris
parcialmente curado. Trazia em sua pequena bagagem cicatrizes no lugar de
medalhas e que com ele ficariam até o fim de seus dias. Sua participação na
guerra tinha sido encerrada com louvor. Agora, longe dos campos de batalha,
teria ele que aguardar pela paz que em breve seria anunciada, e era Paris o
lugar mais apropriado para o seu pronto restabelecimento. Os medicamentos
tinham sido suspensos pelos médicos, mas, na receita que trazia no bolso do
surrado casaco, havia uma recomendação expressa que dizia: - repouse à noite,
distraia-se de dia e ame o tempo todo.
A
Europa era um corpo humano doente que, de repente, passava a respirar melhor
como se em Paris estivesse o seu pulmão. O dia "D" fora o ponto de
partida para a libertação da capital francesa e outras tantas vitórias
retumbantes. A imprensa livre começou a se repetir, narrando os feitos aliados
em quase todas as frentes de batalha. No início da Primavera de l945 já se
podia ver desenhado o fim do III "Reich". Em Berlim, em seu bunker,
fortaleza inexpugnável construída no subsolo do prédio da Chancelaria, Hitler
comandava suas tropas e, entre gráficos e mapas, procurava descobrir posições
dos exércitos espalhados pelos quatro cantos da Europa. A cada instante era ele
informado do recuo das tropas, das perdas irreparáveis, da capitulação de
divisões inteiras que, cercadas, desarmadas e esfomeadas, não tinham como
escapar ou reagir. O grande Führer viveu seus últimos dias entre róseos sonhos
e negros pesadelos. Alternava momentos de total desespero com a expectativa
risonha de um milagre e, na verdade, tinha ele o direito de sonhar. E era nos cérebros
privilegiados dos cientistas que repousavam suas últimas esperanças. Novas
armas criadas já estavam sendo usadas com grande êxito mas o mais ambicioso dos
projetos estava prestes a ser concluído. Uma arma mortífera que, se fabricada a
tempo, na certa mudaria os rumos da guerra. Mas afinal o que faltou para que
tão poderosa arma fosse fabricada? Tempo útil? Matéria prima? Ou teria sido
Hitler vítima de traição? Para os historiadores o que vale é o fato e não a
hipótese e, sendo assim, o que ficou registrado diz que os alemães, ou por um
motivo ou por outro, não chegaram a fazer uso de seu mais poderoso invento
militar.
A
Primavera avançava e com ela as tropas aliadas. Primeiro foi o cerco, depois a
invasão e logo em seguida a destruição quase que total. Poeira, fuligem e
fumaça na Alemanha que ardia em chamas. No solo bastante castigado por
bombardeios maciços e ininterruptos, os botões não tinham tempo de desabrochar
na estação das flores. A arma secreta de Hitler deixava de ser sonho para ser
miragem. O tempo se esgotara e nada mais restava a ele e à Alemanha. E para
completar seu desespero, fora o Führer informado de que estava sendo traído por
homens de sua inteira confiança, entre eles Goering e Himmler. Durante anos
Hitler espalhara ambição e vaidade a seus comandados e agora estava sendo
vítima de suas próprias armas. Parecia incrível que ainda houvesse alguém capaz
de se interessar pelo poder supremo de uma pátria arrasada. Alimentado pelo
ódio, como sempre foi, Hitler procura vingar-se. Do bunker expede suas últimas
ordens. Manda prender e fuzilar os traidores mas acaba resolvendo poupar a vida
de Goering, rebaixando-o apenas. Hitler não pensa em rendição e não admite
passar pela humilhação de cair prisioneiro. Assim sendo, resolve programar a própria
morte. Antes porém, nomeia o Grande-Almirante Donitz para seu sucessor e em seguida dita para a
secretária particular seu testamento.
Na
manhã de 29 de abril de 1945, enquanto o sol tenta inutilmente romper a espessa
nuvem de poeira que cobre Berlim, Adolf Hitler casa-se com Eva Braun e às
l5h30min do dia seguinte já estavam mortos. Ele dera um tiro na boca e ela
tomara uma cápsula de veneno. Nos jardins da Chancelaria, l80 litros de
gasolina haviam sido estocados e serviriam para carbonizar os corpos do casal.
Este desfecho um tanto shakespeariano fez precipitar uma série de
acontecimentos. A notícia da morte de Führer divulgada em forma de boato - sem
confirmação ou desmentidos - desmotivou as tropas e, poucos dias depois, a
rendição começava a ser negociada. Por motivos políticos ela foi feita em duas
etapas - dia 7 de maio em Reims, na França, e dois dias depois em Berlim.
Os
idealismos políticos e religiosos nunca passaram de uma cortina de fumaça para
encobrir o objetivo real de todas as guerras - a conquista do poderio
econômico. Enquanto o ser humano é dotado de inteligência, a multidão é burra.
Os grandes líderes, baseados nesta verdade histórica, espalharam o fanatismo no
povo e o conduziram às guerras.
Se
nem todo louco é gênio, diz-se que todo gênio é louco e Hitler foi o maior
gênio militar que a história até aqui registrou. Possuindo uma mente doentia,
mas dotada de uma inteligência superior, por pouco não teve em suas mãos o
destino do mundo. Tivesse Hitler podido prolongar a guerra por mais algum
tempo, hoje seríamos forçados a contar uma história diferente.
O
crepúsculo cedia lugar à noite, e o céu, antes alaranjado, ganhava agora um tom
violáceo. O barco já não deslizava tão suavemente sobre as calmas águas do
Seine. Pesadamente arrastava-se, carregado que estava por tantas recordações. A
Pont Neuf estava próxima e era naquele local que os finais se encontrariam: o
final do dia, o final do passeio e o final de tantas recordações.
-
Marcel, de que tamanho é o amor que você sente por mim? - perguntou Germaine.
Giacomo
não sabia onde estava, perdido em tantas divagações.
Germaine
insistiu na pergunta, procurando consertar um pequeno erro.
-
Agora entendo porque você não me respondeu... Chamei-o por Marcel. É a força do
hábito... Desculpe-me Giacomo querido, mas me responda - qual é o tamanho de
seu amor por mim?
-
Teria valido a pena? - falou ele.
-
Teria valido o que? - perguntou Germaine, sem entender o que ele estava
querendo dizer.
- A
morte de um ideal, de um sonho... a guerra enfim.
- Lembre-se
que se não fosse pela guerra nós não teríamos nos conhecido...
- O
amor que sinto por você é infinito, por isso não posso medi-lo, mas jamais
seria capaz de atravessar uma guerra como essa que acabamos de enfrentar, com a
finalidade de encontrar meu amor e minha felicidade, misturados entre escombros
e ruínas.
A cada dia um novo capítulo
para você continuar aqui!
Por motivos de viagem não li os últimos capítulos, mas vou logo encontrar o tempinho para lê-los. A trama é emocionante e, para quem é uma internauta assumida, ler aqui no blog, tem um gostinho especial!
ResponderExcluirEu gostaria de saber a opinião de quem está acompanhando Da Cama à Fama comigo. Vamos compartilhar?