Continuação do Romance Da Cama à Fama
Terceira parte
CAPÍTULO 34
Julieta, a
secretária eficiente
No
dia seguinte, domingo, Bill tentou telefonar para Estela e não conseguiu. Não
havia lembrado de pedir o número de seu telefone e nem sequer tivera o cuidado
de anotar o endereço dela. Numa esperança vã recorreu à lista telefônica, mas o
nome de Estela Ravache não constava dentre os assinantes. Entre o inconformismo
e a angústia, deixou-se ficar e, sem sair de casa, viu arrastar-se aquele dia
morno e acinzentado. Mandou comprar os principais jornais e passou boa parte do
dia procurando, entre os anúncios classificados, uma sala para alugar. Recortou
as ofertas que julgou serem as mais interessantes e ocupou o resto do tempo
pondo em dia a sua correspondência. Preenchendo o tempo com tais afazeres,
acabou absorvido por eles e, assim, conseguiu adiar para segunda-feira o
problema Estela, que a princípio tanto o angustiara. À noite, ao deitar, leu alguns capítulos de "O
segredo de Chimneys" de Agatha Christie, um dos seus autores favoritos, e
acabou adormecendo com o livro caído sobre o peito. Seu sono foi agitado.
Sonhou com Estela um sonho incrível. Era ela a personagem central de um romance
policial. Convidada a passar um fim de semana numa mansão, entre parentes e
amigos, num local que Bill tentava desesperadamente reconhecer, fora Estela
vítima de um atentado, e por pouco conseguira escapar. Por mais que Bill
tentasse aproximar-se dela, na esperança de protegê-la contra a fúria assassina
de alguém que ali desejava vê-la morta, mais Estela fugia dele como se fosse
ele, Bill, para ela, o suspeito número um. Sobressaltado, Bill acordou de
madrugada e percebeu que ventava e chovia forte. Levantou-se para fechar a
janela e, ao sentir sob os pés o tapete molhado, teve a sensação de ter pisado
numa poça de sangue. Bill perdeu o sono e viu o dia amanhecer.
A
chuva fina que caía pela manhã acompanhou Bill até a loja de Fernando. Este, ao
vê-lo chegar com os cabelos molhados e a fisionomia abatida, perguntou:
-
Ei, o que há com você? Está doente ou algum problema o aflige?
-
Tentaram matar Estela durante a noite...
- O
que é que você está tentando me dizer? - perguntou Fernando, preocupado. Como
soube disso?
-
Eu estava presente...
-
Quer dizer então que você passou a noite toda com ela?
-
De certa forma, sim...
-
Como, de certa forma?
-
Sonhei com Estela a noite toda e posso lhe garantir que foi um dos piores
pesadelos que já tive.
-
Ora vá para o inferno você e seus pesadelos! E eu que já estava começando a me
preocupar pensando que você estivesse envolvido em alguma tragédia... Este tipo
de brincadeira não cabe em dia nenhum, principalmente numa manhã chuvosa de
segunda-feira.
-
Eu posso ter colocado mal o problema mas que ele existiu, existiu. E não creio
que seja brincadeira uma pessoa acordar sobressaltada no meio da noite, perder
o sono e ver o dia clarear...
Fernando,
de cara fechada, arrumava algumas mercadorias numa prateleira, procurando não
dar ouvido à estória do amigo. Depois de alguns momentos de silêncio, Bill
voltou a falar:
-
Ei, não era você que tinha um livro que explicava o significado dos sonhos?
-
Tenho - respondeu Fernando, secamente.
- E
qual é a explicação que me dá para o que sonhei?
-
Que Estela deve estar gozando de boa saúde e que você é um imbecil completo. E
já que a segunda parte não cabe dúvida, telefone agora para Estela e
certifique-se de que ela está bem...
- É
justamente o que farei.
-
Quem deseja falar com ela? - perguntou uma voz feminina, do outro lado do fio.
-
Diga a ela que é o Bill. Bill Morrison - completou.
Bill
não gostou da maneira formal que a secretária de Estela usou ao falar com ele
momentos depois.
-
Sr. Morrison - disse ela – D. Estela pede que o senhor deixe o recado ou o
número do seu telefone. No momento ela não pode atender, mas entrará em contato
com o senhor assim que for possível.
-
Por favor, senhorita, diga a Estela que eu aguardarei o telefonema dela à noite
em minha casa.
Ao
desligar o telefone Bill estava com um ar de decepção.
- O
que houve? - perguntou Fernando. Ela não quis falar com você?
-
Estava muito ocupada. Ficou de ligar mais tarde.
- E
o jantar de sábado, como foi? Correu tudo bem? - perguntou Fernando, tentando
mudar de assunto.
-
Correu tudo às mil maravilhas...
- E
que tal a sobremesa? - perguntou, com malícia.
-
Aonde você quer chegar?
-
Quero saber se já perdi a segunda aposta...
-
Não, ainda não perdeu. Mas quero que saiba que foi porque eu não quis, pois
tive-a derretida em meus braços.
- E
o que aconteceu? Já sei. Não diga nada... Teve medo de falhar, não?
-
Eu, falhar? - Bill aproveitou para dar uma boa risada. Já vi que você não tem
nenhuma sensibilidade...
-
Ei, espere. Alguma coisa aconteceu... Estela tem mau hálito?
-
Claro que não, por que?
-
Então ela é frígida?
-
Pelo contrário, é ardente demais!
-
Pombas, então eu não estou entendendo mais nada. Vez por outra você me
surpreende e eu não consigo adivinhar o que se passa em sua cabeça...
- Nem
pode... Falta-lhe sensibilidade...
-
Ora, não diga tolices. Você vê uma bela mulher e por ela fica apaixonado à
primeira vista. Em seguida, arma um tremendo desfile de modas. Cria um
costureiro francês que só existe em sua imaginação. Gasta todo o dinheiro que
tem e fica endividado. Fez tudo isso para chamar a atenção da mulher de seus
sonhos eróticos, e quando consegue tê-la em seus braços, à sua mercê, você nega
fogo e tem o descaramento de dizer que eu é que não tenho sensibilidade... Você
me faz rir.
-
Paixão, desejo ardente, força física, potência sexual, tudo isso nunca me
faltou. Senti do primeiro ao último momento. Acontece que sensibilidade é algo
diferente. É um sentimento capaz de fazer com que uma pessoa se prive de todos
os outros sentimentos em função de algo maior, mais profundo e duradouro. Capaz
de controlar os sentidos e adiar um desfecho às vezes precipitado. A
sensibilidade faz gerar um alto controle. Controle esse que, usado no momento
certo, tem o dom de fazer com que um momento incompleto, permaneça eterno...
-
Não sei bem aonde você quer chegar, mas agora entendi porque Estela não quis
falar com você ao telefone. Deve ter ficado decepcionada e eu imagino o que ela
deve estar pensando a seu respeito.
- É
isso aí... Sem querer você quase acertou. Não importa o que ela esteja pensando
de mim, mas é fundamental que pense, e eu estou certo de que com a atitude que
tomei a fiz pensar. Se eu tivesse terminado aquela noite com Estela em meus
braços, teria corrido o risco de ter sido mais uma eventual aventura em sua
vida amorosa, e eu pretendo ser bem mais que um simples caso.
- E
se seu plano não der certo? Se ela não mais lhe procurar, e por todos os meios
tentar evitar que você chegue até ela?
-
Bem, se isso acontecer, eu perderei a ilusão de ter encontrado uma mulher com
sensibilidade bastante para compreender o meu ato e me fazer ficar apaixonado
por ela.
- E
eu terei ganho a aposta. Lembre-se disso - pilheriou Fernando. Vá em frente,
rapaz. Você ainda tem vinte e três dias de prazo para tentar vencer...
-
Não vou precisar de tanto tempo assim. Sinto-me tão confiante que sou capaz de
aceitar os mil por conta, agora, se você quiser me adiantar, é claro.
-
Uma omelete se faz com ovos e por enquanto você só tem a galinha. Espere mais
um pouco...
Naquela
noite Bill esperou em vão o telefonema de Estela. Esperar, para Bill,
significava cruzar os braços, e este tipo de atitude nunca se enquadrou com o
seu temperamento. Ele nunca fora homem de deixar que as coisas acontecessem,
ele as fazia acontecer. Sem negar a existência da sorte e do acaso, Bill só
aceitava a carona de uma ou de outra se elas estivessem seguindo o rumo
idêntico ao dele, caso contrário seguia solitário e obstinadamente o seu
caminho.
Na
manhã seguinte ele enviou à Estela uma dúzia de rosas, acompanhada de um
convite para jantar. Não obteve resposta e nem sequer agradecimento. Passou a
quarta-feira tentando falar com ela pelo telefone e não conseguiu. Na
quinta-feira resolveu ir ter com Estela pessoalmente e apareceu na redação da
revista Vitrine.
-
Quem deseja falar? - perguntou a secretária, com um tom de voz formal.
-
Bill Morrison - respondeu ele, secamente.
-
Por favor, pode dizer-me qual o assunto que o traz aqui?
-
Assunto particular...
-
Um momentinho - falou ela, depois de um instante de hesitação. E, enquanto seguia
em direção de uma pequena porta que ficava do lado esquerdo de sua mesa de
trabalho, completou: Vou ver se ela poderá lhe atender agora.
Bill
observou os movimentos da secretária, atentamente. Deve ser bem eficiente e
antiga na empresa - pensou ele - pois seu tipo físico não é dos mais agradáveis
à vista. Alta, magra, cabelos cor de cobre com manchas castanhas, uma boca
grande, rasgada, contornada por finos lábios, e óculos com grossas lentes.
Tinha um andar firme, dentro de um par de sapatos um tanto masculinizados. A
voz era por demais metálica e Bill já estava cansado de ouvi-la através do
telefone. No entanto, apesar do aspecto desagradável, ele pôde destacar dois
detalhes plenamente favoráveis: uma dentadura quase perfeita que lhe pareceu
natural e um par de seios firmes e soltos sob a blusa de tecido leve. Na mão
direita ela usava uma aliança e, se fosse realmente noiva - pensou Bill -
deveria estar completando bodas de prata de noivado.
-
Dona Estela só poderá lhe atender daqui a duas horas, pois está no meio de uma
reunião importante - falou a secretária, momentos depois, procurando dar à voz
um tom mais cordial.
-
Infelizmente eu não vou poder esperar, mas diga a ela que não se preocupe, pois
pretendo estar de volta antes da reunião acabar.
Bill
aproveitou o tempo para passar numa Imobiliária que ficava próxima de onde
estava, a fim de acertar os detalhes do aluguel de um conjunto de salas, mas
hora e meia depois estava de volta. Assim que entrou na sala da secretária de
Estela, esta estava batendo à máquina com incrível rapidez.
-
Lamento interrompê-la - disse ele - mas aqui estou eu de novo - falou,
procurando ser simpático. Trouxe-lhe uns bombons de chocolate e espero que
goste - completou ao mesmo tempo em que entregava a ela uma pequena caixa.
-
Não precisava se incomodar... Muito obrigada pela lembrança.
-
Como é? Será que ainda vou ter que esperar muito? - falou ele, como se
estivesse segredando alguma coisa.
-
Infelizmente hoje não vai ser mais possível o senhor falar com dona Estela.
Pessoalmente, quero dizer - acrescentou.
-
Por que? - perguntou, colocando na voz surpresa e decepção.
-
Ela acabou de sair com um dos diretores da empresa. Foram até a Zona Norte
fazer uma rápida visita ao nosso parque gráfico, e de lá dona Estela deverá ir
pra casa...
-
Não deixou nenhum recado para mim?
-
Ah, sim, deixou. Disse que telefonará
para sua residência às 10 da noite, sem falta.
-
Bem... já é uma esperança, mas até lá o que farei? Contava em jantar com Estela
hoje. Preciso tanto desabafar com alguém... Gostaria de ter nesse momento um
ombro amigo, no qual eu pudesse pousar minha cabeça e chorar minhas mágoas.
Estou tenso, angustiado, desesperado mesmo. Não sei o que fazer... estou a
ponto de explodir. Tenho medo de fazer uma besteira - falou Bill, procurando
dar um tom dramático às suas últimas palavras.
-
Quem o vê jovem e com tão boa aparência, não diz que o senhor seja capaz de
carregar tantos problemas assim...
-
Boa aparência, você diz... Se a tenho, realmente, posso jurar que no momento é
tudo que me resta. Mas, a não ser para impressionar favoravelmente alguém à
primeira vista, ela pouco vale. Se temos apenas uma boa aparência, somos como
um cartão postal em branco. De um lado, uma bela estampa; do outro, o vazio, o
frio. Para que este cartão tenha um real valor, há que ter gravado em seu verso
uma mensagem otimista de paz, amor, fé ou esperança. Em certos casos, basta uma
assinatura. É o suficiente, pois ela poderá representar muito mais do que uma
simples identificação do remetente. Hoje eu sinto como se fosse um cartão
postal em branco...
-
Por momentos difíceis todos nós temos que passar, mas estou certa de que o seu
logo será superado. Afinal o senhor tem três predicados básicos à vida:
juventude, saúde e beleza. Desculpe-me a ousadia, mas, o que deseja mais? Não
sei o que o aflige no momento, mas sou capaz de apostar que o senhor está super
valorizando um problema.
-
Gostaria que fosse tão simples assim, mas sei que não é. Em todo caso, agradeço
suas confortantes palavras...
Durante
alguns instantes ficaram olhando um para o outro, sem saber o que dizer, e logo
depois Bill voltou a falar:
-
Ei, suas palavras refletiram muito equilíbrio, experiência e sensibilidade...
Quem sabe queira me ouvir. Quem sabe poderá me ajudar...
-
Não creio que seja capaz disso...
-
Gostaria de tentar?
-
Talvez, mas hoje eu não posso.
-
Poderíamos jantar juntos, aceita?
-
Obrigada. Fica para outra vez...
-
Que tal um drinque? Um drinque apenas. Sou capaz de jurar que uma dose me fará
bem. Talvez seja o que eu precise para me tranquilizar...
- E
por que não faz isso? Se beber moderadamente, talvez se sinta melhor depois...
-
Sozinho? Não, hoje eu não seria capaz. Tenho medo de perder o controle,
embebedar-me e sair por aí a fazer tolices e a cometer desatinos. Em sua
companhia seria diferente...
-
Lamento muito...
-
Olha, conheço um barzinho agradável aqui perto onde poderíamos beber e
conversar tranquilamente. Depois, se me quiser dar o prazer, poderíamos sair
pra jantar noutro lugar, que me diz?
-
Mas eu ainda tenho algumas coisas para por em ordem...
-
Amanhã a senhorita chega um pouco mais cedo e põe em dia seu expediente...
O
convite repentino e a insistência de Bill puseram em pânico a secretária de
Estela, que tremia e gaguejava ao sentir que estavam sendo minadas as suas
forças. Não estava habituada a receber convites, principalmente de um homem
bonito e charmoso como aquele que, de pé, a sua frente, lançava o brilho de
olhos incrivelmente belos. De repente, ao olhar para a aliança em seu dedo,
arriscou mais uma desculpa:
-
Não posso. Eu tenho um compromisso com meu noivo para daqui a uma hora - falou
ela, sem muita convicção.
-
Desmarque - falou Bill, com decisão, retirando o fone do gancho. Ligue para ele e diga que vai chegar mais
tarde porque aconteceu um imprevisto. Invente uma desculpa qualquer, mas pelo
amor de Deus não me deixe só. Eu tenho pavor da solidão e nesse momento eu me
sinto o homem mais solitário da face da terra.
As
últimas palavras de Bill saíram como uma flecha e acertaram em cheio o coração
da pobre mulher que só de dois assuntos era mestra: de seu serviço na revista
"Vitrine" e de solidão. Sentindo-se vencida, ela não teve outro
recurso a não ser pegar o telefone e, em silêncio, discar alguns números.
- É
você, meu amor? (pausa). Houve um imprevisto e não vamos poder jantar juntos
(pausa). O que houve? É a tia Marta que não está passando bem e me pediu que
passasse pela casa dela quando saísse daqui (pausa). Não precisa se incomodar
não, eu pego um táxi aqui (pausa). Está bem... eu ligo de lá para você mais
tarde (pausa). Certo. Um beijão pra você também.
-
Como é mesmo o seu nome? - perguntou Bill, assim que ela acabou de falar.
-
Julieta.
-
Parabéns, Julieta. Você acabou de ter uma atuação convincente ao telefone.
-
Obrigada. Pode dar-me alguns minutos ?
-
Claro.
-
Gostaria de acabar de datilografar esta carta, arrumar minha mesa e passar uma
escova nos cabelos...
-
Gaste o tempo que precisar, eu espero.
-
Mas antes de sairmos quero que me prometa uma coisa...
-
Fale...
-
Que não vai me prender por muito tempo, pois ainda pretendo estar com meu noivo
esta noite. Hoje foi a primeira vez que menti pra ele e eu sou contra
mentiras...
-
Não se preocupe. Não vamos demorar e, afinal, eu terei que estar em casa às 10
horas para aguardar o telefonema de Estela.
CAPÍTULO 35
O BAR
O
bar era pequeno, simples, mas muito aconchegante. Havia pouca luz e um fundo
musical suave. Bill soubera escolher, sem dúvida, o cenário ideal para
apresentar seu drama e não perdeu tempo. Entre uma dose e outra de Martine,
contou uma estória triste e comovente que acabara de inventar.
-
Lamento profundamente o que aconteceu ao seu irmão, Bill - falou Julieta,
ligeiramente comovida. A morte é um fato inexorável, mas difícil de ser aceito,
principalmente quando ocorre assim, repentinamente.
- E
logo ele que sempre foi muito sadio e cuidadoso com sua saúde. Meu irmão sempre
viveu para a família. Foi marido e pai exemplar e parecia viver numa eterna lua
de mel - falou Bill, com a voz entristecida.
-
É, mas basta se estar vivo para morrer. Pode ser vulgar o chavão, mas é
verdadeiro...
-
Há menos de um mês ele havia feito um check-up, e o médico lhe dissera que seu
coração era de menino. Eu só espero é que ele não tenha deixado minha cunhada e
meus dois sobrinhos em dificuldade - falou Bill, com olhar distante, como se
estivesse imaginando como deveria ser aquele irmão que ele fez nascer e morrer
num curto espaço de tempo.
- E
por que você não foi ao enterro?
-
Não daria tempo... Eles moram em Registro, interior de São Paulo, quase divisa
com o Paraná. Meu irmão faleceu ontem pela manhã, mas eu só soube da notícia
hoje, pela madrugada, poucas horas antes de seu sepultamento.
-
Lamento profundamente - falou Julieta, com emoção. Você tem algum parente aqui
no Rio?
Bill
fingiu não ouvir a pergunta. Precisava de tempo para pensar. Afinal ele não
sabia o quanto Julieta poderia estar informada a seu respeito.
-
Eu não me conformo de não ter dado a ele o meu último adeus - disse Bill, por
fim, ao mesmo tempo em que socava a mesa.
Julieta
já estava se sentindo um pouco tonta. Não tivera tempo de almoçar naquele dia,
e há muito que não tomava bebida alcoólica. Naquele momento o garçom passou por
perto e Bill aproveitou para pedir mais duas doses.
-
Peça para você apenas. Eu já bebi o bastante - falou Julieta, arrastando um
pouco as palavras.
-
Ei, não se preocupe, eu a deixarei em casa. Se está com receio de ficar um
pouquinho alta, eu cuidarei para que isso não aconteça...
-
Bem, é que eu não estou muito acostumada e ...
- É
natural. É possível também que você esteja com o estômago vazio. Sim, claro.
Ora, porque eu não pensei nisso antes. Perdoe a minha distração. Que tal um
prato de salgadinhos para acompanhar a bebida?
-
Julieta fez um sinal afirmativo com a cabeça, e o garçom, que em frente à mesa
prestava atenção ao diálogo, ouviu o pedido de Bill e respondeu gentilmente:
-
Pois não, cavalheiro. Providenciarei imediatamente.
Momentos
depois estava ele de volta com os Martines e um pratinho com canapés.
- O
que você sabe a meu respeito? - perguntou Bill.
-
Creio que muito pouco... Apenas o que os jornais publicaram. E aproveito para
parabenizá-lo pelo sucesso. Parece-me que fez um bom trabalho, pois foi muito
elogiado, você e o costureiro francês, responsável pelos belos modelos
apresentados. Lamentou-se apenas que ele não tivesse podido se apresentar
diante do público e da imprensa. A frustração foi geral.
-
Tem certeza que isto é tudo o que sabe a meu respeito?
- E
por que acha que eu deveria saber mais? Afinal estamos nos conhecendo agora,
não é?
-
Sim, eu sei disso, mas, e Estela, nunca falou de mim a você?
-
Falou, claro. Ela elogiou muito as fotos que você fez, e lamentou profundamente
não ter podido ir ao desfile. Parece que ela o admira muito, pois mantém
arquivada uma pasta com tudo o que foi publicado a seu respeito.
- É
muito interessante... Me admira, e me mantém arquivado!?
Bill
falou como se estivesse pensando alto e, logo em seguida, voltou a falar,
elevando o tom da voz:
-
Se Estela me admira realmente, por que tem me evitado tanto?
-
Bem, ela deve ter seus motivos. O que sei é que no momento, ao que me parece,
você não tem nada que possa interessar à Revista.
-
Ela disse isso a você?
-
Disse, e para ser sincera posso acrescentar que ela até chegou a me dar uma
ordem...
-
Que tipo de ordem?
-
Proibiu-me de por você em contato com ela, a não ser, é claro, depois de me
certificar de que o assunto a tratar tivesse real interesse para a Empresa.
- E
quando foi isso?
-
Foi na terça-feira. Lembro-me do dia, porque Estela veio falar comigo logo
depois de ter recebido flores. Ah, é isso... Começo a compreender... Foi você
que...
-
Sim - respondeu Bill, interrompendo a pergunta.
Foram
dois movimentos simultâneos, automáticos e sintomáticos. Julieta empurrou seu
cálice de Martine em direção de Bill, com uma das mãos, e com a outra tapou a
própria boca.
-
Ser discreta é qualidade de toda a secretária, e a bebida está me
desqualificando...
Bill
não deu atenção ao comentário.
-
Esta atitude de Estela me magoou profundamente. Quem oferece flores de uma
forma terna e desinteressada, não merece ser excluído...
Julieta
entendeu que Bill, já fragilizado pela morte do irmão, fora agora nocauteado
com o que ela acabara de revelar. Seus pensamentos estavam turvos,
embaralhados. Como poderia consolar e restaurar o amor próprio daquele homem
sensível, e ao mesmo tempo manter-se discreta? Mergulhada em dúvidas, Julieta
buscava encontrar palavras que pudessem interromper aquele prolongado silêncio.
Falou:
-
Não fique chateado com isso. Estela é assim mesmo. Ela é uma criatura muito
discreta e que mantém reservada a sua vida particular. Há quatro anos
trabalhamos juntas e muita coisa eu aprendi a respeito dela.
- Por exemplo?
-
Seus hábitos, gostos, pequenas manias...
-
Fale-me dela. Como ela é?
-
Tudo o que sei sobre Estela, refere-se à sua vida profissional...
-
Não tem importância. Conte-me o que sabe, se não vai se aborrecer com isso, é
claro.
O
garçom, atendendo a um discreto aceno de Bill, trouxe mais duas doses de
Martine, no momento em que Julieta começava a falar sobre Estela. E falava com
tanto entusiasmo que logo ficou patente a grande admiração que ela nutria por
sua chefe.
- É
a profissional mais exemplar que conheci - dizia ela. Sou uma das mais antigas
funcionárias da Empresa e não só vi quando Estela começou, como acompanhei
passo a passo a sua ascensão. E posso lhe garantir que o que conseguiu foi à
custa de muita dedicação, competência, fibra e perseverança. Conseguiu se impor
com os resultados de seu trabalho e com a luta constante que teve de manter
contra a inveja, a calúnia e a intriga, os maiores obstáculos daqueles que
realmente possuem valor. Além do mais, Estela é uma mulher segura, que sabe o
que quer. A humanidade está dividida em três categorias: o forte, o fraco e o
inseguro. O forte, temos que respeitar; do fraco, temos que nos apiedar, e ao
inseguro temos que temer, pois a insegurança costuma cobrir-se com o manto da
mesquinhez...
Bill
passou o braço esquerdo por trás de Julieta, e pousou a mão levemente em seu
ombro. Com a outra mão, retirou os óculos de grossas lentes do rosto dela e,
depois de admirá-la por alguns instantes, falou:
-
Eu seria um cretino se dissesse que você é uma mulher bonita, mas também seria
um cego se não enxergasse a profunda beleza que vem de seu interior. Assim como
não acredito que exista uma mulher fisicamente perfeita, não creio também
que haja uma mulher que não tenha algo
de bonito. Você tem detalhes visivelmente belos e outros que poderiam ser
realçados. Seus dentes, por exemplo, são perfeitos. Seus olhos, cor de violeta,
jamais deveriam ficar escondidos por trás desses óculos de armação pesada.
Talvez uma lente de contato fosse a melhor solução. A tinta que você está
usando em seus cabelos não é a ideal. O tom não está combinando com sua pele.
Deixe que eles voltem à cor normal. Com isso você terá de novo não só a maciez
de seus cabelos, como o tom que melhor irá compor seu tipo físico. Experimente
também usar sapatos mais leves, capazes de suavizar o seu andar. Não se vista
para se esconder. Use roupas que, embora discretas, sejam menos senhoris.
Sabendo dosar e combinar, você poderá rejuvenescer, sem cair no ridículo. Não
tenha medo de usar um pequeno decote na frente. Cairá bem. Ele irá acentuar o
que você tem de mais belo e sensual: o busto. Vista-se para se mostrar e para
se sentir bem com você mesma. Adotando estas medidas você descobrirá que existe
uma outra mulher dentro de você, mulher esta que irá devolver a confiança que
um dia você perdeu.
A
princípio, leves estremecimentos. Por último um tremor maior. Bill percebera a
reação dela e, por isso mesmo, enquanto falava pressionava cada vez mais o
braço de Julieta. O que ele não soube foi que suas palavras, aliadas à
proximidade de seu corpo e o pequeno contato físico, provocaram uma forte
corrente elétrica que percorreu todo o corpo de Julieta, fazendo-a vibrar. E a
emoção e a excitação foram tão intensas que fizeram com que aquele corpo
enfraquecido e carente de amor atingisse o orgasmo pleno e total. Julieta
respirou fundo antes de voltar a falar, e quando falou, sua voz ainda estava
trêmula.
-
Nunca ninguém prestou atenção em mim e por isso mesmo jamais ouvi de alguém
palavras tão estimulantes. Estou surpresa, emocionada e agradecida. Mas afinal,
não era você que estava precisando de conforto?
-
Era, não. Sou. Mas pode haver algo mais reconfortante do que a gente se sentir
útil a alguém?
-
Você é duplamente belo - interna e externamente. Estela é uma mulher de
sorte...
-
Por que diz isso?
-
Porque sinto o quanto você a ama. Só um homem apaixonado é capaz de dizer
coisas tão belas, mesmo que seja a outra mulher. Todos os homens deveriam estar
sempre apaixonados, porque só assim não teríamos guerra. Não haveria tempo para
o ódio, nem para o mal.
-
Mas até aqui, o que tem me adiantado todo este amor?
-
Vai adiantar, não se impaciente. Não creio que você seja fraco para desistir da
conquista, nem que Estela seja tola o suficiente para não se deixar conquistar.
Vocês brigaram?
-
Não, nunca brigamos; só estivemos juntos uma única vez e posso lhe afirmar que
foi a noite mais emocionante de toda a minha vida!
-
Meu instinto feminino me diz que o medo poderá ser o responsável pelo que está
acontecendo. O medo que Estela sente de se envolver irremediavelmente. Não foi
difícil para ela perceber o risco que estava correndo ao seu lado. Risco de
apaixonar-se, quero dizer. E assim que percebeu, procurou fugir, isolar-se,
evitar um novo contato. É possível também que você tenha falhado em algum
ponto...
-
Por que diz isso?
-
Porque você deve ter dado a ela o mínimo de tempo para pensar, mas suficiente
para compreender o perigo que estava correndo. E, como você deve saber, mulher
não deve ter tempo para pensar, pois quando isso ocorre ela deixa de fazer as
melhores coisas da vida.
-
Bem, eu não só dei tempo a ela para pensar, como tenho certeza de que a fiz
pensar. Só não estou certo ainda é se isto foi um erro que cometi. Se foi,
espero que esta falha venha a me beneficiar futuramente.
-
Sua luta ainda não está perdida. Pelo contrário, acredito em suas
possibilidades e sou capaz de apostar em você. A morte, apesar de ser a única
coisa verdadeira da vida, vem sempre para nós numa hora errada. Em seu caso,
por exemplo, a morte de seu irmão veio no momento mais inoportuno. Justamente
no instante em que você vive um desencontro amoroso. Mas a morte dele,
infelizmente, é um fato consumado e em breve você recuperar-se-á do choque e,
quando isso acontecer, irá reencontrar-se e logo concentrará todas as suas
forças em prol de seu maior objetivo - a conquista de Estela.
- A
morte de meu irmão e a indiferença de Estela não são os únicos problemas que
tenho no momento. Existem outros tão graves quanto estes...
-
Graves eu acredito que sejam, mas sem solução, eu duvido. Fale-me sem
constrangimento e vamos juntos, a partir desse momento, tentar encontrar uma
solução para cada um deles. Gostei de você, acredito em você e estou disposta a
ajudá-lo no que me for possível. Conte-me, do início, como tudo começou.
-
Bem, tudo começou com um sonho. Eu sonhei que seria um fotógrafo genial, o
melhor do Brasil, do mundo talvez...
-
Maravilhoso! Se temos o privilégio do sonho, por que não sonhar com o melhor?
-
Acontece que depois de lutar contra tudo e contra todos eu me vi bem próximo de
realizar este sonho, e de repente percebi que o castelo de areia que eu acabara
de construir, desmoronara. Morava com os meus pais num subúrbio do Rio, mas
quando percebei que eles se constituíam na primeira grande barreira às minhas
aspirações, resolvi abandonar o lar. Com o apoio de meu irmão, o único na
família que acreditava em mim, mudei para Copacabana e lá ocupei uma vaga num
apartamento onde uma família maravilhosa me trata como se eu fosse um filho. O
aluguel e parte de minha alimentação estavam garantidos pela mesada que meu
irmão me enviava todos os meses lá de São Paulo. Precisava apenas encontrar
algum trabalho que me proporcionasse condições para as demais despesas. A
princípio foi tudo muito difícil até que conheci Fernando, amizade de praia.
Fernando quis me pagar um ordenado fixo, assinar minha carteira, enfim, todas
as vantagens legais, mas eu preferi a liberdade. Depois de apreciar alguns
trabalhos meus, ele me aceitou como seu ajudante sem maiores compromissos com
horário. Assim, enquanto ganhava alguns trocados e adquiria experiência, ainda
conseguia tempo para alimentar meus sonhos. Pouco tempo depois conheci Mariinha
e começamos um namoro sem compromisso. Entretanto, com a ajuda do acaso, este
relacionamento me proporcionou a minha primeira grande oportunidade. A mãe de
Mariinha é proprietária de uma butique no Leblon, sem grande expressão, mas com
boas perspectivas. Daí você conhece boa parte da história... as badalações, o
costureiro francês, o desfile e o grande sucesso enfim.
- E
como foi que você teve a ideia de organizar um desfile?
-
Estela...
- Estela?
-
Sim, foi ela quem me inspirou. Conheci-a num desfile de modas no Copacabana
Palace e logo me apaixonei. Eu estava lá com Mariinha tirando algumas fotos,
quando bati com os olhos em Estela e, naquele exato momento, decidi que iria
fazer um desfile de modas para revolucionar a opinião pública e a imprensa
especializada. Um desfile original, capaz de sacudir toda uma estrutura
arcaica, ultrapassada, em espetáculos do gênero.
- E
você conseguiu...
-
Sim. Com a ajuda da mãe de Mariinha e o apoio de alguns amigos que acreditaram
em mim.
-
Eu só não entendo como foi que, depois de tanto sucesso, você viu desmoronar o
seu castelo de areia...
-
Estela fez ruir a primeira parede de meu castelo. A ausência dela no desfile me
deixou arrasado...
-
Bem, mas ela acompanhou o seu sucesso. E como eu disse antes, leu tudo a
respeito...
- A
beleza a gente vê e a emoção, a gente sente. Palavras não descrevem fielmente
nem uma coisa nem outra.
-
Nesse ponto tenho que concordar com você, mas o que mais o decepcionou?
Bill
divertia-se dando vazão à sua imaginação mas, naquele momento, ele sentiu que
deveria fazer uma pequena pausa para melhor concatenar as ideias. Acendeu um
cigarro para ganhar tempo. Sorveu uma boa dose de Martine e voltou à narrativa,
mesclando fantasia e realidade.
-
D. Dulce, a proprietária da butique, faltou com sua palavra, e esta foi a minha
segunda decepção. Eu havia empenhado tudo no desfile, inclusive o carro que
meus pais me deram como presente de aniversário. Levantei um empréstimo numa
financeira e agora não tenho como pagá-lo. Como vê, não perdi só meu tempo e
trabalho, perdi quase tudo o que tinha e estou na iminência de perder meu
automóvel.
- E
o que foi que vocês haviam combinado?
-
Ficou acertado que eu me responsabilizaria por parte das despesas do desfile,
mas seria reembolsado se não houvesse prejuízo...
- E
se o desfile desse lucro?
-
Bem, aí então, além do reembolso, eu ainda teria direito a um emprego como
relações públicas da casa, com salário fixo e mais comissões sobre as vendas
dos modelos lançados no desfile...
- E
com o sucesso o que foi que você já recebeu?
-
Nada.
-
Que sujeira! Então seu prejuízo foi enorme!
-
Maior um pouco, pois perdi também a fé no ser humano... E para piorar as
coisas, não recebi um só convite para trabalhar, nem como fotógrafo.
- E
como está vivendo agora?
-
Continuo a fazer alguns biscates para o Fernando, mas quase não tem aparecido
serviço. Estou todo endividado. Devo à Financeira, devo dois meses de aluguel,
fora algumas pequenas quantias a amigos... E agora, sem a mesada que recebia de
meu irmão, não sei como vou sair dessa.
- E
o que fez com todo o material do desfile? As fotos, quero dizer. Deve ter ganho
um bom dinheiro com elas, não?
-
Nem um centavo.
-
Não entendo... Eu soube que a nossa Revista estaria disposta a pagar uma alta
soma para ter exclusividade sobre o seu material fotográfico...
-
Sim, é verdade, só que resolvi trocar este direito de exclusividade por um
jantar. Pelo direito de jantar com Estela, pois foi a única maneira que
encontrei para convencê-la a aceitar o meu convite.
-
Hei, espere aí... Você não quer dizer que desempregado, sem tostão e cheio de
dívidas, jogou fora a oportunidade de ganhar um bom dinheiro, quer? Mas isso é uma loucura!
-
Não, isso é amor.
- É
possível que você tenha feito tudo isso por amor. Eu acredito em sua palavra.
Mas, afinal quem sou eu para falar deste assunto.
Ouvia-se
a amargura no tom de voz de Julieta, e via-se profunda tristeza no olhar.
-
Por que? Você nunca amou?
-
Bem, eu nunca deixei de amar, só que a meu modo. Meu amor é como o de uma
adolescente que se apaixona por seus ídolos nas capas das revistas. Um amor
platônico, à distância. É bem verdade que eu já ultrapassei a fase das belas
fotos nas revistas, mas o que sinto é quase a mesma coisa. Eu amo todos os
homens que me atraem e que encontro pelo meu caminho. E sou fiel: amo um de
cada vez. E são amores fugazes e ao mesmo tempo intensos. Já aconteceu até, uma
única vez, de eu me apaixonar por dois homens ao mesmo tempo, ao vê-los juntos,
na mesma hora e local. E quando isto aconteceu eu me senti a mais infiel das
mulheres. Mas, pensando bem, isto não é amor, é paixão. Paixão pode ser um
sentimento singular, mas amor tem que ser plural. O amor é capaz até de desafiar
a matemática, pois se nesta ciência precisa-se de um mais um para formar dois,
no amor precisa-se de dois, para formar um. Como vê, eu não posso falar de amor, pois nunca amei, pois
jamais fui amada. Mas se quiser falar de paixão...
- E
seu noivo, não a ama?
-
Não creio que tenha representado tão bem, e sei que você fingiu acreditar por
ser um perfeito cavalheiro. Obrigada, assim mesmo.
-
Quer dizer então que não existe noivo? E por que esta aliança de noivado em seu
dedo?
-
Uso-a para me proteger.
-
Do assédio dos homens?
-
Oh, não! Pelo contrário. Pra me proteger da solidão. Se temos uma aliança é
porque não estamos só, presume-se. De mais a mais, aliança nunca foi barreira.
Costuma até ser um chamariz. Principalmente quando está no dedo de uma mulher.
Como sabe, o fruto proibido, além de ser o mais desejado, não impõe maiores
compromissos. Faz sentido, não?
-
Claro. Não sei como não havia pensado nisso antes.
-
Bem, mas lembre-se que estamos aqui para tentarmos resolver os seus problemas.
Os meus são tão antigos que eu já nem penso em resolvê-los. Convivo com eles há
tanto tempo, são tão íntimos, que é como se fossem meus entes mais queridos. Se
eu os eliminasse agora, não só me sentiria uma criminosa, como a mulher mais
solitária do mundo: só, sem esperanças, sem ilusões e sem problemas.
Houve
um pequeno silêncio. Um exaustor expulsava do bar a fumaça dos cigarros e, se
em algum momento ali, Bill e Julieta chegaram a sentir piedade um pelo outro,
este sentimento acabara de ser expulso junto à fumaça. Agora, admiração e
respeito mútuos pairavam no ar despoluído. O garçom passou próximo à mesa em
que estavam, mais uma vez, e antes que Bill pedisse uma nova rodada de Martine,
Julieta observou:
-
Antes de falar com o garçom, acho melhor você consultar seu relógio. Tenho a
impressão que já é um pouco tarde. Tarde para você, quero dizer - completou.
-
Nove e trinta e cinco - falou Bill, com espanto. Parece mentira que estamos
aqui há mais de três horas!
- E
você tem menos de trinta minutos para estar em casa...
- Por
que?
- O
telefonema de Estela, esqueceu?
-
Ah sim, claro, mas isto agora já não é tão importante...
-
Mas falar com Estela não era o que você mais queria?
-
Ainda é, mas não hoje. Estou muito confuso e não saberia o que dizer a ela.
Além do mais, nada me garante que ela irá telefonar. Se não se importa,
gostaria de esticar nossa conversa. A noite pra mim está começando agora.
-
Para mim será um prazer, mas se Estela telefonar e não o encontrar, você não
acha que poderá piorar a situação para você?
-
Estou disposto a correr o risco. Se eu pude tentar me comunicar com ela por
várias vezes sem êxito, por que ela não pode uma única vez?
-
Está certo, mas eu acho bom você já ir pensando numa boa desculpa se pretende
mesmo um novo contato com ela.
-
Já sei o que vou fazer - disse Bill, depois de um momento de reflexão. Com
licença, um minutinho - levantou-se e foi em direção a um telefone que estava
sobre o balcão, no fundo do Bar.
-
Como foi que resolveu o problema, se não estou sendo indiscreta? - perguntou Julieta,
assim que ele voltou.
-
Lá em casa todos estão pensando que eu estou no meio de uma reunião de
negócios, e foi isso que eu pedi que dissessem a quem por mim perguntasse.
-
Bem, penso que foi uma ideai razoável...
-
Agora que já conhece todos os meus problemas, que me diz de começarmos a falar
sobre soluções? Posso pedir mais uma rodada de Martine com canapés?
-
Espera... algo não está fazendo sentido, e eu não estou entendendo direito...
-
Se eu omiti algum fato importante, foi por esquecimento. Se algo não foi bem
explicado, foi por afobação. Mas não se preocupe... Estou pronto a lhe
esclarecer qualquer dúvida. Não se acanhe, pergunte.
-
Você acabou de me dizer que está desempregado, sem dinheiro e cheio de dívidas,
não?
-
Certo.
- E
como espera pagar esta conta?
-
Boa pergunta! E eu respondo: com cheque...
-
Mas cheque só tem valor quando tem fundos...
-
Basicamente sim, mas não necessariamente. Nós brasileiros, com o nosso jeitinho
todo especial, descobrimos um novo sentido para dar ao cheque, talvez
inspirados na publicidade das grandes lojas, que costuma dizer: compre agora, e
só comece a pagar no ano que vem. E nós, ou qualquer outro povo do mundo, como
temos o direito alienável de consumir, consumimos. Mas como pagar, se quase
sempre estamos sem dinheiro? Pagamos com o cheque, e com pose, como se
estivéssemos dizendo: "Qual é a dúvida? Pode aceitar, é quente. Está aí a
minha assinatura. Não tenho o dinheiro agora, mas assim que tiver você receberá
o seu. É só ter paciência".
-
Mas isto é desonestidade...
-
Não, isto é necessidade. Eu estou falando justamente dos honestos. Daqueles que
querem pagar. Que ao menos têm esperança de um dia poder pagar...
- E
como agem então os desonestos?
-
Os desonestos, na sua maioria, estão bem empregados, ou na política, ou em
negócios escusos. Desonesto desempregado é aquele que além de desonesto é
preguiçoso. E o desonesto convicto, profissional, é versátil, capaz de atuar
nas mais diversas áreas: assalta, rouba, falsifica documentos, passa cheques
frios, onde o nome do emitente é fictício e a conta é inexistente... Ou então
estão do outro lado, no escalão superior, de braço dado com a Lei e o Poder.
Estes sim, são os maiores desonestos e corruptos. São os grandes sonegadores de impostos. São
os reis das falcatruas e negócios escusos. Ladrões dos cofres públicos e
responsáveis pelo empobrecimento do país. E o que é pior, cobram de nós, povo,
um pesado ônus por estarem lá a nos defender e a falar em nosso nome. E tendo a
Lei, a Justiça e o Poder a protegê-los, tornam-se intocáveis, e ainda se cobrem
com o manto da respeitabilidade. E, na mesma proporção que são desonestos e
corruptos, são tão cínicos que são capazes de mandar processar-nos e
prender-nos por termos cometido um delito que, tão ínfimo, eles agora teriam
vergonha de cometer...
- Bravos! - falou Julieta, ao mesmo
tempo em que batia palmas. Você costuma ser sempre tão eloquente assim, ou isto
só acontece quando bebe várias doses de Martine?
Bill
respirou fundo, esboçou um sorriso e continuou:
-
Não, não sou desonesto. Pelo menos não tive ainda a oportunidade de ser... Não
se preocupe com o cheque. Ele é quente. Na verdade minha conta no Banco está a
zero, mas o subgerente é meu amigo e costuma sempre quebrar meus pequenos
galhos. Esta não será a primeira nem vai ser a última vez...
-
Eu acredito na sua amizade com o subgerente, e estou certa que logo você terá
dinheiro para pagar esta despesa, mas porque se endividar mais, se podemos
encontrar outra solução?
-
Qual?
-
Por que não me deixa pagar a conta? Eu teria um prazer imenso com isso....
-
De modo algum! - interrompeu, Bill. Fui educado para ser um cavalheiro, e não
posso permitir que uma dama que sai comigo, a convite meu, pague a conta.
-
Pois muito bem, pensemos numa outra solução. Você quer minha ajuda, não quer?
-
Claro!
-
Pois saiba que só a terá sob condições.
-
Quais condições?
-
Em primeiro lugar, que acate minhas sugestões sem discussões, concorda?
-
Concordo.
-
Então, para começar, quero que aceite uma quantia em dinheiro como empréstimo,
que você irá me pagar assim que puder. Com parte deste dinheiro que eu lhe
adiantarei agora, você liquidará esta despesa para que possamos sair já
daqui...
-
Mas isto não é justo. Você mal me conhece. E se eu for um vigarista, um
aproveitador?
-
Você deveria ter pensado nisto antes de me pedir ajuda. Agora o problema é meu.
Se você for quem eu desejo e imagino que seja, acabará por me ajudar.
-
Eu ajudar você? De que maneira?
-
Restituindo-me a fé que um dia eu perdi nos homens...
-
Concordo que o problema seja seu se pretende correr este risco, mas porque quer
que saiamos daqui imediatamente?
-
Porque não sei raciocinar com o estômago vazio e com a cabeça cheia. Se a noite
para você está começando agora, para mim ela só irá começar quando eu acabar de
jantar. É uma questão de hábito alimentar.
-
Eu estou sem apetite, mas sentirei o máximo prazer em levá-la para jantar.
Sugere algum lugar especial?
-
Sim, meu apartamento.
-
Por que em seu apartamento?
-
Porque lá você terá uma comidinha caseira, em ambiente sem luxo, mas acolhedor
e não gastará um só centavo. Ah, tenho também um litro do mais nobre scotch que
você poderá esvaziá-lo, se quiser. Ganhei no Natal passado e, como não gosto de
uísque e nem costumo receber visitas, o litro ainda está com o selo. Que me diz
de tudo isso?
-
Não sei o que estamos fazendo ainda por aqui - falou Bill sorrindo, ao mesmo
tempo em que fazia um sinal para o garçom.
CAPÍTULO 36
Em Paris, uma revelação - Em Nice, uma surpresa
Quem
primeiro falou em casamento foi Giacomo, depois de um momento de grande ternura
entre os dois. Estavam ainda na frente de batalha quando ele acabou por
convencer Germaine de retornar a Paris.
-
Descobri que minha vida sem você não terá sentido algum, por isso iremos nos
casar assim que esta guerra terminar e o que estou lhe fazendo agora é mais que
uma promessa. E como sou um homem de palavra, quero que volte para Paris
imediatamente, pois prometi entregá-la à sua família sã e salva e é o que vou fazer.
A partir do momento que salvei sua vida, passei a ser o responsável por ela...
-
Se é assim que pensa, saiba que sou tão responsável por você como é por mim, ou
já esqueceu que eu também lhe salvei a vida?
-
Claro que não, como poderia? Nós agora nos pertencemos e, justamente por sermos
responsáveis um pelo outro é que desejo para você toda a segurança possível. Se
insistir em ficar por aqui acabará por nos prejudicar, pois, ao invés de uma,
terei duas vidas para proteger. Além da segurança que terá em Paris tenho
certeza de que, neste momento, sua família está precisando muito de seu apoio.
Logo
que chegou à Capital francesa, Germaine pôde constatar o quanto Giacomo tivera
razão. Sua presença ali trouxe um novo alento à sua família. Pierre, o irmão,
acamado e ainda traumatizado pela morte do pai, logo se restabeleceu. Germaine
dera uma injeção de vida naquele ambiente agonizante. O restaurante, que por
vingança havia sido parcialmente destruído pela Gestapo, aos poucos foi sendo
remodelado e logo voltava a funcionar precariamente. Apaixonada, era no amor
que Germaine encontrava forças para reconstruir o seu mundo, mundo que em breve
seria compartilhado com o homem de sua vida. Não por Giacomo, porque este ela
ainda não conhecia, mas por Marcel Martinelli que era o seu assunto de todas as
horas.
Quando
Giacomo chegou em Paris na noite da véspera do Natal, uma bela recepção havia
sido preparada em sua homenagem. Mesmo enfraquecido teve fibra para suportar
tanta emoção e, momentos antes da ceia de meia-noite o pedido foi feito. A
partir daquele instante, Marcel e Germaine ficaram oficialmente noivos.
A
grande revelação foi feita quase cinco meses depois, quando o povo nas ruas
comemorava a paz que acabara de ser decretada em toda a Europa. Giacomo e
Germaine estavam passeando nos Çhamps-Elysées e quando pararam para admirar o
imenso "V" da vitória que estava sendo projetado nos céus de Paris
por dois potentes refletores, ele falou:
-
Agora podemos nos casar...
Germaine
sentiu um nó na garganta que não lhe permitiu rir nem chorar. Procurou falar,
mas o que conseguiu foi balbuciar apenas algo incompreensível e quase
inaudível. Um gemido, talvez. Era evidente o quanto ela ansiava por ouvir
aquelas palavras, mas agora, ao ouvi-las, perturbara-se e não conseguia compreender
a sua reação. Procurou responder com um gesto terno mas, ao tentar se mover,
tropeçou em sua própria emoção e caiu nos braços de Giacomo. Este, por sua vez,
custou a entender aquela expressão de temor que Germaine carregava no rosto.
-
Bem, eu penso que é isto que você quer, não? Eu sempre achei que casar é o
ideal de toda a mulher...
-
Temos sido tão felizes - falou Germaine com os olhos voltados para o passado.
-
Você fala como se estivesse se lamentando - queixou-se Giacomo.
-
Não, não é isso. Agora eu sei que o que estou sentindo é medo. Sim, é medo...
-
Mas, medo de que?
-
De perdê-lo. Foi a guerra que nos uniu e nos manteve juntos. Mas não existe
mais guerra...
-
Mas logo agora que lhe proponho casamento é que você me diz isso! Não faz sentido. E depois de uma pequena
pausa, completou: Pois quero que saiba que se não me casei antes, com você, foi
porque não foi possível. Estou ansioso para ver legalizada a nossa situação.
Até aqui tenho sido apenas seu homem e, de agora em diante pretendo ser também
seu marido!
-
É justamente isso que me atemoriza. Para mim, até hoje, foi perfeita a nossa
união. Você tem-me dado amor e proteção espontaneamente, como nunca imaginei
receber de um companheiro. Por que obrigar-se a isso através de um documento
assinado?
-
Quer dizer então que é esse o motivo de sua preocupação? Não seja tolinha -
falou Giacomo, ao mesmo tempo em que acariciava os cabelos de Germaine. Nada
irá mudar entre nós. A cerimônia em si será apenas pró-forma...
-
E por que então acha que devemos nos casar?
-
Para que possamos distribuir um pouco de nossa felicidade com os parentes que
nos amam e que esperam de nós tal atitude. Desejo também que os nossos filhos
tenham a proteção das leis de Deus e dos homens. Ou você não deseja ter filhos?
-
Tantos quantos Deus nos quiser dar...
-
Pois então pense neles e em sua família, pois só assim compreenderá o quanto
terá valor tal documento. De uma coisa quero que esteja certa: não será o
casamento que irá nos tornar mais felizes, porque isso, meu amor, será
impossível! E agora me responda: quer ou não quer casar comigo? É isso ou não é
o que mais deseja?
-
Não. O que mais desejo realmente é fazer sempre por merecer o seu amor, senhor
Marcel...
-
Foi ótimo ouvi-la falar desse jeito, pois assim será mais fácil revelar um
segredo que há muito tenho guardado dentro de mim. E depois de uma pequena
pausa, acrescentou: Não podemos casar na França... Não seria legal...
-
Não importa. Caso-me com você em qualquer parte do mundo - interrompeu
Germaine, sem se preocupar com o que Giacomo tinha para lhe dizer.
-
Iremos nos casar na Itália assim que pudermos viajar.
-
Que romântico! Sempre ouvi dizer que o italiano é muito comunicativo, alegre e
acolhedor. Quero crer também que sua música descontraída, vibrante e ao mesmo
tempo sentimental, venha espelhar o comportamento do povo.
-
Claro, a música é o que melhor representa a alma de um povo.
-
Pois saiba que sua escolha não poderia ser melhor, me apraz e me deixa curiosa
- e acrescentou, depois de uma pequena pausa. Por que a Itália?
Aquela
mulher amadurecida à força na estufa da guerra, aos poucos ia se reencontrando e
voltando ao seu tempo. Ela acabara de mostrar a outra face do seu espírito, de
seu corpo, de sua alma, onde o verde e o viço ainda se faziam presentes. Aos
olhos de Giacomo, naquele momento, Germaine parecia uma estudante em férias,
diante da expectativa de uma viagem turística. Ele sorriu feliz e começou a
sonhar com o que estava por vir.
-
Ei, estou falando com você - disse Germaine, ao mesmo tempo em que, com o dedo
indicador, tocava o peito de Giacomo. Posso saber porque escolheu a Itália, já
que pelo que me contou, por lá você não deixou parentes nem amigos?
Giacomo
acendeu um cigarro, como sempre fazia quando queria ganhar tempo, respirou
fundo para adquirir fôlego e começou a falar pausadamente:
-
Engano seu, meu amor. Tive que mentir para você o tempo todo, ou melhor, fui
obrigado a esconder a verdade. Meu nome verdadeiro é Giacomo Spata e sou
italiano de Gênova. É lá que estão todos
os meus parentes: pais, irmãos, tios, sobrinhos e etc. Em Gênova deixei meus
amigos de infância, meus sonhos de adolescente e minha primeira namorada. E
agora é para lá que tenho que ir. Para reencontrar o meu passado, resgatar
minhas origens e reassumir minha verdadeira identidade, pois só assim poderemos
nos casar...
Germaine
começou a sentir uma estranha sensação. Era como se todo o tempo tivesse amado
um homem e agora, de repente, tivesse que se casar com outro. Naquele momento
não lhe pareceu fácil aceitar o que acabara de ouvir e, quando falou, não
conseguiu esconder uma ponta de mágoa na voz:
-
E por que só agora você resolveu me contar a verdade?
-
Porque estamos em paz e o perigo já passou...
-
Quer dizer que você não confiou plenamente em mim? Não me julgou capaz de
guardar um segredo? Sua segurança era mais importante que tudo e você teve medo
que um dia eu pudesse...
-
Não continue - interrompeu Giacomo. Se continuar a falar nestes termos acabará
por cometer uma grande injustiça. Sempre confiei em você e jamais pensei em
minha segurança, pois caso contrário não teria abandonado pátria e família para
vir em busca de um ideal. Pensei unicamente em nossa causa, pois quanto menos
soubessem a meu respeito, mais seguros estariam todos aqueles que ao meu lado
lutavam, inclusive você. Dr. Louch, o melhor amigo que tive, foi o único que
sempre soube de tudo e com ele levou, para um mundo melhor, este segredo.
Ao
falar no nome do amigo, Giacomo se emocionou.
Seus olhos marejaram de lágrimas.
Germaine evitou falar para não chorar.
Estava arrependida e tentou pedir perdão com os olhos. Em certos momentos um simples gesto dentro do
silêncio diz mais do que palavras.
Instantes depois, novamente juntos, amor e paz navegavam no mar da
compreensão. Giacomo aproveitou a
oportunidade para falar da parte de sua vida que Germaine desconhecia, fazendo
questão de frisar as razões que o levaram até a França. Ela gostou do que ouviu, passando a respeitar
e a admirar ainda mais o homem que tanto amava. Quando deram por terminado o
passeio, a descontração reinava entre os dois.
-
Preciso de sua ajuda - falou Germaine. Amo dois homens ao mesmo tempo e não sei
a quem devo escolher...
-
Faça o que toda mulher costuma fazer quando tem este tipo de dúvida... Fique
com os dois.
-
Mas eu só posso me casar com um...
-
Não tem problema... Case-se com um que eu garanto que o outro irá junto também.
Você só terá a lucrar... Ambos amam você e estou certo de que quando Marcel
falhar, Giacomo estará pronto para consertar o erro.
Dois
meses foram suficientes para que todas as providências fossem tomadas e no
princípio de julho Giacomo e Germaine estavam prontos para a viagem. Madame Fontaine encontrara em Monsieur
Layette, um cinqüentão de boa aparência, gestos finos, muita disposição e vasta
experiência no ramo, o homem ideal para com ela dividir as tarefas do restaurante. Fora ele indicado por Monsieur Mauriac, que
havia se tornado amigo da família Fontaine.
As
malas do casal estavam prontas e repletas de presentes. Enfim a face positiva
da guerra começava a ser mostrada nas amizades novas solidamente conquistadas,
nas amizades antigas renovadas e fortalecidas, e na solidariedade humana que
sempre se faz presente nos momentos difíceis da vida. Giacomo e Germaine
receberam todo o tipo de ajuda, desde quantias em dinheiro, até a mais singela
recordação. Estavam em condições de começar vida nova em qualquer parte do
mundo. Mas a mais grata surpresa fora reservada à Giacomo três dias antes de
sua partida. Um diploma de Honra ao Mérito a ele foi outorgado pelo Governo
Francês, por seus atos de bravura e relevantes serviços prestados à Nação.
Giacomo recebeu com orgulho a honraria, mas sentiu, naquele ato, o sabor de uma
homenagem póstuma, porque para ele Marcel Martinelli já deixara de existir.
Todos
os parentes e amigos do casal estiveram presentes ao embarque e foi de Noelle a
última frase:
-
Já que agora vão casar, espero que arranjem logo uma filha, pois quero ter uma
sobrinha pequena para que eu possa brincar com ela...
Giacomo
fazia questão de visitar a primeira família que o acolhera naquele país e assim
decidiram que passariam um ou dois dias em Nice antes de deixarem a França.
Quando ele olhou para trás pela última vez, Paris nada mais era que um pequeno
ponto branco formado por lenços que acenavam sem parar.
A
notícia da morte de Monsieur Rocheteau, o velho pescador que tão bem o
acolhera, deixou Giacomo profundamente abatido. Conhecera pouco aquele homem,
mas o suficiente para estimá-lo. Não foram os alemães, contra os quais lutara
com destemor, que o derrotaram e, sim, uma broncopneumonia que se
entrincheirara em seus pulmões e esperara o momento certo para atacar. O pobre
homem morreu uma semana antes da capitulação inimiga. Enfrentar todo o tipo de
munição - leve e pesada - e morrer de broncopneumonia vem demonstrar que na
vida o pior inimigo é o invisível, porque vem sempre do inesperado. Morte inglória,
a de Monsieur Rocheteau. Não recebeu honrarias nem provou o sabor da vitória.
Cercado
por olhares frios e de certa forma inquisidores, Giacomo sentia-se um intruso,
sentado junto a Germaine na velha poltrona da sala, que ficava em frente à
lareira. Sentiu uma sensação estranha tomando seu corpo de assalto. Era como se
eles ali estivessem interrompendo algo de muito importante com aquela visita
tão inesperada quanto inoportuna. Na verdade, logo que chagaram, Giacomo
percebeu que todos estavam presos às mais diversas atividades, inclusive
Phillip e Mariane, irmãos de Ondine que antes ele não tivera oportunidade de
conhecer.
Enquanto
Phillip estava reformando o barco sob o pequeno telheiro ao lado da casa,
Mariane revolvia a terra nos fundos do quintal. A casa, muito branca, havia
sido recém caiada e, por sobre a cerca, assim que chegou, Giacomo pôde ver os
gêmeos cuidando do jardim. Ele não foi reconhecido pelas crianças que estavam
agora com doze anos e tinham crescido bastante. Madame Rocheteau foi a primeira
a interromper os seus afazeres, deixando de lado as novas cortinas que
costurava para vir até a porta da frente receber o casal. Logo depois era
Ondine que largava as panelas no fogo e aparecia na sala para ver quem tinha
chegado. Agora estavam todos ali, parados e de braços cruzados, procurando
fazer sala aos visitantes.
Havia
apenas dois meses que a paz fora selada para que aquela parte do mundo, tão
duramente castigada pela guerra, tivesse tempo de reerguer-se. A Europa, quase
em sua totalidade, estava mergulhada no caos econômico. Perdia-se a conta do
número de escombros onde antes havia sido pequenas vilas, ou até mesmo cidades.
A guerra não só dizimara todo o tipo de vida em proporção assustadora, como
também abalara os valores morais dos mais atingidos por ela. Giacomo sabia de
tudo isso e, por sabê-lo, foi que compreendeu que dois meses apenas era, na
realidade, um prazo demasiadamente curto para a reparação de tantos prejuízos.
A ordem para reconstruir fora dada em uníssono e ouvida em todos os recantos de
uma só vez, a partir do primeiro momento de paz. Giacomo também sabia disso e
foi assim que ele pôde entender o que estava sentindo naquele momento: acabara
de interromper o processo de reconstrução do pequeno mundo da família
Rocheteau.
Ondine
mostrou-se surpresa com a visita mas não transmitiu emoção maior. Se por acaso
a sentiu, soube perfeitamente disfarçar. Procurava ser amável e gentil,
principalmente com Germaine que acabara de conhecer, mas por mais que tenha
tentado aquecer o ambiente, bem pouco conseguiu, apesar da ensolarada manhã de
verão. Giacomo, pouco à vontade, já começava a se arrepender de estar ali,
quando sala a dentro entrou correndo uma bela menina chorando e foi atirar-se
nos braços de Ondine, chamando-a de mãe. Havia machucado a perninha na cerca de
arame farpado e ainda estava sangrando um pouco. Imediatamente Ondine
providenciou um curativo e logo a menina parou de chorar. Assim que percebeu
que havia gente estranha na casa, resolveu permanecer ali, no colo da mãe, para
alimentar sua curiosidade infantil. Giacomo não conseguia desviar a vista da
menina. Não sabia bem o porque mas, quanto mais olhava, mais sentia uma emoção
forte tomando seu corpo. A menina, por sua vez, pensando que Giacomo olhava
para os biscoitos que tinha nas mãos e que lentamente ia comendo um a um,
levantou-se do colo da mãe e, sorrindo foi até ele:
-
Quer um? Está gostoso... Foi a vovó quem fez - falou ela, pronunciando as
palavras bem demais para uma menina que não deveria ter ainda cinco anos.
-
Obrigado, boneca - disse Giacomo, pegando um biscoito.
-
Não sou boneca, sou Gina - falou ela com tom de repreensão.
-
Desculpe, Gina, é que eu não sabia ainda o seu nome, e você me pareceu uma
boneca de tão bonita que é.
-
Eu gosto da Louise, sabe, mas ela é feia...
-
Quem é Louise?
-
É a minha boneca de pano...
-
Bem, eu sei que nem todas as bonecas são bonitas - falou Giacomo, meio
desconcertado - mas você é linda, e parece uma boneca de porcelana...
-
Olha, eu vou procurar a Louise pra mostrar a você - e, dizendo isso, saiu
correndo da sala.
Giacomo
olhou para Ondine inquisidoramente. Havia uma pergunta muda dentro de seus
olhos. Ela compreendeu e apressou-se em responder:
-
Louise foi o nome que ela resolveu dar à bruxa de pano que o pai deu a ela...
-
E por onde anda ele? - perguntou Giacomo, por perguntar.
-
Quem? Walter?
-
Sim, o pai, tenha ele o nome que tiver - falou Giacomo, num tom contrariado.
-
Walter morreu em Paris dias antes da retirada das tropas nazistas...
-
E por que, Walter?
-
Por que um alemão, não é isso que quer saber?
-
É - respondeu ele, secamente.
-
Bem, esta história é um tanto longa, mas como estou certa de que vão ficar para
almoçar conosco, prometo contar tudo o que aconteceu assim que terminar de
preparar a comida.
-
Não desejamos dar trabalho... Giacomo resolveu passar por aqui rapidamente
antes de seguirmos viagem - aparteou Germaine.
-
E quando pretendem viajar? - perguntou Ondine.
-
Hoje, se possível, não é assim, amor? - falou Germaine, olhando para Giacomo.
-
Sim... claro - falou ele sem muita certeza.
-
Se pretendem ir de ônibus, espero que já tenham reservado as passagens...
-
Não, não pensamos nisso... Por que? Poderá haver dificuldades? - perguntou
Giacomo.
-
Então esqueçam, pois só viajarão se acontecer um milagre, e assim mesmo se
ainda tiver ônibus que saia para Gênova hoje...
-
Bem, já que vocês não estão ainda com as passagens compradas, não deixaremos
que saiam daqui sem almoçar com a gente - falou Madame Rocheteau, depois de se
manter calada todo o tempo.
-
Bem, se é assim, aceitamos, mas com uma condição...
-
Qual? - perguntou Ondine, antecipando-se.
-
Que nos deem a liberdade para ajudar no que for preciso, e que vocês se sintam
a vontade para continuar a fazer o que estavam fazendo antes de nós chegarmos.
Está bem assim?
-
Somos franceses demais para negarmos uma boa hospitalidade, e pobres demais para
recusarmos qualquer tipo de ajuda. E, depois de uma pequena pausa, acrescentou
Madame Rocheteau: - Vamos gente, voltem aos seus afazeres. E você, Germaine -
falou ela, num tom íntimo - se quiser me ajudar na cozinha, não faça cerimônia.
Vamos deixar Ondine e Giacomo a sós, pois me parece que eles têm muito o que
conversar.
No
mesmo instante em que todos deixavam a sala, Gina voltava com a boneca de pano
nas mãos.
-
Por que vocês duas estão tão molhadas? - perguntou Giacomo.
-
Porque Louise estava muito suja e eu fui dar um banho nela.
-
Bem, então eu acho melhor você levar a boneca para secar ao sol, porque senão
ela poderá se resfriar...
-
Boneca de pano não fica resfriada...
-
De mentirinha, fica. E mesmo que não fique doente, poderá se estragar se não secar
ao sol...
-
Então vamos, Louise. Vamos passear no sol, pra você não ficar dodói - e Gina
foi em direção do jardim, com a boneca ao colo.
-
Ela me parece uma menina muito sadia e inteligente - comentou Giacomo.
-
E é, sim. Não tem me dado preocupação. Você precisa ouvi-la conversar com a
boneca... parece gente grande. Ela passa a maior parte do dia com Louise, e
dorme com ela em seus braços. Gina é o meu mundo e Louise é o mundo dela. Foram
os dois únicos presentes que a guerra nos deixou.
-
Como conheceu Walter?
-
Ele era sargento e costumava patrulhar esta região. Era um homem forte, louro,
bonito e alegre. E muito esperto também, pois foi o primeiro e único a
descobrir as atividades patrióticas de papai...
-
Ah, começo a perceber tudo... Você entregou-se a ele para proteger a vida de
seu pai, não é verdade?
-
Em princípio foi, mas, com o correr do tempo, Walter acabou por me
conquistar...
-
Como pôde apaixonar-se por um nazista?
-
O coração está acima dos credos, das ideologias e o amor fala um só idioma...
Walter me disse isso uma vez e eu acabei por acreditar. Ele era humano, puro, e
até certo ponto ingênuo. Viveu seus últimos dias atormentado por um grande
dilema: ser inteiramente fiel ao seu amor por mim, ou à sua pátria.
-
Para o bem da família Rocheteau, você venceu esta guerrinha particular - falou
Giacomo, com um pouco de ironia.
-
É... ele me amou de verdade, creio - falou Ondine, com uma expressão sonhadora.
Walter lutou para ser um militar correto, mas se não conseguiu sê-lo, foi
porque ele pouco entendia da guerra. Não se pode exigir perfeição de alguém que
faz algo que não entende ou em que não acredita...
-
Começo a imaginar o quanto você o amou...
-
Não, não o amei. Pelo menos tanto quanto deveria tê-lo amado. Simpatizei com
ele no momento em que o conheci e logo percebi que Walter era diferente de
todos os alemães que eu havia visto. Fui eu quem o seduziu, e isto aconteceu
assim que percebi que ele seguia os rastros de papai como um perfeito
perdigueiro. Eu senti que ele me desejava ardentemente desde o primeiro momento
em que pôs seus olhos em mim. Ao mesmo tempo em que me dava a impressão de não
lutar para esconder seus sentimentos, Walter procurava manter uma certa
distância, num misto de respeito e timidez. Quando Walter certificou-se sobre
as atividades de papai, procurou fazer vista grossa até onde pôde. Sabia que se
levasse o caso às últimas consequências atingiria duramente a mim e a toda a
minha família e, naquela altura, seu envolvimento sentimental desencorajava-o a
tomar atitudes drásticas.
-
E como foi que passou a se comportar seu pai, após ter sido descoberto?
-
Como uma criança que é pega em flagrante cometendo uma arte. Vigiado e proibido
de fazer o que vinha fazendo, papai não me perdoou a princípio. Inverteu a
situação e acusou-me de compactuar com o inimigo. Sofri bastante. Foi um
período difícil para mim. Papai achava que se eu não tivesse me envolvido com
Walter, ele jamais o teria pego. Levou muito tempo para papai entender o que
realmente havia se passado. Ao contrário dele, mamãe sempre me deu apoio e em
momento algum duvidou de mim. Ela e Walter lutaram muito para fazer papai
enxergar toda a verdade e, quando isso aconteceu, a ferida em meu peito já
havia fechado, mas ficara a cicatriz da mágoa.
-
Você conseguiu justificar a necessidade de sua ligação com um alemão e até o
porque de sua afeição por ele, mas não creio que encontre razão para ter
tido um filho com um inimigo comum. Você
poderia tê-lo evitado. Uma mulher esclarecida sabe como fazê-lo. O
injustificável é colocar uma criança no mundo, em tempo de guerra, numa ligação
que não tenha ao menos o amor como desculpa. O que houve com você,
desconhecimento ou negligência?
-
Êpa, espere lá... Eu não me considero em julgamento. Não estou sentada no banco
dos réus nem vejo você como juiz. É melhor esclarecermos isso. O que estou
tentando fazer é contar uma parte da história que você desconhece, com o
intuito de esclarecer os fatos e não justificá-los.
-
Sim, é claro. Não tenho o direito de julgá-la. Este é um problema que deverá
ficar entre você e sua consciência. Perdoe a minha indignação, mas é que eu
sinto um profundo pesar e grande preocupação por todas as crianças do mundo que
foram geradas neste período de violência...
-
Gina é inocente. Nada sabe da guerra e da violência no mundo. Tem sido bem
protegida e cercada de muito carinho e atenção. Amor nunca lhe faltou. Walter
tinha verdadeira loucura por ela, e posso lhe garantir que Gina foi gerada com
muito amor, pois naquele momento era o que eu imaginava sentir. O sexo é parte
integrante do amor e consegue, às vezes, nos confundir. Walter foi um perfeito
amante e eu não posso imaginar que um dia possa vir a sentir, por outro homem,
o que sentia por ele. Nós nos completávamos e nos desejávamos a cada
instante...
-
E quando descobriu que o que sentia por ele, não era amor? interrompeu Giacomo,
cuja vaidade não o permitia ouvir íntimos detalhes.
-
Quando soube de sua morte. Não sei bem o porque, mas, naquele momento, senti
algo estranho. Era como se Walter e eu tivéssemos tido um relacionamento
incestuoso. Quando recebi a notícia, senti como se tivesse perdido um pai.
Vi-me abandonada e desprotegida e percebi, naquela hora, que proteção era o que
mais Walter me havia dado. Talvez, até, por ter sentido em mim esta necessidade,
e que proteção era o que eu mais esperava receber. Eu sempre me coloquei em
seus braços como uma criança indefesa, e Walter, compreendendo isso, cobria-me
de cuidados paternais. Não, na verdade eu não havia perdido um amante e sim, um
pai. Um pai que me dera um pouco de tudo, inclusive um sexo maravilhoso!
-
Quando viu Walter pele última vez?
-
Mais ou menos uns quinze dias antes de sua morte. Esteve aqui no dia em que
soube de sua transferência para Paris. Viajou logo depois, sem ter podido se
despedir...
-
E quanto tempo durou o relacionamento de vocês?
-
Aproximadamente três anos. Gina tinha seis meses que havia nascido quando
Walter... - Ondine descontrolou-se e não soube como concluir a frase.
-
Quando Walter o que? - perguntou Giacomo, angustiado.
-
Quando ele teve que se ausentar a primeira vez - respondeu ela, recuperando-se
após alguns segundos de indecisão.
Durante
parte do tempo em que conversaram, ora Germaine, ora Madame Rocheteau, entraram
na sala para por alguma coisa sobre a mesa. Naquele momento era a dona da casa
que interrompia a conversa dos dois para anunciar que o almoço estava pronto e
que todos deveriam vir sentar-se à mesa. Um delicioso peixe em postas foi
servido, acompanhado de camarões graúdos, batatas, molho de tomate e vinho
branco. Gina, que a princípio fez beicinho para comer, sentou-se ao colo de
Giacomo e, incentivada por este, acabou por deixar seu prato limpo. Era
flagrante o entrosamento e a afinidade reinante entre os dois. Parecia que se
conheciam há muito, apesar de jamais terem se encontrado. Se em frente à cena
Ondine mostrava-se embaraçada, a ponto de desviar a vista a cada instante, ao
lado, Germaine não perdia um só detalhe. E foi fixando a vista em Giacomo e
Gina que ela pôde constatar a grande semelhança física existente. Ambos tinham
a pele morena, os cabelos escuros e encaracolados, os olhos castanhos, a boca
pequena e carnuda, o nariz levemente arrebitado e, para solidificar a
semelhança, o mesmo sorriso. Apenas a testa curta e o queixinho arredondado da
menina lembravam Ondine. Os pensamentos de Germaine questionavam-na a cada
instante, levando-a a buscar uma resposta para todas aquelas indagações. Diante
de seus olhos, Giacomo e Gina trocavam suaves carícias e esta breve cena fez
com que Germaine desse por concluído o quadro que mentalmente pintava.
Abandonando por momentos a busca da verdade ela deixou-se ficar com as
evidências e, naquela hora, não hesitaria em afirmar ser Giacomo a pai daquela
menina.
-
Gosta de pescar, Sr. Spata? - perguntou Madame Rocheteau, voltando à sala
depois de tirar a mesa.
-
Oh, é meu passatempo favorito, mas por favor, chame-me de Giacomo, Giacomo
apenas...
-
Pois muito bem, então porque não ficam conosco até o fim da semana? Temos tido
dias lindos e proveitosos. Phillip diz que a maré está propícia e vocês juntos,
na certa, fariam uma boa pescaria. Enquanto isso, Germaine poderia aproveitar
para ir à praia. Ela está um pouco
pálida e estou convencida de que o sol e o mar fariam bem e dariam à sua pele
um belo bronzeado...
-
Faz mais de cinco anos que pesquei pela última vez e sei o quanto o convite me
é tentador mas, infelizmente, não podemos aceitar...
-
Por que?
-
Porque foi com sacrifício que consegui me manter esbelto, e se ficar por aqui
alguns dias comendo como comi hoje sua deliciosa comida, logo engordarei e
criarei barriga. E assim temo não ser reconhecido pelos meus pais quando por lá
chegar - pilheriou Giacomo.
-
Ficamos muito lisonjeados com o convite, Madame, e pode estar certa que a
tentação é grande - atalhou Germaine. No entanto, nada no mundo, agora, seria
capaz de desviar Giacomo de sua direção. Ele conta as horas que o separam da
família. As saudades são muitas...
-
Sim, claro, compreendo, mas só desejo que saibam o quanto nos dariam prazer se
pudessem ficar...
-
Não temos dúvida disso, madame - completou Giacomo.
-
Bem, já que é assim, gostaria de ajudá-los a providenciar as passagens, mas
antes quero que nos prometam que ficarão conosco até o momento do embarque,
certo?
Germaine
olhou para Giacomo que, depois de alguns segundos de hesitação, assentiu com um
pequeno movimento de cabeça.
-
E por falar nisso, onde deixaram a bagagem de vocês?
-
Chegamos de Paris ontem à noitinha - falou Giacomo - e resolvemos pernoitar
numa pequena estalagem próxima ao ponto final do ônibus. Nossa bagagem está lá.
-
Se concordarem, Phillip poderá providenciar tudo para vocês. As passagens, a
conta da estalagem, as bagagens... Vocês poderão pegar o ônibus no caminho sem
precisarem ir à cidade, pois a estrada para Gênova passa próximo daqui...
Agora
era a vez de Giacomo olhar para Germaine como a pedir uma opinião. Esta, por sua
vez, calada e com uma expressão indecifrável, em nada pôde ajudá-lo.
-
Não acha que fica melhor assim? - perguntou Madame Rocheteau.
-
Não - falou Giacomo, como se tivesse tido uma idéia. Prefiro resolver tudo
pessoalmente. Poderão surgir alguns problemas que Phillip por certo não terá
condições de resolver. De mais a mais, eu gostaria de aproveitar para levar as
crianças para passear. Estou certo de que elas gostariam de ir até a cidade...
As
últimas palavras de Giacomo causaram um alvoroço total entre as crianças que o
sufocaram de perguntas e pedidos:
-
Você compraria sorvete pra gente? - perguntou um dos gêmeos.
-
Você nos levaria ao parque de diversões? - perguntou o outro.
-
Eu posso levar a Louise? - perguntou Gina.
Acenando
sempre afirmativamente com a cabeça, Giacomo compreendeu que tivera uma feliz
idéia. Poucos momentos depois, um automóvel Ford de modelo bem antigo, de um
dos vizinhos da família Rocheteau, estava pronto para partir para o centro de
Nice. Fora alugado a Giacomo por uma pequena quantia. Phillip e Mariane
declinaram do convite, pois não podiam abandonar os seus afazeres. Germaine,
interessada em aprender alguns pontos novos de tricô, com Madame Rocheteau,
resolveu ao lado desta ficar, e assim, apenas Ondine e as crianças seguiram com
Giacomo para o passeio.
CAPÍTULO 37
A VERDADE DE CADA UM
Logo
que chegaram ao centro da cidade, Giacomo tratou de resolver o problema das
passagens, conseguindo-as, já com certa dificuldade, para o dia seguinte às 8
horas da manhã. Depois foi até a estalagem, encerrou a conta, retirou as
bagagens e as pôs na mala do velho Ford. Daí em diante foi só divertimento e as
crianças tiveram tudo o que tinham direito. Durante o passeio, Giacomo e Ondine
conversaram bastante sobre os principais acontecimentos que os envolveram
durante os últimos cinco anos. Depois de um pequeno silêncio, ele fez uma
observação:
-
Percebi que sua irmã Mariane nunca sorri, quase não fala, e me pareceu ser uma
mulher muito amargurada, por que?
-
Ela sempre foi diferente. Na verdade, Mariane nunca se conformou com a
simplicidade de nossas vidas até que um dia resolveu nos deixar, mesmo contra a
vontade de papai. Viajou para Marseille, apesar de não conhecer ninguém por lá,
pouco tempo antes da França ser invadida. O escasso dinheiro que levou acabou,
sem que pudesse ter tido tempo de encontrar um emprego honesto. Seu orgulho, no
entanto, a impediu de voltar. Ferida em seu amor próprio, preferiu trilhar
caminhos tortuosos a se mostrar derrotada diante de nossos olhos. Durante muito
tempo ficamos sem notícias dela, e só agora, recentemente, no momento em que
papai começou a dar sinais da gravidade de seu estado, foi que conseguimos
localizá-la. Mariane assim que soube das notícias, desfez-se de tudo por lá,
pegou todo o dinheiro que conseguiu economizar e voltou o mais rápido que pôde.
Mas, infelizmente, quando chegou, já encontrou papai sem vida. Antes,
pressentindo que estava próximo do fim, papai reuniu a família e falou:
"Quero que saibam que quem ama perdoa, e eu amo a minha filha mais velha.
Digam a Mariane que eu não tive forças para esperá-la, mas que gostaria de
tê-la abençoado pessoalmente. No entanto, deixo este mundo tranquilo, certo de
que Deus a abençoará por mim." E estas foram as suas últimas palavras.
-
Tanto a humildade do arrependimento, quanto a magnitude do perdão enobrecem o
ser humano!
-
Nobres atitudes, eu sei, mas que infelizmente de nada valeram até aqui neste
episódio. Mariane não acreditou no recado. Achou que estávamos tentando apenas
confortá-la e que não poderíamos ter encontrado uma mentira melhor. Até hoje
ela não se conforma de não ter ouvido, dos lábios de papai, o seu perdão...
No
momento em que o ser humano aprende a mentir, a verdade para ele nem sempre é
verdadeira. Em certas ocasiões, uma mentira bem contada, passa a ser a verdade
na qual se quer acreditar. Quem sabe eu possa devolver a Mariane a alegria de
viver?
A
tarde corria como uma criança enquanto o sol, vermelho de calor, preparava-se
para se refrescar na linha do horizonte, em seu banho crepuscular. Naquele
instante o carrossel gemia ao girar, carregado de sorrisos. Gina, montada num
cavalinho branco passou e atirou beijinhos com as mãos.
-
Por que não me diz a verdade? - perguntou Giacomo, de repente.
Surpresa
com a pergunta, e pressentindo o teor do assunto a ser abordado, Ondine
procurou ganhar tempo.
-
Que verdade? Não sei do que você está falando...
-
De Gina, é claro.
-
E o que tem ela?
-
Meu sangue. Sim, estou certo de que ela é minha filha.
-
Ora, não seja pretensioso... Só porque a menina é bonita, simpática, saudável e
inteligente, não quer dizer com isso que tenha que ser sua filha...
-
O assunto é sério e exijo, nesse momento, toda a verdade. As coincidências
estão aí para quem quiser ver. Gina tem a minha cara e estamos
irremediavelmente atraídos um pelo outro. Gina, como você sabe, é também o nome
de minha irmã predileta. Além do mais eu já fiz as contas e cheguei à conclusão
de que esta menina tem hoje a idade exata para ser minha filha...
-
É como você diz, coincidências, simples coincidências. Eu não estava grávida
quando estive com Walter pela primeira vez, e esta certeza só eu posso ter.
Gina poderia ser sua filha sim, e eu a amaria do mesmo modo, mas acontece que não
é.
-
Eu posso não ter meios legais para provar que sou o pai, mas minha intuição me
diz que você está mentindo.
-
Nunca ouvi dizer que a intuição do homem fosse forte o bastante para fazer
gerar uma criança. Fique você sabendo que eu fui fecundada por um
espermatozóide do Walter, queira ou não acreditar nesta verdade...
-
Parece que você sente prazer em me ferir...
-
De modo algum, e se estou sendo dura com você é para tentar, de uma vez por
todas, trazê-lo de volta à realidade. Seja razoável, por favor. Por que
acredita que estou mentindo? Se Gina fosse sua filha, que motivos eu poderia
ter para esconder de você a verdade? E para encerrar de vez com o assunto,
Giacomo, quero que acredite no que vou dizer: mesmo que essa hipótese absurda
aventada por você fosse verdadeira, asseguro-lhe que nada mudaria entre nós...
-
Claro que mudaria. Eu sou um homem responsável e, como pai, tenho deveres e
obrigações...
-
Ainda bem que você não é o pai. Fico feliz ao constatar isso. Você acabou de
provar que ainda não está preparado para assumir tal papel.
-
Por que diz isso?
-
Porque eu vi os olhos de Walter brilharem de felicidade quando eu disse que
estava grávida. Porque felicidade, Giacomo, é um sentimento maior, vem na
frente de qualquer outro. Nós, pai e mãe, sentimos a responsabilidade, mas
acontece que ela é explícita na felicidade e é por isso que não devemos falar
em deveres e obrigações como se fossem fardos pesados a carregar.
-
Você me interpretou mal...
-
A felicidade que sinto em ser mãe, não tem dinheiro que compre nem sentimento
que se iguale. Quando um dia você for pai, irá entender estas minhas palavras.
E agora ouça o meu conselho: acredite em mim e tire de sua cabeça esta dúvida
que só poderá prejudicá-lo no futuro. Amanhã você voltará para sua terra ao
lado da mulher que ama e que deverá vir a ser a mãe de seus filhos. Logo, estou
certa, estarão casados e felizes, tendo pela frente uma vida nova para viver
num mundo em paz. Não deixe que uma dúvida tola se interponha entre você e sua
consciência. Nós não chegamos a nos amar. De minha parte, posso lhe garantir
que foi um momento inesquecível e muito agradável que vivi e do qual não me
arrependo. Mas você foi simplesmente isto, um bom momento e, convenhamos, isto
é muito pouco para sustentar três vidas.
A
argumentação de Ondine pareceu ter convencido Giacomo que, em silêncio, fez a
viagem de volta.
As
crianças, mal acabaram de jantar, foram dormir. Estavam exaustas. Naquela hora
todos ali faziam alguma coisa. Ondine arrumava as camas. Phillip, sob o
telheiro, limpava o velho motor do barco. Germaine e Madame Rocheteau
tricotavam juntas, lado a lado e, apenas Mariane, sentada na cadeira de balanço
na varanda, nada fazia, a não ser dirigir seu olhar perdido em pensamentos para
a grande lua que parecia estar a poucos metros acima de sua cabeça. Giacomo
aproveitou a oportunidade para se aproximar. Mariane estremeceu ao ouvir os passos
dele sobre o assoalho de largas ripas da varanda.
-
Assustei você? - perguntou ele.
-
Não. Passei da idade de me assustar facilmente - respondeu ela, amargamente.
-
Importa-se que eu fique aqui?
-
Não.
-
Todos estão tão ocupados que de repente eu me senti só.
-
Não costumo ser boa companhia, a não ser quando sou paga para tal.
-
Todos nós temos um preço, qual é o seu?
-
Lamento informar-lhe, mas estou de férias.
-
Bem, se é assim, por que não podemos conversar amigavelmente?
-
Sobre o que?
-
Sobre a lua, por exemplo, o mar, o verão, a natureza enfim...
-
A vida me ensinou a ser prática. Se tem algo a me dizer, diga logo. Não gosto
de rodeios.
-
Desculpe-me, descobri agora que sou um idiota que não sabe fazer rodeios. Sim,
na verdade tenho algo importante para dizer-lhe e estou certo que você gostará
de me ouvir.
Não
importa em que estágio esteja o humor de uma mulher. A curiosidade feminina
sobrepõe-se a qualquer situação.
-
Duvido muito - disse ela. Sobre o que pretende falar?
-
Sobre seu pai. Tenho uma dívida de gratidão para com ele, e pretendo agora
pagar.
-
Meu pai está morto.
-
Não, não está. Você não o enterrou ainda, e é por isso que eu faço questão que
me ouça. Eu fiquei devendo ao seu pai um favor e só hoje descobri uma maneira
de pagar esta antiga dívida.
-
Meu pai não me deixou procuração alguma, portanto não sou eu a pessoa indicada
para...
-
Claro que é - interrompeu Giacomo. Eu explico: Eu e seu pai estivemos juntos
algumas horas apenas, mas o suficiente para conversarmos bastante. Emocionado,
ele me falou de você. Na manhã seguinte, antes de minha partida, perguntei a
Monsieur Rocheteau como poderia pagar-lhe a calorosa acolhida que me havia
proporcionado e, foi aí então que ele me entregou este retrato seu e me fez um
pedido que eu jamais pude atender, infelizmente.
-
Que espécie de pedido?
-
Pediu-me para localizá-la, caso eu tivesse oportunidade de ir a Marseille.
-
Para que?
-
Para que eu pudesse transmitir a você o recado de um pai aflito, cheio de amor,
compreensão e perdão. Lembro-me de suas palavras, como se as tivesse ouvindo
agora: "diga a minha filha que a amo muito, que a compreendo e perdôo.
Peça a ela que me escreva e que se puder venha me visitar. Gostaria também que
ela soubesse que a qualquer momento que resolva voltar, irá me encontrar
esperando-a de braços abertos, porque se um dia ela daqui se foi, de meu
coração ela jamais saiu." Infelizmente eu nunca pude ir a Marseille, e só hoje
foi que eu vim a saber que meu bom amigo morreu sem ter tido a felicidade de
rever você.
Giacomo
segurava o retrato de Mariane com as mãos trêmulas, e suas últimas palavras
saíram embargadas. Ele próprio se emocionara com a história que engendrara.
Aquele retrato antigo e amarrotado, emprestado a ele por Ondine, ajudara
bastante na dramatização.
Mariane
parara de balançar a cadeira, mas continuava a fitar a lua. Suas feições duras
e impassíveis aos poucos foram se modificando. A princípio, os olhos
umedeceram, logo depois as lágrimas começaram a rolar por suas faces e Giacomo
poderia jurar naquele momento, que Mariane estava chorando de felicidade.
A
casa estava agora mergulhada no mais profundo silêncio e parecia que todos
dormiam. Madame Rocheteau ficara acomodada com as crianças no quarto da frente,
o mais espaçoso. Giacomo e Phillip ficaram no quarto dos fundos e, no do meio,
Germaine, Ondine e Mariane.
Uma
tênue luz de abajur iluminava as páginas amareladas de uma edição antiga de
"Os miseráveis" de Vitor Hugo, que Ondine estava lendo. Ao seu lado,
na mesma cama, Mariane parecia ter um sono tranquilo. No entanto, vez por
outra, o silêncio da noite era interrompido pelo ranger de molas da velha cama
de armar na qual Germaine fora acomodada. Ela estava irrequieta e, sempre que
trocava de posição sobre o colchão, provocava o ruído que, por sua vez, fazia
Ondine desviar a atenção do romance. Numa dessas vezes, Ondine percebeu que
Germaine estava de olhos abertos e parecia que a estava observando já há algum
tempo.
-
Acordou agora, ou não está conseguindo dormir? - perguntou Ondine.
-
Para falar a verdade, não consegui ainda pegar no sono - respondeu Germaine.
-
Queira me desculpar então... Eu acendi o abajur certa de que você já tivesse
adormecido, mas se a claridade a está incomodando, eu posso...
-
Oh, não se preocupe - interrompeu Germaine. A luz não me perturba.
-
Então você deve estar estranhando a cama. Reconheço que ela não é das mais
confortáveis...
-
Em absoluto. Quando eu estou com sono, não há mais nada nesse mundo que me
impeça de dormir. A guerra me ensinou a superar todo e qualquer tipo de
obstáculo. O medo, por exemplo, é a barreira maior, mas se conseguirmos
transpô-la, tudo o mais é secundário.
-
E como é que uma pessoa consegue vencer o medo?
-
Bem, em primeiro lugar, identificando-o. É preciso que se saiba do que se está
sentindo medo. Na guerra o medo da morte está sempre presente. O ser humano mal
nutrido e esgotado, sente necessidade de dormir para recuperar as energias
perdidas e, a partir daí, tudo passa a ser uma questão de sobrevivência. Quando
o medo da bomba ou de uma bala perdida cede lugar ao desejo de se continuar
vivo, consegue-se dormir, pois a vontade de viver é sempre maior do que o medo
da morte.
-
Olhando a coisa por este prisma, é possível que você esteja agora sentindo medo
de algo que ainda não conseguiu identificar, não?
-
Sim, claro que é possível, pois o medo nem sempre surge diante de nós vestido
de medo. Ele costuma usar disfarces, tais como insegurança, tensão e angústia.
Sim, é isso... Eu estou angustiada. Sinto como se algo importante, de
resultados imprevisíveis fosse me acontecer...
-
E vai. Você amanhã partirá para uma terra estranha e irá conhecer a família do
homem que ama. Quem sabe não é isso que a está deixando insegura e amedrontada?
-
É possível. Afinal eu vou correr o risco de não ser aceita pela família dele, e
se isso acontecer, sei que poderei perdê-lo.
-
Ora, não seja criança... Se você não o perdeu durante a guerra, não será agora
na paz que...
-
Engana-se, meu bem - interrompeu Germaine. A paz é bem mais perigosa. Confiamos
nela. Enfrentamo-la de peito aberto e é aí que está o perigo. Durante a guerra
costumamos estar sempre alerta, procurando proteger-nos. Em tempo de guerra o
amor é breve, como breve poderá ser a vida. Ele floresce e desabrocha
rapidamente pela necessidade que o ser humano sente em ajudar-se mutuamente, em
trocar carinho e proteção. Na paz é diferente. Existem mais opções. Torna-se
mais fácil a escolha.
-
Belas divagações apenas, mas que fogem à realidade dos fatos. O verdadeiro amor
está acima do momento em que vivemos. Ele deverá superar-se a isto ou a
qualquer tipo de barreira que porventura venha interpor-se em seu caminho. Não,
não tenha medo da paz nem de uma possível rejeição a você por parte da família
de Giacomo. Confie, antes de tudo, em si mesma. Se Giacomo a ama, esteja certa
de que a história já está escrita, e que um final feliz será inevitável. Você
crê no amor dele, não crê?
-
Já estive mais segura disto...
-
E o que a fez mudar?
-
Você.
-
Eu!? - perguntou Ondine, com surpresa.
-
Sim, você e esta sua linda filhinha. Não, não se mostre admirada. Eu e Giacomo
não temos segredos um para o outro. Ele me contou o que houve entre vocês...
-
Espero que ele tenha usado apenas uma meia dúzia de palavras para contar o ocorrido.
Sim, porque não tivemos tempo para o amor. Não houve juras nem promessas, e
tudo não passou de uma simples necessidade fisiológica, provocada por uma
atração mútua e momentânea.
-
Que o contato tenha sido breve, eu acredito, mas não tão simples assim. Como
pode ser simples uma relação capaz de fazer gerar uma criança? Este é um fato
novo que tanto eu quanto ele desconhecíamos, mas que poderá mudar nossas vidas.
Saber que tudo não passou de uma fatalidade ou capricho do destino não me
consola. Existe um belo fruto nascido desta relação, que espera receber amor do
pai. É um divisor de águas. Eu amo Giacomo desesperadamente, mas jamais me
ligaria a ele, definitivamente, se tivesse que carregar uma dúvida dentro de
mim. Não sou uma mulher insensível nem tampouco egoísta, e sei que sou capaz de
renunciar se...
-
Pois eu não - interrompeu Ondine. Tratando-se de amor, eu sou extremamente
egoísta. Se estivesse apaixonada por Giacomo, e visse, por menor que fosse, uma
possibilidade de ter meu amor correspondido, lutaria por ele com unhas e
dentes. Mas pode ficar tranquila, minha amiga. Nós não estamos apaixonados um
pelo outro. Nunca estivemos. Acredite, ele é todo seu. Não o deixe escapar.
-
Eu conheço o passado de Giacomo. Ele me falou de seus amores e sei que não fui
eu a primeira mulher em sua vida. Achei tudo muito natural. Mas agora, diante
de você, sinto que as coisas não são tão simples assim.
-
Como não me considero sua rival, não posso entender este seu temor.
-
Talvez o meu maior temor esteja no futuro...
-
O que você está querendo dizer?
-
Que você, por um momento apenas, conseguiu dar a Giacomo o que eu não sei se
poderei dar, mesmo tendo toda uma vida pela frente. Não, não tente negar. Será
inútil. Lembre-se que também sou mulher e que por isso, não vou deixar
enganar-me facilmente. Como mulher, posso dizer que sou mãe em potencial, e meu
instinto materno, aliado às evidências, me diz que Giacomo é o pai de Gina.
Você seria capaz de negar isso, diante de uma bíblia?
-
Não, não seria...
-
E por que tem negado? A quem deseja proteger?
-
Tenho negado em nome do amor, e com isso tento proteger nosso futuro: o meu e o
de minha filha, o seu e o de Giacomo. Vocês se amam e devem se casar
brevemente, ao passo que nós, eu e Giacomo, nunca sentimos amor um pelo outro.
Fui eu quem o seduziu, quando de sua rápida passagem por aqui. Jamais esperei
revê-lo, principalmente nas circunstâncias atuais. Como eu poderia agora
responsabilizá-lo pelo que aconteceu no passado? Se foi um erro o que juntos
cometemos diante de Deus, desejo penitenciar-me sozinha de toda a culpa. Sim,
Giacomo é o pai de Gina, mas um pai acidental. Walter foi o pai que ela
conheceu e amou e, assim, sinto-me na obrigação de preservar-lhe a memória. Por
tudo isso, querida Germaine, espero que tenha o bom senso de aceitar e
acreditar em tudo o que ouviu de mim. Não tente mudar o rumo de nossos
destinos, pois de nada adiantará, ou melhor, se isto você fizer, poderá
destruir quatro vidas de uma só vez.
-
Pois muito bem, você me convenceu. No entanto, desejo propor a você uma troca.
-
O que deseja trocar?
-
A sua verdade, por uma joia de grande valor comercial.
-
Não estou entendendo...
-
Eu explico: você deverá aceitar uma joia rara que vou lhe dar, e que para mim
não tem nenhum valor sentimental, e, em troca, dou-lhe minha palavra de que
tudo ficará como está.
-
E porque espera que eu aceite este tipo de troca?
-
Porque você é uma mulher inteligente, que deseja que todos nós sejamos felizes,
principalmente sua filha Gina...
-
E o que farei eu, uma mulher desprovida de vaidade, com uma joia valiosa?
-
Deverá procurar um negociante honesto que se disponha a pagar por ela uma justa
quantia. Com o dinheiro apurado você poderá custear os estudos de Gina, encaminhando-a
bem para o futuro. E estou certa de que isto seria o mínimo que Giacomo
gostaria de fazer pela menina.
O
acordo foi feito e muito pouco falaram depois disso.
Por
fim, dentro do quarto, um silêncio total se fez presente. Lá fora o céu, antes
negro, aos poucos ia sendo tingido de violeta. Havia prenúncio de um belo dia.
Enquanto Mariane e Germaine dormiam profundamente, Ondine permanecia de olhos
abertos. Perdera totalmente o sono e agora via o dia clarear. Ela queria chorar,
mas não encontrava forças. Durante cinco longos anos Ondine sonhou com o grande
amor de sua vida, e sempre alimentou a esperança de ver realizado este sonho.
Agora ela sabia que perdera o direito de sonhar. Afinal, dali a mais algumas
horas Giacomo partiria para sempre.
CAPÍTULO 38
O reaparecimento do costureiro francês
O
Volks amarelo de Bill estava estacionado num dos terrenos baldios da Esplanada
do Castelo. Julieta morava no Flamengo e, durante o trajeto, trocaram algumas
palavras.
-
Você mora sozinha? - Perguntou ele, assim que deu a partida no carro.
-
Não, moro com Solidão, meu cãozinho de estimação. Ele não tem pulgas, não suja
meu apartamento e nem incomoda os vizinhos...
-
Maravilhoso! Adoro cães! Principalmente assim, como o seu, asseado e bem
adestrado. De que raça ele é?
-
É de pelúcia. Bem, é verdade que ele não me faz festa quando chego, não se
atira sobre mim e nem me lambe os pés. Mas, em compensação, não murcha as
orelhas nem abaixa o rabinho quando é castigado. Solidão não é subserviente
como a maioria dos cães. Ele é autêntico. Ouve-me em silêncio sempre, pois,
como um solitário que é, entende os meus desabafos. Seus olhos são tão graúdos
e brilhantes que, às vezes, eu tenho a impressão que me seguem, pelos quatro
cantos da casa, com ternura...
-
Você não gostaria de ter um cãozinho de verdade?
-
Claro que gostaria... Eu amo os animais, mas sou radicalmente contra tudo que
possa tolher a liberdade, e temos que convir que um animal confinado num
apartamento, além de perder sua própria liberdade, rouba a de seu dono também.
-
Você se considera uma mulher livre?
-
Não vivo livremente como gostaria, mas sei que sou livre, e é isto que me
importa. Apesar de me policiar constantemente, vivo momentos de total
liberação...
-
E como e quando percebe que vai deixar que esses momentos aconteçam?
-
Quando entendo que a motivação chega mais forte que a possível repressão de um
desejo, repressão essa que a mulher burguesa, de um modo geral, carrega dentro
de si. Hoje, por exemplo, estou me sentindo livre e não vejo a hora de chegar
em casa só para ver a cara que o porteiro de meu prédio fará ao me ver entrar a
seu lado...
-
Por que? Você não costuma receber visitas masculinas?
-
Não. Moro há oito anos no mesmo endereço e, além de meu irmão que raramente me
visita, apenas um homem desacompanhado recebi em meu apartamento em duas
oportunidades: meu médico particular.
Ezequiel,
paraibano valente, recém chegado de
Campina Grande, era o vigia do prédio. No entanto, aquela era a sua
noite de folga. Em seu lugar estava Seu Martins, português, cinquentão, que
sabia ser cordial ou grosso conforme as circunstâncias. Há dez anos trabalhando
ali, ganhara a confiança e o respeito de todos os moradores, aos quais julgava
conhecer muito bem. No mesmo dia em que foi promovido a chefe de portaria,
adquiriu o direito de morar com a família em confortáveis acomodações nos
fundos do prédio. Orgulhoso e cônscio de sua importância, Seu Martins sabia que
não era apenas um simples chefe de portaria. Os que ali viviam,
consideravam-no, ao mesmo tempo, chefe de polícia, prefeito, e pastor de almas
daquela pequena comunidade. Intransigente quanto aos regulamentos do prédio,
acabava como vítima dos próprios, pois nada mais tirava seu bom humor do que
ter que vestir o já surrado e apertado uniforme cinza, toda a vez que se fazia
necessária sua presença na portaria para cobrir a folga semanal do vigia
noturno. Naquela noite, no exato momento em que Julieta e Bill entravam no
edifício, Sr. Martins tentou abotoar os dois botões do uniforme que ficavam na
altura de seu estômago. Desistiu, meio constrangido, ao perceber que a barriga
não cabia mais dentro da jaqueta. As palavras que usou foram as mesmas que,
indistintamente, usava para saudar os moradores. Não havia propriamente
reprovação em seu olhar, e isto logo Julieta percebeu, mas uma forte carga de
surpresa e preocupação Sr. Martins não conseguiu esconder. Bill conteve o riso,
mas logo ao entrar no elevador, desabafou:
-
Ele me olhou como se fosse seu pai... E o que é pior, um pai medieval -
completou sorrindo.
O
apartamento de Julieta foi uma agradável surpresa para Bill, que o havia
imaginado de uma forma totalmente diferente. Ele poderia jurar que estava
prestes a entrar num antiquário de pouco valor artístico e comercial. Esperava
encontrar um ambiente conservador, escuro, pesado: ausente de bom gosto e
repleto de velhas quinquilharias cheirando a passado. Aos seus olhos Julieta
assim poderia parecer, mas não era assim o seu lar. Bill ficou surpreso com o
que viu. Ali tudo refletia alegria, descontração e bom gosto. Apenas o prédio
era de construção antiga, pois tudo o mais era moderno e de boa qualidade. Nada
ali lhe pareceu supérfluo, das cortinas aos tapetes, dos móveis aos vasos de
plantas. Havia um pouco de tudo que uma boa sala pedia, inclusive espaço livre
para o trânsito. Tudo dentro do maior equilíbrio. O apartamento era de quarto,
sala, copa, cozinha, banheiro e dependências de empregada, e todos os cômodos
eram amplos e arejados. Antes que Bill encontrasse as palavras certas para
compor uma frase elogiosa, Julieta, parecendo perceber a indecisão do rapaz,
antecipou-se a ele, quebrando o silêncio:
-
Você está me parecendo surpreso e bem impressionado. Não é aconchegante o meu
cantinho?
Bill
estremeceu. Acreditou que Julieta acabara de ler seus pensamentos.
-
Aconchegante é pouco - disse ele ao perceber uma ponta de vaidade na voz dela.
É irretocável, definitivo, perfeito! Quem o decorou?
-
Fui eu, e pela primeira vez sinto-me encabulada em sua presença...
-
Ora essa, por que?
-
Porque acabo de desnudar-me diante de seus olhos. Não, não estou simplesmente
nua, estou transparente, e sei que assim você pode ver minha alma. Coloquei-a
em cada peça, em cada detalhe do meu lar. Esta casa é o que eu sempre quis ser:
ampla, clara, arejada, moderna e acolhedora...
Bill
não teve como conter o impulso. Usou força em seu abraço, e emoção em seu
beijo. Um longo beijo. O primeiro que dava numa mulher sem antes ter tido tempo
de sentir desejo. O primeiro, também, onde o sexo ficara ausente, apesar de
seus lábios úmidos e de sua saliva quente. Ele sorriu, encabulado, e desviou a
vista para o chão. Julieta pareceu entender o significado daquele beijo.
Preferiu não comentar. Deixou apenas transparecer o brilho da gratidão em seus
olhos.
Bem,
agora você vai me dar licença - disse ela - pois preciso trocar esta roupa e
preparar nosso jantar. Ali fica o bar - falou, apontando para um pequeno balcão
à direita. - São poucas as opções, eu sei, mas nele você encontrará copos, gelo
e o scotch prometido. Vá se servindo enquanto eu vou me trocar. Se deseja ouvir
música, ponha um LP de sua preferência na vitrola. Não quero que faça
cerimônia. O jantar vai ser informal. Acho melhor você tirar o paletó, a
gravata e os sapatos, pois só vou me sentir bem se você se sentir à vontade,
combinado?
-
Combinado... Ei, deseja que eu lhe prepare um drinque? - perguntou Bill,
enquanto se dirigia ao bar.
-
Obrigado... Fica para depois - respondeu ela já do quarto.
Bill
pôs-se à vontade e até os sapatos descalçou. Colocou um LP de Ray Anthony na
vitrola e diminuiu a intensidade de luz da sala, deixando apenas acesos os
abajurs. Acomodou-se sobre uns almofadões e, ao seu lado, em cima de uma
mesinha com tampo de mármore, deixou ficar o litro de scotch e baldinho de
gelo. O ambiente formado era por demais relaxante, e à medida que o tempo
passava, ele ia tendo a impressão de que o som do pistom, solado com maestria,
afastava-se lentamente. Da cozinha, vez por outra, Julieta fazia um comentário,
ora sobre música, ora sobre culinária. Sua voz metálica chegava até aos ouvidos
dele junto a ruídos de panelas, louças e talheres. Bill esforçava-se para ouvir
o que ela tentava lhe dizer e, não fosse isso, teria ele saído, em espírito,
janela à fora para bem longe dali em companhia da suave música que o vento
carregava. Apenas seu corpo ficaria ali, inerte, afundado entre as flores
estampadas nos almofadões. Aos poucos a voz de Julieta e os ruídos foram
ficando cada vez mais esparsos, e por último, a música silenciara. Bill fechou
os olhos e depois de alguns instantes de total silêncio, começou a ouvir o que
lhe pareceu ser um barulho de chuva caindo em algum lugar próximo de onde
estava. Das doses de scotch que bebera já havia perdido a conta, tanto quanto
perdera a noção do tempo e espaço. De repente ele percebeu que a chuva havia
cessado, deixando no ar, cada vez mais crescente, um suave perfume de jasmim do
campo.
-
Alô, posso saber com quem está sonhando? - perguntou Julieta, diante dele,
vestindo um lindo negligé preto, e ainda com os cabelos molhados da ducha fria
que acabara de tomar.
-
Desculpe-me... Penso que adormeci - respondeu ele, sem ter noção exata de onde
estava. Ainda há pouco tive a impressão de estar num campo cercado de flores,
sob uma fina chuva, e só agora percebo que tudo não passou de um sonho...
-
Lamento tê-lo trazido de volta à realidade... Não tive a intenção de roubar um
sonho de você.
Bill
procurou uma melhor posição sobre os almofadões, e antes de falar, esfregou os
olhos com as costas das mãos.
-
A realidade é bem mais interessante. O perfume que antes eu sentia, agora se
faz presente com mais intensidade. Você acaba de me trazer as flores do campo
em seu corpo e a chuva em seus cabelos.
-
Você é um poeta, sabe?
-
Não, não sou. Quando muito posso ser um repentista...
-
Por que diz isso?
-
Porque eu sou um imediatista. O poeta é um garimpeiro da palavra e um lapidador
de frases. Ele transforma a pedra bruta em cascalho com paciência e obstinação.
Do cascalho ele retira a palavra que, quando encontrada, tem brilho próprio.
Cintila e emociona. Não, eu jamais conseguiria ser um poeta. Sou, quando muito,
um romântico e isto às vezes confunde as pessoas...
-
Bem, já que você se considera apenas um romântico, espero que aprecie o
ambiente que preparei para o nosso jantar. Posso servi-lo agora?
Bill
assentiu com um movimento de cabeça, e em seguida fez um breve comentário
elogioso. Voltava a ter pleno domínio da situação, apesar de sentir a cabeça um
tanto zonza. Uma mesa redonda muito bem posta, num dos cantos da sala, tinha ao
centro um castiçal de prata com três velas acesas. A luz trêmula incomodou um
pouco seus olhos ainda levemente embaçados. Bill notou um certo ar de triunfo
em Julieta ao servir o jantar. A secretária eficiente dava lugar à dona de casa
eficaz. A anfitriã vivia dois importantes papéis na mesma peça e Julieta estava
sendo capaz de representá-los convincentemente. Ao mudar de cenário e de roupa,
ela mudara também de personalidade.
Bill
provou pequenas quantidades de cada prato servido, apenas para ser gentil.
Embora estivesse com o estômago vazio havia perdido o apetite. A grande
quantidade de bebida ingerida, roubara-lhe também um pouco do paladar. No
entanto, seu olfato jamais o traíra e ele podia jurar que o jantar estava
saboroso. Julieta serviu-se de vinho e quase não tocou na comida. Procurava na
bebida algo que não sabia decifrar: se coragem para demonstrar seus reais
sentimentos, ou a força suficiente para contê-los. O certo é que uma grande
carga de tensão e ansiedade crescia e tomava seu corpo de assalto. Dentro de um
momentâneo silêncio, sua cabeça rolava em pensamentos. Propusera àquele jovem
inexperiente, apaixonado e cheio de problemas, uma ajuda desinteressada, e
agora não seria honesto, da parte dela, cobrar dele tal ajuda. E, antes que
Bill pudesse penetrar em seus pensamentos, resolveu interrompê-los.
-
Estava pensando nas soluções para os seus problemas - falou ela, com certo
embaraço.
Durante
algum tempo conversaram sobre o assunto e, por fim, Julieta arrematou:
-
Ou tudo, ou nada... Pegue ou largue.
-
Mas a quantia que me oferece é muito alta... Não sei quando vou poder
pagar-lhe.
-
Não é tanto dinheiro assim... Na verdade é uma pequena parte de minhas
economias, e lhe asseguro que não me fará falta. Com dois ou três meses de
trabalho você poderá me pagar.
-
Mas você parece que esqueceu que eu estou desempregado...
-
Hoje você está, mas amanhã será outro dia. Confie em mim e nos seus
conhecimentos. Com suas contas pagas e um emprego assegurado, você estará em
condições de atacar seu problema maior: Estela. Conheço-a bem e sei que não é
mulher de perder tempo com homem derrotado, por mais charmoso que possa ser.
-
Se ela é assim, já vi que não vou ter chance tão cedo.
-
Não pense desse jeito... Você não precisa ser um vitorioso já. Estela poderá
também se interessar por alguém que esteja prestes a se realizar, como é o seu
caso. Um grande potencial, aliado a uma expressão confiante, ajuda a
impressionar favoravelmente. Basta que mostre a ela coragem, disposição e uma
certa independência. Deixe que Estela perceba suas potencialidades, pois estou
certa de que a partir daí ela irá investir em você como, de certa forma, eu
estou fazendo. Mas veja bem: você só deverá apresentar-se a ela quando tiver
algo a oferecer além de você próprio. Alguma coisa que a deixe interessada.
Quando menos você esperar, surgirá uma boa oportunidade, e aí então, eu lhe
asseguro, Estela será um brinquedo inofensivo em suas mãos.
-
Obrigado, mais uma vez, por confiar em mim. Tudo farei para que você jamais
venha a se arrepender disso...
A
comida, quase intacta, fora esquecida sobre a mesa, enquanto as velas iam sendo
consumidas, lentamente, pelas chamas. Acomodados sobre os almofadões, Bill e
Julieta, lado a lado, seguiam bebendo. Momentos antes ele selecionara alguns
LPs românticos que iam caindo, um a um, no prato da vitrola automática. Era
evidente a preocupação que Julieta sentia em encontrar algo para dizer que
pudesse interessar a Bill. E assim tagarelava sem parar, trocando de assunto a
cada momento. Estela, pivô dos acontecimentos, parecia que havia sido
esquecida. Julieta, talvez até inconscientemente, evitava falar sobre sua
chefe. Bill, por sua vez, procurava ser gentil, mas era visível seu estado de
embotamento, e assim, sempre que incitado a usar da palavra, fazia-o por
monossílabos. Os cigarros que tentava fumar eram devorados pelo cinzeiro. O
copo de scotch que mantinha preso em sua mão, custava a chegar em sua boca.
Julieta, irrequieta, procurava movimentar-se para chamar atenção. A quietude e
o silêncio de Bill, atemorizava-a. Ela sabia que ele poderia ir-se a qualquer
momento ou adormecer, e temia que tanto uma coisa quanto a outra pudesse
acontecer.
-
Obrigada, Bill, por estar me proporcionando uma noite maravilhosa! - falou
Julieta, depois de, inutilmente, ter tentado encontrar um novo assunto capaz de
evitar que o silêncio se prolongasse por mais tempo.
-
Ei, espere aí - procurava Bill o que dizer, ao mesmo tempo em que lutava para
manter os olhos abertos. Eu... eu não estou fazendo coisa alguma por você -
falou, arrastando as palavras. Bem que eu gostaria de retribuir, de alguma
forma, o que vem tentando fazer por mim...
-
Minha felicidade vem daí - interrompeu Julieta. Estou contente por saber que
posso ser útil a você. Mas não pense nisso agora. Seus problemas serão bem
menores a partir de amanhã. Confie em mim. Continue descontraído e deixe a
noite seguir seu rumo - e sussurrando, completou - Esta noite quase perfeita...
-
Por que quase? - perguntou Bill que, surpreendentemente, conseguiu entender o
sussurro. O que falta a você para que esta noite se torne perfeita?
-
Você iria rir de mim se eu falasse...
-
Prometo que não...
-
Eu sempre tive pavor de tomar chá de cadeira...
-
Chá de cadeira?
-
Sim, é o que diziam que acontecia com as moças, nos bailes, quando não eram
convidadas para dançar. No meu tempo era assim. Tomei tanto chá de cadeira
quando mocinha, por não ter atributos físicos que me favorecessem que, apesar
de gostar de dançar, passei a evitar os bailes. Fiquei complexada.
-
Aposto que a expressão usada para o caso continue sendo a mesma. Afinal, seu
tempo de mocinha não está tão distante assim como você quer fazer crer. Mas o
que a fez lembrar disso agora?
-
Foi este fox. Ouça-o... não é lindo?
-
É, e muito conhecido também. Uma peça rara da música popular norte-americana. E
o que tem a ver este fox, com o que falta à sua noite?
-
Nada como a música para nos fazer voltar ao passado - falou Julieta, como se
não tivesse escutado a pergunta de Bill. Nem mesmo uma velha fotografia tem
tanta força assim...
-
Por que chegou a esta conclusão?
-
Porque a fotografia, com o passar do tempo, vai ficando amarelada, ou aos
poucos vai perdendo sua cor original. Com a música é diferente. Ela tem a
propriedade de transformar nossa mente numa máquina projetora e captadora de
imagens vivas, onde movimento, cor e tamanho são naturais. Dançar sempre foi
minha diversão favorita e eu sempre tive plena consciência de que o fazia bem.
No entanto, poucas foram as vezes em que tive a oportunidade de demonstrar meu
valor. Este fox reportou-me aos bailes de minha juventude. Trouxe-me também de
volta a mágoa que sempre senti por não ter sido melhor dotada fisicamente pela
natureza. No momento em que aceitei tal fato. passei a compreender porque era
sempre preterida. A dor que senti, ao constatar o óbvio, foi maior do que a dor
que a gente pode sentir quando se é vítima de uma grande injustiça...
-
Como assim?
-
Porque a injustiça, às vezes, pode ser reparada e já o óbvio, não. Ele é
definitivo.
-
Nada neste mundo é definitivo a não ser a morte...
Absorta
em seu desabafo, Julieta continuou a falar como se não tivesse escutado o
comentário de Bill.
-
Durante algum tempo o chá de cadeira foi uma constante em minha vida até o dia
em que deixei que o complexo me dominasse por completo. A partir daí, passei a
rejeitar todo o tipo de convite para as festas. No entanto, eu não parei de
dançar. Era comum, nas noite de sábado, ver-me diante do espelho do meu quarto
a rodopiar abraçada ao travesseiro. Invariavelmente eu chorava ao desligar o
rádio. Chorava baixinho, para depois sonhar. Desculpe-me por estar sendo por
demais melodramática, mas, para completar, gostaria de lhe revelar um dos meus
segredos...
-
Se isto lhe fará bem, terei prazer em ouvi-la.
-
É uma tolice, sabe. Coisa de menina-moça. Mas o fato é que durante muito tempo
eu alimentei um sonho: ser, num baile, a cinderela da noite...
-
Os sonhos não devem morrer. Quando isso acontece, nós morremos também.
-
E o que fazer então? Se quando jovem não consegui ser Cinderela, agora então...
-
Em sonho tudo é possível...
-
Mas o que devo fazer para vivenciar este sonho?
-
Use a força de sua imaginação. Troque este mundo real pelo mundo da fantasia...
-
Oh, não, por favor! Não me faça ir para tão longe assim. Não me afaste desta
noite, Bill. Eu preciso viver. Eu quero viver intensamente, nem que seja por
alguns momentos apenas.
-
Pois bem, eu lhe prometo: você terá sua noite de Cinderela.
-
Quando? Agora, a partir deste instante?
-
Lamento. Hoje, infelizmente, não será possível. Não seria justo você ter como
companhia um príncipe trôpego e amarrotado, que mal pode se manter de pé. Na
próxima ocasião em que estivermos juntos, quero estar elegante e sóbrio o bastante
para lhe proporcionar uma noite inesquecível!
-
Não, não creio que você sóbrio possa me ver como se fosse eu uma Cinderela.
Você acredita mesmo no que está dizendo, ou está procurando apenas ser gentil?
- perguntou Julieta, num tom amargo.
-
Como um cavalheiro que sou, sóbrio ou não, cumpro sempre o que prometo, e posso
lhe garantir que terei o maior prazer com isso...
-
Você bebeu muito hoje, eu sei. Aliás, nós bebemos muito. No entanto, você está
mais sóbrio do que pensa.
-
Como chegou a esta conclusão?
-
Porque só uma pessoa sóbria consegue seguir uma linha reta.
-
Mas eu estou sentado - comentou sorrindo.
-
Eu sei, mas eu não estou falando de suas pernas. Refiro-me ao seu raciocínio.
Você está formal e coerente demais, e só uma pessoa sóbria seria capaz disso.
No entanto, ao me dar sua palavra como garantia, você cometeu um engano...
-
Qual?
-
Que um sonho, para ser sonho mesmo, não pode ser programado.
-
Mas não é isso que você está tentando fazer - programar seu sonho para esta
noite?
-
Não, tolinho. Eu já estou no meio desse sonho, só que você ainda não entendeu.
Bill
deu um sorriso amarelado.
-
Vou tentar prestar mais atenção antes que você desperte - falou ele.
-
Este ambiente aconchegante e esta música romântica não lhe dizem nada? -
perguntou Julieta.
-
Dizem sim. Dizem que poderíamos aproveitar para ensaiarmos alguns passos. Só
assim estaremos afinados quando a grande noite chegar. Que tal se dançássemos
agora, aqui mesmo?
-
E em algum momento eu lhe pedi que me levasse daqui?
Bill
tentou levantar-se rapidamente e percebeu que o fizera com certa dificuldade.
Fez uma mesura, estendeu a mão e falou:
-
Dá-me o prazer desta dança?
Julieta
ficou na ponta dos pés e ambos, descalços, procuravam deslizar sobre o tapete.
Bill segurou-a firme pela cintura. Ela colou seu corpo ao dele e deixou cair a
cabeça lentamente em seu ombro. Ambos dançavam bem, apesar de terem que lutar
para manter um razoável equilíbrio em virtude da união de duas forças
contrárias: a grande quantidade de álcool ingerida pelos dois e a maciez do
tapete. No início, Bill tentou representar um jovem enamorado. No entanto, aos
poucos, foi se sentindo atraído. A bebida, a luz difusa, a música romântica, o
perfume de jasmim e a proximidade de corpo de uma mulher ardente de desejo,
eram ingredientes mais do que suficientes para excitar um jovem sadio e
másculo. Entretanto, Bill não conseguia concentrar-se apenas em Julieta. A cada
momento trocava de dama. Estavam ali, dançando com ele, Joana, Regininha,
Margareth, Fátima, Mariinha, e tantas outras das quais não lembrava o nome.
Ternura, amizade, amor e paixão eram sentimentos que ele procurava distribuir
entre as imagens que via passar. De repente Bill percebeu que lhe era
impossível fazer tal distribuição, naquele momento, sem cometer injustiças. O
importante - pensava, com a cabeça a fervilhar - era que todas tinham tido uma
importante participação em determinados momentos de sua vida, e que o sexo era
o único sentimento em comum que havia, pois a simples lembrança de cada uma
delas fazia-o vibrar de desejo. Estela, que há algum tempo estava esquecida,
reapareceu. Bill estava dançando com ela quando o último disco acabou de tocar
e a vitrola desligou automaticamente. Ainda ficou parado por alguns instantes
no centro da sala, sentindo a vibração que aquele corpo emanava. A voz de
Julieta, sussurrando algo ao seu ouvido, trouxe-o à realidade. Imediatamente um
frio correu-lhe pela espinha. Foi como se a corrente elétrica que o aquecia,
tivesse sido desligada bruscamente.
-
Quer que eu lhe prepare mais um drinque? - falou ela, de pé, com o corpo ainda
colado ao dele.
-
Não, obrigado. Bebi mais do que de costume e já deve ser bem tarde - falou, ao
mesmo tempo em que tentava enxergar a hora em seu relógio de pulso.
-
Dez para às três - adiantou Julieta, depois de olhar para o relógio de parede
que ficava pouco acima do console.
-
Tão tarde assim? - perguntou, com espanto, e completou: Tarde para você; quero
dizer que daqui a mais algumas horas deverá pegar no batente, enquanto que eu
poderei ficar dormindo até mais tarde, sem ter relógio de ponto para me
controlar...
-
Não se preocupe comigo... Duas horas de sono, uma ducha fria e um café forte
são o bastante para me recuperar...
-
Acredito em seu poder de recuperação, mas mesmo assim prefiro ir. Não me sinto
em condições de prosseguir e não desejo arranhar o brilho desta noite que foi
para mim irretocável!
-
Por que não dorme aqui?
-
Porque sei que não é isso que desejamos...
-
Mas você não deve estar em condições de dirigir...
-
Pois lhe asseguro que estarei em condições assim que beber um bom gole de café
forte.
-
Pois se é só isso que deseja, vou imediatamente tomar as devidas providências.
Estire-se aí na poltrona e relaxe. Dentro de instantes estarei de volta com o
seu café.
Bill
ressonava quando Julieta voltou à sala, poucos minutos depois, mergulhado no
mais profundo sono. De pé, diante dele, com a bandeja na mão, Julieta se viu
envolvida por um misto de decepção e prazer. Indecisa, ficou por momentos sem
saber que atitude deveria tomar: acordá-lo, ou deixá-lo dormir e ficar ali,
diante dele, admirando-o? Ela sabia que aquele não era o final desejado para
sua noite de Cinderela. Esperava bem mais. No entanto, logo percebeu que pior
seria se ele a tivesse deixado sozinha.
Envolvida
por pensamentos eróticos, Julieta resolveu por logo em prática uma ideia
diabólica que acabara de ter. Ao livrar-se da bandeja, pôs um disco romântico
na vitrola, procurando manter baixo o volume. Era um blue no qual sobressaia um
solo de pistom em surdina. Aquela música chegara ao Brasil através do cinema
francês. Julieta assistiu duas vezes o filme que chegara a fazer grande sucesso
de bilheteria. Naquele momento ela tentava reproduzir, com riqueza de detalhes,
a cena que mais a impressionara: um sensual strip-tease. A cópia estava quase
perfeita. Ela fazia de seu corpo um mistério de intenções. Oferecia-o.
Negava-o. Expunha-o e resguardava-o. Dosava os movimentos com maestria. Era ora
suave, ora agressiva. Recatada em determinados momentos e lasciva em outros. No
entanto, estava sempre presente em todos os gestos, uma forte dose de
sensualidade.
Em
sua fantasia, Julieta imaginava Bill extasiado, imóvel, ardendo de desejos com
os olhos vidrados em seu corpo, pois quando a música acabou, ela estava
inteiramente nua. Levemente ofegante, pôs-se de joelhos em frente de Bill e
começou a despi-lo, deixando-o apenas de cuecas. Em seguida começou a acariciar
e a beijar com suavidade aquele corpo atlético, bronzeado e indefeso. Em
extremos opostos, mãos e boca iniciaram a viagem lentamente, procurando
explorar todos os recantos. Enquanto os lábios e a língua subiam, entre as
coxas, procurando manter o equilíbrio para não despencar no abismo, os dedos,
como esquis, desciam deslizando sobre a relva suada do grande tórax. Mãos e
boca encontraram-se sobre o volumoso ventre e ali detiveram-se por mais tempo.
Indiferente
aos acontecimentos, Bill não se mexia. Com a respiração inalterada e os
músculos e nervos impassíveis, ele permanecia alheio à admiração e excitação
que seu corpo despertava. Detinha um leve traço de sorriso no canto da boca.
Refletia uma expressão serena, ou até mesmo angelical, como se estivesse
sonhando com pássaros, flores e crianças.
Julieta
não contava com qualquer tipo de reação por parte de Bill e, naquele momento,
não desejava que tal acontecesse. No desequilíbrio da paixão e dominada pelo desejo,
contentava-se em saber que, naquele instante, exercia plenos poderes sobre
aquele corpo inerte que ela acabara de tomar posse.
Ninguém
poderia interferir. Ninguém poderia interromper seu sonho erótico que estava
prestes ao fim. E era a este fim que desejava chegar movida por uma excitação
crescente e incomum. De repente, Julieta percebeu que o clímax estava próximo e
que aquela seria sua última viagem sobre aquele corpo. E quando suas mãos e
boca encontraram-se pela última vez, exaurida, tombou a cabeça sobre o ventre
de Bill, depois de atingir o orgasmo num gozo pleno e intenso.
Após
apanhar um lençol em seu quarto, Julieta deitou-se ao lado de Bill no sofá, com
cuidado para não acordá-lo. Antes ela havia tomado uma ducha fria, uma caneca
de café forte e um comprimido para não dormir. Era seu desejo prolongar, por
tempo indeterminado, o prazer de sentir seu corpo nu em contato com o de Bill.
Passava
das 12h30m quando Bill foi acordado por Julieta. Depois do primeiro impacto,
ele falou:
-
Quer dizer que eu acabei passando a noite aqui?
-
Não pude evitar. Você desfaleceu no momento em que eu lhe preparava um café.
-
Oh, desculpe-me...
-
Foi melhor assim. Você pôde dormir mais tempo e evitou correr riscos no
trânsito. E, além do mais - completou, com malícia - você me proporcionou uma
noite inesquecível! Bem, agora chega de preguiça e vá levantando logo daí. Você
tem um compromisso marcado para daqui a uma hora e deverá ser pontual.
-
Compromisso, eu? Que horas são?
-
Já são quase treze horas e às duas da tarde você deverá estar num escritório no
centro da cidade...
-
Então por que não me acordou há mais tempo?
-
Eu tive que sair bem cedo para tomar algumas providências, e não vi
necessidade de tirá-lo da cama. De certa forma foi bom, porque assim você pôde
se recuperar melhor. Mas vamos logo... Levante-se daí.
De
um salto Bill pôs-se de pé e só então foi que percebeu que estava apenas de
cuecas. Rapidamente pegou o lençol e enrolou-se nele. Estava ruborizado e tinha
no olhar um significativo sinal de interrogação.
-
Êi, onde estão minhas roupas?
-
A calça, o paletó e a gravata eu passei a ferro e estão pendurados no meu
guarda-roupa. A camisa, as meias e o lenço eu os lavei antes de sair e já devem
estar secos, estendidos na corda. A cueca... bem... a cueca eu resolvi comprar
uma nova para você. Trouxe-lhe também uma escova de dentes e os objetos
necessários para que possa fazer uma boa barba.
-
Tem certeza de que não esqueceu de alguma coisa? - perguntou Bill, com ironia.
-
Não, não tenho, mas gostaria de ter.
-
Você existe mesmo, ou é fruto
de minha fértil imaginação?
-
Oh, não me fale agora no poder da imaginação. Mesmo que um dia eu resolvesse
contar-lhe uma experiência que tive nesse campo, você não acreditaria - e
eliminando a malícia de sua voz, Julieta completou - Enquanto você faz a barba
e toma banho eu vou secar o resto de sua roupa no ferro e lhe preparar um
lanche reforçado.
Em
menos de uma hora Bill era outro homem. Bem barbeado, com a fisionomia
descansada e elegantemente vestido, estava ele pronto para a entrevista.
-
Não sei se poderei me sair bem - disse ele. Sou apenas um fotógrafo razoável em
início de carreira.
-
Lá você terá que fazer um pouco de tudo - entrevistas, reportagens e fotos,
naturalmente. Pode ficar tranquilo porque você foi muito bem recomendado e seu
mais recente trabalho fotográfico foi muito apreciado. Estou certa de que você
se sairá bem no teste. Eles pretendem lhe oferecer um contrato de experiência
com três meses de duração. O salário não deverá ser muito grande, mas espero
que com ele você possa cobrir suas necessidades imediatas. E o mais importante
de tudo é que irá trabalhar na principal concorrente da Revista Vitrine. Já
estou antevendo a reação de Estela quando descobrir a novidade.
-
Você já fez tudo o que poderia fazer por mim - falou Bill, ao tomar o último
gole de café. Estou de moral elevado e convencido de que vou acertar. Agora
vamos em frente que a hora é essa...
-
Aqui está o dinheiro que lhe prometi e o cartão com o nome e o endereço da
pessoa que você deverá procurar. Resolvi tirar férias e já falei com Estela.
Preciso descansar e provavelmente amanhã mesmo já estarei viajando para o
interior.
-
Esta foi a decisão mais acertada que você tomou. Aproveite suas férias da
melhor maneira possível e, quanto a mim, não se preocupe, dentro de pouco tempo
estarei em condições de pagar com juros tudo o que já fez por mim.
-
Não se preocupe com isso, e pode estar certo de que uma boa parte você já me
pagou, e como!!! - falou Julieta, com um sorriso cheio de malícia.
Às
nove horas da noite Bill falava com Julieta ao telefone.
-
Ficou tudo acertado. Devo começar na semana que vem. Já estou providenciando
alguns documentos meus. Amanhã vou fazer os exames médicos de rotina.
-
E quanto ao ordenado? - perguntou Julieta, com curiosidade.
-
Um pouco mais do que eu esperava receber para começar. Se for efetivado, após o
período de experiência, meu salário dobrará.
-
Isso é maravilhoso! Sei agora que posso viajar tranquila.
-
E quando viaja?
-
Amanhã às 7h30 min.
-
Para onde irá, posso saber?
-
Prefiro manter segredo.
-
Espero que me dê ao menos uma pista... Você viajará de trem, avião, ônibus ou
navio?
-
Por que quer saber?
-
Gostaria de ir ao seu embarque. Por certo irá precisar de um carro e de alguém
para lhe carregar as malas...
-
Já está tudo providenciado, não se preocupe. De qualquer forma, agradeço a
oferta. Não desejo que me interprete mal, mas é que eu não gosto de despedidas.
-
Se é assim que prefere, tudo bem. Espero que se lembre de mim, e que me envie,
ao menos, um postal...
-
Breve você terá notícias minhas. Sucesso é o que desejo para você em seu novo
emprego e até minha volta.
-
Feliz viagem. Aproveite o melhor que puder, pois você bem que o merece. Um
beijão - e Bill desligou o telefone.
Foi
naquele exato momento que ele sentiu, pela primeira vez, a consciência pesada.
Bill usara aquela mulher como nunca o fizera antes com outra. Julieta jamais
deveria saber o quanto ele fora capaz de mentir. Bill não estava tão preocupado
em preservar sua dignidade. Desejava, isto sim, era salvaguardar Julieta de uma
mágoa que na certa a abateria profundamente, podendo deixá-la definitivamente
descrente da humanidade. E tudo acontecera por culpa de Estela; pelo amor
descontrolado que sentia por uma mulher que o desprezava, e que, provavelmente,
não deveria merecer tanto sacrifício. Mas quanto mais pensava sobre o assunto,
mais crescia em Bill o desejo de conquistar Estela. E não era só amor, ele
sabia, era vaidade também. Estela, até então, havia se constituído no maior
desafio que surgira em sua vida. Vencê-lo era uma questão de honra e de tempo,
e Bill sabia que mais cedo ou mais tarde sairia vitorioso.
Na
penumbra do quarto, ouvindo música romântica em surdina, Bill começou a meditar
sobre suas últimas 24 horas. Havia alguns pontos obscuros, como por exemplo: acordar
de cuecas no sofá da sala de Julieta, sem no entanto conseguir se lembrar do
momento em que resolveu se despir. Algumas frases que Julieta dissera estavam
agora martelando sua cabeça, principalmente uma, que o deixara bastante
intrigado: - "Você só deverá apresentar-se à Estela, quando tiver algo
importante a oferecer além de você próprio. Alguma coisa que a deixe por demais
interessada." Bill repetiu, para ele mesmo, por diversas vezes, aquele
conjunto de palavras, como se fosse um enigma a ser decifrado. De repente sua
cabeça estalou. O ruído fora tão forte que ele teve a impressão de ter escutado
o som de uma lata sendo amassada. E na certeza de ter decifrado o enigma,
eufórico pegou o telefone e discou para a casa de seu amigo Fernando.
-
Lembra da segunda parte da aposta que fizemos sobre Estela? Separe o dinheiro,
pois espero recebê-lo amanhã.
-
Você passa um dia sem me dar notícias suas e resolve me ligar a esta hora
apenas para dizer isto? Ficou maluco? - perguntou Fernando, com o tom de voz
alterado.
-
Claro que não. Tenho muitas novidades para lhe contar, mas prefiro dizê-las
pessoalmente. Amanhã passarei por sua loja o mais cedo que puder. Estou
telefonando também para lhe pedir um favor...
-
Ah, agora você voltou ao normal. Que espécie
de favor?
-
Preciso do seu apartamento amanhã ao cair da tarde.
-
Amanhã nós falaremos sobre isso...
-
Não, preciso agora de sua resposta. É urgente.
-
Está bem, está bem. Você sabe que sempre acabo cedendo... Não me diga que
pretende levar Estela naquela bagunça...
-
Amanhã nós falaremos sobre isso. E desligou.
Às
sete da manhã a Estação Rodoviária já recebia um bom número de pessoas.
-
Precisa de carregador, madame?
Julieta
estava de costas pagando a corrida ao motorista do táxi e aquela voz não lhe
pareceu nada familiar. No entanto, ao virar-se, deu de cara com Bill. Este, com
um largo sorriso, carregava nas mãos uma dúzia de rosas chá, num belo arranjo,
e algumas revistas.
-
Como soube que eu ia viajar de ônibus?
-
Porque tenho dois amigos, um na C.I.A. e o outro no SNI, e ambos vivem
disputando o direito de me informar primeiro.
-
Não vou insistir na pergunta porque sei que você não irá me revelar o nome do
verdadeiro informante. Deve ter sido alguma língua frouxa lá da redação. Não
importa agora. Gostei da surpresa e estou contente em vê-lo de bom humor.
-
Não é todo dia que a gente tem oportunidade de oferecer um arranjo de rosas
chá, gostou?
-
Adorei! Não precisava gastar dinheiro com tantas revistas...
-
Claro que precisava, pois só assim você não irá pensando em mim o tempo todo da
viagem...
Os
dois trocaram sorrisos e palavras.
-
Preciso ir agora por dois motivos - falou Bill, esforçando-se para ser sério.
-
Quais os motivos, posso saber?
-
Primeiro porque tenho um compromisso agora cedo lá no Leblon, e depois porque
sou muito emotivo e não pretendo acenar lencinho ao ver o ônibus partir.
Minutos
depois o Volks amarelo de Bill seguia em direção ao Leblon.
-
Você acha que este plano maluco vai dar certo? - perguntou Fernando, enquanto
arrumava alguns objetos na vitrine de sua loja.
-
Olha, eu vou telefonar do seu escritório lá de cima e gostaria que você ficasse
na extensão aqui em baixo. Quero que seja testemunha de um trote fenomenal...
Esbanjando
vitalidade e entusiasmo, Bill subiu de dois em dois degraus a estreita escada
de madeira que o levava até o girau.
-
Revista Vitrine, bom dia, com que deseja falar? - perguntou uma voz feminina
cheia de dengo, e que Bill jamais ouvira.
Ele
respirou fundo, carregou no sotaque, misturou francês com português e falou de
um fôlego só:
-
Eu desejar falar com Mademoiselle Estela. C'est trés important.
-
Como devo anunciá-lo?
-
Pardon...
-
Seu nome, por favor...
- Perfectment. Je suis Jean Louis
Marchand.
-
Um momentinho. Vou ver se ela poderá atendê-lo.
Lúcia
estava nervosa. Era a primeira vez que substituía Julieta e aquele era o
primeiro telefonema do dia. E, para complicar mais a sua vida, a voz era de um
estrangeiro. Refeita do impacto, ligou o interfone e falou:
-
Dona Estela, tem um tal de Jean Louis Marchand na linha querendo falar com a
senhora.
Houve
um pequeno silêncio. Mesmo pensando tratar-se de um trote, Estela resolveu
conferir.
-
Eu atendo. Pode passar a ligação para mim.
Bill
teve uma grande atuação. Usou um tom de voz totalmente diferente do seu e falou
todo o tempo em francês, abusando de sua irretocável pronúncia. Assim que
desligou, esfregou as mãos e desabafou o contentamento:
-
Consegui... Penso que consegui. Eu acho que ela vai cair na armadilha como uma
lebre faminta.
-
Mas isso é sacanagem - desabafou Fernando. Você falou o tempo todo em francês e
eu pouco pude entender. Pode me fazer agora a fineza de traduzir?
-
Simples. Como você deve ter percebido, apresentei-me como o costureiro francês
amigo de Bill, e que, por insistência deste, estava disposto a conceder à
Revista "Vitrine" uma entrevista exclusiva. Achei por bem explicar o
porquê de meu regresso ao Brasil, fazendo ver a ela que por aqui deixei alguns
problemas pendentes de suma importância para serem urgentemente resolvidos, a
fim de que possa fechar um grande negócio. Falei que apenas hoje, entre 7 e 8
horas da noite, poderia estar à disposição dela, e dei o seu endereço.
-
Estela não achou estranho você ter preferido se hospedar no apartamento de um
amigo em lugar de um hotel cinco estrelas?
-
De certa forma, sim, mas disse a ela que, se tivesse me hospedado num hotel de
primeira, provavelmente iria chamar muita atenção. Fiz ver à Estela que o
impacto de minha presença diante do público só me seria benéfico depois de
concluído o negócio.
-
Você chegou a fazer algumas exigências?
-
Mas é claro que fiz. Disse que só a receberia se viesse desacompanhada e sem
máquina fotográfica a tiracolo.
-
E ela concordou?
-
Não só concordou como me garantiu que estará no local do encontro na hora
marcada.
-
Quer dizer então que você vai se deixar desmascarar? Já pensou nos riscos que
poderá correr, e nos processos que poderá ter que responder por falsidade
ideológica?
-
Conhece alguma fórmula para se vencer na vida em que os riscos não façam parte
dela? Os riscos são os temperos do sucesso. Eu sei que estou apostando muito
alto, mas confio na minha boa estrela, e no meu charme, é claro.
Quando
a campainha tocou eram 7h23min da noite. Com passos firmes, Bill caminhou até a
porta. Aos seus olhos Estela pareceu mais bonita do que nunca.
-
Você por aqui? - falou, procurando dar um tom indiferente à voz.
-
E porque não deveria estar?
-
Sei que estou um pouquinho atrasada. O trânsito estava um inferno! Espero que
seu amigo francês possa me receber...
-
Estou certo que sim. Faça o favor de entrar.
-
Pois anuncie-me a ele. Estou ansiosa para fazer logo esta entrevista - falou
Estela, ao entrar.
-
Vous pouvez faire ça premiere question - falou Bill, com o mesmo tom de voz que
usara ao falar com Estela ao telefone.
CAPÍTULO 39
Durante
a viagem pouco conversaram. Giacomo parecia ausente, perdido em pensamentos.
Entre Gênova e Nice vagava a procurar respostas e a imaginar situações, e foram
raros os momentos em que realmente esteve presente dentro do ônibus. Germaine,
que por sua vez concentrava toda sua atenção nas belas paisagens que se
descortinavam à sua frente, parecia não notar a ausência de Giacomo. Naquele
segundo domingo de julho um sol radioso distribuía claridade e calor pelo
caminho. A viagem transcorrera sem incidentes dignos de registro e, pouco antes
do meio-dia, estavam na Piazza della Vittoria, em Gênova.
Usando
mensagens codificadas Giacomo conseguira manter contato com sua família durante
a guerra e, para isso, contara com o prestígio do Dr. Louch e com os serviços
da Cruz Vermelha Internacional. Com a morte do doutor, o contato fora
interrompido ficando ambas as partes sem notícia durante um ano e meio.
Entretanto, com o fim da guerra, o contato veio a ser restabelecido através da
simples troca de cartas entre Giacomo e sua família. Há três meses que cartas
vinham sendo trocadas com frequência sendo que, pela família Spata, era Gina
quem se encarregava de dar as notícias ao irmão. Apesar disso ambas as partes
tinham o cuidado de omitir certos fatos. Assim como Gina não estava informada
sobre o dia exato da chegada de Giacomo, este, por sua vez, nada sabia a
respeito dos graves problemas que afligiam sua família, exceto de que seu pai,
o velho Giuseppino, havia sofrido dois
derrames cerebrais e estava agora paralítico.
O
motorista do táxi, um homem extremamente gordo e mal humorado, parecia não
caber dentro do pequeno Fiat. Suando bastante, amaldiçoou o peso das malas
enquanto as colocava sobre o teto do carro. Apesar de andar vagarosamente, o
táxi levou pouco tempo para fazer o percurso entre a Piazza della Vittoria e a
residência da família Spata, que ficava na parte velha da cidade. A rua era
levemente inclinada e a casa fora construída sobre uma pequena elevação do
terreno. Uma escada, em blocos de pedra, ligava o portão de ferro embaixo, à
varanda ao alto. O prédio, de construção antiga, estava em mau estado de
conservação. O jardim que sempre fora bem cuidado apresentava sinais de total
abandono. A grama estava rala e irregular, e as flores pareciam ter que lutar
para sobreviver àquela invasão de ervas daninhas.
Giacomo
não gostou do que seus olhos puderam ver e logo teve um pressentimento de que a
vida por ali não andava bem. O portão de ferro rangeu quando ele empurrou, mas
foi a explosão expelida pelo cano de descarga do Fiat que fez despertar a
atenção de Giovanni. Ele estava sentado na varanda lendo um jornal e logo
correu em direção ao irmão para abraçá-lo e ajudá-lo com as malas.
A
tradição de reunir toda a família para o almoço dominical havia sido mantida
pela família Spata, e Giacomo não poderia ter escolhido dia melhor para seu
regresso. Dessa forma, pôde ele encontrar todos ali como se estivessem à sua
espera - pais, irmãos, cunhados e sobrinhos, exceto, é claro, as ausências
pelas quais já esperava: Giorgio, seu irmão mais velho, que continuava morando
no Brasil, e Graziela, que depois de separar-se de seu marido Marcelo, o mau
caráter, fora para Roma tentar a sorte e por lá ficara. Os três filhos, no
entanto, ficaram ali em Gênova, aos cuidados dos avós maternos. Novidade mesmo
para Giacomo foi o casamento de Carina, sua irmã caçula, com Ferraro. Novidade
esta que não chegou a ser surpresa já que ele, Giacomo, conhecera o rapaz antes
de sua viagem para a França e tal enlace era esperado por todos em virtude do
bom relacionamento que sempre existiu entre os dois, nos quase seis anos de
namoro. Ferraro e Carina haviam se casado há menos de um mês, e ainda estavam
vivendo em clima de lua de mel.
Quando
Giacomo chegou, seus sete sobrinhos haviam acabado de almoçar e naquele momento
brincavam no quintal. O velho Giuseppino estava dormindo em seu quarto. Pegou
no sono depois de ter feito uma leve refeição na cama, e por isso, não sabia
ainda da chegada do filho. Os demais membros da família estavam à mesa, diante
de um suculento gnocchi, servido com muito queijo parmezon ralado, pão, vinho
tinto, e uma travessa com melão em fatias como sobremesa. Numa das cabeceiras,
ocupando o lugar do chefe da família, estava Giovanni que entre os presentes
era o filho mais velho. Na outra cabeceira dona Benedetta tendo ao lado direito
as filhas, obedecendo à seguinte ordem: Silvana, Gina, Mônica e Carina. Do lado
esquerdo, também pela ordem, sentaram seu filho Giacomo, a futura nora Germaine
e os genros Angelo e Marcelo. Aquele era sem dúvida um típico almoço de uma
família italiana de classe média pois, apesar das vicissitudes porque passavam,
havia fartura em tudo - fartura de alimentos, de vozes e de risos.
O
almoço transcorreu num clima de euforia e total descontração. Sob o crivo de
perguntas das mais diversas Giacomo não parava de falar. Respondia a todos com
bom humor e embaraçava-se, todavia, com uma ou outra pergunta um tanto
indiscreta a respeito de sua vida sentimental. Cercada de atenção e carinho,
Germaine procurava mostrar-se à vontade, mas na verdade pouco conseguia.
Afinal, era aquele o primeiro contato que mantinha com a família de seu noivo,
e seus conhecimentos da língua italiana ainda eram muito limitados. Mas, apesar
das dificuldades iniciais, aos poucos foi se desinibindo. Assim que percebeu
que havia sido bem aceita por todos, Germaine sentiu-se encorajada.
Há
muito que a família Spata não passava um domingo tão feliz, pois, até aquele
momento, nenhuma notícia triste havia sido dada e nenhum fato amargo havia sido
comentado. Parecia até que todos que ali se encontravam procuravam cumprir um
pacto previamente combinado: a felicidade deveria ser mantida a todo custo, ao
menos até o amanhecer do dia seguinte.
Ao
cair da tarde houve surpresa e emoção. Surpresa todos tiveram quando Giacomo,
ao abrir uma de suas malas retirou dela, para cada um de seus parentes, uma
pequena lembrança. A emoção ficou por conta do reencontro entre pai e filho. Ao
entrar em seu quarto para guardar um corte de seda pura que Giacomo lhe presenteara,
dona Benedetta percebeu que o marido já havia acordado.
-
Hoje é um dia muito feliz para todos nós, meu velho - falou ela, procurando
medir as palavras. Temos quase toda a nossa família reunida aqui, inclusive uma
pessoa muito querida e esperada, que nos trouxe presentes e uma surpresa muito
agradável.
Um
brilho quase imperceptível cintilou nos olhos do velho Giuseppino. Se não lhe
foi possível de imediato transmitir alegria, era evidente a angústia em seu
olhar. Ele parecia ansiar pelo final da notícia.
-
Não, meu velho, não desejo prolongar sua angústia fazendo suspense. Quero
apenas prepará-lo para que a emoção não lhe seja prejudicial.
Dona
Benedetta respirou fundo, fez uma pequena pausa, e continuou.
-
Nosso bom Deus está nos devolvendo hoje Giacomo, seu filho querido. Ele está
forte, sadio e mais bonito e feliz do que nunca. Desejo que a presença dele em
nossa casa devolva a você, meu querido, a alegria de viver - e falando em
direção da porta entreaberta, completou num tom de voz mais elevado! Entre,
filho. Seu pai o espera.
Procurando
conter o peso de seu corpo e sua emoção, Giacomo entrou no quarto pisando
suavemente o chão de tábuas corridas. Os olhos do velho Spata estavam agora
embaçados pelas lágrimas da alegria. Giacomo entendeu desta forma e, liberando
toda a emoção, colocou-se de joelhos à cabeceira da cama e chorou copiosamente
ao deitar a cabeça no peito de seu pai. Dona Benedetta, que rezava baixinho,
abandonou a cena deixando os dois a sós.
Uma
eternidade se passou até que Giacomo reapareceu na sala, pois foi assim que
todos que ali estavam sentiram.
-
Venha, meu amor - disse ele, para Germaine - papai está louco para conhecer
você.
De
mãos dadas com ela, Giacomo voltou ao quarto do pai.
-
Se você pensou que eu estava exagerando, veja com seus próprios olhos. Pois
bem, eu fiz isso para mostrar aos franceses que seria capaz de roubar deles a
mulher mais bonita de toda a França - e olhando para Germaine, acrescentou:
Cuidado, não chegue muito perto dele, pois este velho assanhado tem a mania de
beliscar o traseiro de moças bonitas.
Germaine
sorriu. Descontraída, caminhou com elegância em direção à cabeceira da cama e
beijou suavemente a face de Giuseppino.
-
Molto piacere - disse ela.
Nos
olhos do velho, um brilho intenso. Em seu pulso esquerdo, um novo relógio,
presente de Giacomo que, naquele momento, era capaz de jurar que o pai estava
feliz.
A
tarde foi curta para as conversas dos adultos e as brincadeiras das crianças.
Enquanto no quintal os brinquedos franceses faziam sucesso, na sala, diante de
uma platéia atenta e curiosa, Giacomo narrava, com certo orgulho, os principais
momentos vividos por ele ao longo daqueles cinco anos. Era flagrante à Germaine
a maneira com a qual Giacomo procurava suavizar os fatos dramáticos, ao mesmo
tempo em que colocava maior ênfase no lado romanesco de sua aventura.
A
noite chegou entre risos e vozes. Após o jantar, foi a vez de Germaine
surpreender a todos, oferecendo a cada um uma miniatura em bronze, de
aproximadamente oito centímetros, da torre Eiffel. Naquela hora ela não tinha
mais dúvidas. Estava certa de que havia conquistado a simpatia de todos.
A
família Spata representava um pequeno pedaço da Itália capturado pela França.
Giacomo comandara aquela invasão bem assessorado por Germaine. Fazendo uso de
armas mortíferas tais como reconhecimento do governo francês por atos de
bravura e presentes representativos, não foi difícil aos dois, herói e heroína,
a conquista definitiva de mais de uma dezena de corações enfraquecidos. Naquela
noite, uma pequena parte do solo genovês acabara por capitular. O domínio
francês se fez presente até na atmosfera, pois o ar que respiravam estava
impregnado do mais puro perfume francês. Quatro, das mais famosas marcas,
emanavam dos corpos de Silvana, Gina, Mônica e Carina. Podia-se sentir também,
misturado aos perfumes, o aroma agradável do fumo marroquino, embalado na
França. O cachimbo "Made in England", na certa iria enriquecer a já
valiosa coleção da qual Angelo tanto se orgulhava de possuir. Giacomo
conseguira trocar seu punhal, com cabo de madrepérola, pelo cachimbo de um
oficial inglês. Naquela noite, provavelmente sem se aperceber do motivo,
Giovanni fumava mais do que o habitual e evidenciava o prazer que sentia ao
acender seus cigarros com o isqueiro francês que o irmão lhe dera.
-
Por não ter sido informado a tempo a respeito do casamento da irmã Carina com o
jovem Ferraro, Giacomo não lembrou de trazer nada de especial para o mais novo
integrante da família Spata. No entanto, habilmente, reparou o que poderia ter
sido um esquecimento, presenteando-o com uma caneta tinteiro, que ele, Giacomo,
havia comprado para seu uso pessoal.
Às
nove horas da noite, Angelo, Gina e os filhos do casal despediram-se dos
demais. As crianças já estavam sonolentas depois de um dia de muita agitação.
Ao beijar Giacomo, Gina falou ao seu ouvido:
-
Precisamos conversar - e subindo o tom de sua voz, acrescentou - você e sua
adorável francesinha serão nossos convidados para o almoço de amanhã.
Dona
Benedetta já havia preparado as acomodações para os recém-chegados. Apesar de
saber do grau de intimidade existente entre os dois resolveu separar o casal
por causa das crianças, principalmente. Sendo assim, colocou Germaine com
Silvana e Mônica, suas filhas solteiras, no quarto que a elas pertencia,
enquanto Giovanni dividia o seu com Giacomo. Ferraro e Carina continuariam no
quarto que fora preparado para o casal. Ela, Benedetta, ficaria com o marido e
os três netinhos no quarto maior da casa.
Pela
expressão cansada no rosto de cada um podia-se notar que aquele dia chegara ao
fim e, muito antes da meia-noite, já estavam todos recolhidos aos seus
aposentos.
No
silêncio da noite, para quem não está com sono, pequenos ruídos ganham enormes
proporções. O ressonar de Giovanni e o tic-tac cadenciado de seu despertador de
cabeceira, foram motivos mais que suficientes para expulsar Giacomo do quarto e
fazê-lo ir esticar-se na velha espreguiçadeira da varanda. Apesar de fatigado,
suas preocupações não o deixavam pegar no sono. A temperatura baixara um pouco,
mas ainda assim, soprava uma brisa agradável. Uma parte da cidade de Gênova
estava ali, diante de seus olhos e um pouco abaixo de seus pés. As ruas estavam
desertas de carros, de gente e de ruídos. O silêncio seria total não fosse o
farfalhar das folhas ao vento. Para Giacomo a visão pareceu bela e ao mesmo
tempo angustiante. Sentiu uma sensação de abandono. Era como se toda a cidade
tivesse virado as costas para ele e, adormecida, ficasse alheia à insônia que o
dominava. Mas, de repente, Giacomo percebeu que não estava tão só. Espalhados
pelos quatro cantos de Gênova, uma infinidade de pontos luminosos mantinham-se
em vigília. Aquela incontável quantidade de lâmpadas acesas não podia dormir.
Eram os olhos noturnos da cidade.
Giacomo
não ouviu os passos vindos do interior da casa, mas alguma coisa, talvez o
instinto, o fez olhar em direção à porta que ligava a varanda aos demais
cômodos. Um vulto de mulher encostado ao portal parecia que já estava ali há algum
tempo a observá-lo. Ele esfregou os olhos com as costas das mãos para ver
melhor, e antes que dissesse algo, Germaine falou:
-
Alô... posso invadir sua privacidade? - sua voz era doce.
-
Bem, já que ela foi invadida, pode me dizer o que está fazendo acordada ainda a
esta hora? - a voz de Giacomo demonstrava preocupação.
-
Posso. Eu estava dormindo e, de repente acordei com sede. Ao voltar da cozinha
percebi que a porta da varanda estava aberta...
-
E se eu fosse um perigoso ladrão, exímio arrombador de portas?
-
Eu estaria apaixonada por você do mesmo jeito.
O
sorriso de Giacomo foi abrangente. A resposta inteligente de Germaine seria a
causa, e a proximidade dela, o efeito. Num impulso ele segurou a mão dela e a
beijou ternamente.
-
Dentre tantas, uma de suas virtudes me encanta profundamente...
-
Qual?
-
Seu destemor... Será que existe algo capaz de amedrontá-la?
-
Claro que existe.
-
O que, por exemplo?
-
Temo um dia perder seu amor. Não sei ainda se serei uma mulher capaz de fazê-lo
feliz...
Giacomo
sorriu mais uma vez de felicidade. Houve um breve momento de silêncio enquanto
ele acendia um cigarro. Depois de expelir a fumaça da primeira tragada, falou:
-
Não aceito, de uma mulher que costuma adivinhar meus pensamentos, que consegue
antecipar-se aos meus desejos e necessidades, este tipo de temor. Há momentos
atrás eu estava aqui mergulhado na mais profunda solidão, pensando em nosso
futuro, quando você chegou. E sabe, não foi coincidência não. Foi o desejo que
senti de tê-la a meu lado...
-
Eu entendo, e acredito nisso também. A sede que me fez acordar foi pretexto. A
água não mata a sede de viver. Este desejo que sinto de viver intensamente,
cada momento, a seu lado, para sonharmos juntos com o nosso futuro...
-
Você já sonhou com ele alguma vez? - Giacomo interrompeu.
-
Sim, e foi um sonho maravilhoso!
-
E quando isto aconteceu?
-
Em Paris, poucos dias antes de você regressar dos campos de batalha.
-
Será que nós vamos ser ricos?
-
Se a riqueza a qual você se refere for a mesma que desejo para nós, estou certa
que sim. Meu sonho foi repleto de simbologia e eu tive depois que
interpretá-lo. Nele não me foi dado o direito de ver joias, mansões e iates e
sim o conforto mais que satisfatório para uma vida tranquila, e com muito amor.
Não iremos usar meios escusos para enriquecer. Não será através de falcatruas,
de jogo, ou até de um simples bilhete premiado de loteria que iremos obter
fortuna. Venceremos com a ajuda da fé inabalável, e do pensamento positivo. Da
união do trabalho com o amor e a paz. Matéria e espírito caminharão juntos e
seremos ricos duplamente.
-
Você seria capaz de lembrar de algum detalhe que em seu sonho tenha lhe chamado
mais atenção? - perguntou Giacomo.
-
Espere um pouco - disse ela. Ah, sim, claro - falou, como se estivesse revendo
as imagens de seu sonho - um detalhe deixou-me ao mesmo tempo curiosa e
preocupada...
-
Qual?
-
O país... sim, o país em que nós íamos viver...
-
E você será capaz de me dizer agora o nome do país?
-
Não, porque não pude, no sonho,
identificá-lo precisamente. No entanto, posso assegurar que não era na França,
e quando você me fez ver que deveríamos vir para a Itália para nos casarmos,
fiquei feliz com a ideia.
-
Parece que seu sonho começa a fazer sentido. Será que você já consegue
identificar a Itália como o país do nosso futuro?
-
Ainda não. Chegamos há algumas horas, apenas. Deixe-me conhecer um pouco mais a
sua terra para que eu possa compará-la melhor com a que vi em meu sonho, está
bem?
Giacomo
assentiu com um movimento de cabeça. Germaine de pé, por trás da velha
espreguiçadeira, começou a massagear suavemente os ombros dele.
-
Como você consegue isso? - perguntou Giacomo.
-
Isso o que?
-
Colocar suas mãos sempre no lugar certo e na hora exata?
-
Isso é muito fácil. Minhas mãos obedecem ao comando do meu cérebro que no
momento me diz que você está muito tenso. A fadiga e a preocupação lhe tiraram
o sono. Gostaria que compartilhasse comigo suas preocupações. Penso que, no
momento, não é apenas nosso futuro que o preocupa, é?
-
Nosso futuro está agora muito ligado ao de minha família e algo me diz que as
coisas não vão muito bem por aqui, não obstante termos tido uma bela recepção e
um dia maravilhoso!
-
Por enquanto você só tem suposições. Não devemos nos antecipar aos problemas
quando não temos os meios de evitá-los. Possivelmente amanhã Gina o porá a par
dos acontecimentos. Se problemas existem, e todas as famílias os têm, estarei a
seu lado para ajudá-lo a resolvê-los, cada um a seu tempo. Tente agora relaxar
e procure dormir para poder enfrentar o amanhã com energia restabelecida.
-
Você tem sempre razão. Afinal o monstro poderá não ser tão feio como estou
imaginando, não é verdade?
-
Bem, já que concorda em deixar para pensar amanhã em sua família, poderá me
dizer se ainda ficou algo em sua cabecinha capaz de lhe roubar o sono?
-
Como o que, por exemplo?
-
Como uma dúvida que o está angustiando e que, provavelmente, está tirando sua tranquilidade
tanto, ou mais, que os problemas que porventura sua família esteja passando...
-
Dúvidas? Quem não as tem, depois de atravessar uma guerra e conviver
intimamente com a morte coletiva? Claro que carrego muitas dúvidas em minha
bagagem... No entanto, parece que você quer adivinhar qual, entre tantas, a que
mais me angustia, não é?
-
Não preciso adivinhar coisa alguma, pois bem sei qual a dúvida que o está
corroendo neste momento... O fato que a fez gerar ocorreu durante a guerra, é
bem verdade, mas poderia ter acontecido em tempo de paz, quando esse tipo de
coisa também é bem frequente. No entanto, a guerra, que sempre foi a mãe dos
fracos, jamais deixou de proteger seus filhos com o manto negro da desculpa...
-
Devo ter cometido algo monstruoso do qual não consigo me lembrar... É isto que
está tentando me dizer?
-
Não, estou querendo ajudá-lo. Você não é um monstro nem um fraco, muito embora
ninguém consiga ser forte o tempo todo.
-
O que sou, então? Ou melhor, o que fiz?
-
Você é um homem, e fez o que os homens costumam fazer.
-
Então não fiz nada de errado?
-
Para um ser humano vulnerável, não.
-
Mas de alguma coisa você está tentando me acusar...
-
Não estou aqui como juíza de seus atos. Estou apenas tentando fazê-lo aceitar
um deles. Justamente aquele que fez gerar a dúvida maior. Dúvida esta que, se
não esclarecida a tempo, poderá se transformar num monstrengo capaz de
atormentá-lo pelo resto de sua existência.
-
Se o que fiz foi durante a guerra, o fiz em nome da paz...
-
Tudo? - perguntou ela em tom irônico.
-
Tudo - afirmou Giacomo com convicção.
Depois
de sorrir maliciosamente, Germaine acrescentou:
-
Se foi em nome da paz, não sei, mas posso assegurar-lhe que o que fez, o fez
num momento de paz.
-
Por que você não para com este jogo de palavras e não diz logo aonde quer
chegar?
-
A Nice, por exemplo - falou Germaine com decisão.
Houve
um momento de silêncio de certa forma constrangedor. Giacomo ficou com a mesma
expressão, no rosto, que ficaria uma criança ao ser flagrada ao passar o dedo
no glacê de um bolo.
-
Por que em Nice? - perguntou ele com certo temor.
-
Porque foi de lá que você trouxe a tal dúvida que tenho tentado me referir.
Ondine seria a pessoa melhor indicada para falar sobre este assunto. No
entanto, no momento oportuno, ela não o fez devidamente. Prefiro até acreditar
que, ao tentar esclarecê-lo, Ondine não conseguiu ser suficientemente
convincente. Por isso a dúvida perdura, e agora estou pronta a tirá-la de sua
cabeça para sempre, se é isto o que deseja, é claro.
-
Até quanto você sabe sobre o que aconteceu em Nice?
-
Penso que quase tudo, pois Ondine não conseguiu me esconder a verdade, muito
embora tenha tentado. Em determinados assuntos as mulheres conseguem ser
solidárias umas com as outras. Como é mesmo o nome da filhinha de Ondine?
-
Gina.
-
E como se chama a irmã que você mais gosta?
-
Eu amo todas as minhas irmãs.
-
Acredito. No entanto, um dia você me segredou que Gina era a sua irmã
predileta... Quem sabe você deixou transparecer isso a Ondine também?
-
Tudo isso não passa de...
-
Coincidência? - interrompeu Germaine. Claro que não. Foi a maneira que Ondine
encontrou para agradecer a você um momento de ternura, vivido por ela na fase
mais árida de sua vida, segundo suas próprias palavras.
-
Você está tentando afirmar que Gina é minha filha?
-
Pode ter certeza disso. E que bela e inteligente criança!
-
E por que Ondine negou todo o tempo a minha paternidade?
-
Por orgulho, provavelmente. Por entender que assim estava não só protegendo
você como a criança ao mesmo tempo. Por renúncia também. Ela preferiu renunciar
a sua proteção...
-
Por que?
-
Por entender que o que houve foi uma simples e única relação sexual e não um
caso de amor. Ela afirmou-me e me fez crer que não o ama, e que não acredita
que você sinta amor por ela... Ou será que sente?
-
Claro que não - apressou-se ele em responder. Eu sinto apenas compaixão e um...
-
Complexo de culpa? - completou Germaine.
-
De certa forma, sim. Não posso negar também que me apeguei à menina, nos poucos
momentos que estive com ela. Meu instinto me disse que aquela garota era minha
filha. Eu tinha o direito de saber da verdade.
-
Em momento algum pretendi questionar seu direito. Penso até que antes de você
fazer uso de seu instinto, minha intuição feminina já me alertava para os
agentes inibidores e constrangedores que por lá pairavam no ar. Em momento
algum Gina chegou a ser a minha maior preocupação. Aceito até o fato de ter
sido um tanto egoísta e ciumenta, mas, na verdade, minha grande preocupação foi
tentar descobrir o que se passava dentro de dois corações que pulsaram forte ao
conceber aquela bela criança. Durante algum tempo fiquei dividida: não sabia se
retornava a Paris, ou seguia viagem para Gênova.
-
E quando e o quê a fez tomar a decisão?
-
Quando entendi que nossa separação seria um erro maior. Nós, os quatro
envolvidos diretamente, só teríamos a perder...
-
Você tem certeza do que está dizendo?
-
Certeza absoluta, não. No entanto, prefiro acreditar na lógica do meu
raciocínio, no relato de Ondine que me pareceu sincero, e no seu amor por mim,
que em momento algum deixei de acreditar.
-
Sempre ouvi dizer que a mulher costuma ser um pouco complicada, no entanto, até
aqui, você não fez outra coisa senão facilitar minha vida. E sabe porque você
costuma acertar sempre?
-
A vida ainda não me deu tempo para que eu pudesse fazer uma análise de mim
mesma...
-
Pois vou tentar lhe ajudar: você sempre procurou ver o lado bom da vida; você
sempre procurou a verdade, mesmo quando esta chega até você no invólucro da
mentira. E o mais importante de tudo é que você sempre acredita demais em si
mesma.
-
Se é assim que me vê, não vou negar que tudo isso possa me ajudar a tomar
decisões acertadas. No entanto, você esqueceu que, antes de tomar qualquer
decisão, vou até a fonte de minhas inspirações...
-
Deus?
-
E quem mais poderia ser? A Ele rezo. A Ele entrego minhas decisões...
-
Mas você é um ser humano, e nós humanos contamos sempre com uma margem de
erro... Se uma de suas decisões não for correta?
-
Foi porque não tive fé suficiente na hora de pedir ajuda...
-
Mas você não entrega sempre a Deus suas decisões?
-
Entrego, e Deus jamais erra. Mas você não pode esquecer que Ele nos dá livre
arbítrio. Quando optamos por uma decisão errada, temos que responder por nossos
erros.
-
E se uma decisão errada motivar uma situação irreversível?
-
Não existe situação irreversível para Deus. Entretanto, se Ele não me achar
digna de Sua ajuda, só caberá a mim assumir corajosamente a autoria do erro e
mostrar-me, diante de Deus, sinceramente arrependida.
-
Por que você encontra sempre resposta para tudo?
-
Porque as respostas existem e é só você escolher a que julgar acertada, ou a
mais conveniente para cada ocasião...
-
Bem, já que existe amor entre nós, penso que podemos, de certa forma, antever
nosso futuro. Gostaria, no entanto, que você me dissesse como deverá ficar
Ondine depois de tudo isso?
-
Só posso dizer que ela permanecerá com seu orgulho preservado. Ondine não é
mulher capaz de viver de compaixão. Ela me pareceu muito segura e penso que
saberá conduzir sua vida com dignidade.
-
Ondine não me pareceu ser uma mulher feliz. Será que ela irá um dia encontrar a
felicidade?
-
A felicidade existe, mas é algo muito complexo. Ela vive dentro de cada um de
nós. Assim eu penso, e cabe a nós encontrá-la. Pessoas, bens e acontecimentos
que poderiam me tornar feliz, não tornariam feliz, provavelmente, uma outra
pessoa. Cada ser humano tem seus próprios anseios. Por isso o ideal de
felicidade torna-se tão complexo e relativo.
-
Você acredita que uma pessoa poderá ser feliz só por desejar ser feliz?
-
Claro que não. A vida é feita de bons e maus momentos. Cabe a nós detectar os
momentos felizes e vivenciá-los intensamente, procurando não supervalorizar os
momentos infelizes. Existem pessoas negativas que preferem ficar remoendo os
maus momentos, ao invés de relembrar os bons que já viveu. Para essas a
felicidade fica mais difícil de ser encontrada. Uma pessoa poderá ser feliz se
acreditar que está sendo feliz.
-
É tão simples assim?
-
Se fosse simples, todas as pessoas seriam felizes. Já que a felicidade é um
sentimento complexo, cabe a nós estudá-lo. A maioria das pessoas, por
incapacidade, fraqueza ou preguiça, procura não se preocupar com o assunto.
Costumam deixar a vida passar por elas oferecendo bons e maus momentos
aleatoriamente.
-
Quer dizer, então, que existe receita para a felicidade?
-
A felicidade é doce, mas não é um bolo. Claro que não existe receita. Existem
caminhos. O principal é o caminho da fé em Deus, o de crer em nossas
potencialidades e em nossos semelhantes.
-
E quais os outros caminhos, se é que existem?
-
Quando se encontra o caminho da fé, os outros vão surgindo diante dos nossos
olhos. Existe, por exemplo, o caminho do saber: saber escolher o que se quer
ser, o que se quer fazer, onde viver e o que pretende colher para depois, sim,
saber encontrar o momento e o local ideais para plantar. Agindo assim, acabará,
por certo, colhendo os bons frutos da vida.
-
Por que você diz que a felicidade é complexa?
-
Eu não disse isso. Disse, isto sim, que era um assunto complexo. A felicidade é
uma só, é igual. O ser humano é que é complexo. Não existem duas pessoas
totalmente iguais. Logo, para cada uma delas, vão existir dois tipos de
felicidade: para uma, a felicidade está no ar puro do campo; para a outra, no
ar carregado de uma grande metrópole, por exemplo.
-
Penso que entendi sua teoria sobre felicidade e peço que Deus ilumine Ondine e
minha filha Gina para que ambas comunguem do mesmo conceito de felicidade que
você defende, minha querida. Como pai, gostaria de ajudar minha filha a
descobrir o caminho de sua felicidade...
-
Você não é o pai. O pai de Gina é Walter, o herói de guerra. Lamento ter que
dizer isso, mas é a pura verdade. Você foi apenas um pai acidental, que
forneceu o espermatozoide reprodutor. Walter foi o pai que ela conheceu. Foi
quem lhe deu amor e bons exemplos nos primeiros e mais importantes anos de sua
vida. Através dessas duas forças Gina cresceu feliz e sadia. Através de uma
mentira, ela se fez verdade. Você talvez não saiba o quanto já a ajudou. Gina
tem adormecido embalada por uma doce mentira e se tornará, adulta, a imagem do
pai que conheceu. Se fosse a ela agora revelada a verdade seus sonhos poderiam
se transformar em pesadelos. Gina ainda é muito criança para entender e aceitar
uma brusca inversão: a troca de uma verdade mentirosa, por uma mentira verdadeira.
Pode ficar certo, Giacomo, que sua renúncia, mesmo que involuntária, no momento
será benéfica àquela criança. Quanto ao lado material, posso adiantar que boa
parte das despesas da menina já está sob controle...
-
Como assim?
-
Pouco antes de nossa partida fiz com que Ondine aceitasse uma pequena ajuda.
Deixei com ela uma das mais valiosas joias que recebi de presente do Coronel
Kurt Staden.
-
Estou confuso, Germaine. Mais uma vez você se antecipou a mim. Não sei se isto
é bom ou ruim. Você lembrou de pensar no meu ego, na minha vaidade, no meu
orgulho? Quando vou poder resolver meus próprios problemas sozinho?
-
Quando você estiver sozinho. No momento entendo que seus problemas são também
meus e vice-versa. Se temos um problema, entendo que ele deva ser solucionado
por quem primeiro encontrar a solução. Não importa que seja eu ou você.
Perdoe-me, querido, mas esta é minha maneira de pensar.
-
Continuo confuso, mas penso que talvez você esteja com a razão.
-
Seu lado machista faz com que, por vezes, não enxergue o óbvio. Você já
esqueceu dos problemas que resolveu por mim, quando eles eram estritamente
meus? Eu pedi para você me separar de Kurt? Aquilo foi um rapto, sabia? E se eu
estivesse amando aquele coronel nazista?
Era
inútil continuar a falar. Giacomo sabia e, por isso, sorriu. Aquele seu sorriso
franco tinha o significado de um parágrafo. Ficar em silêncio por alguns
momentos e, depois, mudar de assunto era, para ele, o melhor caminho.
A
aragem cálida foi aos poucos sendo substituída pela friagem da madrugada.
-
Seu corpo está frio - falou ele, ao abraçar Germaine.
-
Meu frio está apenas na casca.
-
Eu sei disso. Seu interior você mantém sempre aquecido. Agora sinta o meu
corpo.
-
O que tem ele?
-
Está ardendo de desejo. Quero possuí-la agora mesmo, ali, sobre a relva
molhada. Quero gemer e gritar de amor...
-
E fazer-me gritar também?
-
E por que não?
-
E acordar toda a sua família, escandalizando-os um a um?
-
Sim.
-
É sem dúvida uma proposta tentadora. Mas onde iríamos nos hospedar depois? Você
ainda encontraria forças para carregar nossa bagagem?
-
Penso que não.
-
Então não acha melhor irmos dormir e acumularmos forças para o novo dia que
está para nascer?
-
Minha proposta é mais tentadora que a sua, no entanto, a sua é mais coerente.
Giacomo
e Germaine beijaram-se na boca. Foi um beijo calmo como a madrugada. De mãos
dadas entraram casa a dentro sem fazer ruídos. Separaram-se com gestos ternos.
Aquela noite terminou ali.
CAPÍTULO 40
A situação da família Spata
-
Onde está Luciana? - perguntou Giacomo, ao ver Gina limpando um peixe.
-
Não pude me dar ao luxo de mantê-la como nossa empregada. Ela agora está
trabalhando na residência de um famoso banqueiro. Vez por outra vem nos
visitar. É muito agradecida por tudo que fizemos por ela, e diz que ama nossos
filhos.
-
Onde está seu piano de cauda. Não o vi na sala...
-
Tivemos que vendê-lo assim como alguns outros objetos de valor. Ficamos apenas
com o essencial. Não somos mais ricos, esta é que é a verdade.
-
E como tudo isso aconteceu?
-
A partir da morte de Mussoline, Angelo passou a sofrer muitas pressões. Quando
as dívidas começaram a surgir, os créditos foram sendo cortados. Ele ainda
tentou negociar com agiotas, mas isso só fez piorar a situação. Quando
começaram a surgir ameaças à nossa integridade física, Angelo entrou em pânico,
e resolveu vender, por valor irrisório, a parte que lhe cabia em seu negócio.
-
Parte? Angelo não era o único dono de tudo?
-
Nunca foi, e este detalhe só eu sabia. Ele sempre aparentou ter tudo sob seu
controle. Demonstrava ter plena liberdade para agir. No entanto, por trás de
tudo havia, entre outros, um graduado funcionário do governo fascista
interessado no negócio. Era um político corrupto e muito poderoso...
-
Ele entrou com dinheiro na sociedade?
-
Não, e nem precisava. Suas influências políticas representavam seu capital.
Através de seu prestígio Angelo era beneficiado por certas isenções fiscais.
Conseguia crédito ilimitado nos bancos do governo. Ganhava a maior parte das
concorrências públicas. Na verdade, as que realmente interessavam. E, de
quebra, possuía facilidades para importar, e exportar o que produzia. Seus mais
sérios concorrentes, ao contrário dele, sofriam fiscalizações rigorosas,
sanções injustas e pressões diversas. Quando não pediam falência, procuravam
sobreviver aceitando a firma de Angelo como intermediária para seus negócios.
Em suma, Angelo, em Gênova, era quase que absoluto.
-
E por que Angelo aceitou tal tipo de proteção?
-
O monopólio é a meta de qualquer grande negócio. A ambição procura armar-se com
as mais poderosas armas que possa dispor. Angelo sabia que se não aceitasse
esse tipo de parceria, seu concorrente imediato aceitaria na certa. Era pegar
ou largar e mudar de negócio para não sucumbir. Quando governo e corrupção
caminham juntos, irmanados, você tem que aprender a conviver com ambos, se
deseja realmente chegar ao topo. Angelo sempre quis ser o maior.
-
E como está a situação de vocês, agora?
-
Não está de toda má. Temos conseguido passar sem o supérfluo. A adaptação à
nova vida foi, para nós, mais fácil do que esperávamos. Chegamos à conclusão de
que o luxo e a ostentação são dispensáveis à felicidade. Já não vivemos sob o
peso da tensão de despencar de uma grande altura. Hoje, com os pés no chão,
entendo que os ricos poderiam viver com mais simplicidade.
-
Você está sendo sincera, ou...
-
Estou sendo honesta - interrompeu Gina. Não sinto inveja daqueles que
conseguiram se manter no topo, nem mesmo dos que agora estão conseguindo chegar
a ele. Não existe mais nenhum vestígio, de minha parte, de mágoa, ódio ou
revolta. Estou de bem com Deus que me deu três diferentes tipos de vida para
que eu pudesse aprender a lição. Fui pobre, como você sabe, até me casar com
Angelo. Depois, através dele, fui ficando cada vez mais rica. E hoje estou bem,
pois vivemos dentro de uma simplicidade confortável.
-
Você não sente falta das coisas que perdeu, como o piano, por exemplo?
-
Gostaria que as crianças tivessem aprendido a tocar, mas logo tive que desistir
diante da resistência delas. Angelo adora piano, mas nunca teve tempo para
abri-lo sequer. Eu, apesar de gostar, nunca levei jeito. Portanto, caro irmão,
nosso valioso piano de cauda nunca passou de um luxuoso adorno a ocupar espaço
em nossa sala. O luxo e a ostentação só servem para impressionar e agredir aos
menos favorecidos. Fazem despertar a cobiça, a inveja, o ódio. De repente, para
viver, acabamos por descobrir uma irônica verdade: nós, os ricos, é que
precisamos de mais proteção.
-
De certa forma, sim - endossou Giacomo.
-
Os ricos - continuou Gina - são o eterno alvo para roubos, assaltos, raptos, sequestros.
Nossas crianças, por mais que tenhamos cuidados, tornam-se as vítimas
preferidas da maldade humana. E assim, vivemos sempre dentro do estigma do
medo: medo de perder o poder; medo de perder as boas coisas da vida, e medo de
perder a própria vida. De repente, percebemos que passamos até a sentir medo de
um dia deixar de ter medo. Mas, aos poucos tudo foi se modificando e passamos
para a condição de vítima. E acabou sendo boa a troca de papéis: de vilão
passamos a mocinho. E agora, por tudo que já falei, pelo lado cristão e
humanitário que de repente tínhamos esquecido, entendo que a modificação de
nosso estilo de vida nos tenha sido benéfica.
-
Você está falando por você. E Angelo, como vê tudo isso?
-
De certa forma ele pensa como eu, embora eu saiba que existe uma pequena
diferença. Angelo recebeu dois profundos cortes: um, em grande parte de sua
fortuna, e outro, no seu ideal; e o segundo corte está custando a cicatrizar.
Mas no fundo ele é uma boa pessoa. Um ser humano honesto, trabalhador e
competente. Bom filho, bom marido e pai extremoso. Por tudo isso, tem recebido
ajuda dos verdadeiros amigos. Estou certa de que se não recuperar boa parte do
que perdeu, com seu valor e tenacidade, muito em breve estará atingindo seu
próximo ideal.
-
E o que mais o preocupa no momento?
-
Nossa família... Ele não se conforma em não poder ajudá-la como sempre o fez,
aliás.
-
E estamos tão mal assim, que não podemos prescindir da ajuda dele?
-
De certa forma, sim, e isto porque nós nos acostumamos a depender de Angelo.
Ele sempre foi nosso grande protetor. A dependência, em alto grau, faz do
dependente um impotente e ele acaba por se acomodar.
-
É certo, mas esse mal precisamos combater. Voltei com o firme propósito de
ajudar no que for possível, é claro. No entanto, diante das circunstâncias,
espero que você me ajude a ajudá-los...
Ficariam
conversando por mais tempo não fosse a chegada de Angelo, que agora vinha
almoçar em casa e pegar as crianças para levá-las ao colégio. Durante todo o
tempo em que os irmãos conversaram Germaine ficara apenas como ouvinte e foi de
grande utilidade no preparo do almoço e na arrumação da mesa.
-
O almoço está pronto, querida? - perguntou Angelo, ao mesmo tempo em que
beijava a esposa no rosto.
-
Está, mas você deve agradecer isto a Germaine. Ela foi hoje o meu braço direito
e esquerdo também...
-
E você, o que fez?
-
Tagarelei o tempo todo com seu cunhado. Afinal, tínhamos muito o que falar...
-
Da próxima vez que convidar Germaine para almoçar em nossa casa, estou seguro
de que ela pensará duas vezes.
Riram
todos.
O
frango recheado ficara delicioso. Houve uma verdadeira confraternização entre
os temperos franceses e italianos no interior daquela ave dourada pelo forno. A
salada de aspargo também foi muito elogiada, assim como o pudim de queijo.
Depois
de beber um cálice do licor digestivo predileto, e de dar algumas baforadas no
seu cachimbo inglês, Angelo voltou ao trabalho, deixando antes as crianças no
colégio.
-
Você não me disse ainda em que Angelo está trabalhando.
-
Faz o mesmo que fazia antes, só que agora trabalha para um patrão. Ele continua
administrando a fábrica de conservas e a frota pesqueira.
-
Ele não sentiu constrangimento em trabalhar como empregado no mesmo lugar em
que antes fora patrão?
-
No princípio sim, mas aos poucos foi se acostumando. Na verdade, ele sabe que,
com seus conhecimentos, irá colaborar muito para o enriquecimento do patrão,
mas só o fato de poder controlar e desenvolver o que antes era dele, lhe dá uma
sensação de poder. Com isso, em parte, vai podendo alimentar sua vaidade. Não
creio que exista alguém em Gênova que conheça mais de pesca e de sua
industrialização que Angelo, e ele tem consciência disso. Ele sabe, por
exemplo, que seu patrão, de certa forma, está em suas mãos...
-
Mas assim como Angelo aprendeu, outros poderão aprender também. Penso que
agora, com o fim da guerra, o mundo irá sofrer grandes transformações. Novas
técnicas poderão surgir e dentro desse processo evolutivo, poderá chegar um dia
em que os conhecimentos de Angelo já não serão tão imprescindíveis ao negócio.
O substituto é um ser vivo, embora invisível, que só costuma tomar forma no
momento oportuno...
-
Angelo é um ser evolutivo e de grande visão. É criador também. Ele já pensou em
tudo o que você acaba de me dizer, mas acredita que as novas técnicas demorarão
ainda um pouco a chegar. O mundo precisa respirar primeiro. Enquanto isso, ele
vai estudando novos métodos e desenvolvendo novas fórmulas. Ele tem capacidade
de se antecipar ao futuro para não se deixar surpreender.
-
Em algum momento ele chegou a pensar em outro negócio?
-
Não só pensou, como já está se preparando para ele.
-
Qual negócio?
-
Turismo. Berço das mais antigas civilizações, rica em monumentos históricos,
nossa terra será ainda, por muito tempo, um dos maiores, se não o maior centro
turístico da Europa.
-
E o que sabe Angelo sobre turismo?
-
Tanto o quanto sabia sobre pesca antes de começar no negócio. Em termos de
turismo, diante de um leigo, hoje ele já é professor. Mas, conhecendo Angelo
como penso conhecer, sei que logo conseguirá discutir sobre o assunto em pé de
igualdade com os maiores profissionais do ramo de todo o mundo. Mas, no
momento, ainda é a pesca seu assunto preferido. E sabe quando foi que Angelo
começou a se interessar por peixes?
-
Quando?
-
Dentro de um barco pesqueiro, no
dia de seu nascimento. Você já viu alguma criança
nascer cheirando a peixe?
Giacomo
sorriu e depois voltou a falar:
-
De repente turismo poderá passar a ser também assunto de meu interesse. Além de
seus parcos conhecimentos, o que tem Angelo para começar tal negócio?
-
O Gina D' Oro.
-
O mais importante barco de sua frota?
-
Sim. Este eu não deixei vender. Afinal estava no meu nome...
-
E onde ele está agora? Gostaria de vê-lo.
-
Está num estaleiro de um amigo nosso. No momento não temos dinheiro para os
reparos que se fazem necessários.
-
E há muita coisa a fazer?
-
Bastante... E olha que ele está num dique seco, pois penso que se estivesse
dentro d' água já teria se desmanchado.
-
Bem Gina, o importante agora é saber de que forma poderei ajudar nossa
família...
-
Bom, eu não sei se você voltou com
dinheiro suficiente, ou mesmo se é com dinheiro que nos pretende ajudar.
O que sei é que você trouxe da França duas coisas muito importantes e que já
estavam nos fazendo falta: amor e orgulho. Sim, Giacomo, o fim da guerra nos
abalou, moral e economicamente. Veja o caso de Giovanni, por exemplo: de herói
condecorado passou a ser visto como traidor da pátria, e por isso não consegue
arranjar emprego. Mônica é hoje uma mulher revoltada. Considera-se impura.
Esconde-se. Evita o mais leve contato com os homens e culpa nossos pais por ter
perdido a virgindade para um soldado alemão. Nosso querido Giuseppino procura a
morte inconscientemente, assim acreditam os médicos. Benedetta, nossa mãe, a
luz que iluminava nossos passos, apagou-se. Marcelo, nosso cunhado, afoga na
bebida a culpa de ter deixado Graziela escapar. Hoje entende o quanto a amou e
ainda a ama. Sem estímulos, vive de biscates e não encontra forças para um voo
maior. Salvam-se Carina e Ferraro que ainda estão envolvidos pelo mel que o
casamento oferece a todos os casais que julgam se amar. E, para completar, a
surpresa maior: Silvana. Sim, justamente ela, a feia e solteirona Silvana, que
buscava na religião a explicação para a fraqueza de seu espírito, e na Igreja,
o refúgio para o seu corpo, nos dá hoje uma lição de vida. Conseguiu emprego
num colégio do governo através de concurso e ainda arranja tempo para ser
"mãe" de muitas crianças órfãs de guerra, num orfanato mantido por
nossa paróquia com a ajuda de doações do comércio e da indústria local.
-
Você não me falou ainda de Graziela. O que faz ela em Roma?
-
Eis uma resposta difícil de dar...
-
Por que?
-
Bem, porque se explico o que ela faz, você não vai entender, e se explico
porque faz, você não vai aceitar.
-
Tente. Eu vou ter que saber mesmo, não é?
Prefiro ouvir de você.
-
Bem, Graziela não se separou de Marcelo de uma hora para outra. A separação foi
sendo processada lenta e conscientemente. Primeiro ela passou a cuidar-se e,
nesta parte, teve de mim toda a ajuda necessária. Frequentou os melhores
médicos, as melhores clínicas e institutos de beleza. Com uma dieta bem
balanceada e exercícios conseguiu emagrecer 30 quilos, sem afetar a saúde. Mais
magra, passou a se sentir bem melhor. Com a ajuda da ginástica e da massagem,
conseguiu evitar a flacidez. Esbelta, e com a pele cuidada, renovou-se. Ao
recuperar vaidade, orgulho e amor próprio, passou ela, também com minha ajuda,
a vestir-se com bom gosto e elegância e a frequentar os melhores lugares de
Gênova. Quanto mais se cuidava, mais desprezava o marido. Quanto mais bela
ficava, mais o ciúme de Marcelo crescia. Ao dar-se como pronta, rompeu de vez o
único elo que a prendia a ele: o sexo. Para ouvir propostas e galanteios dos
homens, bastava chegar à janela ou atender ao telefone...
-
E durante todo esse tempo, diante de tantas tentações, Graziela conseguiu
manter-se fiel ao marido?
-
Tenho certeza que sim.
-
Por princípios morais e religiosos?
-
Também, mas não apenas por isso. De início eu a ajudei porque pensei que tudo
que Graziela fazia era para reconquistar o marido. Muito depois foi que entendi
que o que ela fazia era com o intuito de vingar-se de Marcelo, por tudo o que
ele a fizera sofrer.
-
E quando foi que começou a entender desse modo?
-
A partir da transformação de Marcelo. Ele parou de beber e começou também a se
cuidar. Conseguiu progressos no emprego. Passou a viver exclusivamente para a
família. Chegava sempre em casa com dinheiro e presentes, ora para a mulher,
ora para os filhos. Atendia a todos os desejos de Graziela e, resignadamente,
aceitava todos os seus caprichos, por mais absurdos que pudessem ser. Enfim,
operou-se em Marcelo um verdadeiro milagre...
-
E o que mais desejava Graziela?
-
Esperava friamente o momento para desfechar o golpe fatal. Na verdade ela havia
se colocado numa vitrine à espera da melhor proposta. Graziela estava leiloando
sua própria beleza.
-
Estou temeroso e ao mesmo tempo curioso para ouvir o desfecho dessa história...
-
Bem, o principal aconteceu numa bela quinta-feira de sol, quando eu, Graziela e
as crianças fomos à praia. Havia pouca gente quando chegamos. O local era um
tanto afastado. No entanto, de repente, tudo se transformou. Uma parafernália
foi armada próximo de onde estávamos e logo depois viemos a saber que se
tratava de fotos publicitárias para o lançamento de um novo óleo bronzeador...
-
E daí?
-
Daí que Graziela quase rouba a cena das lindas profissionais contratadas para
posar. O diretor, senhor de aparência distinta, pediu licença a Graziela para
mandar tirar algumas fotos dela com as crianças. Depois das fotos tiradas,
trocaram endereços e ficou no ar a promessa de novos contatos.
-
E qual foi o resultado de tudo isso?
-
As fotos de Graziela foram as escolhidas pelos diretores da agência, pois duas
semanas depois ela recebeu pelo correio autorização para retirar passagem de
ida e volta para Roma, e a garantia de uma semana de trabalho por lá, com todas
as despesas pagas, conforme estipulava a cópia de um contrato financeiramente
compensador.
-
E ela, o que fez?
-
Depois de aconselhar-se com um advogado, conhecido da família, embarcou para
Roma três dias depois, principalmente porque a carta-convite ainda dizia que,
de acordo com os resultados dos testes a que ela deveria submeter-se, haveria
boas possibilidades de conseguir um contrato para fazer cinema em Cinecittà.
-
Parece um conto de fada! E o que aconteceu depois?
-
Bem, o contrato inicial foi cumprido integralmente. Ela teve uma semana com
todas as despesas pagas e ainda recebeu uma razoável soma em dinheiro por ter
posado para o comercial do tal óleo bronzeador, e foi só.
-
E fotos para novos comerciais?
-
Não houve mais convites.
-
E os testes para fazer cinema?
-
Ela os fez todos, durante longos meses, enquanto acreditou.
-
E como ela pode se manter durante todo esse tempo por lá?
-
Bem, quando o dinheiro dela acabou, ela aceitou fazer trabalhos menores...
-
Que tipo de trabalho?
-
O que eles chamam de fotos de nus artísticos para serem usadas em
calendários...
-
Já começo a imaginar o que veio depois...
-
É fácil imaginar. Quando a imagem de uma mulher começa a ficar desgastada,
vulgar, surgem convites para trabalhos sórdidos, tais como posar para fotos
pornográficas, acompanhar senhores respeitáveis a coquetéis, premieres e
convenções... Daí, meu irmão, para a prostituição total é mais um passo.
-
Quer dizer então que nossa irmã Graziela é hoje uma prostituta?
-
Não, mas já foi. Bem, na verdade ela continua no negócio, mas em outro nível.
-
Como assim?
-
Ela caiu nas graças de rico e influente político e hoje é proprietária de um
dos bordéis mais bem freqüentados de Roma.
-
Merda! Como isso pode acontecer!? Por que ela não desistiu de tudo quando
pressentiu que suas tentativas, válidas a princípio, não passavam depois de
pura fantasia?
-
E voltar derrotada, arrependida, para os braços de seu amado Marcelo? Ora, meu
irmão, se pensa que ela poderia ser capaz disso, é porque você jamais a
conheceu.
-
Quem, na família, sabe a verdade sobre Graziela?
-
Todos, exceto as crianças, é claro.
-
Até nosso pai?
-
Foi a causa de seu segundo derrame...
-
E quem foi o filho da puta que lhe deu a notícia? Por que não pouparam o pobre
velho disso?
-
Ninguém contou a ele. O que aconteceu foi um descuido imperdoável. Na noite em
que se deu o fato, papai estava em seu quarto dormindo profundamente, enquanto
nós, na sala, comentávamos sobre Graziela quase em sussurro. Ninguém viu quando
ele acordou e levantou-se para urinar. Desconfiado de nosso tom de voz, ele
escondeu-se atrás da porta e conseguiu ouvir o resto da história.
-
E qual foi a causa de seu primeiro derrame?
-
Como você já sabe, a notícia de seu desaparecimento, mesmo que suavizada
depois, o abalou profundamente. A partir dali adoeceu e recusou-se a tratar-se.
Com a notícia da morte de Mussoline, seu maior ídolo até então, ele caiu de
vez.
-
Sabe que eu também tive participação no que aconteceu a Graziela? E que, de
certa forma, me sinto responsável por tudo isso?
-
Bem, Graziela me falou a respeito dos conselhos que você deu a ela, um dia
antes de sua partida. Mas se sua participação foi essa, não se preocupe, meu
irmão. Não deve se culpar por isso. Minha participação foi bem maior e nem por
isso sinto remorso. As pessoas só fazem o que realmente desejam. Graziela se
pôs à beira do precipício e esperou que nós a empurrássemos.
Germaine
preferiu não dar palpite em tão delicado assunto de família. Enquanto os irmãos
conversavam ela aproveitou para ler alguns trechos de "Romeu e
Julieta", numa edição italiana. Muitas palavras ela não entendeu, mas não
se importou, pois já conhecia a obra.
Durante
as despedidas, Giacomo falou:
-
Ainda não sei como, mas sei que tudo farei para tentar mudar muita coisa por
aqui.
CAPÍTULO 41
Depois da farsa
Estela
foi uma boa ouvinte. Durante duas horas Bill falou sem parar. Excluindo suas
aventuras amorosas, falou sobre sua família, sobre sua infância no Encantado,
de sua ida para Copacabana e, evidentemente, da brusca mudança nos hábitos e
costumes. Antes Bill já havia falado de como tinha conhecido Estela, fato este
que não só motivou o desfile, como proporcionou a criação de Jean Louis
Marchand, o personagem misterioso.
A
farsa e a mentira, de braços dados, encantaram Estela que ouviu tudo com
admiração, chegando mesmo a dar boas risadas durante os trechos mais pitorescos
da narrativa.
-
Quer dizer então que todo aquele dinheiro que gastou comigo no "Napoleão
Bonaparte" voltou para o bolso de seu pai? - perguntou Estela.
-
Na mesma noite. Até o dinheiro das gorjetas - respondeu ele.
-
Agora compreendo porque seu pai não conseguiu tirar os olhos de nossa direção.
Na certa estava me avaliando... procurando ver se eu merecia tamanho
investimento - falou e sorriu.
-
E pra seu governo, papai gostou do que viu. E olha que ele tem muito bom
gosto... Você precisa conhecer mamãe...
-
Quem sabe, um dia? - E depois de uma pequena pausa, perguntou: E seu amigo
Baraúna, o que faz agora? Gostaria de conhecê-lo. Ele deve ser uma figura
incrível! Como foi que ele ficou depois de ter interpretado o papel do
costureiro francês?
-
Querendo provar sua masculinidade por qualquer motivo. Na verdade, o papel o
perturbou. Baraúna é judoca e briga bem. Apesar de baixo e franzino, consegue
viver de biscates fazendo segurança em clubes, bares e restaurantes.
Uma
garrafa de vinho nacional havia sido bebida durante a conversa, acompanhada de
biscoitos salgadinhos. Bill e Estela ficaram se admirando mutuamente, em
silêncio, por alguns momentos.
-
O vinho e o biscoito acabaram - disse ele, para quebrar o silêncio - e nada
mais tenho a oferecer, lamentavelmente.
-
Não se incomode - falou ela, e perguntou em seguida: você já jantou?
-
Ainda não, mas...
-
Então vamos sair para jantar. estou com uma fome terrível!
-
Só se for no "Napoleão Bonaparte". Lá eu tenho crédito.
-
Não se preocupe com dinheiro. Hoje você será meu convidado. Gostaria de ouvir
mais histórias a seu respeito...
-
Não sei se devo aceitar...
-
E por que não?
-
Bem, eu penso que não vou me sentir à vontade vendo-a pagar a conta...
-
Não sou eu quem vai pagar, é a Revista. Espero que isso possa satisfazer seu
ego. Eu estou a serviço, e você é assunto de meu interesse profissional. Além
do mais, "Vitrine" lhe deve muito mais que um simples jantar...
Bill
não gostou de ser classificado como " assunto profissional". Não
gostou, como não acreditou também. Afinal - pensou - já havia falado tudo a seu
respeito, e sabia que nada mais teria para acrescentar que pudesse interessar à
Revista. E, pensando assim, resolveu que iria fazer o jogo de Estela.
-
Bem - disse ele - já que é a Revista quem paga, aceito.
Pela
primeira vez em sua vida, Bill sentia-se realmente tenso diante de uma mulher.
Procurava disfarçar, mas não tinha certeza se estava conseguindo. Estela
tornara-se seu maior desafio até então, e ele sabia que naquela noite,
possivelmente, estaria jogando uma cartada decisiva. Qualquer descuido lhe
poderia ser fatal. Na verdade, Bill ainda tinha dúvidas de como deveria se
comportar. Quando da primeira e única vez que saíram juntos, ele havia sido
envolvente, determinado, seguro de si, impetuoso e, por fim, surpreendente.
Agora talvez fosse melhor mudar de estilo. Quem sabe se a imagem de uma pessoa
indefesa, tímida e insegura, seria mais apropriada para um jovem de sua idade
diante de uma mulher madura? - pensou. A mulher madura gosta, normalmente, de
assumir uma atitude protetora diante de um jovem de talento. Costuma sentir-se
gratificada em poder passar suas experiências e ajudar no que lhe for possível.
Diante de tantas conjecturas, Bill decidiu
optar pelo tipo oposto ao que havia anteriormente mostrado. Faria o
papel de um jovem inexperiente, mas sem exageros e, ao primeiro sintoma de que
o remédio não estivesse fazendo o efeito desejado, mudaria a receita.
O
restaurante escolhido por Estela era pequeno e acolhedor. Preferiu a
simplicidade ao luxo e à ostentação. Por ser uma mulher experiente, entendeu
que um ambiente muito requintado, ao invés de impressionar, inibiria o rapaz.
Apesar de simples, a comida pedida estava saborosa. Estela mostrava-se à
vontade. Comia com apetite, descontraidamente. Como aquela noite estava muito
quente, preferiram pedir um chopp bem gelado para acompanhar a refeição.
Ansioso demais, Bill perdera o apetite, e bebia mais do que comia. Durante o
jantar, uma palavra ou outra foi trocada. Comentários sem importância. Bill
observava Estela cuidadosamente, e só percebeu que estava nervoso, quando
esbarrou a mão na tulipa do chopp e derramou o líquido sobre a toalha.
-
Desculpe, molhei seu vestido?
-
Não - disse ela.
-
Puxa, isto nunca me aconteceu antes...
-
Não se preocupe... Há sempre uma primeira vez pra tudo - falou com certa
malícia.
Depois
da sobremesa, foi servido o café. Bill acendeu o cigarro de Estela e em seguida
o seu.
-
Você ainda não me falou a respeito de seus amores - falou Estela, pegando Bill
de surpresa.
-
E isso tem importância? - perguntou ele.
-
Para o público leitor? Claro que tem.
Uma história tão interessante quanto a sua, sem o lado romântico não estaria completa.
O amor é uma das ambições humanas. A curiosidade do leitor é ilimitada. Ele
gosta de comparar sua vida, a vida da personalidade focalizada...
Mais
uma vez Estela saíra-se muito bem - pensou ele.
-
Tudo o que fiz até aqui, fiz por amor, inclusive o desfile, ou será que já
esqueceu?
-
Eu falo de suas primeiras experiências amorosas... De seu primeiro amor... Amor
de adolescente... Aquele que deixa lembranças para o resto da vida - falou
Estela, tentando mudar o rumo da conversa.
Naquele
momento Bill lembrou-se de Joana, seu primeiro amor. Será que ela ainda o
amava? - questionou-se em silêncio. Sentiu um leve tremor ao lembrar-se da
imagem dela. Não, não deveria falar a respeito, resolveu.
-
Lamento ter que decepcioná-la - disse ele - mas jamais amei alguém. Houve casos
inconsequentes que duraram pouco... Pura
afirmação. Houve também algumas poucas experiências sexuais, mas amor de
verdade como o que eu estou sentindo agora, não.
-
É estranho... E sua primeira professora? Dizem que os meninos costumam
apaixonar-se por elas, não é?
-
Isso não aconteceu comigo... Eu a odiava.
-
Por que?
-
Não sei. Talvez por ser muito velha e feia demais. Na verdade, eu tinha medo
dela.
Agora
era Estela que, sem saber mais o que perguntar, começou a ficar tensa. Bill percebeu,
e voltou ao assunto que o interessava.
-
Por que você tem tentado me evitar?
-
Ora, não é bem assim - falou ela. Na
verdade, eu sou uma mulher muito ocupada, e você já não despertava meu
interesse profissional...
-
É só por isso que estamos aqui juntos? Por interesses profissionais? Para você
é só o que conta? E o amor, uma das ambições de todo o ser humano, onde é que
fica em tudo isso? Pois saiba que estou aqui apenas por meu amor... Pelo amor
que sinto por você...
Bill
sabia que o cacife era alto e que ele estava agora apostando tudo o que tinha.
Se as cartas não viessem boas, ele teria que apelar para o blefe. Mas teria que
ser naquele momento... Ou tudo, ou nada.
-
Amor? - perguntou Estela. Você acabou de
me dizer que nunca amou, nem teve paixão de adolescente, como pode saber que é
amor o que diz estar sentindo agora?
-
Por instinto. Você já ouviu falar em instinto?
-
Claro que já, mas instinto é bem mais próprio a animais...
-
E o que sou eu? Sou um animal racional. Todos somos animais nesta selva imensa
em que vivemos, procurando devorar uns aos outros. Por isso a eterna
desconfiança. Costumamos sentir medo do mal e do bem... Sim, medo até do bem do
amor, pelo simples fato de não acreditarmos que exista. Esta é a grande
verdade. Você, Estela, não deseja conhecer meus sentimentos com medo de que
possam ser verdadeiros. Quem sabe a mentira não lhe fosse melhor? Você subtrairia o lado bom da mentira,
livrar-se-ia do resto, e fim.
-
Você não me conhece suficientemente para me julgar assim... Lembre-se que não
sou uma adolescentezinha qualquer...
-
Ótimo! Então dê-me uma chance. Deixe-me conhecê-la melhor. Entenda que já fiz
por merecer crédito, quero dizer, meus sentimentos o fizeram. Não dei as fotos
do desfile à Revista, dei-as a você. Dei-as por amor. E hoje, nesta noite,
desnudei-me diante de você. Deixei cair a máscara. Coloquei meu destino
profissional em suas mãos quando desfiz uma grande farsa que criei para chamar
sua atenção, e acabei por revelar meu único e precioso segredo. Acredito que
agora você tenha, em suas mãos, uma matéria de grande impacto jornalístico, de
real interesse para os seus leitores. Se é assim que pensa também, tem a minha
permissão para fazer o melhor uso possível. Estou certo de que mais uma vez
saberá fazer prevalecer seu lado
profissional. Use a matéria. Não se preocupe comigo e nem meça as consequências.
De certa forma, eu procurarei obter lucro com isso, pois tudo na vida é válido.
Estou começando agora e sei que vou ter muito tempo pela frente. Se as consequências
agora não me forem favoráveis, logo estarei recuperado e pronto para uma nova
empreitada.
Bill
respirou fundo. Precisava de fôlego para concluir sua dramatização. Aquela,
provavelmente, seria sua última cartada, e não tinha ainda a certeza se poderia
sair vencedor. Bebeu um pequeno gole de chopp e atirou suas cartas na mesa:
-
Lamento ter que dizer tudo isso a você, Estela, mas é o fim. Vou deixá-la, mas
antes quero que saiba que foi muito bom, muito bom mesmo, conhecê-la. Se o
destino nos colocar juntos uma próxima vez, espero estar em condições de pagar
a conta.
Bill
fez menção de levantar-se, mas seu gesto foi interrompido pela voz de Estela que, ao falar, pousou suas mãos
frias sobre as suadas mãos do rapaz:
-
Espere. Não se vá ainda. Olhe, meninão, o orgulho é a nobreza do pobre e o
privilégio do jovem. Mas, a precipitação gerada pelo orgulho enfraquece os
dois. Você é um jovem impetuoso e de muito valor. Eu sou uma mulher experiente,
vivida. No entanto, temos a ambição como algo em comum. Entenda que estou no
meu papel. Tenho que testar seus sentimentos, e você, apesar das grandes
virtudes, provou sua imaturidade. Quando, ainda há pouco, no apartamento de seu
amigo, me deparei com você no lugar do costureiro francês, fiquei o tempo
necessário para obter subsídios estritamente profissionais. Entretanto, estou
aqui, neste momento, única e exclusivamente pelos seus lindos olhos verdes... E
agora, que me diz? Quer mesmo me deixar, ou ainda pretende me conhecer melhor?
A
brisa agradável da manhã penetrava na suíte de um luxuoso motel recém
inaugurado, que fora construído num terreno elevado, localizado na Av.
Niemeier, entre Leblon e São Conrado. A suíte em que estavam, dava frente para o mar e tinha uma vista privilegiada. Através da
janela podia-se ver, ao longe, um pequeno barco pesqueiro iniciando mais uma
jornada.
Bill
levantou-se, abriu totalmente as cortinas, respirou o ar puro e, em seguida,
fez alguns movimentos rápidos de ginástica sueca. Quando entrou na piscina, a
água estava tépida. Depois de mergulhos e pequenas braçadas, parou e, de onde
estava, passou a admirar o corpo escultural de Estela estendido no sentido
enviesado da cama. Ela ainda dormia, e sua nudez estava parcialmente coberta
por um fino lençol de cambraia de linho. Os pés estavam à mostra e foi neles
que Bill fixou seu olhar. Pela primeira
vez ele os reparava. Eram perfeitos. Os dedos, bem próximos uns dos outros,
formavam um delicado contorno. Nem finos, nem grossos; nem curtos, nem longos.
Poder-se-ia dizer que, em comparação à boa estatura de Estela, seus pés eram
razoavelmente pequenos e, talvez por isso, a delicadeza e a beleza de suas
formas. Bill era um apreciador de pés femininos, e ainda não tinha visto outros
tão belos quanto os de Estela.
Ao
sair da piscina, enxugou-se com uma toalha felpuda, vestiu um roupão que
encontrara no armário para uso exclusivo
dos hóspedes, e fez uma ligação telefônica para a recepção:
-
Bom dia, eu gostaria que servissem café forte e completo para dois, por
gentileza.
Estela
acordou sentindo arrepios no corpo e viu Bill sentado no tapete, ao lado da
cama, beijando seus pés.
-
Bom dia, amor - disse ele, ao vê-la abrir os olhos - dormiu bem?
-
Dormi divinamente, e fui despertada de forma surpreendente e deliciosa ! -
disse ela, espreguiçando-se. É a
primeira vez que alguém me acorda desta forma.
-
Se gostou, espero acordá-la, assim, outras tantas vezes. Deve isso a um
incontrolável impulso que senti, diante da beleza de seus pés. Acordou com
apetite?
-
Não sei, não tive tempo ainda...
-
Pois eu estou faminto, e acabo de pedir nosso café - interrompeu.
Estela
olhou-se através do espelho no teto, sobre a cama e exclamou:
-
Estou horrível! Por favor, feche os olhos. Não quero que me veja assim.
Levantou-se,
escondendo o rosto com as mãos, e saiu rápida em direção do banheiro. Estela
parecia feliz, cantarolando sob a ducha fria. Quando reapareceu, tinha uma
toalha grande enrolada da cintura para baixo, e uma pequena em torno dos
cabelos. O busto nu mostrava as marcas do biquíni. Os círculos dos seios eram
cor de violeta, e uma gota d 'água, esquecida, pendia presa ao bico esquerdo.
"Daria
uma bela foto" - pensou Bill, ao notar o detalhe.
O
café foi tomado numa pequena mesa de fibra de vidro, ao lado da piscina.
Enquanto Bill comeu de tudo que fora servido, Estela quis apenas um copo de
suco de laranja sem açúcar, uma torrada com geleia e uma xícara de café.
Quando
um homem despe todas as suas roupas em frente de uma mulher, e a tem
inteiramente nua diante de seus olhos, imagina que a barreira do pudor foi
transposta, ultrapassada, vencida. Engana-se, na maioria das vezes. Os pudores
da alma e do espírito de determinadas mulheres são mais intensos e complexos do
que o pudor com o próprio corpo. Bill e Estela haviam usado toda a madrugada
para o sexo. Poucas palavras trocaram. Falaram a linguagem do corpo para se
conhecerem. Assim, em termos de pele, carne e músculos, tornaram-se íntimos.
Porém, o fato de ainda não se terem despido de alma e espírito, um diante do outro,
fez despertar, em Estela, uma forma diferente de pudor. Estava agora ali, com
uma toalha a envolver parte de seu corpo, diante de um estranho. Por sentir-se
dessa forma, estava constrangida, apesar da deliciosa sensação de prazer e
satisfação que houvera sentido. Se Bill não chegou a captar, de todo, tal
constrangimento, percebeu que algo estranho estava se passando com Estela. Isso
ficou tão patente a ele que, ao procurar palavras para quebrar o silêncio, não
as encontrou. Acompanhando com os olhos o vagaroso singrar do pequeno pesqueiro
no mar, à sua frente, comentou:
-
A vida não para. Enquanto uns amam, outros trabalham.
Estela
estava absorta, mas a palavra "trabalham" lhe tirou do transe.
-
Que horas são? - perguntou ela.
-
São 7h10 min - falou Bill, depois de consultar seu relógio de pulso.
-
Já!? Ao perder a noção do tempo, quase perco minha noção de responsabilidade.
Desculpe, amor, mas vamos ter que nos vestir e sair, imediatamente...
-
Mas nós mal nos conhecemos...
-
A partir de hoje, iremos ter toda a nossa vida para isso, prometo.
-
Não seria maravilhoso se pudéssemos passar todo esse dia juntos, aqui?
-
Eu adoraria...
-
E então? Vamos ser irresponsáveis uma vez na vida, e deixar que o mundo sinta
falta de nós. Não é tentador?
-
É, mas não posso fazer isso. Hoje não. Hoje é sexta-feira e eu tenho reuniões
para fechar a semana. São compromissos que não vou poder faltar...
-
Há sempre uma primeira vez pra tudo. Foi você que me disse isso ontem,
lembra-se? Como pode deixar-me agora, sem sequer saber meu nome?
-
Seu nome é Bill Morrison.
-
Viu? Errou. Esse é meu pseudônimo. Olhe, meu amor, pegue o telefone, ligue para
a Revista, e desmarque seus compromissos. Invente uma desculpa qualquer, mas
por favor, fique comigo.
Ao
acordar, naquela manhã, Bill pensou ter a situação sob seu domínio. Vaidoso de
sua virilidade e do jeito todo especial de proporcionar imenso prazer às
mulheres, ele imaginou que seria capaz de fazer parar o tempo, ou de fazê-lo
andar ao ritmo de sua vontade. Agora era notória sua insegurança. Estava
prestes a entrar em pânico. Respirou fundo buscando readquirir seu
autocontrole. Estela, mulher sensível, percebeu que havia ferido a vaidade do
rapaz que, por certo deveria ter imaginado um outro final para aquele primeiro
ato de amor. Entretanto, por sentir-se carente de um grande amor, ela preferiu
não fazer jogo duro. Não, não era hora de medir forças, nem de demonstrar maior
experiência e amadurecimento. Muito pelo contrário. Ao mostrar-se frágil e
suscetível, em determinados momentos, é que a mulher esconde o quanto é mais
forte que o homem. Pensando assim, Estela resolveu fazer o jogo de Bill. Ao
voltar a falar, depois de um breve silêncio, o fez da forma mais natural
possível:
-
Mas afinal, qual é seu verdadeiro nome?
Uma
simples pergunta foi o suficiente para que Bill se refizesse.
-
Giuseppi, em homenagem ao meu avô paterno. Giuseppi Fontaine Spata.
-
E como e quando surgiu o Bill Morrison ?
-
Bem, O Bill surgiu quando, ainda criança, fui à escola pela primeira vez. Lá em
casa, todos me chamavam por Gil para abreviar e, consequentemente, por Gil era
conhecido na vizinhança. No entanto, quando durante a chamada, no meu primeiro
dia de aula, a professora leu meu nome por inteiro, foi aquela risada geral.
Chorei, protestei, gritei dizendo que meu nome era Gil, e a danada da
professora feia, velha e surda, entendeu Bill, e Bill assim ficou...
-
E o Morrison?
-
Bem, este já foi na fase adulta. Eu precisava de um sobrenome que pudesse
completar bem o nome que adotara, e assim, o escolhi.
-
Você, realmente, tem muita imaginação. Já pensou em ser escritor?
-
Eu gosto de escrever, e já escrevi alguns contos e crônicas, mas apenas por
diletantismo, para passar o tempo. Jamais pensei em tornar-me escritor
profissional.
-
Gostaria de ler o que escreveu.
-
Um dia irei ter o prazer de mostrar-lhe.
-
Você já pensou no que quer ser?
-
Rico, muito rico.
-
E como pretende conquistar a riqueza?
-
No menor prazo possível. Desejo ter muito tempo de vida para aproveitá-la.
-
Não brinque. Eu estou falando sério...
Bill
que havia respondido sorrindo, de repente ficou sério e pensativo. Ao mesmo
tempo em que pensava em sua vida, admirava a vitalidade daquela mulher que
perdera uma noite de sono amando-o, furiosamente, inúmeras vezes. E agora
estava ali, diante dele, inteira, com a fisionomia jovem, descansada, o corpo
rígido e a pele sedosa.
Bill
levantou-se, colocou-se de pé por trás de Estela, soltou a toalha de seus
cabelos e os deixou cair sobre os ombros. Em seguida, friccionou suas mãos,
suavemente, pelo rosto dela e beijou-a na nuca. Depois, tomou-a em seus braços,
beijou seus lábios carnudos, deu alguns passos e a pôs na cama. E fizeram sexo.
Um sexo calmo, quase silencioso. Bem diferente de tudo o que haviam feito
durante a madrugada.
Depois
de completar a última ligação importante, Estela pousou o telefone no gancho, e
retornou ao assunto que havia interrompido:
-
Em que está trabalhando no momento?
-
Bem, eu estou em vias de começar um negócio...
-
Que tipo de negócio?
-
Uma firma de empreendimentos artísticos, com promoções, desfiles, cursos
de manequim, esse tipo de coisa. Estou também para aceitar um convite para ser
fotógrafo de uma revista de modas, concorrente de "Vitrine". Na
verdade, estou tentado a aceitá-lo. Não sei como, mas gostaria de encontrar
tempo para fazer as duas coisas...
-
Quanto ao convite que recebeu para trabalhar numa concorrente nossa, esqueça.
Mesmo sem saber o quanto lhe foi oferecido, creio que poderei conseguir o dobro
para que trabalhe para nós. Se puder assessorar sua firma, sem dar a ela seu
tempo integral, dê sequência ao negócio. Farei o que me for possível para que
você encontre tempo e possa desenvolver as duas atividades.
-
Está falando sério?
-
Estou. Além de experiente, sou muito intuitiva. Pelo que você já realizou,
acredito que seu destino esteja na "moda", no comércio de roupa, de
um modo geral. Se acreditar em mim, como acredito em você, e deixar-me
conduzi-lo a este grande objetivo, prometo que não irá se arrepender.
-
Claro que acredito e confio...
-
Então prepare-se. Isto irá levar algum tempo. Vou mostrar-lhe a escada e
ensiná-lo a subir, degrau por degrau. Suba com cuidado. Procure não tropeçar.
Um escorregão poderá lhe ser fatal. A moda, como qualquer outro negócio, tem
seu topo. Para chegar-se ao topo, existem mil caminhos e encruzilhadas. O valor
pessoal terá que caminhar junto com a obstinação, e a cabeça com o estômago,
pois muitos sapos você terá que engolir. Você deverá aprender a ouvir de tudo,
e falar apenas aquilo que as pessoas desejam escutar. Estas são as regras
básicas. Com o tempo, você irá aprender outras. Ah, já ia me esquecendo, jamais
misture prazer com negócios. E olhe que eu não estou me referindo a sexo,
porque o sexo, muitas vezes, é negócio e não prazer. Entendeu tudo o que eu lhe
disse?
-
Perfeitamente.
-
Considera-se capaz de seguir todas as regras?
-
E por que não?
-
Deseja, realmente, atingir o topo?
-
Mas é claro.
-
E quando quer começar?
-
Amanhã, porque sei que não devo misturar prazer com negócios, e hoje, meu amor,
quero sentir o prazer de ficar o maior tempo possível ao seu lado. Quero sexo
por prazer, e prazer com amor...
Estela
sorriu. Seu aluno acabava de aprender uma das lições.
-
Eu amo você de verdade - disse Bill, ao mesmo tempo em que acariciava os
longos, lisos e negros cabelos de Estela.
-
É isso que me amedronta - disse ela.
-
Meu amor?
-
Não, a facilidade com que você fala dele...
-
Mas meu amor é de fato verdadeiro...
-
Mesmo que seja apenas o que pensa, no momento, sei que não deveria me
preocupar.
-
Por que?
-
Porque esse tipo de declaração é bem próprio às pessoas de sua idade. As
pessoas maduras falam menos e sentem mais. Com relação ao amor, nós costumamos
ser justamente o oposto de vocês, jovens...
-
Já não sou tão jovem assim. Vou fazer 22 anos em março...
-
Pois eu sou jovem, e vou fazer 36 anos no próximo mês. Sei que são, apenas, 14
anos de diferença - falou ela com ironia.
-
Diferença essa que eu ainda não percebi, e que custo a acreditar.
Novas
carícias foram trocadas em silêncio e, logo depois, foi Bill quem voltou a
falar:
-
Sabe que eu estou em desvantagem com relação a você?
-
A respeito de nossas idades?
-
Não, com relação a nossas vidas. Você já sabe tudo a meu respeito, e eu pouco
sei sobre você.
-
Por ora, o que sabe já é suficiente.
-
Mesmo assim, gostaria de ouvi-la falar...
-
Não gosto de falar sobre mim - interrompeu Estela - e creio que um pouco de
mistério valoriza a mulher. Sinto prazer em ver as pessoas que gosto procurando
levantar o véu que me cobre. Gosto que adivinhem meus desejos, e descubram meus
pequenos caprichos. Sei que, desta forma, as pessoas terão que perder algum
tempo para me conhecer melhor, mas não creio que esse tempo venha a ser, de
todo, perdido. O tempo costuma ser determinante na qualidade, não pensa assim?
-
Penso; e, por concordar, estou pronto para me dar e lhe dar este tipo de
prazer. O que conheço de você já me basta para aceitá-la como é.
-
Fico feliz em ouvir isso de você, mas gostaria de alertá-lo para algo muito
importante, querido.
-
Fale, meu amor.
-
Poderemos, se necessário, mentir para o mundo inteiro, mas a verdade deverá
sempre prevalecer entre nós. É imprescindível que isso aconteça. Já que vamos
nos relacionar de duas maneiras diferentes, jamais deveremos misturar os
assuntos. Poderei ser sua orientadora profissional, independentemente de nossos
laços sentimentais. Serei também sua mulher, enquanto assim o desejar. No
entanto, preste atenção, se em algum momento perceber que já não me ama, ou
que, na verdade, jamais chegou a me amar, diga-me. Não perca comigo um só
minuto de sua preciosa vida, pois se um dia vier a me enganar ou mentir quanto
aos seus sentimentos, você jamais se perdoará por ter me conhecido.
Aquelas
palavras de Estela exigiam um momento de silêncio para melhor reflexão. Bill
usou o tempo que sentiu ser necessário antes de se pronunciar. Algo em Estela o
intrigava. Na certa deveria estar ligado ao seu passado. Passado esse ao qual
ela, em momento algum, se referiu. Algo de trágico, provavelmente, lhe tinha
acontecido e ferido profundamente, ao ponto de deixá-la em estado de constante
alerta. Se suas conjecturas estivessem certas - pensou Bill - mais cedo ou mais
tarde tais fatos viriam à tona.
Aquele
silêncio prolongado trouxe Estela de volta ao mundo dos negócios, onde o tempo
perdido é irrecuperável e, antes de Bill manifestar-se, ela voltou a falar:
-
Vamos embora meu bem - falou ao olhar o relógio. São quase onze horas e eu já
atrasei alguns compromissos. Este lugar é maravilhoso, sua companhia também,
mas, infelizmente, não posso ficar mais tempo.
-
Já sei - disse ele - você está ansiosa para passar pro papel a entrevista que
teve com Jean Louis Marchand, não é verdade? Por falar nisso, quando irá
publicá-la?
-
Nunca.
-
Por que? Não, não diga nada. Penso que serei capaz de adivinhar. Por certo você
não irá publicá-la por pensar que, com isso, estaria me prejudicando e, desta
forma, pretende provar seu amor por mim, não é?
-
Claro que não. Meus sentimentos pessoais não devem interferir nos negócios.
Esta decisão foi tomada pelo lado prático. A entrevista, se publicada, faria
sucesso e estou certa que ganharia muito com isso, pessoalmente. No entanto,
não publicando-a, espero lucrar bem mais num futuro próximo. Você é, no
momento, meu maior investimento, portanto, devo preservá-lo.
-
Você é uma mulher surpreendente, Estela - falou Bill, admirado. Adoro você.
Estela
sorriu. Foi um sorriso enigmático. Depois levantou-se, pegou suas roupas
íntimas e caminhou em direção ao banheiro.
Ainda
na cama, deitado e com os braços cruzados sob a cabeça, Bill falou:
-
Que me diz de tomarmos um banho juntos?
-
Ótimo! - disse ela - mas que seja rápido.
Bill,
de pé, suspendeu Estela e pôs as pernas dela em volta de sua cintura. Aquela
posição proporcionou, a ele, uma penetração profunda. O último grito saiu
abafado. Partiu de dentro do boxe. Bill a possuiu mais uma vez. Agora, sob a
tépida água que caía do chuveiro.
QUARTA PARTE - CAPÍTULO 42
Um novo mundo
Debruçado
à balaustrada daquele transatlântico de bandeira norte-americana que velozmente
singrava as águas do Mediterrâneo, Giacomo lembrou-se do dia em que foi para a
França no Gina D' Oro. Buscou encontrar semelhanças entre uma viagem e outra,
mas pouco as encontrou. A não ser o fato de rumar para o desconhecido mais uma
vez e deixar para trás sua terra e sua gente, tudo o mais era diferente: a
embarcação que o levava, o destino, a distância e o ideal que buscava. Ali,
naquele momento, ele estava só. Germaine, sua esposa, acabara de recolher-se ao
camarote. Quando o navio zarpou, no exato momento em que os parentes de seu
marido nada mais eram do que pequenas manchas escuras no porto de Gênova, ela começou
a sentir uma leve tonteira. Nada falara à Giacomo para não preocupá-lo.
Entre
uma tragada e outra de seu cigarro, Giacomo meditava. Imaginava ser o casco do
navio uma grande faca afiada a cortar o mar, e procurava ver, através do corte,
as imagens de seu passado recente no fundo escuro do oceano. Era fim de
dezembro. Apenas cinco meses haviam se passado depois de sua chagada a Gênova,
e ele já estava de partida para um mundo novo. Em apenas cinco meses ele, com o
apoio de Gina, Angelo e de sua querida Germaine, conseguira mudanças profundas
no seio de sua família. E as imagens iam-lhe surgindo do fundo do mar: o
casamento com Germaine, a morte do pai, a implantação da firma Associazione Spata Fratelli - Viaggi e
Turismo, que fez provocar uma sólida união de todos e, por fim, o regresso
definitivo de Graziela à Gênova.
Curiosamente
fora em Roma, e não em Gênova, que se deu o início da grande transformação.
Ainda era julho, e nada melhor que estar em Roma em pleno verão, quando o amor,
como uma brisa, corre solto pelas avenidas, praças e jardins, derrubando
preconceitos, renovando conceitos e sacudindo corações. Giacomo resolvera ir
até lá para falar com Graziela, e levara Germaine para conhecer sua irmã e a
Cidade Eterna.
Apesar
da emoção e da alegria no reencontro, Giacomo não ficara nada satisfeito com
aquele primeiro contato com a irmã. Talvez por ter sido procurada em seu local
de trabalho, Graziela resolveu adotar uma posição defensiva e, em momento
algum, chegou a mostrar-se à vontade. Ela foi, por diversas vezes áspera,
irônica e amarga. Não satisfeito, Giacomo a convidou para almoçar no dia
seguinte, num dos melhores restaurantes de Roma. No entanto, Graziela preferiu
oferecer ao casal um almoço em sua residência.
Ainda
na cama do quarto do hotel em que haviam se hospedado, Giacomo viu, pela janela
aberta, que o dia amanhecera ensolarado. Aquele seria o último domingo de
julho. Após o café, decidiram dar um passeio pela cidade. Antes do meio-dia, e
depois de uma boa caminhada, Giacomo resolveu parar para tirar umas fotos
diante da famosa Fontana di Trevi.
-
Esta é uma parada obrigatória para todas as pessoas que vêm a Roma pela
primeira vez - falou Giacomo.
O
sol incidia diretamente nas águas que formavam o pequeno lago, e fazia brilhar
as moedas pousadas no fundo.
-
Não é sobre esta fonte que existe uma lenda? - perguntou Germaine. Penso que já
ouvi falar qualquer coisa a respeito...
-
Sim, claro. Bem, é uma antiga lenda que diz que quem atirar uma moeda e fizer
um pedido, este será atendido.
Ambos
atiraram moedas: uma francesa, outra italiana.
-
O que você pediu? - perguntou Germaine.
-
Desculpe, mas tenho que manter o segredo até ser atendido.
-
Foi bom eu saber disso, pois só assim não terei que revelar o meu - falou e
sorriu Germaine.
-
São tantos os meus desejos que confesso ter ficado em dúvida ao atirar a moeda
- comentou Giacomo.
-
Conte-me então um dos pedidos que não chegou a fazer.
-
Gostaria de ter pedido que nosso primeiro filho fosse homem...
-
E porque não pediu?
-
Porque não achei correto. Deus é quem deve determinar o sexo. O importante é
que seja uma criança sadia.
-
Concordo. Depois de uma pequena pausa, Germaine perguntou: É verdade que quando
a mulher está grávida sente fome por duas pessoas?
-
Dizem... Ei, por que está me perguntando isso?
-
Porque eu ando sentindo tanta fome que acho que você, daqui a alguns meses, vai
ser papai...
-
Está falando sério?
Germaine
pôs as mãos sobre a barriga, fez um sinal afirmativo com a cabeça e sorriu
maliciosamente.
Por
instantes, Giacomo se transformou numa criança. Fingiu que ia atirar-se na
fonte, jogou algumas moedas na água, beijou Germaine no rosto e saiu em
disparada atrás de um táxi.
-
Via Montebello, per favore - falou ao motorista, e acrescentou: se passar por
uma tabacaria, pare, se puder. Preciso comprar uns charutos. Você fuma?
-
Fumo, sim senhor...
-
Então eu vou lhe oferecer um. Vou ter um filho...
-
Agora? - perguntou o motorista, assustado.
-
Dentro de alguns meses, mas quero que seja a primeira pessoa a me parabenizar -
completou Giacomo.
A
casa era de construção antiga mas estava muito bem conservada. Embora não fosse
grande, haviam dois pavimentos bem divididos. Graziela comprara-a há um ano
atrás por um bom preço. O requinte da decoração dava mostra da excelente
situação financeira em que ela se encontrava.
Uma
copeira, vestida a caráter, serviu o almoço que Graziela fizera questão de
preparar. O café e o licor foram servidos na sala de estar, após a refeição.
Juntando elogios à sua simplicidade, Germaine logo conquistou a anfitriã. Com o
ambiente bem mais propício, o tom da conversa foi totalmente diferente da que
acontecera no dia anterior. Procurando contar apenas o lado pitoresco de sua
passagem pela França, Giacomo deu um tom ameno e descontraído à narrativa. Ao
ver Graziela sorrir pela primeira vez ele lembrou de sua infância e
adolescência, quando então todos os irmãos eram felizes. De repente a conversa
passou a ter um caráter mais sério. Afinal, Giacomo precisava falar com
Graziela a respeito dos planos que havia feito para a família. Planos esses em
que sua irmã fazia parte integral e seu apoio e aquiescência seriam
indispensáveis. E falou. Falou o quanto foi preciso falar, medindo bem cada
palavra. Ele sabia que sua missão ali era bastante difícil mas acreditava não
ser impossível. Confiava no seu poder de persuasão. Ao findar, usou como
recurso as notícias de seu casamento e a proximidade de vir a ser pai. Se não
conseguiu de Graziela uma resposta definitiva para todo o plano, teve ao menos,
dela, a promessa de que iria estudá-lo. Na verdade, Giacomo conseguiu um pouco
mais, já que a irmã se prontificara de estar em Gênova para assistir ao seu
casamento. Apesar de ter relutado muito Graziela não viu como deixar de aceitar
aquele convite do irmão e da futura cunhada, pois havia sido escolhida para ser
madrinha. Antes, no entanto, obteve do irmão a promessa de que iria ser bem
recebida por seus pais e irmãos.
Aquela
visita terminou ao cair da tarde. Apesar da insistência de Graziela para que
ficassem mais alguns dias, Giacomo e Germaine retornaram à Gênova na manhã
seguinte.
O
casamento dos dois aconteceu trinta dias depois da viagem à Roma. A cerimônia
foi realizada na Chiesa di Santo Stefano, a mesma igreja em que Giacomo havia
sido batizado. Não houve festa, como ele inicialmente desejara. Aquele não era
o momento para gastos supérfluos. Todo o dinheiro economizado deveria ser
empregado num próximo empreendimento. Apesar dos poucos convidados, a recepção
na casa dos Spata foi muito alegre e de grande emoção. A grata surpresa ficou
por conta dos padrinhos: Graziela, recém-chegada de Roma, e Giorgio, que viera
de avião do Brasil especialmente para aquele evento. Giacomo conseguiu afinal o
que já pensava ser impossível: a reunião de toda a sua família.
O
temor que sempre atormentou Graziela, logo desapareceu. Aos poucos ela foi
sentindo o quanto continuava a ser amada. Tal constatação lhe deu a gostosa
sensação de estar voltando ao lar depois de um longo período de férias. Nada mais que isso.
Como
não podia ser de outra forma, houve muita alegria nas músicas e nas danças, e
muita fartura nas comidas e nos vinhos. "Imaginem se tivessem preparado
uma festa" - foi o que pensou Germaine. Até o velho Giuseppino bebeu um
copo do tinto, depois da aquiescência do médico da família, que também ali se
fazia presente.
No
meio da noite os nubentes desapareceram. Foram passar sozinhos aquele início de
madrugada numa rústica casinha de praia em S.Nazaro, de propriedade do casal
Angelo e Gina e, por este motivo, foram os últimos a saberem do trágico
acontecimento: a morte de Giuseppino Spata. Foi ao amanhecer do dia seguinte
que Dona Benedetta deu conta do fato. Para dar certeza a todos de que tivera
uma morte tranquila, o velho Spata conservou no rosto seu último e leve
sorriso.
Não
creio que, para a morte, as palavras sirvam como consolo; no entanto, de tudo o
que se ouviu falar, ficou registrado o que disse o Dr. Sergio Rossetti, o
médico dos Spata:
-
"Tem pessoas que morrem de tristeza. Outras morrem de alegria. E o nosso
querido Giuseppino esperou por uma grande alegria para morrer."
CAPÍTULO 43
O velho sapateiro
Giuseppino
Spata, o velho sapateiro genovês, sempre morou na parte velha da cidade. Homem
pobre, de origem humilde, mas muito orgulhoso, tinha prazer em explicar que
preferia morar na cidade velha porque, para ele, era ali que estava a
verdadeira Gênova. Se as grandes fortunas estavam nas luxuosas mansões dos
novos milionários, banhadas pelo Mediterrâneo, a verdadeira riqueza estava ali
encravada nos belos monumentos de valor histórico incalculável, erguidos na
parte velha da cidade. Aliás, dizia ele que aquela cidade era, num todo, um só
monumento. De um prédio para outro podia-se respirar atmosferas diferentes: o
ar pesado do Medieval austero, e a brisa suave da elegância Renacentista. E,
para sorte da família Spata, era ali no alto, na parte velha da cidade, que se
podia encontrar os aluguéis mais baratos.
Giuseppino
teve em vida quase tudo que desejou. Nasceu na parte velha de Gênova, e de lá
nunca saiu. Quis ser tão bom sapateiro como houvera sido seu pai, e o
conseguiu. Casou-se com Benedetta, única mulher que amou e a mais bela ragazza
que conheceu. Desejou ter dez filhos e os tivera, muito embora o casal de
gêmeos tivesse morrido pouco tempo depois de nascer. Pediu a Deus para que
todos os seus filhos viessem a gozar de boa saúde e, com o passar do tempo até
esqueceu que Giacomo, o único que tivera um problema maior na infância, ficara
com uma pequena atrofia na perna esquerda. Por admirar os sermões dominicais do
padre Pietro Morosi, resolveu casar-se num dos principais monumentos de sua
velha cidade, localizado na Via 20 de Setembro: a igreja de Santo Stefano,
construída no Século XII. Quando de seu casamento, Pietro Morosi era o pároco
de lá. Giuseppino jamais pôde esquecer aquele dia. Muito emotivo, estava ele
banhado em lágrimas ao receber o último cumprimento. Ao vê-lo emocionado, padre
Morosi aproximou-se e tentou descontraí-lo:
-
Eu me orgulho de você por ser um dos meus mais assíduos paroquianos. Desejo que
assim continue. Espero vê-los aqui todos os domingos e dias santificados. Você
e sua bela esposa. Se precisarem de orientação espiritual, não tem dia nem
hora. Estarei a qualquer momento pronto para atendê-los.
Giuseppino
enxugou o rosto com um lenço, sorriu agradecido, e falou:
-
Pelo menos durante dez anos, padre, garanto que o senhor nos verá.
-
Por que dez anos?
-
Porque vamos ter dez filhos e, a cada ano, traremos um aqui para o senhor
batizar. Como sou um homem de muita fé, estou seguro que conseguirei e, como
trato é trato, vou tratar de fazer minha parte na certeza de que o senhor fará
a sua...
-
Bem, se é isto que deseja de mim, pode ficar tranquilo. No entanto,
asseguro-lhe de que sua tarefa será mais difícil do que a minha...
-
Por que?
-
Porque para ter dez filhos você terá que contar com a colaboração de sua mulher
e com o desejo de Deus Pai. Eu, para batizá-los, precisarei apenas de água
benta.
-
Minha tarefa pode ser mais difícil padre mas, em compensação, é bem mais
prazerosa - sorriu com malícia, e continuou: - olhe padre, tanto eu quanto
Benedetta gozamos de muito boa saúde e pretendemos ter muitos filhos...
Portanto, prepare-se. Cuide-se bem. Rogo a Deus que o mantenha com saúde por
muitos anos à frente dos destinos desta paróquia...
-
Preste atenção, filho, eu sou um soldado de Deus. Enquanto o militar serve à
Pátria, eu sirvo à Santa Madre Igreja. Ambos somos comandados. Como soldado de
Deus, estarei sempre servindo onde meus superiores assim determinarem. Como vê,
caríssimo irmão, não posso garantir que por aqui estarei durante os próximos
dez anos. Mas, no entanto, asseguro-lhe que minha saúde não deverá ser motivo
para sua preocupação. Por favor não me pergunte como sei, pois não saberei como
explicá-lo. Porém estou seguro que viverei o suficiente para batizar seus dez
filhos e, quem sabe até, alguns de seus netos.
-
Pois assim espero, e assim ficamos combinados - falou Giuseppino e, em seguida,
beijou respeitosamente a mão do sacerdote.
Padre
Morosi os abençoou mais uma vez e finalizou com um conselho:
-
Por maiores que sejam as provações que por ventura tenham que passar, jamais se
afastem do caminho da fé, da paz e do amor, pois só assim encontrarão a
felicidade. Espero também que você, Spata, seja um vitorioso assim como o foi o
mais famoso paroquiano desta igreja: Cristóvão Colombo.
Giuseppino
Spata desconhecia aquele fato. Aquela notícia o deixara orgulhoso. Não
pretendia ser um descobridor de novas terras, mas ficaria feliz se descobrisse
uma maneira de calçar a população com mais conforto e economia. Ao ouvir falar o nome do mais célebre
paroquiano daquela igreja, ficou imóvel, ereto, empertigado, como se alguém
tivesse derramado um balde de verniz sobre seu corpo. No entanto, logo a
seguir, suas pernas começaram a tremer de emoção.
O
casal de gêmeos, primeiros filhos dos Spata, deveriam chamar-se Stefano e
Stefania por motivos óbvios. Entretanto. morreram pagãos horas depois de
nascidos. Apesar de extremamente religioso, Giuseppino era também muito
supersticioso e, por isso, não quis mais adotar aqueles nomes para seus
próximos filhos. E assim, pela ordem, foram nascendo: Silvana, Giorgio, Gina,
Giovanni, Graziela, Giacomo, Mônica e Carina, e todos foram batizados pelo
padre Pietro Morosi. Os sete primeiros na Igreja de Santo Stefano, e Carina, a
filha caçula, na bela Basilica di Carignano, já que para lá fora o padre designado.
Quando
Giuseppino Spata morreu, padre Morosi estava com 79 anos e encontrava-se
seriamente enfermo. A notícia da morte do amigo o abalara profundamente.
Afinal, acabava de perder seu mais fiel paroquiano.
Giorgio
deixara mulher e filhos no Brasil, e também seus negócios: três bancas de
jornais e uma pequena firma de transportes e mudanças. Por tantas razões não
podia ele ficar mais de trinta dias afastado e, no final do mês de setembro,
estava viajando de volta para São Paulo. Ambicioso, pensava ampliar os negócios
no Brasil. Entretanto, para isso, precisava encontrar um sócio em que pudesse
confiar plenamente. Por seu espírito empreendedor e aventureiro, Giacomo lhe
parecia ser a pessoa ideal. Assim pensando, tentou convencer o irmão, falando
com entusiasmo sobre seus planos. No intuito de fazê-lo aceitar mostrou as
vantagens e conveniências de começar uma vida nova, agora que estava
recém-casado, num novo mundo, onde as oportunidades por certo seriam maiores.
Onde, da guerra, ele poderia ter apenas recordações, mas jamais os cenários.
-
Vamos - disse Giorgio. Vá de imediato ao Consulado Brasileiro na Piazza della
Vittoria, 9 e procure lá o Gaspari, no Serviço de Emigração. Ele é brasileiro,
filho de italianos, e muito amigo de nossa família. O Brasil é um país novo,
rico e bonito. Seu povo é alegre e hospitaleiro, e São Paulo é a cidade que
mais cresce no mundo. Quer mais? Pois bem, você não irá precisar de dinheiro.
Eu banco tudo. Seu capital será o trabalho, e poderá morar em nossa casa até
ter condições de manter-se. Temos muito espaço por lá. Que me diz?
Giacomo
nada respondeu. Deixar novamente a Itália, não fazia parte de seus planos.
Precisava pensar muito no assunto e depois discuti-lo com Germaine. Ela estava
grávida. Deve ser muito importante, principalmente para a mãe, a pátria que irá
receber seu filho. Seu primeiro filho. E, exatamente 23 dias após o falecimento
de seu pai, e véspera da viagem de seu irmão, foi quando então Giacomo resolveu
tomar uma decisão. Eram 22h40 min e todos já estavam dormindo, exceto ele e
Germaine que, apesar da fria noite de outono, conversavam na varanda.
-
Será que agora você já poderá me dizer se foi Gênova a terra que viu, em seu
sonho, para nós vivermos? - perguntou Giacomo.
-
Já.
-
E então?
-
Não foi Gênova.
-
Outro lugar da Itália, talvez?
-
Não tenho certeza, mas não creio...
-
Quem sabe este lugar esteja no Brasil? - arriscou Giacomo.
-
É, quem sabe - divagou ela, sem se mostrar surpresa.
-
Gostaria de conferir, só para matar sua curiosidade?
-
Está falando sério?
-
Claro que sim.
-
Você seria capaz de deixar sua família outra vez?
-
Pela nossa felicidade? E porque não? Você não deixou sua família para me
acompanhar? Assim, num país estranho aos dois não poderíamos dizer, mais tarde,
que houve privilégio e que um se sacrificou mais que o outro - sorriu.
-
E seus planos?
-
Estão em andamento.
-
E quando você poderá deixar Gênova, se for o caso?
-
Quando estiver certo de que minha ausência não irá modificar os rumos traçados
para minha família. Tenho esperança de que meus planos irão dar certo e que,
logo, logo, minha permanência por aqui já não seja imprescindível.
No
dia seguinte, minutos antes do embarque de Giorgio, Giacomo falou ao abraçar o
irmão:
-
Vá preparando mais uma cama de casal e um berço em sua casa - e, apontando para
a barriga de Germaine, completou - porque no ano que vem nós três estaremos lá.
Devido
ao falecimento de seu pai, Graziela demorou-se em Gênova mais tempo do que
pretendia. O regresso à Roma deu-se no dia imediato à missa de sétimo dia,
mandada rezar na igreja de Santo Stefano, em memória do velho Giuseppino. À
noite, após o jantar, com toda a família reunida, Giacomo expôs seus planos
pela última vez. Depois de três horas de calorosos debates viu ele, com
satisfação e alívio, seus planos aprovados. Portanto, ali, naquela noite,
começava a viver a Associazione Spata Fratelli - Viaggi e Turismo. Todos os
irmãos, incluindo ele e Giorgio, teriam participação na firma, que seria
dividida em cotas iguais. Ficou combinado que os que entrassem também com o
trabalho, teriam uma participação maior em forma de pró-labore, proporcional, é
claro, ao cargo que estivessem ocupando. No entanto, dos oito irmãos, apenas
quatro poderiam, de imediato, entrar com dinheiro para as primeiras despesas e
a viabilização do capital inicial da firma: Gina, Giorgio e Giacomo, que juntos
totalizariam 60%, e Graziela com os 40% restantes, já que era ela, no momento,
quem gozava de melhor situação financeira. Enfim, verbalmente, estes e outros
acordos menores foram feitos. Restava agora, por intermédio de um bom advogado,
pô-los num papel e tratar da legalização da firma.
Sessenta
e cinco dias depois, numa segunda-feira, meados de novembro, a Associazione
Spata Fratelli - Viaggi e Turismo estava sendo inaugurada com um coquetel
oferecido à Imprensa, autoridades, parentes e amigos. A firma ocupava todo o
andar térreo do prédio nº l5 da tradicional Via Balbi. Muito bem instalada,
loja e dependências foram decoradas por Graziela com bom gosto e funcionabilidade.
Dom Annunziato, que substituíra padre Morosi na paróquia de Santo Stefano, e
que celebrara o casamento de Giacomo com Germaine, também estava presente. Fora
dar sua bênção às novas instalações.
Com
o auxílio temporário de Giacomo e Germaine, a empresa contava também com o
trabalho, em tempo integral, dos irmãos Giovanni, Gina, Mônica, Carina e dos
cunhados Marcelo e Ferraro. Antonio Luca, jovem mas já experiente guia
turístico, era o único empregado contratado que não fazia parte daquela
família. Angelo e Graziela ficaram de assumir na Empresa, no momento em que
esta estivesse sendo rentável. Não era aconselhável, por ora, abandonarem suas
atuais fontes de renda.
Com
a implantação da firma, Graziela teve que vender a casa em Roma e voltar a
morar em seu Bordel. Sempre que vinha à Gênova, e agora acontecia com mais frequência,
ela costumava hospedar-se com Gina. Era assim que ela preferia, já que ainda
não havia decidido voltar para o marido. Marcelo, por sua vez, nunca se mostrou
tão desejoso pela reconciliação como agora. Vender seu Bordel em Roma, comprar
uma casa em Gênova e por lá fixar residência definitivamente, já faziam parte
dos planos de Graziela. Para isso acontecer, bastava que a empresa de turismo
viesse a dar certo. Ela sabia que sendo independente financeiramente, e morando
em sua casa própria, poderia romper, definitivamente, o cordão umbilical que a
ligava à família. Desta forma - pensava - talvez fosse possível uma
reconciliação. Afinal, ela ainda sentia-se atraída por Marcelo. A proximidade
do marido fez com que ela percebesse tal fato. Por outro lado, Graziela sentia
muita falta dos filhos e, reconciliando-se com Marcelo, ela não só estaria
dando a ele, como a ela própria e às crianças, uma nova oportunidade para serem
felizes.
Uma
boa verba havia sido destinada à publicidade e, assim, no domingo seguinte, o
pesqueiro Gina D' Oro, agora reformado e adaptado, singrava garbosamente as
águas da bacia de Gênova e de seus arredores, repleto de turistas. Fora um
sucesso o primeiro empreendimento turístico dos irmãos Spata.
CAPÍTULO 44
Brazil, o transatlântico
Um
apaixonado beijo de Marcelo em Graziela emergia do fundo do oceano. Parecia que
aquela seria a última imagem. Os olhos de Giacomo estavam embaçados e, com
clareza, nada mais podiam ver. O Brazil, transatlântico norte-americano que o
estava levando para o Brasil, continuava a cortar o mar velozmente. Giacomo
perdera a noção do tempo que ficara ali, debruçado à balaustrada. De repente,
lembrou-se de Germaine completamente só no camarote. Ficou apreensivo. Afinal,
sua esposa estava no sexto mês de gravidez e merecia cuidados especiais. Dali a
dois dias estariam rompendo o novo ano a bordo. Deveria ser emocionante -
pensava. Giacomo nunca escondeu seu amor pelo mar. O natal havia sido
maravilhoso! Passara ao lado de toda a família. Houve a tradicional troca de
presentes. Pequenas lembranças, para ser mais exato, já que o momento era de
economia. A emoção maior naquela noite foi, sem dúvida, a reconciliação de
Graziela com o marido. Eles não poderiam ter escolhido melhor data para
comunicarem o fato. Por certo, o dedo de Deus esteve ali presente. Afinal,
aquela reconciliação se dera no aniversário de Jesus, seu filho.
Apenas
um caneco para o vinho ficara vazio, e a felicidade só não foi completa porque
o velho Giuseppino não estava ali para bebê-lo.
Quando
Giacomo entrou no camarote, Germaine estava escrevendo em seu diário. Ao ver o
marido ela largou a caneta, cruzou as mãos sobre a barriga e falou:
-
Estou atualizando o que espero venha a ser um presente de muito valor para o
nosso filho no futuro: a história de nossas vidas.
Não
fosse os enjôos de Germaine e aquela viagem teria sido perfeita.
Era
indescritível a alegria estampada no rosto de Giorgio que, de pé, ao lado de
sua pequena família, aguardava o momento de abraçar o irmão Giacomo e a cunhada
Germaine ali, no porto de Santos, naquela manhã de 8 de janeiro de l946.
Embora
fosse verão, chovia muito em São Paulo naquele mês e havia muita umidade no ar.
Giacomo adoeceu. A cidade o impressionara por sua grandiosidade e pujança. Um
pedaço da Itália estava ali no bairro do Bexiga, onde Giorgio morava. Apesar
das atenções e do carinho que tanto ele quanto Germaine recebiam, a nostalgia
crescia a cada dia e chegava a fazer arder o peito de Giacomo. A cidade de São
Paulo emanava o cheiro inconfundível da água da chuva no asfalto das ruas e no
cimento dos prédios. Não, não havia o cheiro da maresia. Afinal, o mar estava
distante dali.
Ao
cair da tarde da última sexta-feira do mês, Giacomo e Germaine desembarcavam do
ônibus na Estação Rodoviária da Praça Mauá. Resolveram passar um fim de semana
no Rio para conhecerem a cidade, dita Maravilhosa. Ficaram hospedados na casa
de uma família italiana amiga de Giorgio, e que morava no suburbano bairro do
Encantado. A cidade os recebeu com um sol radiante. Um piquenique nas areias da
famosa praia de Copacabana foi o programa que fizeram no domingo. Ao cair da
tarde daquele dia, quando o sol esplendoroso preparou um crepúsculo que tingiu
céu e mar de vermelho carmim, Germaine falou ao marido:
-
Achei, achei... - falou ela, num tom emocionado.
-
O que você achou? - perguntou Giacomo, curioso.
-
A terra com a qual sonhei e em que nós iríamos viver.
E
Germaine não precisou dizer mais nada. Em fins de fevereiro, poucos dias antes
do Carnaval, Giacomo e Germaine já estavam morando no Rio de Janeiro. Com o
auxílio da família que os hospedara, conseguiram alugar uma boa casa no
Encantado.
Giorgio
jamais imaginara que, para poder ampliar seus negócios, teria que abrir uma
filial no Rio de Janeiro.
Na
noite de 23 de março de 1946, um sábado, Germaine, depois de um parto
problemático, deu à luz a um forte e belo menino.
Na
noite de 23 de março de 1963, um sábado também, dezessete anos depois, Giacomo
e Germaine, já proprietários daquela bela casa do Encantado, promoviam a mais
animada e concorrida festa que o bairro tivera notícia. Motivos de sobra tinham
para isso. Em princípio, seria porque aquela festa iria ter um sabor de despedida, já que, dali
a dois dias, iriam mudar-se para Copacabana. Aquela mudança seria, sem dúvida,
a realização de um sonho antigo. Um espaçoso apartamento havia sido comprado na
planta e agora estava pronto para recebê-los. O outro motivo, tão importante
quanto o primeiro, eram os 17 anos de Bill, o filho querido e único do casal.
Na
manhã de segunda-feira, dois dias após a festa, enquanto o caminhão de mudanças
do mano Giorgio estava sendo carregado, ele, Giorgio e Giacomo, pai de Bill,
conversavam no fundo da casa enquanto esvaziavam o último barril de chopp que
sobrara da festa. Aquela segunda-feira amanhecera abafada e o líquido, ainda
gelado, escorria fácil por suas gargantas. Com a boca envolta de espumas,
Giorgio falou:
-
Precisamos ampliar nossos negócios, mano. Bill já está um homem, e em breve já
poderá nos ajudar.
-
Calma, Giorgio. O garoto ainda não terminou seus estudos e nem sequer fez o
serviço militar. E para falar a verdade, eu ainda não descobri o que ele quer
ser...
-
Isto não deverá ter muita importância. Por certo ele compreenderá que deverá
dar sequência ao seu trabalho. Afinal, não é para ele que você tanto tem
lutado? Não será ele seu único herdeiro?
-
Não é bem assim, mano. Os tempos mudaram. Nós, pais, não podemos nem devemos
determinar o que nossos filhos deverão ser. Temos, isto sim, é que dar a eles
as condições necessárias para que possam escolher, livremente, o que acharem
mais apropriado...
-
Não sei se é este o melhor caminho... Reconheço que ainda penso da maneira
antiga. Filho meu costuma fazer o que eu quero que faça, no entanto, mano,
respeito seu ponto de vista.
E
aquela discussão terminou ali.
Cinco
anos se passaram.
Bill
entrou em casa cantando. Estava alegre como uma criança. Há muito não era visto
assim.
-
Não faça tanto barulho, filho - falou Germaine num tom preocupado. Seu pai já está
dormindo. Hoje ele chegou mais cedo porque estava com muita dor de cabeça. E
você, por onde andou todo esse tempo? Uma noite e um dia inteiro sem nos dar
notícias. Você nos deixou muito preocupados. Chegamos até a pensar que algo de
grave pudesse ter-lhe acontecido... Afinal, você nunca fez isso...
-
Perdoe-me, mama - falou ele, beijando-a. É que eu também nunca estive realmente
apaixonado...
CAPÍTULO 45
Natal de l972
Cinco
anos se passaram sem que Bill deles se apercebesse. Suas múltiplas atividades
não lhe davam tempo para pensar no tempo. Seu espírito idealista e sonhador
havia se mantido intacto, mas seu jeito jovem e irreverente tinha desaparecido.
Já não aparecia nas esquinas para as conversas de fim de noite que quase sempre
rompiam a madrugada. Agora, raramente encontrava tempo para o chopp de fim de
semana com os amigos. Tão preso andava ele à nova filosofia de vida, que já não
se dava conta do interesse que seu belo tipo despertava, tanto nas jovens
sonhadoras quanto nas mulheres mal amadas. Na verdade, Bill não necessitava de
novas conquistas para alimentar a vaidade. Como homem, sua afirmação estava em
Estela que o absorvia totalmente. Sexo, por prazer, só com ela. Fora disso,
resguardava-se para uma eventual relação em que seus interesses profissionais
pudessem estar em jogo.
Bill
resolveu morar sozinho no momento em que começou a trabalhar para a revista
Vitrine. Três meses depois de contratado alugou um apartamento no Leme, perto de Estela. A partir dai, sua vida mudou
radicalmente. O almoço dominical na casa de seus pais foi um dos poucos hábitos
que conseguiu manter. Incentivado por Estela, Bill resolveu reiniciar seus
estudos.
Apoiado
por sua mãe, pelo amigo Fernando, D. Dulce e Joelson Martinez, este último um
novo sócio, "Palco & Passarela - Empreendimentos Artísticos
Ltda.", firma idealizada por Bill, já estava rendendo bons dividendos para
o pequeno grupo. Por esse motivo, e para comemorar também a posição de
prestígio que adquirira como fotógrafo na revista Vitrine , ele idealizou um
Natal diferente aquele ano. A comemoração seria no "Napoleão
Bonaparte", que abriria assim suas portas exclusivamente para o evento.
Para que isso fosse possível, teria que ser quebrada uma antiga tradição da
família, já que a noite de Natal era sempre comemorada na casa de seu tio
Giorgio, desde que este viera morar no Rio. Em contrapartida, tio Giorgio
costumava levar a família para romper o ano com o mano Giacomo, pai de Bill.
Assim, a aquiescência do pai e do tio, proprietários daquele restaurante, só
foi conseguida depois de uma bem tramada chantagem emocional engendrada por
Bill.
Em
dezembro de 1972, o restaurante "Napoleão Bonaparte" completou sua
maior idade. Foram 21 anos de grandes realizações, e boa parte daquele sucesso
deveria ser creditado a alguns de seus empregados que, durante todo aquele
tempo, tinham demonstrado competência, dedicação e fidelidade àquela casa. Nada
mais justo, portanto, que a noite de Natal daquele ano fosse também dedicada a
eles e a seus familiares. Pela primeira vez teriam eles a oportunidade de
gozarem dos mesmos direitos e privilégios habitualmente oferecidos aos mais
assíduos fregueses da casa. Seria, por certo, uma festa emocionante que
colocaria numa oportunidade única, em pé de igualdade, empregado e patrão.
Diante daqueles argumentos desenvolvidos dentro de um cérebro carioca - no bom
sentido da malandragem - o sentimentalismo de dois corações genoveses foi
ardilosamente explorado. Afinal, aquela festa de congraçamento poderia no
futuro render bons frutos aos seus promotores: abdicação e fidelidade
redobradas dos seus empregados.
Giacomo
foi encarregado de dar aquela notícia e, quando isso aconteceu, houve um
regozijo geral entre os empregados. A partir daquele momento, o restaurante
passou a ser carinhosamente preparado para a festa.
Mas,
o que Bill custou a perceber, foi que não eram seu sucesso pessoal, nem
tampouco o do restaurante, que ele queria comemorar. Na verdade, o que ele
sentia era a necessidade de ir ao encontro de uma noite de trégua na guerra que
resolvera travar. Era fundamental, por momentos, desacelerar seu ritmo de vida.
Seria importante também rever os amigos, renovar e fortalecer amizades que, aos
poucos, ia deixando escapar, e nada melhor e tão especial para tudo isso que
uma noite de Natal.
Por
seu lado, a lista de convidados foi extensa. Os contatos foram feitos e a
aceitação havia sido total. E agora estava ele, momentos antes da festa,
solitário em seu apartamento, escrevendo cartões de natal para colocar nos
presentes que tinha comprado. Pensava não ter esquecido de ninguém, enquanto
conferia a lista de convidados e os embrulhos espalhados pelo chão da sala. Até
para Sr. Antenor, um senhor viúvo e solitário, Bill comprara um presente - uma
agenda com a capa de couro, para ajudá-lo a lembrar-se de seus compromissos.
Sr. Antenor, despachante e contador, era amigo de D. Dulce. Fora ele que
tratara da legalização de "Palco & Passarela" e, desde então,
ficara responsável pelos livros da firma. Enfim, todos os presentes estavam
ali: um par de brincos para Mariinha, sua ex-namorada; uma estola para D.
Dulce, sua mãe; um livro de fotos premiadas de um renomado artista do gênero,
para Fernando; uma echarpe de seda para Joelson Martinez; um LP com os mais
recentes sucessos de Perry Como, para Julieta; um colar de pérolas cultivadas
para Estela, seu amor; um agasalho de ginástica para Baraúna, seu único amigo
dos tempos do Encantado, além, é claro, dos presentes que comprara para seus
pais, tios e primos. Haviam também pequenas lembranças para um outro escalão de
amigos formado no vôlei da praia e nos papos noturnos regados a chopp nos bares
da esquina, e no quartel do Campo dos Afonsos, no tempo da Aeronáutica.
O
início da festa estava previsto para 22 h e às 21h30min ainda restavam três
cartões para Bill escrever: o de Julieta, o de Baraúna e o de Joelson Martinez.
E foi ao escrevê-los que vieram à sua lembrança fatos marcantes que envolveram
aquelas pessoas.
Estava
Bill para completar um mês de trabalho para a revista "Vitrine",
quando Julieta voltou das férias e
retomou seu lugar de secretária de Estela. O encontro dos dois causou surpresa
a ambos e foi digno de registro. Julieta era uma outra mulher. Trocara os
óculos por lentes de contato e seus olhos, cor de violeta, ganharam um novo
destaque. O cabelo, escurecido num tom mais apropriado para sua pele,
renovara-lhe a aparência. A maquilagem suave que estava usando ajudava a
corrigir as imperfeições de sua fisionomia. E por fim, o modelo decotado da
roupa que vestia deixava à mostra o início do que de mais belo havia em seu
corpo: o busto.
-
Você tem algum parentesco com Julieta, secretária de Estela? - perguntou Bill,
em tom pilhérico.
-
Se vê semelhanças em mim, prova que não consegui enganá-lo tanto quanto
desejava...
Os
dois riram.
-
O que faz você por aqui? - perguntou ela.
-
Sou o mais novo fotógrafo contratado pela casa...
Em
poucos minutos Bill conseguiu resumir como tudo acontecera.
-
Conto com sua discrição - disse ele, por fim. Temos que resguardar nossos
sentimentos. Aqui, Estela e eu nada mais somos do que Chefe e subalterno. Ela é
radical quanto a isso, e assim terá que ser nosso relacionamento. Prazer e
negócios não devem ser misturados. Não posso e nem devo beneficiar-me desta
situação, e nem tampouco desejo prejudicar a carreira dela.
-
Entendo perfeitamente - falou Julieta. É assim também que penso que deve ser.
Antes, porém, quero felicitá-lo por suas conquistas, tanto no campo
sentimental, quanto no profissional. Eu sei que você irá vencer por seus
próprios méritos, mas um empurrãozinho nunca fez mal a ninguém, não é verdade?
-
Claro, eu sei disso, pois devo a você boa parte destas conquistas. Aquele seu
empurrãozinho foi providencial... e sei que devo também algo mais que espero
pagar agora, logo que receber meu primeiro salário...
-
Quanto à segunda parte, não se preocupe. Pague quando puder. Se lhe dei minha
ajuda foi porque fez por merecê-la. Se agora você vê mudanças externas em mim,
logo irá descobrir o quanto mudei internamente. Hoje eu sou outra mulher. Vivo
feliz comigo mesma porque aprendi a gostar de mim. E isto só foi possível a
partir do momento que o conheci. Foi a partir dali que comecei a me conhecer
melhor, quando então passei a me aceitar como sou e não como eu pensava ser. E
a quem devo tudo isso, hem? A você. E de que forma poderei pagá-lo? Com
gratidão e com minha eterna amizade.
-
Quer dizer que uma parte daquela mulher que conheci já não existe mais?
-
Felizmente, não. Mas não se preocupe. Hoje sou uma mulher por inteiro. Preenchi
o vazio que ficou em mim com a parte que descartei, com uma nova parte que você
ainda não conhece...
-
Quer dizer então que aquela mulher que precisava viver uma noite de Cinderela
já não precisa mais viver aquele sonho de sua juventude?
-
Não, porque de certa forma aquele sonho eu já consegui viver...
-
Ei, espere um pouco. Quando isso aconteceu?
-
Há três semanas atrás, em São Lourenço. As Estações de Água, como você deve
saber, costumam ser o paraíso dos casais idosos e das pessoas solitárias, e
assim, naquele cenário, surgiu meu príncipe encantado...
-
E como você o reconheceu?
-
Bem, ele é de lá. É viúvo, tem uma fazenda, uma pequena fábrica de laticínios e
goza de muito boa reputação...
-
Nossa! Um senhor príncipe, hem?
-
Um pouco gasto, talvez, mas bem apessoado e simpático. É amigo do dono do hotel
no qual eu estava hospedada, e adora dançar. Todas as noites, ao jantar, um
conjunto musical tocava para os hóspedes. Nos dois primeiros dias, preferi
fazer minhas refeições no quarto, mas, na primeira noite em que resolvi me
apresentar no salão, estreando meu novo visual e um vestido vaporoso e
decotado, eu o conheci. Dali em diante, foi meu par constante. Não só naquela,
como nas noites subsequentes...
-
E como ficou o romance?
-
À espera de minha decisão...
-
Como assim?
-
Bem, ele me propôs casamento na ocasião, e agora me telefona todas as noites.
Quer que eu abandone tudo por aqui e vá ao seu encontro...
-
E o que é que você está esperando?
-
Ter certeza de meus sentimentos. Como já disse, eu me transformei em apenas 30
dias. Hoje sou uma mulher confiante, e jamais me casaria com um homem por
encontrar nele o remédio para curar minha solidão. Tenho consciência de que ele
é um bom partido, mas não sinto medo de perdê-lo, agora que me encontrei. Penso
que assim como fui capaz de fazer despertar nele tanto interesse por mim,
outros por mim poderão vir a se interessar. Se tal fato não acontecer, e se o
casamento não estiver no meu destino, saberei ser feliz com a minha solteirice.
Naquele
momento a conversa teve que ser interrompida. Estela chamava Julieta pelo
interfone.
O
tempo passou sem que o relacionamento entre as duas fosse alterado. Afinal,
Julieta não se casara com seu príncipe de São Lourenço.
Agora
estava Bill, ali, diante do cartão de natal, procurando encontrar palavras para
escrever à sua amiga:
"...
É justamente no momento em que passamos a nos conhecer melhor, que descobrimos
que tínhamos um amigo importante que não conhecíamos. Feliz Natal, Julieta.
Ass. Bill."
Baraúna
era o tipo de amigo para qualquer ocasião, principalmente aquelas em que o bom
senso teria que dar lugar à força física e à ignorância. Por Bill ele era capaz
de matar e de dar sua vida. No entanto, no Carnaval de 1968, ele foi obrigado a
deixar o amigo Bill em má situação. Tal fato ocorreu quando Baraúna estava
prestando serviço de segurança de um baile carnavalesco para um clube da Zona
Sul. Naquela noite, já na metade da festa, foi chamado à Portaria para dar ajuda
ao porteiro que estava sendo ameaçado por um garotão, desses do tipo
"filhinho de papai".
-
Qual é o problema? - perguntou ele ao porteiro.
-
É este rapaz aí, que quer entrar sem convite, não tem documento, e me parece
menor de idade.
-
Então, infelizmente, não vai poder entrar - falou Baraúna, calmamente.
-
Qual é, ô cara? Eu sou filho de capitão e neto de general...
-
Pode ser até mulher de sargento, porque sem convite, e sem documento, não vai
entrar.
-
Ah, é? Pois saiba que meu pai logo vai mandar aqui uma viatura com a polícia do
exército e aí eu quero ver?
-
Já que você conhece tantos militares, porque não vai brincar no quartel?
Na
época o país vivia sob plena ditadura militar, mas Baraúna, quando enfurecido,
não tinha papas na língua. Depois de mais algumas trocas de palavras ásperas, o
rapaz se retirou para voltar, minutos depois, acompanhado por três amigos.
-
Como é, ô cara... vai me deixar entrar ou não vai?
-
Por que? Está com o convite e com os documentos? - perguntou Baraúna,
procurando manter a calma.
-
Pra que? Pra entrar nesta espelunca, vocês é que têm que me pagar.
Baraúna
nada falou.
-
Pois olha, nanico, eu vou entrar e não vai ser você quem irá me impedir. Eu
acabei de ouvir umas coisinhas a seu respeito que não o recomendam nada bem. É,
você pensa que me engana fazendo tipo de machão, é? Eu sei que você não é
disso. Dizem que você é mais chegado a uma agulha e linha, e a costurar
vestidinhos pras madames... Bichona enrustida e safada.
A
paciência de Baraúna chegara ao fim. A infeliz coincidência levara-o a crer que
o rapaz sabia a estória do costureiro francês. Fechou-se o tempo, e o caso foi
parar no Distrito. O rapaz era, realmente, menor e filho de militar. Seu estado
ficou lastimável. Baraúna brigara com os quatro e também sofrera alguns
estragos. No Distrito, não só ele foi impedido de telefonar para sua família,
como a imprensa fora impedida de apurar melhor os fatos. Podia-se jurar que a
polícia estava tentando abafar a ocorrência, e que alguma coisa estranha
parecia estar acontecendo. O inquérito policial foi presidido pelo Delegado de
plantão que procurou manter as portas de seu gabinete fechadas. Do lado de
fora, porém, podia-se ouvir os gritos do Delegado.
-
Quer dizer então que você resistiu à voz de prisão?
-
Não, eu... - Baraúna foi impedido de responder.
-
Cale-se! Você sabe qual é a pena por espancar um menor e danificar fardamento e
viatura policial?
Estas
e várias outras perguntas e acusações foram feitas sem que fosse dado a Baraúna
o direito de defender-se. E, quando por um momento se fez silêncio, ele falou:
-
Eu só gostaria de dizer a Vossa Excelência, senhor Delegado, com todo o
respeito, que costureiro bichona é a puta que o pariu.
No
exato momento em que Baraúna estava sendo levado por uma viatura da Rádio
Patrulha para Delegacia Policial, Bill foi avisado através de um telefonema
dado por alguém do clube que se identificou como companheiro de serviço de
Baraúna. Em menos de uma hora, Bill, Estela e um advogado chegavam à Delegacia.
As conversações foram demoradas e levou algum tempo até que o advogado pudesse
chegar ao seu cliente.
-
Conte-me apenas a verdade. Não me esconda nada - falou à Baraúna o advogado.
Falando
com dificuldade, com a boca inchada e ainda sangrando, Baraúna narrou o
ocorrido e, por fim, com uma expressão de pavor na face, suplicou em tom
patético:
-
Tire-me daqui, doutor. Pelo amor de Deus, tire-me daqui. Acabo de ser espancado
e nem pude gritar... eles amordaçaram minha boca. Se voltarem a me bater
daquele jeito, vão acabar comigo. Para eles, dar sumiço num corpo é a coisa
mais fácil. Estão me ameaçando de remoção para um quartel do exército.
-
Tenha fé em Deus e na Justiça, e muita calma. Seu amigo Bill está lá fora com
Estela. Nós estamos aqui para defendê-lo. Vou tirá-lo daqui assim que puder.
Confie em mim. Nada de mais grave irá lhe acontecer.
Mas
aconteceu. Durante aquela noite, Baraúna foi várias vezes espancado. Foram
pancadas que costumam não deixar marcas visíveis no corpo, mas que são capazes
de causar lesões internas.
Em
pleno Carnaval não foi fácil encontrar o Juiz de Plantão para expedir o habeas
corpus. Baraúna só foi solto na tarde do dia seguinte, mediante aquele
documento e o pagamento de fiança. Da Delegacia foi direto para uma Casa de
Saúde, e durante uma semana ficou internado para tratamento e observação.
Depois da alta, não conseguiu ser mais o mesmo. Andou escondido uns tempos,
amedrontado. Resolveu abandonar o serviço de segurança e decidiu trabalhar
apenas como instrutor físico. Pouco conseguiu. Recebeu algumas ameaças de morte
e, com sorte, escapou ileso de alguns atentados. Pensou em sumir de vez, mas
não sabia para onde ir. Falou com Bill. Este, por sua vez, sentindo-se
penalizado e de certa forma responsável por tudo aquilo que estava acontecendo
com o amigo, conseguiu para ele um emprego de motorista na revista Vitrine.
Desta forma, além de receber um salário fixo, estaria Baraúna recebendo a
cobertura protetora de um órgão de imprensa. Mas, o mais importante de tudo
isso foi que uma vez mais a história de Jean Louis Marchand, o costureiro
francês, foi mantida em segredo.
"Ao
meu "amigo-cachorro" Baraúna, cuja a fidelidade e coragem é comparada
à de um cão de guarda. Feliz Natal, Baraúna. Do amigo, Ass. Bill."
De
Baraúna, Bill passou para Joelson Martinez, e lembrou-se de como o conheceu, e
do quanto fora importante para ele, e para "Palco & Passarela", a
conquista daquele novo sócio e amigo.
Os
prejuízos nos primeiros meses de atividade da firma já eram esperados, porém, a
partir do quarto mês, esperava-se que ela conseguisse, ao menos, pagar-se, o
que não ocorreu. Os lucros obtidos a partir do primeiro ano de existência não
eram compensadores, se comparados aos desgastes físico e mental que a Empresa
provocava em seus sócios. No entanto, as perspectivas eram as melhores
possíveis. A qualquer momento esperava-se fechar um grande negócio, capaz não
só de acarretar um grande lucro, como também, de por em relevo,
definitivamente, o nome da firma.
Provavelmente
por sua pouca idade e, consequentemente, pela falta de uma vivência maior, Bill
jamais imaginou o quanto seria difícil ver seu primeiro grande sonho realizado.
Assim, impaciente e de certa forma decepcionado, Bill propôs uma reunião dos
sócios com o objetivo de juntos encontrarem novos rumos para a Empresa. Na
verdade, ele já havia tomado sua decisão, decisão esta que se baseava em três
hipóteses, ficando ele com a que melhor acolhida tivesse entre os sócios: 1 -
retirar-se da sociedade, passando sua cota para quem, por ventura, viesse a se
interessar; 2 - venda da firma para outro grupo; 3 - simples fechamento da
firma como última hipótese.
Possivelmente
por ser proprietária de butique e viver no comércio por muitos anos, depois de
longos debates foi, à vista de todos, a de D. Dulce a opinião mais sensata:
-
Já que a maioria decidiu por não vender e nem fechar a firma, resta-nos uma
única solução: comprarmos a parte de Bill. Entretanto, não consigo ver esta
alternativa com bons olhos. Assim como um ser humano, uma empresa precisa ter
alma para viver. Como idealizador, Bill é a alma de nossa empresa. Sei que
estamos todos metidos num negócio, e que qualquer negócio só é interessante
quando oferece lucros. No entanto, apesar do lado prático e comercial que deve
sempre prevalecer, não podemos nos esquecer que este pequeno grupo foi reunido
dentro de um espírito fraterno, e de uma amizade comum. Se pudermos encontrar
uma solução sem que esse espírito venha ferir os interesses da empresa, penso
que todos nós só iremos ter a lucrar - falou ela.
-
Minha decisão já está tomada - falou Bill - mas se me for apresentada uma
proposta melhor, ou uma solução interessante...
Houve
um curto silêncio. Todos se entreolharam e foi D. Dulce quem voltou a falar:
-
Compreendo, Bill, sua decisão. Seu idealismo e sua juventude levaram-no a
tomá-la. No entanto, não acho justo que você se retire da empresa no momento em
que o sucesso para ela me parece tão próximo. Não sou vidente, e por isso posso
estar enganada, mas confio e acredito no nosso empreendimento. Há um ano atrás
você nos contou um sonho, e hoje estamos aqui a seu lado ajudando-o a torná-lo
real. Você foi o grande idealizador. Você é a empresa. Gostaria que estivesse
aqui para comemorarmos juntos nossa vitória, porque sei que você não se
perdoará se aqui não estiver. O dinheiro é muito importante, mas não é tudo,
pelo menos para nós que, felizmente, podemos passar sem isto aqui. Estou certa
que você pensa assim também, e posso até jurar que não foi por dinheiro que
resolveu tomar tal decisão. Em princípio, como já disse, foi por seu
imediatismo. Imediatismo esse que fez despertar sua impaciência. Creio,
todavia, que o mais importante de tudo isso foi o seu senso de
responsabilidade. Sentimento dignificante, aliás. Foi, sem dúvida, este último
sentimento que fez gerar sua impaciência e, por fim fez também nascer em você
um pequeno complexo de culpa. A responsabilidade que sente é por nos ter
envolvido num negócio em que você, de uma hora para outra, deixou de acreditar;
o complexo de culpa é por não poder, devido às suas múltiplas atividades,
empregar todo o seu tempo aqui conosco. Sabemos, e agora falo também em nome
dos demais, que é, na verdade, o que você gostaria de estar fazendo, mas que no
momento lhe é impossível. Será que eu estou errada?
-
Agradeço suas palavras - começou a falar, Bill - e pelo que percebi, elas
representam o pensamento dos demais. Estou sensibilizado, mas não o suficiente
para mudar minha decisão. Para isso acontecer, como disse, será preciso que
encontremos já uma solução. Sei que alguns projetos estão em andamento. Sei
também que estamos participando de algumas concorrências, e aguardando
respostas às propostas que apresentamos, mas isso não é o bastante. Estou farto
de participar de empreendimentos menores de pouco destaque e rentabilidade. Precisamos
de algo grandioso, capaz de levantar a poeira da mediocridade. Precisamos ser
notícia. Notícia maiúscula. Temos que criar algo que possa despertar interesse
nos veículos de comunicação. Mas, o que? Vocês saberiam responder? Se não somos
capazes disto, temos que adotar a forma mais simplista e ao mesmo tempo
onerosa: investir em publicidade. Mas, e o capital para isso? A empresa
necessita de uma injeção de dinheiro, muito dinheiro. Será que alguém aqui está
em condições de aplicar mais dinheiro na empresa? Como é, digam alguma coisa...
Novamente
se fez silêncio, e mais uma vez foi D. Dulce quem voltou a falar:
-
Em parte você tem razão. Embora acredite na empresa como está, eu entendo que
uma boa sacudidela só irá apressar sua afirmação no mundo dos negócios. Estamos
precisando de dinheiro e imaginação, certo? Bem, quem aqui poderia adiantar
algum dinheiro?
-
Bem, depende de quanto - falou Fernando.
-
Penso que se pudermos dividir o montante necessário em quatro partes iguais,
quem sabe... - opinou Germaine.
-
Não creio - falou D. Dulce. Se tomarmos como base a parte que posso dispor no
momento, penso que o total ainda será insuficiente. Não, não acredito que
estejamos em condições deste sacrifício...
-
Então resta-nos a criatividade - falou Fernando.
-
Sim, parece que é o que nos resta - falou D. Dulce. No entanto, entre nós,
apenas Bill tem sido o criador. Ele é o nosso artista. Costumam vir sempre dele
as boas ideias. A verdade é esta e por isso tem que ser dita. Ou nos falta
capacidade para criar, ou deixamos à Bill, por comodismo nosso, a
responsabilidade da criação. Ele tem sido o astro maior. Nós, apesar de
esforçados, temos sido apenas meros coadjuvantes. Bill tem sido sobrecarregado
demais. Por isso sua mente deve estar em recesso criativo. Isto é comum entre
os artistas. Creio que por sentir-se assim é que ele vive angustiado.
Provavelmente, quanto mais se angustia, mais consegue bloquear seu espírito
criativo...
-
Se é isso que está acontecendo, como vamos encontrar uma saída sem dinheiro e sem
imaginação? - perguntou Fernando.
-
Se vocês concordarem com a proposta que vou apresentar, acredito que, a um só
tempo, ela venha solucionar os problemas de falta de dinheiro e de
imaginação... - falou D. Dulce.
-
E o que nos tem a propor? - perguntou Germaine.
-
Um novo sócio - respondeu D. Dulce.
-
Um novo sócio? - perguntou Fernando. Se a divisão do lucro por quatro já tem
sido insuficiente, por cinco então...
-
Tenho certeza que iremos ter bem mais o que dividir por cinco, do que o que
temos agora para dividir por quatro - falou D. Dulce.
-
E quem seria essa pessoa? - perguntou Fernando.
-
Joelson Martinez, um amigo meu, ou melhor, Jô Martins, como prefere ser
chamado.
-
E o que ele faz? - perguntou Bill, curioso.
-
Tudo, ou quase tudo. Jô é um grande artista que está para explodir a qualquer
momento. Ele é a pessoa mais indicada que conheço para desenvolver as ideias de
Bill e criá-las também. Além do mais, tem garra, tempo integral e muito
dinheiro.
-
E ele não poderia vir nos prestar apenas um serviço temporário... como
contratado, talvez? - perguntou Fernando.
-
Estou certa que não.
-
Por que? - voltou a perguntar Fernando.
-
Porque o problema resume-se em dinheiro - respondeu D. Dulce. Se o dinheiro nos
falta e a ele sobra, como poderíamos oferecer-lhe um quantia capaz de
sensibilizá-lo ao invés de ofendê-lo? Assim, como podem perceber, se o dinheiro
é sempre o principal problema, nem sempre é com dinheiro que encontramos a
melhor solução.
-
Se tivermos que votar a respeito da entrada de um novo sócio na empresa, meu
voto será não - falou Fernando, com convicção.
-
Calma, meu amigo. Não se precipite - aparteou Bill. Esta poderá não ser a
melhor solução, mas foi a única até aqui. Entretanto, o mais importante não foi
dito ainda. Fale-nos, D. Dulce, a respeito de seu amigo. Diga realmente quem é
e o que faz ele. Convença-nos a aceitá-lo como sócio.
-
Bem, - recomeçou a falar D. Dulce - Jô tem 28 anos mas tem cara de menino. Ele
é filho de espanhóis. Sua família tem muito dinheiro. Eles são proprietários de
uma rede de hotéis, bares, restaurantes e cabarés espalhados entre os bairros
da Lapa e do Estácio. Por ser ele filho único de uma das famílias, foi criado
para ser um dos sucessores daqueles negócios. No dia que Jô nasceu, seu perfil
já estava desenhado: audacioso, valente, cínico, conquistador, garanhão, em
suma, o terror das mulheres. A pressão foi muito forte e a decepção maior.
Apesar do grande esforço que fazia para aparentar ser o que dele os pais esperavam,
não foi Jô capaz de esconder sua homossexualidade e, aos quinze anos, tudo veio
à tona. A partir daquela revelação, além das pressões, veio a repressão. Tentou
fugir de casa várias vezes, mas sempre lhe faltou coragem. Para agradar aos
pais formou-se com louvor em advocacia primeiro e depois em contabilidade. Em
contrapartida, às escondidas, frequentou cursos de coreografia, cenografia e
decoração. Seu grande sonho sempre foi o de coreografar uma dança
"Flamenga" e ser o seu astro maior. Jô é muito culto, educado e
discreto. Por ter sido muito reprimido, só demonstra sua homossexualidade
quando realmente deseja exibi-la.
-
E o que faz ele agora? - perguntou Bill.
-
Sem aceitar o vínculo empregatício, Jô costuma prestar serviços esporádicos de
advocacia e contabilidade para a família. Porém, para sua satisfação pessoal,
faz decorações de interiores para residências e lojas comerciais. Ele é um dos
mais requisitados vitrinistas do Rio!
-
E por que ele poderá vir a se interessar em se associar a nós? - perguntou
Fernando.
-
Bem, em princípio, por gostar do que estamos fazendo. Depois, por ver grandes
possibilidades aqui para que possa diversificar suas aptidões...
-
Ele pode estar folgado de dinheiro, mas a grande fortuna é da família, não
dele. Mas vamos admitir que a família aceite bancá-lo. Por que então você
acredita que ele iria preferir ser nosso sócio, a abrir um grande negócio só
pra ele? - voltou a perguntar Fernando.
-
Jô é muito sensível e ardiloso. Preferiu transformar o temor que sentia pelos
pais, por um conveniente respeito. Não quer atingi-los diretamente. Ele
acredita que será bem mais fácil convencê-los de que seu talento foi
reconhecido por outros, e que um importante convite lhe foi feito para
participar, como sócio e diretor, de uma empresa em franco desenvolvimento. Os
pais, mesmo depois de sofrerem grandes decepções, costumam sentir-se
envaidecidos ao constatarem o reconhecimento público pelo talento de seus
filhos...
Depois
de uma pequena pausa, continuou a falar D. Dulce:
-
Bem, aí está o perfil do Jô. Se querem conhecer parte de seu trabalho, basta
que venham me visitar. Venham conhecer as novas decorações que mandei fazer,
tanto na minha loja, quanto em meu apartamento. Há quanto tempo vocês não me
visitam, hem?
Para
completar o assunto, Bill apresentou uma proposta que, imediatamente, foi
aceita por todos: Joelson Martinez, ou simplesmente Jô, faria uma visita à
Empresa, tomaria conhecimento dos problemas, saberia a respeito dos
empreendimentos já realizados e os que estavam em andamento e, depois então,
teria uma semana para apresentar ideia nova. Se sua proposta fosse aceita pela
maioria, seria Jô o mais novo sócio da Empresa.
-
Você acredita que ele irá se sentir ofendido por ter que vir a expor suas
qualificações a julgamento? - perguntou Bill à D. Dulce.
-
O maior defeito de Jô é a vaidade, mas, em compensação é a vaidade, também, sua
maior virtude. Se conheço Jô como acredito conhecer, tudo me leva a crer que
ele vai topar este desafio. A vaidade de comprovar seu talento é maior do que a
vaidade de se sentir ofendido por ter que mostrá-lo.
Jô
possuía um físico proporcional à sua estatura que era média. Tinha a pele muito
clara, cabelos e olhos castanhos, lábios finos e nariz comprido e afilado. As
faces eram bem rosadas e os lóbulos de suas orelhas se destacavam pelo
acentuado tom avermelhado. Não se podia dizer ser ele um homem feio, nem
tampouco bonito. Porém, possuía um brilho de vida, um magnetismo que poucas
pessoas possuem. Em contrapartida, era carente de afeição. Jô parecia querer
esconder nos olhos, a princípio miúdos, a carência e a timidez que sentia. Esta
frágil e contrastante aparência fazia despertar compaixão nas pessoas. Jô
parecia ter conhecimento do fato e, se era tipo o que fazia, fazia-o bem. Por
certo esta era a maneira que encontrava para ser aceito de imediato. No
entanto, ao sentir-se acolhido e seguro, seus olhos pareciam crescer em brilho
e tamanho. A fragilidade demonstrada inicialmente cedia lugar a uma vivacidade
incrível e à sua inteligência privilegiada. Por este conjunto de atributos,
inicialmente, e pelas sugestões apresentadas dois dias depois de sua
apresentação, Jô foi aceito na empresa por unanimidade.
"Palco
& Passarela - Empreendimentos Artísticos Ltda." investiu nas ideias de
Jô e não se arrependeu. Muito pelo contrário, pois a partir delas novos
negócios foram realizados. Das inúmeras firmas contatadas, dez aderiram ao
primeiro projeto apresentado por Jô e, no ginásio coberto de um grande clube da
Zona Norte do Rio, foi montado um palco e uma passarela especial. As luzes, o
som e a decoração foram, o que se podia dizer, o que havia de melhor em beleza
e qualidade. O espetáculo constituiu-se de dois desfiles diferentes, realizados
em conjunto. O objetivo: mostrar a moda esportiva e bem descontraída para
aquele verão. Enquanto de um lado cinco fabricantes de roupas mostravam suas
últimas criações, do outro, cinco fabricantes de veículos fora de série,
montados em carroceria de fibra de vidro, exibiam seus últimos modelos para
praia e campo. Assim, para cada fabricante de roupa, houve um fabricante de
carro. Os veículos surgiram no palco, um de cada vez, trazendo cada um dois casais.
Depois desceram a rampa da direita, desfilaram sobre uma passarela reforçada, e
em nível mais baixo, disposta em semicírculo, e retornaram ao palco pela rampa
da esquerda. Um casal de apresentadores animou o desfile. Enquanto ela falou
sobre as roupas apresentadas, ele falou a respeito dos carros. O sucesso foi
retumbante, tanto promocional quanto financeiramente e, a partir daquele,
outros empreendimentos semelhantes foram
realizados.
"Para
Jô, sócio e amigo, que esta seda decore e proteja o pedestal de sua fábrica de
criação. Feliz Natal, Jô. Do sócio e amigo, Ass. Bill." E foi assim que
Bill escreveu o último cartão.
CAPÍTULO 46
O restaurante Napoleão Bonaparte
Quando
Bill chegou ao "Napoleão Bonaparte", acompanhado de Estela, já
passavam das 23 horas e muitos convidados já haviam chegado. Ele estava tenso.
Afinal, seus pais só conheciam Estela de vista. Tinham-na visto a uma certa
distância, em duas ocasiões. A apresentação oficial seria naquela noite. Por
este motivo, Bill tomara uma dose dupla de uísque, ainda na casa de Estela,
antes de sair. Ela, por sua vez, mostrava-se descontraída, senhora de si e
muito elegante num vestido de lamê preto, justo e longo, com as costas nuas e
um decote canoa na frente. Na altura do busto, do lado esquerdo, exibia um
broche de prata, na forma de um escaravelho, com uma esmeralda incrustada.
Além
dos presentes, para por na árvore que fora armada ao lado esquerdo do pequeno
palco onde os músicos se exibiam, Estela levou também um lindo arranjo de
flores para oferecer ao casal.
A
festa foi muito animada e um tanto barulhenta, pois prevaleceu o espírito
italiano. Mas, além dos presentes que deveriam ser abertos depois da
meia-noite, outras surpresas foram reservadas. A primeira pode não ter sido a
melhor, mas foi, para Bill, a que causou maior impacto: a chegada, momentos
depois da sua, de Joana, sua primeira namorada. Ela entrou de braço dado com um
homem alto, forte, atraente e elegante, e que Bill não conseguiu identificar.
Parecia ter ele quase o dobro da idade dela. Depois das apresentações, Bill
ficou sabendo ter sido ele, Dr. Ricardo, o professor de Joana, e que esta, por
sua vez, deveria receber seu diploma de enfermeira em princípios do próximo
mês. Joana aproveitou aquela oportunidade para entregar à Bill e aos pais dele
os convites de sua formatura.
Dr.
Ricardo era médico-cirurgião e estava desquitado.
Por
mais que procurasse mostrar-se natural, Bill não conseguia. A presença de Joana
naquela festa abalara todo o seu equilíbrio emocional. Ao lado de Estela,
passou a ter um comportamento estranho. Ora mostrava-se distante, alheio,
distraído, para em seguida desdobrar-se em atenções e carinhos excessivos.
Estela notou seu comportamento diferente mas procurou manter-se discreta. Cinco
anos haviam-se passado desde que Bill vira Joana pela última vez. Durante todo
aquele tempo ele jamais soube algo a respeito dela. Lembrar, lembrou-se por
diversas vezes, mas, quando isso acontecia, procurava apagar rapidamente a
imagem dela de sua mente. Para ele, era como se aquela imagem tivesse o poder
de fazê-lo mudar de caminho. E isso ele não desejava. De certa forma, foi bom
vê-la. Muito bom mesmo - pensava - saber que Joana estava bem e que continuava
muito bonita. No entanto, aquele reencontro não deveria ter acontecido ali,
naquelas circunstâncias. Não naquela noite. Poderia ter ocorrido em outro
lugar, num outro dia qualquer. Nesses encontros de rua, onde ninguém se atrasa
e nem espera e cria expectativas, porque são casuais. Mas, por que Joana estava
ali, já que ele não a tinha convidado? - perguntou Bill a si próprio, em
silêncio, para logo depois conjecturar - provavelmente mamãe a tenha
convidado... mas, com que propósito? O que ela estava esperando fazer com isso?
-
Convidei Joana e sua família por terem sido nossos bons vizinhos por longos
anos - falou Germaine, quando durante a festa foi inquirida por Bill. Além do
mais - continuou - ela foi sua primeira namorada e pensei que seu nome não
estivesse fazendo parte de sua lista por puro esquecimento seu. Mas por que a
presença dela o preocupa tanto? Pensei que fosse ficar contente em revê-la!
-
Mas é claro que fiquei contente com isso...
-
E o que está acontecendo então? Você não está seguro de seus sentimentos? Não
está apaixonado por outra mulher? - perguntou Germaine.
-
Sim, claro... é que eu estou me sentindo como uma pessoa que não sabe aonde
deve colocar as mãos, e por isso as enfia no bolso. Na verdade, eu não sei como
dividir minhas atenções entre Estela e Joana...
-
Procure ser natural. Você deve atenção a todos os seus convidados igualmente.
Faça isso ao lado de Estela. Ela sim, é que não deve ficar muito tempo sozinha.
E deixe de se preocupar com Joana. Ela está muito bem acompanhada. Já tem quem
se preocupe com ela... pelo menos esta noite - acrescentou.
Bill
não gostou da observação e, para ser gentil, procurou dançar uma vez com cada
dama presente. A primeira a ser tirada por ele foi Germaine, sua mãe. Em
seguida, dançou com Estela, depois com Mariinha e D. Dulce. Finalmente convidou
Joana para dançar. Foi durante a dança o único momento em que estiveram
próximos um do outro, naquela festa.
-
Não sei se fiz bem em vir - falou Joana como se estivesse adivinhando o
pensamento de Bill - mas sua mãe fez tanta questão que eu senti receio de
magoá-la...
-
Por que sua família não veio com você? - perguntou Bill, tentando desconversar.
-
Bem, meu irmão se casou e resolveu passar o Natal com a família. Meus pais...
bem, meus pais você os conhece. São muito envergonhados. A falta de roupa
apropriada para certas ocasiões é a desculpa preferida deles. Em parte, eles
têm razão. Agora mesmo, eles estão preocupados com o que vestir na minha
formatura. Já prometi à mamãe pagar o vestido dela. Olha Bill, talvez pela
primeira vez eu tenha percebido neles uma vontade imensa de vir até aqui só
para vê-los, a você e a seus pais. Senti muito em não poder ajudá-los...
-
Eu compreendo. Qualquer dia desses vou até lá visitá-los. Se for possível,
levarei mamãe comigo.
-
Seria ótimo! Eles ficarão muito contentes.
Depois
de uma pequena pausa, Bill chegou onde queria.
-
E o Dr. Ricardo?
-
O que tem ele?
-
Está apaixonado por você?
-
Se está, ainda não me falou. Mas isso não me preocupa...
-
Ele sabe que eu fui seu primeiro namorado?
-
Sabe, e daí?
-
Porque ele não tira os olhos de cima de nós...
-
E Estela, sabe a nosso respeito?
Naquele
momento Bill não estava pensando em Estela. Ao ouvir seu nome ser citado, teve
a sensação de que não se lembrava de quem se tratava. Porém, mesmo de forma
insegura, recuperou-se a tempo:
-
Não... quer dizer, não me lembro se cheguei a comentar com ela sobre você. Mas,
por que perguntou?
-
Porque ela está me despindo com os olhos.
-
É? Bem, e você, está apaixonada pelo doutorzinho ali?
-
Não - respondeu com indiferença.
-
... Por outra pessoa, talvez?
-
Ora Bill, não seja indiscreto - sorriu. Você está se comportando como se fosse
um policial, ou um adolescente.
Os
músicos pararam de tocar e a conversa teve que ser interrompida abruptamente,
contra a vontade de Bill. Tinha
tanta coisa a dizer, ou talvez
nem tanto - pensou ele - mas a proximidade do corpo de Joana lhe causava
gostosa sensação de prazer. Ele cavalheirescamente levou Joana até a mesa em
que estava seu acompanhante. Logo a seguir, uma acorde musical se fez ouvir.
Passava um minuto da meia-noite e chegara a hora de serem abertos os presentes.
Os anfitriões, com suas respectivas esposas, foram incumbidos da distribuição.
Enquanto uns, pacientemente, desembrulhavam os presentes, outros,
angustiosamente, rasgavam os papéis. Foi uma algazarra generalizada. Houve
alguns gritinhos de exclamação, muita emoção e alegria.
De
Estela, Bill recebeu dois presentes num só embrulho: um livro de autor
americano, impresso em inglês, que falava de como as pessoas deveriam se
preparar para entrar no mundo dos negócios e uma espátula de prata para
abri-lo. De Joana ele ganhou um LP de
Sinatra, cuja música, que dava título ao álbum, Bill havia dançado com ela na
sua festa de 21 anos. Depois que os presentes foram abertos vieram os
agradecimentos. Joana chegou junto de Bill para agradecer e elogiar o bom gosto
dele na escolha da "pochette". Ele não soube o que dizer e quase
esqueceu de agradecer o LP que ganhara dela. "Ah, D. Germaine, você me faz
cada uma" - pensou. Logo em seguida era Baraúna quem chegava até ele para
agradecer e comentar sobre o presente:
-
Puxa, cara, maneiro o agasalho. Dá até vontade da gente voltar a ser instrutor
de ginástica...
-
E foi para isso mesmo que eu dei esta roupa a você - falou Bill. Vamos ser
sócios numa academia. Já pedi ao Sr. Antenor, nosso despachante, para nos
ajudar a descobrir um local adequado. Depois, é só tratar das instalações e da
documentação. Mas não se preocupe, amigão, pois todas as despesas correrão por
minha conta. Você vai entrar com o trabalho. Que me diz?
Aquela
foi a primeira vez que Bill viu Baraúna chorar. Ele enxugou os olhos na manga
da camisa, olhou à distância a esposa grávida, e falou:
-
Vou agora mesmo dar esta notícia à minha mulher. Vou falar bem alto, com a boca
junto à sua barriga. Quero que meu filho escute também e que já nasça com
orgulho do pai.
Logo
depois chegavam até Bill, Jô, D. Dulce, Mariinha, Fernando, Sr. Antenor e
Julieta, que por sinal estava muito bem acompanhada. Outros também vieram e a
confraternização foi geral.
Um
acorde musical se fez ouvir: eram Giacomo e Giorgio que desejavam fazer uma
comunicação:
-
Queremos participar a todos os que aqui estão - falou Giacomo primeiro - que o
"Napoleão Bonaparte" irá para a Barra da Tijuca, sem sair daqui, é
claro.
-
É verdade - falava agora Giorgio. Compramos um ótimo terreno lá e já agora, em
janeiro, iremos dar início às obras. A nossa filial será uma casa mais ampla
que esta, terá um bom palco para montagem de grandes espetáculos e ainda
reservaremos uma grande área para o estacionamento de automóveis.
Aquela
notícia foi surpresa também para Bill. Houve aplausos, gritos de viva e abraços
emocionados.
-
Com duas casas funcionando simultaneamente - continuou Giorgio - vamos ter
necessidade de contratar dois subgerentes. Esperamos encontrar entre os
melhores funcionários desta casa, os dois profissionais que precisamos.
Para
os mais antigos empregados da casa, aquela notícia causou grande expectativa.
Em seguida, foi apresentado um pequeno show improvisado por tio Giorgio que,
com sua voz cheia e levemente anasalada, cantou Vivere, grande sucesso dos anos
40 na voz do inolvidável Carlo Butti. O número foi muito aplaudido. Depois foi
a vez de Germaine que não conseguia se esquivar do insistente assédio de
Giorgio que, àquela altura, já estava mais alegre que o normal. Com uma voz suave
de soprano ligeiro, muita afinação e sentimento, surpreendeu a todos cantando
Vous qui passez e ficaram, para ela, os maiores aplausos da noite.
Para
alguns, a festa foi até o amanhecer e só terminou depois que foi servido um
reforçado desjejum. Para Bill, no entanto, aquela festa acabaria às 4 horas,
quando retirou-se acompanhado por Estela.
-
Vamos, meu amor, ou pretende ficar até o fim? - perguntou ele.
-
Se é comigo que está preocupado, não se incomode. Estou inteira. A festa está
maravilhosa e você é um dos responsáveis por ela. Mas se está cansado podemos
ir.
-
Bem, todos os meus convidados já foram e se nós sairmos agora ninguém irá
reparar. Eu tenho estudado e trabalhado muito ultimamente, e estou realmente
cansado. Além do mais, minha cabeça está pesada... acho que bebi demais...
-
Então vou levá-lo para seu apartamento. Ajudarei você a despir-se e lhe
prepararei um café forte. Está bem assim?
-
Está, mas não me venha com segundas intenções. Só encontro uma finalidade para
uma boa cama neste momento...
-
Não tem importância, meu amor - interrompeu Estela - podemos nos amar sobre o
tapete. Afinal, você disse que está cansado, não disse que está morto.
-
Por favor, hoje não. Chega de emoções e surpresas...
-
Não, não chega não. Prepare seu coração pois deixei uma grande surpresa para o
final. No entanto, só vou falar sobre isso quando chegarmos em casa e
estivermos a sós.
De
repente, Bill sentiu um calafrio. Seu corpo estremeceu. "Será que aquela
noite não teria fim? - pensou".
Estela,
ao volante do carro, dirigia tranquila e em silêncio. Ao lado dela Bill não
conseguia evitar a preocupação que o acompanhou até à sua casa.
Ele
e Estela tomaram banhos reconfortantes, café forte, acenderam cigarros e
deitaram-se na cama. Foi ela quem primeiro falou:
-
Fui promovida. A partir do próximo dia primeiro, ocuparei o cargo de
Diretor-Executivo de Vitrine.
-
Mas que maravilha! Você fez por merecer... meus parabéns - falou ele, sentindo
o que dizia.
-
Agora, acima de mim só o Diretor-Chefe, que é meu amigo, e a Diretoria da
Empresa, é claro.
-
Mas isso é estupendo! E o senhor Fernandes, como ficou?
-
Deixou a Revista. Fizeram um acordo. A saída dele já estava prevista há algum
tempo, assim como também uma mexida geral. Vai haver demissões, novas
contratações, promoções e rodízio em algumas funções.
-
Será que vão mexer comigo também? - quis
saber Bill.
-
Bem, eu indiquei seu nome para ocupar meu antigo posto. Os artigos, crônicas e
reportagens que você fez a título de colaboração foram muito apreciados.
Entretanto, a Diretoria preferiu não arriscar. Eles deram preferência a
contratar um jornalista muito conceituado e com larga experiência...
-
Não tem importância. Eu sei que sou jovem, e que tenho ainda muito o que
aprender. Além do mais, eu gosto de ser fotógrafo e prefiro trabalhar na rua...
-
Ótimo! Gostei de ouvir isso, pois você irá continuar a trabalhar na rua... só
que em outras ruas...
-
O que você quer dizer com isso? - perguntou.
-
Quero dizer que você foi escolhido para ser nosso correspondente na Europa e
deverá embarcar para Paris dentro de 20 dias. Além de ter todas as despesas
pagas, você irá receber três vezes mais o que recebe agora, e em dólares,
naturalmente.
Bill
esfregou os olhos com as costas das mãos. Parecia incrédulo. A emoção sufocou a
alegria e ele apenas perguntou :
-
Por que eu?
-
Por tudo. Por todas as vantagens que você oferece à Revista. Por redigir tão
bem quanto fotografa; por dominar os idiomas francês, inglês e italiano; por
ser culto, educado, elegante e ter boa aparência. Por tudo isso foi você o
escolhido... precisa mais? Paris será seu ponto base, mas, constantemente terá
que ir à Roma e à Londres, principalmente. Terá também que ir a outras capitais
da Europa sempre que houver um acontecimento digno de registro.
-
Você sabe o quanto isto irá representar para mim?
-
Sei, é claro. Tanto sei que vou estar abrindo mão do que de mais precioso tenho
no momento, que é a sua companhia constante.
-
Quanto tempo vou ficar por lá? - perguntou ele, como se não tivesse escutado o
comentário de Estela.
-
Exatamente, não sei, mas penso que ficará o tempo que for útil para a Revista,
e para você, naturalmente. Mas, o mais importante em tudo isso, meu amor, é que
quando você estiver de volta, estará pronto para iniciar a etapa decisiva de
sua vida. Se você passar um ano na Europa, irá crescer por dentro três, quatro,
cinco vezes mais do que cresceria se ficasse por aqui.
-
Eu sei que não vai ser fácil, para mim, ficar longe de você, mas, mais difícil
ainda é não saber quanto tempo terei que ficar distante...
-
Bem, eu procurei defender meu lado também, que não sou tola. Consegui para
você, da Empresa, duas passagens de ida e volta por ano, e sempre que eu puder,
irei passar um fim de semana com você.
-
Você é uma mulher incrível, Estela. Assim que eu estiver em condições de
mantê-la, nós iremos nos casar.
-
Eu já sou casada, esqueceu?
-
Mas está separada há mais de cinco anos e poderá desquitar-se assim que o
desejar.
-
Não gosto da lei do desquite; se ainda fosse
divórcio...
-
Podemos esperar, então. Breve teremos divórcio também no Brasil.
-
Mas quem disse que quero me casar com você? Não está tão bom assim? Casei-me a
primeira vez, fiquei viúva. Casei-me a segunda, não deu certo... você não
conhece o ditado que diz...
-
Que um é pouco, dois é bom, três é demais? - completou Bill.
-
O importante é que você jamais esqueça o que ficou acertado entre nós. Quero-o
livre, porque estando livre você poderá dar sexo a outras mulheres por
interesse, e só a mim por amor. Não exijo exclusividade do seu corpo, mas
espero que seu amor seja exclusivamente meu. Minha dose de sofrimento com os
homens já se esgotou. Eu jurei para mim mesma, depois de sofrer minha última
decepção, que homem algum me faria mais sofrer. Portanto, enquanto você disser
que me ama, eu acreditarei e não admitirei que se case com outra mulher, mesmo
que seja por muito dinheiro. Se isto acontecer, você me perderá. Se algum dia
você me trair, se arrependerá...
Bill
ficou meditando em silêncio. Lembrou de tudo que Estela sofrera durante seus
dois casamentos fracassados. O primeiro marido era mais jovem que ela, bonito,
narcisista, inexperiente, irresponsável e alcoólatra - não conseguia manter-se
nos empregos e costumava ter aventuras extraconjugais; apesar de tudo isso,
Estela acreditava que ele a amava. Lutou desesperadamente para salvar seu
casamento. Com compreensão, paciência e muito amor, conseguiu reconquistar o
marido. Afastou-o da bebida, recuperou-o inteiramente e o perdeu meses depois,
tragicamente, num acidente de automóvel. O segundo marido era do tipo: maduro,
experiente, culto e educado; era filho de tradicional família. Não era bonito,
mas era elegante e vestia-se bem. Possuía excessivo bom gosto. Frequentava
ambientes requintados, tais como: óperas, balet, consertos e vernissagens.
Fumava cachimbo e era conhecedor dos bons vinhos. Parecia um nobre inglês.
Nunca amou Estela. Casou-se com ela para tê-la como seu cartão de visita. Era
estelionatário, habilidoso falsificador e corrupto da pior espécie. Costumava
chantagear pessoas e traficar influências. Apesar de responder a diversos
processos, continuava em liberdade. Ele por pouco não arruinou a vida de
Estela.
-
Em que você está pensando tanto? - perguntou Estela.
-
Em meus pais - respondeu Bill, depois de titubear um pouco. Estou antevendo a
alegria deles quando souberem das novidades. Afinal. vou poder conhecer de perto
meu lado francês e italiano...
-
É verdade, e daqui a mais alguns dias você estará embarcando. De agora em
diante, vamos ter que aproveitar todos os minutos em que pudermos estar juntos
- falou ela com malícia, ao mesmo tempo que procurava juntar seu corpo nu e
perfumado ao dele.
-
É verdade - falou ele ao sentir a mão de Estela por baixo dos lençóis
procurando-o. Bill a enlaçou. Acho que vou ter que começar a me despedir a
partir de agora.
O
sexo venceu o sono e o cansaço, e os dois fizeram amor com muita ternura e
paixão até o sol inundar o quarto de claridade e calor.
O
embarque de Bill foi muito concorrido. Todos os parentes e os amigos mais
chegados estiveram em volta dele no saguão do aeroporto. Estela não pôde
comparecer. A algazarra, que já era grande, aumentou quando o serviço de
alto-falante anunciou o voo 375 da Air-France com destino a Paris. Bill não
conteve a emoção. Joana chegou atrasada no aeroporto. Ao perceber à distância a
emoção dos últimos abraços partiu, em disparada, em direção ao grupo. Alcançou
Bill quando ele já estava para transpor o portão de embarque. Bill largou a
valise de mão no chão e a abraçou forte. Os lábios se tocaram e o beijo foi
longo, demorado. No momento em que se separaram, Bill olhou em volta como se
estivesse procurando alguém.
Na primavera daquele ano Bill inaugurava simultaneamente, com grande festa, seus dois novos negócios: Jeans Only uma fábrica e uma loja de roupas, tendo Germaine como gerente dos estabelecimentos. Alguns meses antes, a partir do momento em que decidiu que iria trabalhar exclusivamente com brim, passou ele a viajar. Não se limitou ao eixo Rio - São Paulo. Diversificou suas viagens, buscando descobrir os principais centros industriais do país capazes de produzir brim de boa qualidade e a bom preço. Conheceu, pessoalmente, dezenas de fábricas. Ele sabia, como poucos, usar o dom que a natureza lhe dera e a experiência que a vida lhe prestara. Com seu porte físico estrangeirado, sua cultura, educação, simpatia e as grandes possibilidades de vir a tornar-se um dos maiores exportadores de roupas de país, despertou para si o interesse dos fabricantes. Ofereceu almoço a alguns, e de outros chegou até a receber convites para jantar em suas residências. Para cada esposa de industrial que o recebeu, Bill teve a gentileza de oferecer um belo arranjo de flores. Durante o transcurso daqueles contatos sócio-comerciais soube deixar transparecer, sutilmente, os importantes relacionamentos que fizera na Europa.
- Será inesquecível! Tenho certeza que ela jamais teve uma festa tão marcante e irretocável, Sr. Alberto - comentou Bill.
- Eu sei, eu sei - interrompeu, Sr. Alberto. Mas apesar de já não estar trabalhando com fotógrafo, gostaria que fizesse um trabalho para mim.
- Fotos de mulher, de minha mulher. Um álbum completo. Quero-a fotografada de todas as formas e por todos os ângulos. Completamente vestida e inteiramente nua...
Se a simples presença de Antonieta ali já fora o suficiente para deixar Bill atônito, suas palavras o colocaram a nocaute.
- Não sou de guardar segredos, por isso vou logo lhe falar: Lúcia, minha enteada, está caidinha por você e eu desejo que não a decepcione.
- Você conseguiria isso para nós?
- Troco o dinheiro por prestígio. Se publicar a reportagem, faça com que eu receba o mérito. Você compreende? Garanto-lhe que não irá se arrepender. Eu e você muito iremos nos beneficiar.
CAPÍTULO 47
A última cartada
A
viagem transcorreu sem maiores incidentes. Bill aproveitou o tempo de voo para
ler o livro que Estela lhe presenteara. Durante todo o percurso ele pôde sentir
sua presença. Mas Estela não estava no livro que ele lia e, sim, na espátula de
prata. Estela era a própria espátula. Aquele objeto cortante, fino, elegante e
precioso era o corpo de Estela. Foi assim que ele imaginou. As folhas do livro
foram abertas com tanta facilidade e eficiência como abertos estavam sendo os
caminhos de sua vida. Até o aroma que costumava emanar do corpo de Estela ficou
no ar quando ele retirou a espátula do estojo; o veludo que o envolvia continha
uma imperceptível mancha.
Bill
não sentiu, em quilômetros, a distância que separa o Rio de Paris. Ele sentiu
em graus centígrados. As desembarcar no aeroporto Charles De Gaulle 40 graus o
separavam do Rio. Saíra do verão carioca, a 35 graus acima de zero, e estava
entrando no inverno parisiense, a 5 graus abaixo. Antes de tomar um táxi, já
estava com a pele engelhada e os lábios arroxeados. Logo percebeu que as roupas
de frio que levara não seriam suficientes, e que comprar roupas mais
apropriadas deveria ser a primeira providência a tomar.
Bill
não passou sozinho sua primeira noite em Paris; passou ao lado de Michelle que,
ainda no avião, aceitara seu convite para jantar. Aos olhos dele fora ela a
mais graciosa aeromoça daquele voo. Esguia, elegante, com os olhos de um azul
profundo ela, apesar de loura, lembrava "Joanna D'Arc", a santa
padroeira da França, por suas feições angelicais. Durante a maior parte do
tempo em que estiveram juntos falaram a linguagem universal do amor e do sexo,
mas, mesmo assim, nos intervalos, Bill aproveitou para exercitar o seu francês.
-
Para quem vem à França pela primeira vez, sua pronúncia de nossa língua está
bem razoável. Precisa aprimorar o francês do parisiense - observou Michelle.
-
Gostaria de exercitar minha pronúncia com você, todas as vezes em que tiver que
pernoitar em Paris - disse ele.
-
Se for pelo exercício da pronúncia, não se preocupe, não há de lhe faltar
mulheres interessadas em ajudá-lo, por aqui.
-
É a primeira vez que exercito meu francês na horizontal. Gostei. Não pretendo
mudar de posição nem de professora...
-
Aeromoça é planta que não tem raiz e que se alimenta de ar rarefeito. Quem,
como eu, escolhe viver mais tempo solta no ar, não pode se dar ao luxo de ter
um pé preso na terra. Por isso prefiro não fazer promessas. Mas pode ter
certeza: você foi um momento sólido, maravilhoso e que se diluirá em lembrança
agradável.
Aquela
foi a única vez que estiveram juntos. Michelle mudou de residência logo depois,
sem deixar novo endereço, tornando-se assim um sonho abrasador de uma noite
fria.
A
permanência de Bill na Europa durou exatamente três anos e, no início de
fevereiro de 1976, voltava ele definitivamente ao Brasil. Dali a um mês,
estaria completando 30 anos de vida. Apesar de jamais ter se descuidado de suas
obrigações profissionais Bill investiu em si mesmo o máximo que pôde, enquanto
esteve no velho mundo. Conheceu quase todas as capitais e as mais importantes
cidades da Europa. Com faro aguçado, bem próprio do melhor agente secreto,
penetrou nos subterrâneos da moda. conheceu o mundo e o submundo da indústria
do vestuário e seu complexo sistema. Contatou pessoas influentes entre
comerciantes, atacadistas, caixeiros-viajantes, industriais, exportadores e
importadores, chegando mesmo a fazer amizade com algumas delas. Apesar da
privilegiada memória, Bill anotou em sua agenda todos os nomes e endereços que
poderiam, num futuro próximo, vir a interessá-lo. Usando técnica e métodos
diversos fotografou cuidadosamente as mais importantes vitrines e passarelas.
Enfim, em termos da matéria que se propôs explorar, o curso não poderia ter
sido mais completo.
Mas
nem só de trabalho viveu ele todo aquele tempo. Houve grandes ocasiões em que
pôde dar vazão a seu lado romântico e emotivo. Entre inúmeras conquistas Bill
deixou dois corações femininos em pedaços: uma jovem balconista de uma butique
em Paris, e uma senhora condessa italiana, cliente VIP dos mais tradicionais
magazines da Europa. No campo da emoção, viveu momentos inesquecíveis ao
conhecer seus parentes franceses e italianos. Bill não conseguiu encontrar
termo de comparação entre Paris e Gênova. Eram cidades muito diferentes uma da
outra. No entanto, sentiu identidade no calor humano, apesar deste lhe ter sido
transmitido de duas maneiras distintas: uma sutil e a outra extravagante, mas
ambas muito sinceras. Com relação às mulheres, tanto a francesa, quanto a
italiana lhes haviam impressionado de forma favorável. Enquanto a parisiense
possuía a elegância da orquídea, a genovesa refletia a alegria da margarida.
Enquanto uma consumia o que de mais sofisticado existia na indústria de cosmético, perfumaria e
vestuário, a outra consumia o que de mais puro a natureza pudesse oferecer
através do sol, do mar e do ar.
Durante
o tempo em que permaneceu na Europa, Bill esteve seis vezes com Estela. Por
três vezes ela foi ao seu encontro, passando fins de semana românticos e
movimentados em Paris. Por três oportunidades foi ele quem esteve no Rio, para
matar as saudades. No entanto, a grande surpresa para Bill foi a visita que
recebeu de seus pais, que ainda não tinham tido oportunidade de voltar à Europa
desde que resolveram radicar-se no Brasil. Há muito que Giacomo e Germaine
vinham fazendo planos para aquela viagem, mas sempre uma coisa ou outra faziam
com que adiassem o projeto para nova ocasião. Entretanto, as saudades que
sentiam do filho único pesaram mais forte e foram uma motivação a mais para
concretização da tão sonhada viagem.
Quando
a saudade apertava, Bill procurava encurtar a distância que o separava de sua
terra e de seu povo, fazendo uso de objetos significativos tais como discos,
fotos e revistas. No entanto, era através de um álbum de recordações que a mãe
fizera para ele que Bill se via transportado para o seu mundo e para o mundo de
seus pais. Aquele álbum, onde algumas fotos estavam apenas para registrar
visualmente a passagem do tempo, continha toda a história deles narrada por
Germaine. Ela levara anos escrevendo-o, buscando em seu diário os subsídios
necessários. Ali estava a infância de seus pais até onde a memória dos dois
pôde captar. Ali estava, também, registrado o momento em que se encontraram
pela primeira vez. Enfim, ali, naquele álbum volumoso, estava o registro da
vida e da morte, da guerra e da paz e, sobretudo, o registro de um grande amor.
Havia também anotações e comentários a respeito dele, Bill, desde a data de seu
nascimento até o dia do embarque para a Europa. Germaine esperava presentear o
filho com aquele álbum no dia em que ele se casasse. No entanto, entendeu que
seria de muita valia, para Bill, ter em mãos a história de sua família enquanto
estivesse longe. "Provavelmente - pensou Germaine - pressionado pela
distância, pudesse ele conhecer melhor suas origens, compreender seus pais, e
dar o devido valor àquele trabalho realizado com muito carinho." No rodapé
da primeira página Germaine escreveu: "se eu algum dia entender que estes
escritos possam ter algum valor literário, procurarei dar a eles uma nova
forma, transformando assim, em romance, a história de minha vida".
Ao
ser chamado de volta ao Brasil pela revista Vitrine, Bill decidiu viajar pela
Varig. Foi a maneira que encontrou para começar a matar as saudades de sua
terra, ainda no próprio avião. Ele só se deu conta do quanto amadurecera,
naqueles três anos, no momento em que o avião que o trazia de regresso deixava
o aeroporto de Paris. Foi como se todo o peso da vivência adquirida lhe caísse
sobre os ombros, naquele exato momento. Bill no mesmo instante lembrou-se de
Estela e do que ela lhe houvera dito àquele respeito. Agora ele compreendia e
sentia o quanto vivera. Externamente a aparência se mantinha jovem, apesar dos
primeiros fios brancos em suas têmporas. O envelhecimento havia se processado
internamente. Portanto, não era visível a olho nu.
-
Deseja beber alguma coisa, senhor? Temos refrigerantes, sucos de fruta, uísque,
vinho, licores, água mineral e cafezinho - falou a aeromoça, empurrando o
carrinho com as bebidas, e revelando um leve sotaque nordestino.
Ele
interrompeu a leitura do álbum de família e olhou, com admiração, aquela jovem
mulata clara, de olhos verdes e corpo escultural, que acabara de lhe fazer uma
pergunta.
-
Já estamos sobrevoando território brasileiro, não estamos? - perguntou ele.
-
Já, senhor - respondeu ela, sem entender o propósito da pergunta.
-
Eu sabia... você é o Brasil! Aceito apenas um cafezinho, obrigado.
A
aeromoça exibiu seu sorriso de marfim.
Ao
desembarcar, no Rio, Bill teve uma recepção festiva. Entre as muitas pessoas
que o aguardavam estavam Estela e Joana. Depois de beijos, abraços, perguntas e
respostas, Estela, em seu próprio carro, levou-o para casa. Antes, porém, Bill
combinou jantar com os pais, naquela noite. No trajeto do aeroporto até seu
apartamento, Bill e Estela pouco conversaram. Ela mostrava-se um tanto tensa,
embora procurasse disfarçar. Parecia que guardava uma bomba dentro do corpo,
pronta para explodir a qualquer momento. Bill entendeu assim e preferiu esperar
por uma detonação espontânea. Achou por bem não provocar a explosão dentro do
carro.
-
Espero que, da próxima vez em que eu estiver presente, aquela sua amiguinha
saiba conter melhor as emoções - falou Estela, procurando dominar a raiva.
-
Do que é que você está falando? - perguntou Bill, enquanto abria uma de suas
malas.
-
Não procure ganhar tempo com perguntas tolas - disse ela. Você não é um homem
comum... é inteligente bastante para saber de quem estou falando.
-
Refere-se à Joana?
-
Viu como foi fácil? E quem mais poderia ser? Esta foi a segunda vez que ela se
comporta daquela maneira na minha presença, e espero que seja a última - falou
Estela, asperamente.
-
Não a estou reconhecendo, minha querida. Não creio que possa ter mudado tanto,
em apenas três anos.
-
Por que ? Antes você me achava uma idiota?
Bill
estava realmente surpreso. Aquela estava sendo a primeira explosão de ciúme de
Estela.
-
Joana foi minha primeira namorada - continuou ele. Penso que já falei com você
a respeito. Rompemos um namoro de adolescentes há treze anos e nada mais
tivemos um com o outro.
Bill,
deliberadamente, omitiu o que havia acontecido entre ele e Joana na noite em
que completou 21 anos.
-
Agora foi que você me deixou mais apreensiva e preocupada. Como pode uma mulher
amar um homem, à distância, por todo esse tempo!? É inacreditável!
-
Isso é você quem está dizendo. Eu e Joana somos apenas grandes amigos, amigos
de infância, ou você, agora, não acredita que possa haver uma grande amizade
entre um homem e uma mulher?
Estela
nada falou, mas foi entre irônico e amargo o seu sorriso.
-
Eu só consigo amar uma mulher de cada vez, Estela, e é você, paixão, quem eu
amo agora... pode ter certeza disso - falou Bill, procurando dar um tom de descontração
à voz.
-
Gostaria de acreditar em você, Bill, pois não suportaria a ideia de ser,
apenas, a mulher de que você precisa no momento.
-
O que está acontecendo com você, meu amor? Onde está aquela mulher orgulhosa,
confiante e quase inatingível que conheci, e que aprendi a admirar?
-
Morreu. Lamento ter que dizer isso, Bill, mas aquela mulher já não existe
mais...
Estela
entrou numa crise de choro. Bill ofereceu-lhe alguma coisa para beber e Estela
acabou por aceitar uma dose de uísque. Suas mãos estavam trêmulas ao segurar o
copo.
-
Estou me odiando e você não tem culpa disso - começou Estela a falar. Prometi a
mim mesma que homem nenhum me faria perder o controle, e veja como estou. Fui,
de certa forma, responsável por sua ida para a Europa e, ao descobrir o quanto
seria difícil para mim conviver com sua ausência, passei a me detestar. Eu sei
o quanto a Europa foi e será importante para seu futuro e não estou arrependida
de tê-lo ajudado a ir... quero que fique certo disso. O que estou tentando dizer
é que foi a partir de sua viagem que eu pude constatar o quanto você é
importante para mim. Você é hoje, Bill, o meu oxigênio... não posso viver sem
você, ou longe de você...
-
Eu já cheguei de viagem, lembra-se? Eu estou aqui e não vou mais ficar longe de
você por tanto tampo... prometo. Um dia eu jurei que só ficaria ao seu lado por
amor, e como estou certo de que vou cumprir minha palavra, não vejo o porquê de
se preocupar...
-
Não estou preocupada com o hoje e, sim, com o amanhã. Às vezes penso que estou
criando você para um futuro em que não vou estar presente. Posso estar sendo um
tanto egoísta, mas é o que sinto, e é isto o que importa. Quem não é egoísta
quando ama, é porque não ama de verdade. O egoísmo é um dos caracteres do amor.
Vendo-o crescer, Bill, sinto uma sensação ambígua, preocupante. Ao mesmo tempo
em que me dá felicidade saber que sou responsável por boa parte de seu
crescimento. apavora-me a ideia de vê-lo crescer tanto, tornar-se tão grande, a
ponto de não ser possível, a mim, guardá-lo em meu mundo.
-
Não se preocupe, tolinha. Mesmo que eu venha a crescer tanto assim, vou estar a
seu lado... e sabe por que? Porque não vai haver mais o seu mundo e sim nosso
mundo.
Com
um lenço Bill enxugou as lágrimas no rosto de Estela e, em seguida, beijou seus
olhos. Depois, retirou um embrulho de uma das malas e entregou a ela.
-
Este é um dos presentes que trouxe para você. Espero que goste. Experimente-o.
Vou tomar uma ducha e barbear-me. Enquanto me espera, deixo-a em companhia de
boa música.
Bill
colocou quatro LPs no toca-discos automático. O primeiro era de canções
românticas francesas, interpretadas por Charles Aznavour. Quando ele reapareceu
de banho tomado e a barba feita, cobria o corpo nu com um robe de chambre de
seda. Recostada na cama e com as pernas cruzadas, Estela parecia estar mais
calma, bebendo sua terceira dose de uísque. Ela estava agora bonita e
provocante, vestindo o presente que Bill lhe dera - um negligé rendado, cor de
carne que, na posição em que ela se encontrava, deixava à mostra o início das
coxas morenas e roliças. Estela estendeu os braços para ele, que logo percebeu
a urgência. Em seguida, ela apagou o abajur de cabeceira e o quarto mergulhou
na escuridão, já que as cortinas estavam fechadas. Da sala vinha agora o som de
canções italianas na voz de Domenico Modunho.
Pela
primeira vez, entre os dois, os desempenhos sexuais deixaram a desejar. Carente
de sexo, Estela mostrou-se insaciável todo o tempo, e insatisfeita depois.
Preocupada demais com suas premências, não foi capaz de trocar carícias,
recebeu-as apenas. Foi uma forma de egoísmo inconsciente. Por outro lado, Bill,
acostumado a ser estimulado, jamais chegou perto do homem viril que sempre foi
capaz de ser. Talvez pela responsabilidade que, de repente, começou a sentir.
Talvez pela ausência das carícias preliminares - estradas secundárias que nos
levam ao êxtase supremo, destino final, revelando novas paisagens - ou, quem
sabe até, pela diferença do fuso horário que agora parecia estar pesando em
seus nervos. O fato é que o prazer para ele só chegou quando não mais esperava,
como quem recebe uma herança às vésperas da morte.
O
jantar transcorreu num ambiente de muita alegria e foi servido à Bill na nova
residência de seus pais, um luxuoso apartamento de cobertura na Barra da
Tijuca. Aquele imóvel foi comprado por Giacomo da mesma forma que comprara o de
Copacabana, ou seja, ainda na planta. Era bem mais espaçoso que o primeiro e
havia mais requinte em móveis e decoração. Os principais cômodos davam vista
para o mar. Por sua vez, Giorgio comprara do irmão o apartamento de Copacabana.
Interesses e conveniências acabaram por satisfazer aos dois, já que assim eles
passaram a residir próximo de seus locais de trabalho. Enquanto Giorgio agora
administrava o restaurante "Napoleão Bonaparte" de Copacabana,
Giacomo comandava o "Napoleão Bonaparte 2", da Barra da Tijuca. No
momento em que decidiram por esta fórmula um outro acordo foi feito entre eles:
Marco Antônio, filho mais velho de Giorgio, ficaria responsável pela administração
das diversas bancas de jornal e da empresa de transportes e mudanças.
Marco
Antônio, cinco anos mais velho que seu primo Bill, nascera antes de seus pais
se casarem. Tio Giorgio chegou ao Brasil como imigrante, em 1938, e foi morar
em São Paulo. Natalina, sua mulher, mineira de Cataguazes, chegou a São Paulo
na mesma ocasião e empregou-se como cozinheira na pensão em que tio Giorgio
costumava fazer suas refeições. O conhecimento partiu dali, e o namoro também.
O amor atingiu Giorgio no estômago, inicialmente, e depois espalhou-se por todo
o corpo. O tempero de Natalina estava sempre no ponto certo, tanto o tempero da
comida, quanto o tempero de seu gênio. Aquela mulher desconfiada, tímida, de
olhar baixo e de poucas palavras, era o oposto de Giorgio. Aqueles saborosos
pratos da cozinha mineira eram estranhos à culinária genovesa e assim, atraídos
por pólos opostos, os dois, Giorgio e Natalina, apaixonaram-se um pelo outro.
Certo dia Giorgio foi até a cozinha da pensão e falou:
-
Breve terei dinheiro suficiente para tirá-la daqui, e aí então você irá
cozinhar só para mim, Lina.
Natalina
não disse uma só palavra. apenas sorriu, com seu jeito tímido e com o olhar
baixo, na direção dos pés do fogão.
Três
anos depois nascia Marco Antônio, que ao ser batizado, um mês após ter nascido,
acabou sendo uma testemunha inocente do casamento de seus pais.
O
jantar, oferecido à Bill na noite da chegada, havia sido preparado por sua tia
Natalina. Germaine cedera prazerosamente a cozinha de sua nova residência à
cunhada, por entender que era daquela forma singela que Natalina desejava
homenagear o querido sobrinho.
-
Você está cozinhando cada vez melhor, tia Lina - comentou Bill.
Natalina
nada falou. Apenas sorriu e baixou o olhar, timidamente, em direção aos pés da
mesa da sala.
Além
dos pais e tios de Bill, os primos Marco Antônio, Mário e Márcia, com suas
respectivas esposas e marido, também estiveram presentes àquele jantar. Bill
não esqueceu ninguém e, a cada um, ofereceu sugestiva lembrança. A conversa na
varanda prolongou-se até às 22 horas, quando então tios e primos se retiraram.
Bill resolveu ficar mais um pouco para ter oportunidade de conversar a sós com
os pais.
-
Como vão os negócios, velho?
-
Bem, muito bem mesmo - respondeu Giacomo.
-
E a saúde?
-
Também, graças a Deus.
-
Não minta para seu filho - retrucou Germaine. A saúde de seu pai tem nos
preocupado um pouco, filho...
-
O que ele tem?
-
Coração fraco - disse ela. O médico já proibiu o cigarro, recomendou dieta e
pediu que reduzisse em, no mínimo, 50% seu ritmo de trabalho, caso queira viver
para esperar um neto...
-
Um neto!? - e Bill sorriu. Mas, o que há com o coração dele? - perguntou,
preocupado.
-
Bem, ele terá que fazer uma série de exames, mas o doutor acredita que os problemas
de agora venham a ser consequência de problemas passados... com a paralisia que
teve na infância, quero dizer.
-
Bobagens, filho - falou Giacomo. Posso até fazer dieta e parar de fumar, mas
deixar de trabalhar, nunca. Não se preocupe, filho, trabalho nunca matou
ninguém. O que acaba com as pessoas é a ociosidade.
-
Mas ninguém está lhe pedindo para não trabalhar... basta que reduza o ritmo,
não é verdade, mama ?
-
Por falar em trabalho, como está o seu,
lá na Revista? - perguntou Giacomo, como se não tivesse escutado a observação
do filho.
-
Até aqui vai muito bem, penso. As novidades só irei saber amanhã...
-
Bem, você já está crescidinho, e imagino que sabe o que faz. Mas, escute o que
eu vou lhe dizer: patrão, por melhor que seja, será sempre patrão. Homens como
você não se contentam em viver de salários, se é que o conheço. Seus negócios
estão indo bem sem você, mas poderiam ir melhor com você à frente deles. Não
acha que já é hora de largar a Revista, e dedicar tempo integral a seus
empreendimentos?
-
Não, papa, ainda não...
-
Por causa de dinheiro?
-
Não, embora esteja ganhando bem. Acontece que já fiz meus planos para o futuro.
Sei que o que tenho agora é muito pouco, em comparação com o que desejo para
mim. Não posso e nem devo me precipitar. Ainda vou precisar da Revista por
algum tempo, para tê-la como suporte. Vitrine, hoje, é meu cartão de visita,
meu escritório, meu ponto de referência... é a chave mestra que me ajudará a
abrir grandes portas num futuro próximo...
Enquanto
ouvia seu filho falar, Giacomo constatava agora o quanto ele sempre fora
orgulhoso e auto-suficiente. Jamais lhe pedira um simples conselho. "Não -
pensou - não seria com conselho que poderia ajudá-lo, mas quem sabe se com
dinheiro, muito dinheiro. Afinal, só ele e Germaine sabiam, com detalhes, a
respeito da conta que abrira em Zurique no Bauerkreditbank, famoso banco
suíço." Há 30 anos que a Associazione Spata Fratelli - Viaggi e Turismo,
agora a primeira empresa turística de Gênova e a terceira da Itália, vinha depositando
naquele banco, em nome de Giacomo Spata, os dividendos a que ele fazia jus. A
empresa crescera assustadoramente, principalmente nos últimos anos, e o
montante do lucro acumulado durante aquele tempo, dividido em oito partes
iguais, ia bem além da melhor expectativa. Com a habitual precisão suíça, a
cada dia 31 de janeiro, o Bauerkreditbank enviava-lhe o extrato de sua conta
pelo correio e, na manhã daquele dia, Giacomo recebera correspondência. Ao
lembrar-se desse fato, sorriu orgulhoso. Durante 30 anos jamais precisara tirar
um dólar sequer. Agora, sua pequena fortuna estava lá na Suíça à disposição do
filho, para que a ele fosse possível a realização de todos os sonhos, por mais
grandiosos que pudessem vir a ser. Giacomo plantou e soube esperar. Sonhara
todos aqueles anos com o momento de poder ajudar o filho e imaginava agora
estar próximo àquele dia. E então, quando chegasse o momento - pensou - ambos
iriam se sentir orgulhosos e agradecidos.
-
Pois bem - falou Giacomo - já que seus planos estão prontos, não irei
importuná-lo com conselhos. No entanto, prometa-me que virá me procurar quando
estiver disposto a ampliar os negócios ou mesmo iniciar um novo empreendimento,
por maior que este seja. Estou pronto a ajudá-lo e surpreendê-lo e,
garanto-lhe, dinheiro não será problema.
-
Obrigado, papa; jamais irei esquecer-me disso.
Ao
despedir-se, Bill beijou os pais com ternura e falou:
-
Cuide bem desse velho teimoso, mama. Minha felicidade só será completa se vocês
estiverem vivos para felicitar-me no momento de minha chegada ao topo. E de lá
do alto vou começar a pensar em dar um neto para vocês.
CAPÍTULO 48
Bill e a
revista "Vitrine"
Na
manhã seguinte, dia 2, primeira segunda-feira do mês de fevereiro de 1976,
pontualmente às 8 horas, Bill apresentava-se ao Sr. Carvalho. Aquela era a
primeira vez que entrava na sala do Diretor-Chefe da Vitrine, e ficou
impressionado com o luxo e o bom gosto ali existentes. A sala era espaçosa e
bem iluminada. Os móveis, de nogueira. Além da grande mesa com uma cadeira
giratória, havia outra cadeira em frente à mesa, um bar, uma estante e um
conjunto estofado de poltronas de couro. Emoldurada pelas poltronas, havia uma
mesa comprida e baixa, com tampo de vidro e diversas revistas do gênero da
Vitrine, nacionais e internacionais, dispostas de forma irregular como se
tivessem sido manuseadas por adulto apressado, ou por criança normal. As
cortinas e tapetes eram em tons caramelados, claro e escuro. As paredes eram
revestidas de sisal e havia nelas alguns quadros pendurados, entre pinturas a
óleo de renomados artistas, retratos e diplomas. Na parede lateral direita
havia uma porta, que dava entrada para o banheiro privativo. A porta que ficava
na parede da esquerda fazia comunicação com a sala de Estela. Era ali, no
penúltimo andar do prédio, que ficavam confortavelmente instalados os diretores
da Revista. O último andar fora reservado para a Direção da Empresa. Bill
esteve lá uma vez com Estela. O luxo era ainda maior; além da sala do
Diretor-Presidente havia uma outra, bem ampla, só para reuniões, um pequeno
auditório, biblioteca, sala de estar, sauna, copa e cozinha.
O
Sr. Carvalho era uma pessoa extremamente simpática. Um pouco gordo,
ligeiramente calvo, tinha estatura média, usava óculos de grau, fumava cachimbo
e vestia-se bem. Embora de aparência calma, era um homem dinâmico. Quando Bill
entrou em sua sala, sentiu um odor acre-doce no ar. O Sr. Carvalho sorriu,
soltou uma pequena baforada de seu cachimbo, e falou:
- O
senhor está de parabéns. Fez um excelente trabalho. Não está sendo fácil, para
nós, encontrar uma pessoa capaz de substituí-lo.
-
Desculpe, mas não entendi. Se estavam tão satisfeitos comigo na Europa, por que
me trouxeram de volta?
- A
experiência nos diz que, exceto em casos excepcionais, as pessoas não devem
permanecer por muito tempo nas mesmas funções, principalmente no exterior. Isto
não costuma ser bom, nem para elas, nem para a Empresa, por mais que possam
estar satisfeitos um com o outro. O humano é um ser mutante, assim com é a
natureza. Não devemos prolongar o sol ou a chuva. O dia ou a noite. Para tudo
existe um tempo certo. Temos que estar sempre renovando, para evitar a rotina e
a estagnação. Não devemos permitir que o casamento entre funcionário e função
dure mais que o necessário, para que não haja desgaste na relação, nem acomodação.
Quando nos acomodamos nosso rendimento cai, sem que nos apercebamos do fato. O
mais importante, em tudo isso, é sabermos o momento exato de mudar. É por tudo
isso, Bill, que você está aqui, agora. Para que não percamos um profissional
com grande potencial. Para nos ser mais útil e a você próprio.
Bill
entendeu que ouvir era melhor do que falar, naquela oportunidade, e as
novidades logo chegaram aos seus ouvidos. Julieta, ex-secretária de Estela,
finalmente encontrara seu príncipe encantado. Deveria casar-se e deixar a
Revista. Ele, Bill, seria o novo Editor de Modas a partir daquele momento.
Teria uma sala só para ele, com direito a uma secretária e a um substancial
aumento de salário.
-
Aposto em seu futuro na Empresa, Bill, - falou o Sr. Carvalho - e por isso
desejo manter-me em meu cargo o tempo que for necessário, pois pretendo
passá-lo diretamente a você. No entanto, você terá que passar antes pela
Diretoria-Executiva, hoje a cargo de Estela.
- E
quanto a ela, para onde irá? - perguntou Bill, preocupado.
Finalmente
o Sr. Carvalho conseguiu provocar o assunto que o vinha preocupando: Estela.
Bill ouviu, com muita atenção, tudo o que ele tinha para lhe dizer. Surpresa
seria muito pouco para exprimir o que sentiu, quando o Diretor terminou de
falar. Ele, Bill, estava estupefato.
-
Quer dizer que Estela está assim? - perguntou.
-
Além da admiração que nutri pela excelente profissional que sempre foi,
prosseguiu Sr. Carvalho, eu e Estela fomos grandes amigos. Mas como um dos
responsáveis pela Empresa não vou poder permitir que Estela, ou quem quer que
seja, a prejudique. Apesar de ser ela uma mulher muito reservada,
principalmente no que tange à sua vida particular, não conseguiu esconder de
mim por muito tempo suas emoções afetivas. Você, Bill, por ser bem mais jovem
que ela e muito ambicioso, é um risco que Estela não deveria correr...
-
Mas apenas por ser jovem e ambicioso?
-
Não, não apenas por isso mas, sobretudo por tudo que ela já sofreu em seus
relacionamentos anteriores. Se afastar você de Vitrine hoje, fosse a solução
para Estela, eu não hesitaria um só minuto para demiti-lo. Mas sei que esta não
é a solução. Tal medida poderia agravar a situação dela. Uma nova decepção
acarretaria uma sobrecarga de emoções, que na certa causaria consequências
imprevisíveis...
-
Mas eu a amo...
-
Hoje é até possível que você a ame - interrompeu o Sr. Carvalho - mas, e
amanhã? Já pensou o que será de Estela no dia em que descobrir que seu amor por
ela já não existe mais? Eu a preveni sobre você e quanto ao grande risco que
está correndo, mas ela preferiu não me dar ouvidos. E digo-lhe mais... naquela
oportunidade fui muito além. Disse-lhe que se chegasse o dia em que o
relacionamento extra-profissional de vocês fosse capaz de afetar os interesses
da Revista, eu faria minha opção: ficaria com o profissional que melhor serviço
pudesse prestar à Empresa e degolaria o outro. Como vê, Bill, esse dia parece
que já não está tão distante e, caso não haja mais transformações, minha
escolha já foi feita. Portanto, Bill, só você poderá mudar o rumo dos acontecimentos.
Por favor, peço-lhe, tente encontrar um meio de ajudar minha querida amiga.
Não
se costuma cronometrar o silêncio, mas o tempo em que Bill permaneceu calado
foi suficiente para preocupar o Sr. Carvalho, que voltou a falar:
-
Quero que fique bem claro, Bill, que costumo respeitar a vida particular das
pessoas, e só interfiro quando os problemas de cunho particular passam a
prejudicar a Empresa. Encontre uma solução. É um apelo que faço.
Tudo
o que ouviu a respeito de Estela, e aquele apelo final, fizeram com que Bill
saísse daquela reunião profundamente abatido. Teria que repensar sobre sua vida
com ela. O que seria mais importante para seu futuro? O amor de Estela, ou seus
ambiciosos planos? Teria que optar, ou seria possível conciliar as duas coisas?
Bill não encontrava respostas. O que sabia era que precisava fazer alguma coisa
por Estela, urgentemente. Apesar disso, sua presença à frente dos negócios
paralelos que vinha mantendo se fazia necessária. A Academia de Ginástica, por
exemplo, não andava bem e Baraúna, desesperado, já havia por diversas vezes
solicitado ajuda a Bill. Assim, apesar de ter tentado, não pôde dar ele a
Estela a ajuda que tanto ela precisava. Enquanto isso, a insegurança em Estela
grassava de forma incontrolável, assim como o consumo de bebida alcoólica. O
álcool, para ela, passou a ficar mais perto do vício do que do hábito.
Fechava-se o círculo vicioso: quanto mais Estela bebia para disfarçar a
insegurança, mais se descontrolava. Seu descontrole emocional expandiu-se para
o campo profissional, prejudicando-a sensivelmente. Agora, só em alguns raros
momentos Estela conseguia lembrar, a Bill, a mulher que ele aprendera a admirar
e amar.
Em
contrapartida, Bill começava a ver ampliados seus horizontes. Os oportunos
conhecimentos que fizera na Europa, agora contatados, já rendiam bons frutos. A
exportação de roupas brasileiras para o velho mundo foi o primeiro caminho.
Bill intermediava fábricas de pequeno e médio porte, do Rio e de São Paulo, a
importadores europeus. O bom relacionamento passou a ser seu melhor
investimento e o resultado ele já obtinha em dólares. A captação de recursos
estava sendo processada por Bill de uma forma segura, forma esta que pudesse
proporcionar a menor chance possível de risco. Envolver sapatos e bijuterias
qualificadas, da indústria nacional, já faziam parte de uma futura etapa. Para
isso precisaria dispor de mais tempo.
Quando,
em janeiro do ano seguinte, a situação de Estela ficou insustentável na Revista
Vitrine, Bill foi convidado pelo Sr. Carvalho para ocupar o lugar dela. Naquela
oportunidade, respondeu:
-
Ao mesmo tempo em que estou surpreso com o rumo dos acontecimentos, sinto-me
lisonjeado com a confiança em mim depositada pela Empresa. Entretanto, lamento
dizer que não pretendo aceitar o convite...
O
Sr. Carvalho franziu a sobrancelha. Sua fisionomia se contraiu. Transmitia
surpresa e decepção.
-
Por causa de Estela? - perguntou, simplesmente.
-
Sim - respondeu, secamente, Bill.
-
Mas você estará jogando fora, provavelmente, a maior oportunidade de sua vida.
Ocupando o lugar de Estela você estará a um passo de ser elevado ao Conselho
Diretor de toda a Empresa. Receberá o mais alto salário, dividendos e um pacote
de ações como bônus. Já pensou no que isto representa? Terá uma carreira
meteórica e será o mais jovem conselheiro que a Empresa já teve...
-
Sim, mas o que será de Estela?
-
Esta posição estava reservada a ela, eu sei, e daí? Para que se possa subir a
escada da fama não basta, apenas, que se tenha inegáveis qualidades. Há que se
ter equilíbrio, e isto é justamente o que hoje Estela não tem. A posição de
prestígio que você conquistou na Empresa deve, exclusivamente, a seu valor
pessoal... quero que esteja certo disso. Com relação a você, devo creditar à
Estela um único mérito - o de tê-lo descoberto para nós...
-
Para mim, tal fato já é o bastante. Se qualidades tenho, foi Estela quem as
descobriu. Foi ela a primeira pessoa que acreditou em mim e me apoiou.
Abandoná-la agora, no momento mais crítico de sua vida profissional, seria
crueldade e traição de minha parte.
- O
verbo "trair" não costuma ser conjugado no mundo dos negócios -
respondeu Sr. Carvalho.
-
Porque a Empresa - toda Empresa - é uma máquina, e máquina não tem coração.
Estela, eu, o senhor e todos os demais empregados desta Empresa não passamos de
peças dessa engrenagem. Num momento somos peças de reposição; no outro somos
peças descartáveis...
-
Entendo que a proposta que estamos fazendo é irrecusável. Porém, se é tempo que
precisa para pensar, fique à vontade. Pense com calma e responda-me depois. Por
certo você, homem sensível e inteligente, encontrará uma outra maneira de
apoiar Estela e de ser solidário com ela. Reflita sobre sua carreira, Bill ...
no prestígio que vai adquirir. Seu salário está em aberto. Não podemos nos dar
ao luxo de perdê-lo...
-
Não, não posso. Minha decisão já está tomada. Não vou ter condições psíquicas e
morais para assumir um lugar que é de Estela, por direito. Não é justo. Ela
dedicou boa parte de sua vida à Empresa. Se ela for mandada embora, sairei
junto. E se assim for, gostaria que aceitasse meu pedido de demissão, porque
este será em caráter irrevogável.
- O
ato de demissão de Estela já está assinado. Ela receberá tudo a que tem direito
e mais algumas vantagens como forma de reconhecimento aos bons serviços
prestados anteriormente. Não somos tão frios como nos julga. Se sua decisão de
pedir demissão é irrevogável, faça-o por escrito que, lamentavelmente, serei
obrigado a aceitá-la.
-
Há quase um ano atrás o senhor me ensinou uma lição que espero ter aprendido,
quando falou que nós, como mutantes que somos, temos que descobrir o momento
certo para mudar. Pois bem, Sr. Carvalho, este é o meu momento - concluiu Bill.
Tudo
não passou de uma incrível coincidência. Para Bill, uma oportuna coincidência.
O mundo de Vitrine já havia se tornado pequeno demais para ele. Bill sentiu
profundamente a forma com que Estela foi afastada da Revista, mas, em momento
algum recusou a oferta para ocupar o seu lugar por altruísmo, e sim, por
entender que estar fora da Empresa, naquele momento, seria mais vantajoso para
ele. Assim, aquela suposta solidariedade serviu para amortecer o impacto do
choque que Estela sentiu ao perder o emprego. O relacionamento entre ela e Bill
melhorou sensivelmente. Durante algum tempo a paz se fez presente. Ele,
paciente e compreensivo, procurava fazer todas as vontades de Estela. Amparou-a
física e materialmente enquanto esteve desempregada, enchendo-a de carinho,
ternura e sexo, muito sexo. No entanto, ao findar o sexto mês, aquela situação
começou a se modificar. Bill envolvia-se, cada vez mais, em novos
empreendimentos, reduzindo por conseguinte seu tempo livre, tempo este quase
todo dedicado a Estela. Esta, por sua vez, vivendo apenas em função de Bill e
sendo por ele sustentada, passou a impacientar-se. Aquela situação a
incomodava. Afinal não eram casados, e nem sequer viviam sob o mesmo teto.
Estela, de temperamento ativo, independente e irrequieto, começava a sentir
desgaste no relacionamento, e pânico diante de suas lides, agora exclusivamente
domésticas. Passara o período em que cozinhar, arrumar a casa e preparar-se
para esperar Bill eram novidades para ela. Aqueles já não deveriam ser por mais
tempo seus únicos objetivos de vida. A princípio, Estela resistiu ao único
convite que recebeu para trabalhar pois, para aceitá-lo, teria que se
transferir para São Paulo. A experiência que havia tido ao ficar longe de Bill
quando este esteve na Europa, não fora nada boa. Pelo contrário, pois foi a
partir daquela experiência que sua maneira de ser e de viver passou a
modificar-se. Mas, apesar de todas as ponderações, Estela resolveu aceitar o
convite, antes que fosse tarde demais. Entendeu que separar-se de Bill,
temporariamente, seria melhor do que perdê-lo de vez, e ele o estava escapando como
água por entre os dedos. Tal desfecho seria inevitável - pensou ela - se não
readquirisse, urgentemente, sua capacidade de trabalho. Compreendeu também que,
se permanecesse no Rio, estaria a um passo do vício e do desequilíbrio total. E
assim, em São Paulo, como Editora de Modas de uma nova Revista, Estela
recomeçou sua vida.
O
plano já havia sido elaborado por Bill há alguns meses. O que antes faltou foi
tempo e tranquilidade para executá-lo. Com a mudança de Estela para São Paulo
entendeu que chegara a hora de pô-lo em prática. Provocar uma crise em
"Palco & Passarela" e, em seguida, junto com Germaine, sua mãe,
retirar-se daquela empresa com as vantagens que lhes eram devidas, seria o
primeiro passo. E tudo começou quando Bill resolveu montar sua própria
confecção e propôs a Magda, estilista de D. Dulce, então sua sócia em
"Palco & Passarela", salários e perspectivas de trabalho que,
dificilmente ela, D. Dulce, poderia sequer igualar. A aceitação por parte de
Magda fez gerar a crise deliberadamente preparada por Bill. Indignada, D. Dulce
rompeu relações com ele e, para vingar-se dele, vendeu as cotas a que tinha
direito, naquela sociedade, para seu amigo Jô Martins, proporcionando a este
condições de se tornar sócio majoritário do negócio, condições estas que Jô, em
momento algum, escondeu desejar.
Bill
já havia preparado um antídoto para aquele veneno, pois tal probabilidade já
era por ele esperada. E assim, logo a seguir, propôs a Fernando a compra de
suas cotas, chegando mesmo a emprestar, ao amigo, dinheiro para isso. Assim,
concluídas aquelas transações, ficando, portanto, Jô e Fernando com o mesmo
número de cotas, Bill desfechou o golpe final, fazendo com que eles passassem a
disputar, a peso de ouro, as cotas de Germaine, sua mãe. Apesar desta não ter
concordado com os métodos empregados pelo filho, chegando mesmo a
decepcionar-se com ele, acabou por ceder. O negócio foi realizado da forma que
melhor convinha a Bill, e as cotas de sua mãe foram negociadas equitativamente,
ficando dividido, em partes iguais, entre Jô e Fernando, o poder de "Palco
& Passarela" - Empreendimentos Ltda. Bill soube o tempo todo que
aquele plano só poderia dar certo se
pudesse ter, como parceiros naquela jogada, Fernando e Germaine. Imaginando ser
a ambição uma arma mortal, Bill só teve que esperar pelo momento certo para
fazer com que outros acionassem, por ele, o gatilho daquela arma. "Palco
& Passarela" vivia um grande momento. A firma estava em ascensão.
Portanto, não foi difícil para Bill fazer com que Jô e Fernando partissem para o duelo. Ele
soube descobrir a hora certa para entregar, azeitada e carregada, aquela arma
nas mãos dos dois. Já Germaine entrara naquela jogada apenas para apoiar a
ambição do filho, pois jamais ambicionara para ela tal tipo de atividade. Bill
tinha consciência desse fato e sabia que para motivar a mãe teria que fazer do
campo afetivo sua arma principal.
-
Quais são as pessoas que realmente me amam e que desejam o meu bem? Em quem,
realmente, posso vir a confiar integralmente a não ser em você e em meu pai? -
perguntou Bill a Germaine. Pois bem, mama, serei forçado a desistir de todos os
meus planos se não puder mais uma vez contar com seu apoio - concluiu, num tom
de lamento.
Na primavera daquele ano Bill inaugurava simultaneamente, com grande festa, seus dois novos negócios: Jeans Only uma fábrica e uma loja de roupas, tendo Germaine como gerente dos estabelecimentos. Alguns meses antes, a partir do momento em que decidiu que iria trabalhar exclusivamente com brim, passou ele a viajar. Não se limitou ao eixo Rio - São Paulo. Diversificou suas viagens, buscando descobrir os principais centros industriais do país capazes de produzir brim de boa qualidade e a bom preço. Conheceu, pessoalmente, dezenas de fábricas. Ele sabia, como poucos, usar o dom que a natureza lhe dera e a experiência que a vida lhe prestara. Com seu porte físico estrangeirado, sua cultura, educação, simpatia e as grandes possibilidades de vir a tornar-se um dos maiores exportadores de roupas de país, despertou para si o interesse dos fabricantes. Ofereceu almoço a alguns, e de outros chegou até a receber convites para jantar em suas residências. Para cada esposa de industrial que o recebeu, Bill teve a gentileza de oferecer um belo arranjo de flores. Durante o transcurso daqueles contatos sócio-comerciais soube deixar transparecer, sutilmente, os importantes relacionamentos que fizera na Europa.
Aquelas
viagens foram curtas, embora constantes e, naquele período, Bill procurou não
descuidar-se de Estela, visitando-a em São Paulo sempre que podia. Apesar de
preocupar-se com ela estava excitado demais, com suas novas atividades, para
perceber em Estela mudanças de comportamento. No entanto, após a inauguração da
fábrica e da loja, suas visitas à capital paulista foram escasseando. Quanto
mais Bill prolongava sua ausência, mais a insegurança em Estela se fazia
presente. O tempo para ele andava curto demais e agora só ia a São Paulo movido
por um grande interesse comercial. Estela, por sua vez, ocupava-se demais com o
trabalho que, embora massacrante, era envolvente também. Para completar, ainda
havia um sem número de eventos sociais a que era obrigada a comparecer,
representando a Revista. Ao conseguir impor-se profissionalmente, em São Paulo,
passou Estela a receber convites endereçados em seu próprio nome. Apesar de
envaidecer-se com isso e com a vida agitada que levava, ela sentia-se cada vez
mais só. Não havia sal nem iodo em seu mar de solidão; só havia álcool, muito
álcool. No momento em que perdeu o controle da dose, passou a controlar-se com
a ajuda de pílulas de diversos formatos, tamanhos e cores. Havia pílulas para
fazê-la dormir, outras para mantê-la acordada... pílulas para engordar,
emagrecer, lembrar e esquecer. Podia, se quisesse, fazer um arco-íris de
barbitúricos sobre a mesa de cabeceira.
Para
Estela, Bill deixou de ser um ser humano comum, para ser um vírus. Um vírus que
a tomou de assalto e, quanto mais esvaía-se junto ao suor, por todos os poros
de seu corpo, mais multiplicava-se, impregnando e debilitando sua alma. De um
sonho romântico possível, passou ele a ser um pesadelo trágico, uma terrível
obsessão.
Sempre
que viajava para São Paulo, Bill conhecia pessoas ricas e poderosas, sendo que
a maioria delas era apresentada por Estela. Agora seu apetite sexual aumentava,
na medida em que crescia nele a ambição do poder. Bill preocupava-se em
exercitar a memória, pois sabia que seria para ele deselegante, e até mesmo
fatal, se viesse a trocar o nome de uma mulher entre tantas conquistadas. Agora
um outro assunto passava a incomodá-lo, e este residia no fato de que, durante
toda a sua vida, jamais ouvira a palavra "não" dos lábios de uma
mulher. Se antes este fato o envaidecia, agora o deixava preocupado. Quanto
mais sua presença era aceita por poderosos, mais via-se assediado. Tal assédio
já não partia apenas de mulheres ricas e famosas, mas também de homens
poderosos. Uns, homossexuais reprimidos, outros bissexuais casados e de vida
aparentemente íntegra. Estes, por sua vez, chegavam ao cúmulo de insinuar, de
forma discreta, que seriam capazes de ceder suas respectivas esposas, em troca
de uma atenção maior e mais íntima. Se com as mulheres Bill dificilmente se
negava, com homens, antes de esquivar-se totalmente, deixava pairando no ar uma
tênue esperança.
Preocupado
demais consigo mesmo, Bill custou a perceber o estado em que Estela se
encontrava. Quando isto aconteceu, o processo de autodestruição já estava muito
adiantado. Não lhe foi difícil prever para ela perspectivas sombrias. Em termos
figurativos, Bill entendeu que já não poderia ser, para Estela, o médico de
cabeceira. Agora, quando muito, poderia atendê-la numa emergência, numa grande
crise, assim como fazem os médicos que trabalham nos hospitais de
pronto-socorro. E a grande crise não tardou muito a acontecer. Um telefonema de
Estela, no meio da noite, levou-o para São Paulo. Quando Bill chegou ela já
havia sido medicada e estava passando melhor, porém seu aspecto era lastimável.
Provocada por seu inconsciente, provavelmente, aquela foi a primeira tentativa
de suicídio.
CAPÍTULO 49
Abismos
-
Não estarei em condições de ir logo mais à noite à recepção oferecida pelos
Manzini em sua mansão do Morumbi, mas gostaria que você fosse me representando
- falou ela. Será muito importante, para você, conhecer Alberto Manzini, seus
parentes e amigos. Descendente de uma tradicional família de Milão, ele é um
paulista de 60 anos e possui uma das maiores fortunas de São Paulo. É
latifundiário e próspero industrial. Tem interesses em várias áreas e gosta de
diversificar seus negócios, mas, basicamente, vive da produção, comercialização
e exportação de carne, café, soja, algodão e tecidos. Falei com ele a seu
respeito, e notei que ficou bem impressionado e ansioso para conhecê-lo.
Alberto é admirador de pintura e música clássica, e tem a fotografia como seu
hobby favorito - completou Estela.
- E
é apreciador de belas mulheres - falou Bill.
-
Como sabe disso? - perguntou Estela.
-
Porque casou-se recentemente, logo após ter enviuvado, com uma de suas amantes
e ex-funcionária...
-
Você o conhece? - perguntou Estela, admirada.
-
Pessoalmente, não. Mas conheci uma de suas indústrias e interessei-me por ele.
Sei também que tem uma filha do primeiro casamento, cuja a idade gira em torno
da que tem sua atual mulher, e que perdeu o filho mais velho e virtual herdeiro
de seu império, num desastre
automobilístico, confere? - perguntou, irônico.
Estela
sorriu, e havia uma admiração respeitosa em seu sorriso.
Nenhuma
residência havia impressionado Bill tanto quanto aquela mansão do Morumbi. Como
é bom ver - pensou ele - bom gosto e dinheiro morando sob o mesmo teto. É o
tipo de união que tem tudo para dar certo. Assim como os demais presentes, Bill
estava vestido a rigor. Sempre muito previdente, ele mantinha parte de seu
guarda-roupa na casa de Estela. Assim, jamais seria pego de surpresa e nem
teria que ficar carregando bagagens para cima e para baixo, entre Rio e São
Paulo.
Bill
presumiu que a nata da sociedade paulistana estava presente àquela recepção,
representada por banqueiros, industriais, fazendeiros, artistas e políticos. A
todo momento via-se cercado por nomes ilustres e isso lhe dava uma sensação
gostosa de importância. Músicas clássicas, interpretadas com muita suavidade
por uma orquestra de cordas, envolviam os salões. Ele havia sido recebido com
muita distinção e logo passou a sentir-se como um dos amigos daquela família.
Alberto
Manzini, o anfitrião, era baixo, gordo e muito calvo. Uma barba curta e
prateada fechava a moldura de seu rosto de traços finos e pele bem cuidada.
Culto, educado, ágil, quase elétrico e extremamente simpático, Alberto crescia
diante das pessoas que, por isso, quase não percebiam sua baixa estatura. De
repente, Bill ouviu uma voz, às costas:
-
Champanhe, Sr. Morrison?
Ao
virar-se, Bill deu de frente com a figura do anfitrião, que retinha, com uma
das mãos, um garçom que carregava uma bandeja com várias taças da bebida
produzida na região que lhe dera o nome. Aquela atitude deixara-o perplexo
pois, naquele momento, estava sendo privilegiado.
-
Muito obrigado pela cortesia - falou Bill, ao mesmo tempo em que retirou uma
das taças da bandeja. O senhor está de parabéns. Há muito tempo não tenho a
oportunidade de ver reunidas, numa só recepção, tantas pessoas ilustres...
-
Está sendo muito gentil, Sr. Morrison. No entanto, sei que a maioria destas
pessoas não está aqui, hoje, por mim ou por meu dinheiro...
Aquela
observação além de surpreender Bill, instigou-o.
- E
por que então, se me permite a indiscrição?
-
Por minha mulher. Ela é a grande atração desta noite. As pessoas, em sua
maioria, vieram até aqui movidas pela curiosidade de conhecê-la, e fico muito
envaidecido com o fato. Pretendo hoje corrigir um erro que cometi,
involuntariamente, quando me casei com Antonieta. Naquela oportunidade, a
cerimônia foi simples e restrita apenas para os íntimos. Ela não me perdoou por
isso. Esta recepção tem como finalidade apresentá-la à sociedade. Não que me
importe com isso, mas como sei que fará bem à sua vaidade... Apesar de ser
inteligente, e possuir uma cultura razoável, minha mulher é adoravelmente
fútil, e ser fútil é, para mim, a maior qualidade que a mulher pode ter. Por
ser fútil e inteligente eu a amo tanto. Antonieta será um dos expoentes desta
sociedade que hoje está sendo imposta a recebê-la de braços abertos. Posso apostar...
Depois
de uma pequena pausa, Sr. Alberto recomeçou a falar num tom de voz bem mais
baixo:
-
Vou adiantar-lhe um segredo, Sr. Morrison, que só à meia-noite irei revelar aos
demais. Antonieta, minha mulher, está completando 25 anos, e esta é, na verdade,
sua festa de aniversário.
- Será inesquecível! Tenho certeza que ela jamais teve uma festa tão marcante e irretocável, Sr. Alberto - comentou Bill.
- A
futilidade é um direito de toda mulher, mas deveria ser obrigação para as
mulheres belas, Sr. Morrison. Cabe a nós, homens, tornar a futilidade objeto de
consumo para elas. O homem, ao contrário da mulher, deve ser culto, dinâmico e
possuir uma inteligência prática. Detesto homens fúteis. Ao homem cabe
administrar os grandes negócios, e à mulher, o direito de usufruir, futilmente,
os bens que o dinheiro pode proporcionar. É assim que entendo o mundo...
Ao
passar de volta o garçom, Sr. Alberto perguntou:
-
Mais champanhe, Sr. Morrison?
-
Obrigado - falou Bill, ao mesmo tempo em que trocava sua taça vazia por outra
cheia. Bela valsa - comentou ao ouvir
uma sequência de músicas de Strauss.
-
Gosta de Strauss, Sr. Morrison?
-
Gosto de boa música. Penso que, em valsa, Strauss é imbatível, Sr. Manzini...
-
Alberto, por favor - disse ele.
-
Pois bem, Sr. Alberto, aprecio Strauss mas é Verdi meu compositor favorito
(onde teria sido que ouviu ser Verdi o compositor favorito do Sr. Alberto? Bill
não conseguia lembrar-se). A música de Verdi me emociona.
-
Invejo seu gosto, Sr. Morrison - falou com admiração.
-
Oh, por favor, chame-me apenas de Giuseppi - disse Bill.
-
Pois muito bem Sr. Giuseppi - falou Sr. Alberto ao mesmo tempo em que segurou o
braço de Bill - se me permite, gostaria de conhecê-lo melhor. Se importa de me
acompanhar até à biblioteca?
-
Terei imenso prazer com isso, Sr. Alberto.
A
conversa entre os dois, na biblioteca, estendeu-se por quase uma hora. Bill
estava admirando a foto de um por do sol quando o Sr. Alberto voltou a falar:
-
Como vê, a fotografia é meu hobby predileto. Estela mostrou-me alguns trabalhos
seus e eu os admirei bastante. O senhor não é apenas um bom fotógrafo, é um
artista... pode estar certo disso.
-
Em absoluto. Apenas fui levado a trabalhar durante um bom período como
fotógrafo e tive um pouco de sorte. Apenas isso. Hoje a fotografia é um hobby,
para mim, tanto quanto é para o senhor.
Pela
primeira vez Bill percebeu que surgia a oportunidade de falar a respeito de
suas novas atividades, e procurou não perdê-la:
-
No momento estou iniciando um novo negócio. É uma pequena indústria que...
- Eu sei, eu sei - interrompeu, Sr. Alberto. Mas apesar de já não estar trabalhando com fotógrafo, gostaria que fizesse um trabalho para mim.
-
Seria um prazer aceitar, sem compromisso profissional, é claro, mas não sei se
poderei encontrar tempo...
-
Pois encontre-o - interrompeu o anfitrião mais uma vez. Quero um serviço
profissional, e para isso pago o que me pedir.
Agora
o anfitrião cedia lugar a um poderoso homem de negócio. A amabilidade e a
gentileza estava sendo posta de lado, pela prepotência de quem sabe que o
dinheiro compra tudo, ou quase tudo.
-
Que tipo de foto o senhor deseja? - perguntou Bill, depois de analisar as
conveniências.
- Fotos de mulher, de minha mulher. Um álbum completo. Quero-a fotografada de todas as formas e por todos os ângulos. Completamente vestida e inteiramente nua...
-
Isso me tomaria algum tempo... mas não se preocupe, Sr. Alberto, posso indicar
nomes de profissionais notáveis, capazes de realizar um belo trabalho...
-
Você me indicar nomes? - sorriu com sarcasmo. Sei quem são os maiores
profissionais nacionais e internacionais. Poderia contratar quem desejasse,
mais escolhi você - falou ele, interrompendo Bill. Poderia hospedá-lo. Traga
sua máquina e tudo o mais que precisar e venha passar um fim de semana conosco.
Se as fotos ficarem boas, como espero, o senhor não irá se arrepender de tê-las
tirado. E então, aceita ou não?
No
momento em que Bill ia responder, Antonieta entrou na biblioteca irradiando
alegria, juventude e beleza.
-
Com licença - disse ela, dirigindo o olhar para Bill. Sua ausência já está
sendo notada, amor - falou, desviando o olhar para o marido.
-
Foi bom você chegar, meu amor - falou Sr. Alberto. Acabo de convidar o Sr.
Giuseppi a passar um fim de semana conosco para tirar umas fotos suas, e
gostaria que o convencesse a aceitar o convite.
Antonieta
deu a impressão que sabia que aquele convite ia ser feito, pois seu olhar foi
mais de conivência do que de surpresa.
- O
Sr. Giuseppi pode não ter-lhe respondido ainda, amor, mas sei que já aceitou.
Ele é um cavalheiro e, desta forma, não creio que vá se negar a prestar um
favor à sua anfitriã na noite de seu aniversário...
Se a simples presença de Antonieta ali já fora o suficiente para deixar Bill atônito, suas palavras o colocaram a nocaute.
-
Bem, já que depositam tanta confiança em meu trabalho, não vejo como deixar de
aceitar o convite...
-
Ótimo! - exclamou Sr. Alberto. Quando o dinheiro não impressiona, a beleza
convence. Vamos para o salão. Quero brindar com champanhe nosso acordo - e
consultando o relógio de pulso, acrescentou - e já está quase na hora da
homenagem que vou prestar à minha mulher.
Eram
3h30min da madrugada quando os primeiros convidados começaram a se despedir dos
anfitriões, e Bill decidiu que não deveria ser um dos últimos a deixar aquela
festa. Naquele momento Antonieta caminhava em sua direção e ele aproveitou para
se despedir.
-
Já? - perguntou ela. Nada disso. Não permito que se vá. Só às pessoas
desinteressantes e chatas estou dando minha permissão. As que me agradam, quero
que fiquem até o final - falou imperativamente, como se já tivesse assumido a
postura de personalidade do mundo VIP. E segurando o braço de Bill, cochichou:
- ainda nem sequer me convidou para dançar...
-
Não seja por isso, - falou Bill - me dá a honra?
Naquele
momento a orquestra tocava Over the rainbow. Antonieta cedeu o braço a Bill e,
juntos, caminharam até o centro do salão. Ela esforçava-se para disfarçar que
já estava um pouco alcoolizada. Logo ao primeiro passo da dança tropeçou, juntou
seu corpo ao de Bill, buscando proteção para a falta de equilíbrio, e falou:
- Não sou de guardar segredos, por isso vou logo lhe falar: Lúcia, minha enteada, está caidinha por você e eu desejo que não a decepcione.
-
Ora essa, por que? - perguntou ele, entre surpreso e preocupado.
-
Porque nós vamos ser amantes e ela será nosso maior disfarce.
-
Ei, como pode falar assim com tanta certeza?
-
Bem, primeiro porque você me agrada e eu consigo sempre o que quero; segundo
porque sempre soube interpretar um olhar de desejo e não creio que você seja
capaz de me olhar de uma jeito e pensar de outro, não é?
Bill
preferiu não dizer nada, mas não pôde deixar de sorrir. E seus dentes perfeitos
puderam ser apreciados por todos à sua volta. Estavam sendo observados.
-
Quero-o para mim, urgentemente - continuou Antonieta, com a expressão de quem
estava fazendo um pueril comentário. Deixo a você a escolha do dia, hora e
lugar... qualquer lugar e em qualquer parte do mundo. É só me dizer onde e
quando, que irei...
Os
dois se encontraram no Rio, vinte dias depois, e Bill levou Antonieta para o
mesmo Motel onde havia levado Estela, pela primeira vez. Em matéria de sexo as
duas tinham muitas afinidades. Ambas chegavam a ser furiosas e selvagens. Ambas
davam a impressão de estar em jejum de sexo há algum tempo. No entanto,
Antonieta pareceu a Bill ser mais insaciável e devassa.
Antes
daquele encontro, porém, Bill passou um fim de semana muito agradável na mansão
dos Manzini. Recebeu um tratamento cortês e impecável. Realizou um ótimo
trabalho fotográfico e o resultado foi, posteriormente, muito elogiado pelos
anfitriões. De um modo geral, todas as fotos ficaram boas. Porém, entre as
fotos em que aquela mulher aparecia inteiramente nua e as em que estava
vestida, havia uma fundamental diferença que clamava mais à alma e ao espírito
que propriamente à vista. É que aquela diferença não estava na roupa que cobria
ou que deixava de cobrir, estava na mulher. Vestida, Antonieta exibia uma postura
de verdadeira dama. Não olhava para a câmara, olhava à distância, para o lugar
que desejava conquistar no mundo da elegância. Foram instantâneos naturais. A
máquina de Bill não conseguiu captar a ostentação de uma nova rica; pelo
contrário, a máquina captara uma elegância discreta, suave, espontânea. Não
havia naquelas fotos um marco que pudesse determinar o tempo. Havia uma
elegância eterna. Nua, Antonieta era uma outra mulher. Lasciva, selvagem,
felina, feminina, sexual e profundamente erótica. Fixava os olhos na câmara,
como quem estivesse admirando um pênis inflado, ereto. Mas, apesar disso, em
momento algum passou vulgaridade. No momento em que Bill, no laboratório de
Fernando, revelou as fotos daquela mulher nua, se viu excitado. O volume de seu
membro ereto levantou o tecido da calça. Aquela situação agora não o
preocupava, já que estava trancado numa sala escura e completamente só. No
entanto, lembrou-se de quando viu Antonieta nua pela primeira vez, e que ficara
assim, do mesmo jeito em que estava agora. Foi uma situação, a princípio,
constrangedora. As primeiras fotos só conseguiu tirar com o auxílio do tripé,
já que não sentia firmeza nas mãos trêmulas e suadas. Naquele momento seu
cérebro foi dividido ao meio - de um lado ficou o homem, do outro, o
profissional. A luta foi renhida e não houve vencedor. Bill desistiu de lutar.
Preferiu ser os dois a um só tempo, e seu membro permaneceu ereto durante toda
aquela sequência de fotos. Antonieta, por certo, percebeu seu estado, e Bill só
entendeu que o resultado final não poderia ter ficado melhor, assim que
concluiu o trabalho de revelação. Afinal - pensou ele - Antonieta não tivera a
necessidade de representar.
Durante
aquele fim de semana com os Manzini, Antonieta comportou-se com muita discrição.
Só momentos antes de Bill se despedir foi que ela fez com que ele se lembrasse
do que, para ela, já era um compromisso. Lúcia, apesar de muito tímida, não
conseguiu esconder seu apetite e, em um ou dois momentos, lançou à Bill um
olhar guloso. A princípio ele fez um pouco de charme. Depois, encorajou-a e
Lúcia não perdeu a oportunidade. Bill se sentiu disputado por duas mulheres
totalmente distintas que, em comum, só possuíam a fortuna de Alberto Manzini.
Não fosse os olhos azuis e o cabelo castanho claro, quase louro e encaracolado,
podia-se dizer de Antonieta ser uma cópia da atriz Gina Lolobrigida. Já Lúcia
era uma mulher com poucos atrativos. Dois anos mais velha que a madrasta, era
alta, magra, reta, com ancas largas mas quase sem nádegas, pele muito alva,
pescoço comprido, cabeça pequena, cabelos pretos muito curtos, lábios e nariz
finos e olhos castanho-escuro, com pouco brilho. O busto era bem feito, apesar
de volumoso e desproporcional ao físico. Talvez sua demasiada timidez fizesse
com que ela aparentasse tristeza até mesmo quando sorria. Os dentes eram
perfeitos.
A
noite em que Bill foi à mansão dos Manzini, para levar as fotos, aproveitou
para pedir ao Sr. Alberto consentimento para namorar a filha. O consentimento
foi dado. Naquela oportunidade Bill soube fazer por merecer admiração,
prestígio, confiança e até, porque não dizer, amizade.
-
Este seu trabalho superou minha expectativa - falou o Sr. Alberto, depois de
admirar as fotos. É pura arte! Portanto,
aí está (entregou um cheque a Bill). Preencha-o com a quantia que desejar, pois
nunca fui capaz de avaliar uma obra de arte...
-
Oh! Perdão, Sr. Alberto, mas não posso aceitar. E por favor não insista - falou Bill, juntando
à voz sua expressão ofendida. Não posso admitir que me roube a oportunidade e o
privilégio de homenagear sua esposa. Ela é a obra de arte. Minha câmera apenas
captou o que a natureza esculpiu...
Naquele
momento Bill viu crescer seu prestígio e a solidificação do mesmo prestígio ele
pôde constatar meses depois, quando a Revista Vitrine, por seu intermédio,
promoveu Antonieta, ou melhor, senhora Manzini, como a jovem dama mais bela e
elegante do soçaite paulistano. A matéria da reportagem, ilustrada por fotos
coloridas, ocupou quatro páginas da edição de janeiro de 1978 daquela Revista.
É bom que se diga que a reprodução das fotos, na Revista, não chegou a ser
surpresa para os Manzini, já que para serem publicadas, teriam que ser
autorizadas pela família.
-
Por que acha que devo mandar fazer uma reportagem de quatro páginas com a
família Manzini? - perguntou o Sr. Carvalho a Bill, tendo várias fotos de
Antonieta, elegantemente vestida, espalhadas sobre sua mesa de trabalho.
-
Porque estou certo de que as pessoas que comandam esta Revista, são pessoas de
larga visão empresarial e tino comercial. Vitrine deve ter interesse por bons
anunciantes e as indústrias Manzini bem que poderiam incluir esta Revista na
campanha publicitária maciça que estão pretendendo fazer para lançar seus novos
produtos no mercado, não concorda?
- Você conseguiria isso para nós?
-
Não posso lhe dar garantias, mas posso oferecer-lhe boas expectativas... Se a
matéria for bem cuidada e apresentada com arte, quem sabe? Seria uma forma dos Manzini retribuírem a
gentileza, não concorda?
-
Você deve estar com a razão. Concordo que este é um jogo em que devemos
apostar. Focalizar quem possui dinheiro, ou poder, nunca fez mal a ninguém. Se
formos beneficiados, farei com que receba uma bela comissão...
- Troco o dinheiro por prestígio. Se publicar a reportagem, faça com que eu receba o mérito. Você compreende? Garanto-lhe que não irá se arrepender. Eu e você muito iremos nos beneficiar.
CAPÍTULO 50
Nuvens negras
-
Sensacional! - falou Sr. Alberto depois de desfolhar o último exemplar da
Revista. Como conseguiu isso?
-
Foi fácil - respondeu Bill. Quando consigo entrar por uma porta, deixo-a sempre
aberta... para uma ocasião como esta, por exemplo.
-
Antonieta está muito feliz. Não para de receber telefonemas. A repercussão está
sendo ótima!
-
Modéstia a parte, eu já contava com um resultado positivo. Posso garantir que,
dedicada à mulher, Vitrine é hoje a Revista mais completa que se publica neste
país. Pena que esteja atravessando uma pequena crise... passageira, espero. Mas
não devo me preocupar. A empresa, proprietária da revista, é muito sólida.
Espero que o pior não aconteça...
-
Como assim? O que você quer dizer com isso?
-
É assunto sigiloso. Eles procuram encobrir a situação, mas eu pude apurar,
confidencialmente, toda a verdade...
-
E qual é a verdade? - perguntou Sr. Alberto, entre preocupado e curioso.
-
Bem, é que Vitrine parece que começou a operar no vermelho e se esta situação
perdurar por muito tempo, o grupo será forçado a fechar a Revista.
-
Lamentável, muito lamentável. Não podemos permitir que seu público leitor se
veja privado, de uma hora para outra, de tão bela e informativa Revista, não é
verdade? Precisamos fazer alguma coisa...
-
Bem, eu sou suspeito para falar sobre o assunto porque trabalhei lá alguns anos
e sou muito grato por tudo o que fizeram por mim. De certa forma eu sou um
sentimental. Não gostaria de ser assim, mas... bem, o certo é que, mesmo agora
à distância, não gostaria de ver o fim daquela Revista. Eu, eu... - e Bill nada
mais falou porque sua voz estava embargada.
-
A que você atribui o momento ruim que a Revista atravessa?
-
Há uma retenção no mercado em relação a anunciantes em revistas. Vivemos o
tempo do imediatismo. Hoje as grandes campanhas publicitárias estão sendo
direcionadas para as emissoras de rádio, televisão e jornais. Os anunciantes
buscam resultados imediatos. Para uma revista mensal, ou mesmo semanal, com
grande custo de edição devido às suas matérias e à qualidade do papel
empregado, tal retenção acaba por promover uma defasagem entre a receita por
exemplar e a despesa por capa. Não fosse Vitrine apenas uma, entre tantas
publicações e outros negócios de um forte e diversificado Grupo Empresarial, já
estaria com sua falência decretada, provavelmente. Mas como Vitrine tem um
público leitor fiel, ainda existe uma esperança. E é esta esperança que a
mantém por um fio nas bancas.
-
Você acredita que Vitrine ofereça bom retorno comercial a seus anunciantes?
-
Sempre ofereceu. As pesquisas comprovam isso. A fidelidade do leitor é um bom
sinal. Quando ele acredita na revista, costuma dar crédito ao produto por ela
anunciado. Claro que depende do produto e do público alvo. O poder aquisitivo
do leitor de Vitrine é excelente. Se o produto não for descartável, ou de
consumo imediato, encontrará na revista o consumidor ideal.
-
Ora, então não se preocupe - falou Sr. Alberto, com o tom que só os poderosos
conseguem imprimir à voz. Vou dar alguns telefonemas. Falarei com alguns
amigos. Vamos ver o que se vai ser possível fazer.
Embora
Lúcia fosse apenas enteada de Antonieta, Bill lembrou-se de seu tempo na
Aeronáutica, quando tivera a oportunidade de manter romances simultâneos com
mãe e filha. Mas, por mais que buscasse semelhanças com o que agora estava
acontecendo, pouco as encontrava. Naquela época ele era inexperiente - quase
ingênuo. Regininha e D. Margareth haviam sido, de certa forma, seus amores.
Amor adolescente, era verdade, mas amor sem implicações maiores com a fama e o
dinheiro. Uma jovem virgem e uma mulher madura o tinham atraído de formas
diferentes, mas tudo era paixão. Houve a atração natural do sexo pelo sexo,
apenas isso. Agora não, agora era diferente. Não havia paixão, amor, ou até
mesmo amizade. Não eram esses os sentimentos que ele estava encontrando, ou
mesmo procurando encontrar. Bill buscava uma ponte, um caminho, ou melhor, um
atalho. Veículos que pudessem encurtar a distância que o separava do poder.
Sim, era isso. Ele estava com Lúcia e Antonieta simultaneamente, mas bem que
elas poderiam ter outros nomes femininos, porque agora não era a mulher em si
que o excitava, era o poder. Sim, naquele momento de sua vida, só o poder seria
capaz de fazê-lo excitar-se.
O
namoro dele com Lúcia durou em torno de três anos, exatamente o mesmo tempo que
durou seu caso com Antonieta.
Em
São Paulo, Estela foi demitida da Revista em que trabalhava pelos mesmos
motivos que levaram Vitrine a afastá-la. Ela ainda tentou arranjar outro
emprego por lá, mas não o conseguiu - sua imagem ficara bastante desgastada.
Apesar de grande, São Paulo tem um espírito um tanto provinciano e, talvez por
isso, não a tenha perdoado. Estela, o máximo que conseguiu, devido a sua
competência, foi fazer alguns trabalhos como free-lancer, adotando um
pseudônimo, e quando a situação começou a ficar insustentável, Bill resolveu
trazê-la de volta para o Rio.
Estela
nada mais tinha a oferecer a Bill, e ambos sabiam disso. Ela fizera sua parte.
E como para ele, agora, só o poder excitava, Bill deixou de sentir desejo por
ela. Entretanto, lutava desesperadamente para dar amor aquela mulher que tanto
fizera por ele. Pensava que podia substituir aquele sentimento forte,
imprescindível à vida humana, por presentes caros, carinho, compreensão e
paciência, muita paciência. Agora, só a gratidão e a compaixão, sentimentos
também marcantes, seriam capazes de prendê-lo à Estela. Mas para quem fora alvo
de uma grande paixão, a compaixão humilha ao invés de consolar. Para ela, o
círculo vicioso havia se fechado: falta de oportunidade de trabalho, por não
inspirar confiança; aumento da falta de confiança, cada vez que perdia uma nova
oportunidade de trabalho. As portas estavam fechadas e a chave ela não
encontrava. As crises foram se sucedendo, com mais intensidade e frequência. Em
momento algum, ao menos conscientemente, Bill tentou iludir Estela, mas, nos
intervalos das crises, iludia-se a si próprio.
-
Você ainda pretende casar-se comigo? - perguntou Estela, em estado de lassidão
procedente do sexo.
-
Se eu algum dia me casar, será com você, é claro - falou ele, pilheriando.
-
Não brinque, Bill. estou falando sério.
-
Pretendo, amor; em momento algum deixei de pensar nesse dia...
-
E por que nunca mais voltou a falar no assunto?
-
Porque estou aguardando o momento certo. Mas, olhe, prepare-se, porque
pressinto que muito em breve iremos nos casar...
-
De minha parte já estou preparada, amor. Acabo de me divorciar... estou livre!
Bill
tomou um choque com a notícia e não conseguiu disfarçar sua preocupação. Nada,
naquele momento, poderia desestabilizá-lo mais que aquela notícia. Respirou
fundo, procurando recuperar-se, e falou:
-
Que ótimo! Que maravilha! Agora sei que vai poder aceitar-me como marido.
Depois
daquele dia, houve um bom período de paz. O maior de todos. Bill chegou até a
se sentir feliz, vendo a felicidade em Estela. Ela passou a fazer planos,
controlar a bebida e a suspender os barbitúricos. Logo adquiriu um novo
aspecto. Bill entusiasmou-se tanto, que realmente pensou em se casar com ela
antes mesmo de jogar sua mais importante cartada - a última, talvez.
Entretanto, o destino atraiçoou Estela. O pai de Bill veio a sofrer um enfarto
e aquela notícia o abalou profundamente. Proibido temporariamente de trabalhar,
Giacomo passou a precisar do filho como nunca, e Bill muito pouco, ou quase
nada, pôde fazer para ajudá-lo. Não, não era hora para pensar em casamento -
refletiu. Precisava refazer seus planos.
-
Por quanto tempo ainda vamos ter que esperar, meu amor? - perguntou Estela, sem
conseguir esconder sua angústia e aflição.
-
Não sei, minha querida, não sei. Mas tenha paciência. Eu vou me sair bem desta
crise.
Estela
ficou decepcionada e profundamente amargurada. Bill acreditava que só o
casamento seria capaz de restabelecer, em Estela, a confiança perdida. Só com o
casamento é que seria possível fazê-la voltar a ser o que era - pensava. Mas
Estela teria que encontrar forças para esperar. Aquele não era o melhor
momento. Ele só não podia imaginar é que, em Estela, a capacidade de esperar já
havia se esgotado. Os espelhos mostravam a ela, a cada momento, que não havia
mais tempo. E Estela voltou a mergulhar em seu mar de álcool. Passou a armar
novos arco-íris com suas pílulas e adicionou narcóticos diversos em sua nova
receita. Agora sim - pensou ela, de posse daquelas armas mortíferas - seria
capaz de destruir sua depressão, amenizar a solidão e iludir às poucas
perspectivas de vir a ser feliz.
Bill
entendeu que Estela estava perto do fim. Possivelmente - pensou - nem mesmo o
casamento seria capaz de salvá-la.
No
mesmo momento em que sentia profunda tristeza ao ver o pai e Estela sofrerem
Bill acompanhava, com alegria e entusiasmo, a evolução dos negócios.
"Palco & Passarela - Empreendimentos Artísticos Ltda", agora nas
mãos de seus amigos Fernando e Jô, fora uma das empresas responsáveis pelo
lançamento de sua marca Jeans Only. Como forma de gratidão, a Revista Vitrine
foi um dos órgãos de imprensa que participou ativamente do lançamento da
"marca". Afinal, devia a Bill sua permanência nas bancas. Ele estava
muito satisfeito com os resultados apresentados pela campanha, de um todo,
fruto do imaginativo cérebro de Jô. Assim que conseguiu passar a atender à
demanda do mercado brasileiro de jeans com sua própria fabricação, Bill pensou
em ampliar a fábrica com vistas à exportação. Como intermediário, via crescer o
volume de exportações de produtos manufaturados, tais como, bijuterias, roupas
e sapatos. Após a modernização e ampliação da fábrica, passou Bill a exportar
jeans como matéria-prima para a Europa. Como varejista também ampliara os
negócios. Agora seus produtos, além da loja de Copacabana, poderiam ser
encontrados em lojas no Centro, Tijuca e Madureira. Quando havia sobra de
estoque de matéria-prima, o que era raro acontecer, Bill diversificava.
Terceirizava mão de obra qualificada e barata, para a fabricação de calças,
saias, camisas, blusas, jaquetas, shorts, bolsas e sacolas de jeans.
Para
completar sua sorte nos negócios, até a Academia de Ginástica, administrada
pelo sócio e amigo Baraúna, já estava rendendo bons frutos. Devido à
grandiosidade de seus negócios e seus planos futuros, era intenção de Bill
ceder, a Baraúna, a totalidade das cotas da Academia que lhe pertenciam.
Quando
estava na Europa, Bill sonhara com um empreendimento de grande porte, capaz de
monopolizar a indústria de jeans no Brasil. Para isso sabia que, em primeiro
lugar, teria de entrar de cabeça no negócio, para conhecer profundamente o
terreno. Um plano diabólico já havia sido preparado por ele, e parte desse
plano Bill já havia executado. Faltava agora concluí-lo. Para a sua conclusão,
no entanto, necessitava de muito capital. Uma pequena parcela desse capital ele
já tinha praticamente assegurado. Bastava que para isso vendesse, por bom
preço, todos os seus negócios que, em ascensão, estavam muito valorizados. A
maior parte do dinheiro, porém, estava ainda nas mãos de seu possível parceiro
só que este, até aquele momento, não sabia que havia sido escolhido. Seu nome:
Alberto Manzini. Entre tantos nomes, estudados cuidadosamente, Bill entendeu
que o destino lhe reservara o Sr. Manzini, certo de que seria ele o parceiro
ideal para juntos jogarem aquela grande cartada. Se ele concordasse - e Bill
contava com isso - o resto seria simples. De um momento para outro, De Jean,
sua nova etiqueta, tomaria conta do mercado apoiada numa publicidade maciça, do
tipo lançamento nacional. Seriam usados para isso os principais veículos de
comunicação do país: rádio, cinema, televisão, jornal, revista e outdoor.
Antes, porém, seriam contratados os serviços das principais fábricas de roupas
do Brasil e garantida a compra da maior parte da produção de brim do país. Esta
última medida provocaria, na certa, escassez daquela matéria-prima no mercado,
criando com isso, possivelmente, problemas aos seus concorrentes.
Antes
de por em prática a parte final de seu plano, Bill entendeu que precisaria
viajar para o exterior e abrir uma nova frente, também, nos Estados Unidos. Em
seguida, voltaria à Europa para ampliar o mercado e fortalecer os contatos
feitos em sua primeira viagem. Porém, antes de viajar, Bill resolveu lançar a
semente, contando seus planos tanto para Lúcia quanto para Antonieta. Não
exatamente igual, é claro, mas o mais próximo possível da verdade. Seu parceiro
naquela versão, ou seja, o empresário capaz de viabilizar seus planos, não era
outro senão um dos maiores concorrentes de Alberto Manzini.
-
Pelo amor de Deus! - exclamou Lúcia - esse não... por favor. Existem outros
empresários capazes de financiar seu projeto. Conheço muitos, procure
sensibilizá-los. Esse homem que você escolheu, não, por favor. Esse, além de
ser nosso maior concorrente, é judeu, e papai odeia judeus.
E
Bill embarcou para o exterior certo de que aquela semente iria vingar.
Trinta
e cinco dias foi o tempo que Bill ficou fora do país. Pode-se dizer que suas
visitas nos Estados Unidos e à Europa foram muito proveitosas, já que em cada
país por onde passou estabeleceu excelentes contatos. A volta ao Brasil deu-se
em meados de dezembro de 1979 e Bill ficou muito feliz de ver o pai com o ânimo
renovado. Giacomo havia se recuperado parcialmente e, embora em ritmo moderado,
voltara a trabalhar. Estela estava da mesma forma que ele a deixara;
entretanto, só agora, ao regressar, foi que pôde perceber o quanto ela havia
envelhecido.
Para
manter a tradição, Bill passou aquele natal no apartamento dos pais, junto à
família, levando Estela com ele. No entanto resolveu aceitar o convite para
passar o Reveillon em São Paulo, na mansão dos Manzini. Como não era
conveniente levar Estela, Bill teve que usar a imaginação para fazê-la ficar no
Rio. Aquele seria o primeiro romper de ano que passaria longe da família.
Mais
uma vez uma festa chegou a surpreender Bill. Não tanto pelo luxo ou pela
fartura, ou até mesmo pela seleta frequência mas, sobretudo, pela organização.
Pouco antes da meia-noite Bill foi levado à biblioteca por seu anfitrião. Este,
por sua vez, mostrava uma fisionomia carrancuda e, ao ultrapassar a porta, fechou-a
com chave. Bill ficou gelado. Apesar de não saber o que estava acontecendo,
sentiu um mau presságio. Alberto Manzini também estava tenso e, depois de
expelir a fumaça do charuto de Havana, foi direto ao assunto:
-
Lamento ter tomado conhecimento de seus planos através de minha mulher e de
minha filha. Gostaria de ter escutado de sua própria boca.
Bill
fez menção de que iria falar, mas o Sr. Manzini não permitiu.
-
Não me interrompa - falou asperamente. Já que as coisas aconteceram de forma
diferente, não vou perder tempo com lamentações... prefiro ir direto ao
assunto. Decididamente seus planos me interessam, e eu estou pronto a
financiá-los, mas...
De
forma estudada, Sr. Manzini deixou no ar, por instantes, o que ia dizer, junto
a uma nova baforada de seu charuto. Bill soltou a respiração. Afinal - pensou -
o jogo estava perto do fim.
-
No momento, nosso acordo deverá ser feito, rigorosamente, dentro das bases que
vou apresentar. Mandei fazer um cuidadoso levantamento de toda a sua situação
empresarial e dos custos do que pretende empreender. Posso assegurar que o
montante do capital a ser empregado é bem maior do que possa vir a dispor.
Assim sendo, a complementação do capital necessário vai exigir uma soma
consideravelmente elevada. Para que seu eventual parceiro posso viabilizar o
negócio, certamente exigirá garantias. O que tem, por exemplo, o senhor para
oferecer?
-
Depende de quem venha a ser o parceiro...
-
Nada - interrompeu Sr. Manzini - o senhor não tem nada. Mas, não tem
importância... posso correr o risco. Afinal, vamos ser mais do que sócios e,
por isso, não pretendo exigir garantias. Seria deselegante. O que espero,
realmente, é que aceite minhas condições que são as seguintes: em primeiro
lugar, quero que se case imediatamente com minha filha que, desgraçadamente,
está perdidamente apaixonada por um crápula. Você foi o primeiro homem que
Lúcia amou de verdade, e por isso, custe o que custar, terá agora que fazê-la
feliz. Em segundo lugar, exijo que deixe minha mulher em paz, definitivamente. Infelizmente
eu a amo, e não desejo dividi-la com outro homem...
-
Ei, espere aí... eu...
-
Cale-se! - gritou Sr. Manzini - eu sempre soube de tudo. Foi muita ingenuidade
de sua parte pensar que poderia me enganar. Por se sentir confiante demais em
seus poderes maléficos, fez como faz a cotia: mesmo sabendo que não tem rabo,
deixa a bunda desprotegida. Mandei seguir seus passos. Ordenei que
investigassem você, sua família e seus amigos. Hoje eu tenho um dossiê completo
sobre sua vida. Descobri coisas interessantes como aquela curiosa estória a
respeito de um suposto costureiro francês. Meus parabéns. Você é muito
imaginativo. Como vê, se eu quisesse poderia liquidá-lo. Poderia até fazê-lo
desaparecer. Não da forma como desaparecem os bandidos comuns, ou os presos
políticos. Não. Seu desaparecimento não iria levantar suspeitas. Não deixaria
rastro, nem pó sequer. Mas não se preocupe... não vou mandar fazer isso. Seria
um desperdício. Sua vida hoje é muito importante para mim e, além do mais, como
já disse, minha filha desgraçadamente o ama, e eu não desejo vê-la sofrer. Mas
lembre-se: sua vida só estará segura enquanto for importante para mim e para
minha família. Para seu bem, procure nos ser útil. Você tem tudo para ser um
vitorioso. E, lamentavelmente, vou ser obrigado a cooperar com seu
empreendimento. Você será um vitorioso, e eu aposto no seu sucesso...
Ao
ouvir aquelas últimas palavras, Bill sentiu um arrepio. Várias pessoas já lhe
tinham dito aquilo, mas, exatamente com aquelas palavras e naquele tom de voz,
só o Coronel Carneiro no dia em que ele, Bill, deu baixa da Aeronáutica.
-
Você foi a pessoa mais sem moral, indigna e sem caráter que eu pude receber em
minha casa - continuou Sr. Manzini. E olha que eu vivo no mundo dos grandes
negócios, onde a amoralidade e a fragilidade de caráter parecem fazer parte do
indivíduo, como braço e perna fazem parte do corpo. Mas você, apesar da pouca
idade, me surpreendeu. Você não é um crápula perfeito, mas tem tudo para
atingir a perfeição em pouco tempo. Possui todos os requisitos para ser um
vencedor. Eu vou precisar de você, Sr. Morrison, Giuseppi, Bill ou seja lá quem
for. Sua sorte está lançada e não vejo como ter outra escolha. No entanto, cabe
a você a palavra final.
No
dia seguinte, Bill regressou ao Rio. Agora teria que enfrentar Estela. Por mais
que mentalmente procurasse encontrar palavras para dar a ela aquela notícia,
não as encontrava. Não iria adiantar dizer que fora forçado a aceitar as bases
daquele acordo. Estela, ele sabia, não iria entender, aceitar e muito menos
perdoar. Ela estava à beira do abismo, e aquela revelação a faria despencar
como um passo em falso.
O
resto do feriado do dia primeiro Bill passou no apartamento dos pais e também
não contou, a eles, o acordo que fizera com o Sr. Manzini. Precisava de tempo
para pensar, porque ele mesmo não acreditava no que deixara combinado. Chegou
mesmo a pensar que tudo não passara de um terrível pesadelo. Talvez por isso
estivesse evitando falar com Estela. Não sabia ainda o que dizer a ela, ou de
que forma dizer.
Resolveu
passar aquela noite com os pais, protegido, como uma criança no útero da mãe.
Ao deitar-se, Bill dobrou os joelhos e adotou a posição do feto, mas não
conseguiu dormir. No dia seguinte, uma quarta-feira, saiu bem cedo e trabalhou
como nunca. Precisava ocupar a mente com outros assuntos. Às 20 horas deixou a
fábrica e, antes de ir para casa, resolveu passar pelo apartamento de seus tios
em Copacabana. Encontrou tia Lina sozinha. Tio Giorgio estava ainda no
"Napoleão Bonaparte". Apesar de não sentir fome, Bill não pôde
negar-se a tomar um prato de sopa de cebola, uma das especialidades de sua tia.
Antes de sair entrou no antigo quarto, agora transformado em sala de estar.
Durante o tempo em que permaneceu ali, de pé, no centro daquele cômodo que abrigara
parte de sua adolescência, sentiu-se protegido. O barulho da chuva que começou
a cair, fortemente , o levou a olhar a janela. Através da vidraça podia ver o
mundo que vivia, cheio de esquinas sombrias e vultos distorcidos. Naquele
momento ele entendeu que se havia exposto demais e que ali, naquele cômodo,
estaria protegido de todas as maldades do mundo. Desejou que o que pudesse vir
a lhe amedrontar, no futuro, não devesse passar de uma tempestade de verão. Mas
de que adiantaria ficar ali, viajando entre sonhos, mentiras e fantasias, num
mundo que não mais lhe pertencia? - pensou. Agora teria era que reunir forças
para encontrar a verdade, a sua verdade, porque mais cedo ou mais tarde ela
viria a seu encontro.
Pouco
antes das 22 horas chegou ao seu apartamento. Estava muito cansado mas não
sentia sono, apesar de não ter dormido na noite anterior. O corpo doía e, para
relaxar, tomou uma ducha morna e vestiu um pijama. Embora evitasse remédios
resolveu tomar um relaxante muscular. Procurou ler para atrair o sono e retirou
da estante o "Advogado do diabo", de Morris West, livro que ganhara
de presente, no Natal. Deitou-se, acendeu a luz do abajur de cabeceira, pegou a
espátula de prata que Estela lhe dera, e passou a abrir as primeiras páginas do
livro. O silêncio era tão intenso que o simples ruído da lâmina afiada,
cortando o papel, o incomodou.
Passava
um pouco das 20 horas quando, naquela noite, a campainha da porta do
apartamento de Estela tocou. Ela olhou através do olho mágico e viu, do outro
lado, no corredor, um jovem de boa aparência, vestindo um uniforme cinza, com
um bordado no bolso do casaco. Nas mãos ele trazia uma corbeille. Antes de
abrir a porta Estela sorriu. Afinal, Bill lembrara-se dela. Ao abri-la, para
seu espanto, viu que o rapaz segurava um revólver na outra mão.
-
Não se preocupe - disse ele num tom de voz baixo e empurrando-a para dentro.
Não vim aqui para matar a senhora e nem mesmo para roubá-la.
O
rapaz entrou, fechou a porta calmamente, e continuou a falar:
-
Estou aqui apenas para avisá-la de que o Sr. Giuseppi Fontaine Spata, também
conhecido como Bill Morrison, vai casar-se brevemente com a senhorita Lúcia
Manzini, filha de famoso empresário paulista. Meu chefe mandou avisá-la também,
para que se afaste de Bill. Desapareça da vida dele imediatamente, senhora, se
é que deseja continuar viva. Não tente pedir proteção à polícia. Passará por
mentirosa e será processada por calúnia. Além do que, para os Manzini, não
existe proteção que possa lhe garantir a vida.
O
rapaz fez uma pequena pausa e, antes de sair, ainda falou:
-
Por favor, não tente me seguir e nem gritar, pois não me agradaria ter que usar
de violência. Meu chefe espera que goste das flores e lhe deseja um feliz ano
novo.
Estela
não se moveu do lugar e não disse uma só palavra. Ficou em estado de choque.
Minutos depois é que, como uma autômato, abriu o envelope. Não havia nada
escrito e nem sequer um cartão. O que havia dentro daquele envelope era um
recibo de depósito bancário. Uma substancial quantia havia sido depositada em
sua conta.
Bill
adormeceu com a luz do abajur acesa e com o livro caído sobre o peito. No
entanto, seu sono era tão leve que, do quarto, ele pôde ouvir o barulho da
chave abrindo a porta da sala. Em seguida, ouviu passos. Quando percebeu que
aqueles ruídos não faziam parte de seu sonho, abriu os olhos. Estela estava
diante dele e tinha os olhos iguais ao de uma boneca de louça - estavam
vitrificados.
-
Oi - disse ele - como soube que eu havia chegado?
-
Não soube. Tive apenas um pressentimento, e felizmente estava certa. Preciso
falar com você...
As
roupas de Estela estavam encharcadas de chuva. Seus cabelos molhados e
escorridos lhe davam um aspecto fantasmagórico. Preocupação era um sentimento
pequeno comparado ao que Bill sentia.
-
Bem, eu ia procurá-la amanhã cedo. Não fiz isso, hoje, porque estou realmente
exausto...
-
Lamento Bill, mas só tenho esta noite para lhe falar. Posso tomar uma dose
uísque? Ainda não bebi nada hoje...
-
Claro, claro. Importa-se de você mesma preparar?
-
Em absoluto.
Bill
esfregou os olhos com as costas das mãos para se certificar de que não estava
tendo um pesadelo. Estela lhe pareceu muito estranha. Ele jamais a vira daquele
jeito, apesar das inúmeras crises que haviam passado juntos. Ela saiu do quarto
e demorou a voltar. Quando reapareceu, estava com o corpo nu, enrolado numa
toalha de banho. Os cabelos permaneciam molhados, e segurava um copo de uísque
numa das mãos.
-
Posso me deitar com você? - perguntou ela.
-
Porque não?
-
Cheguei ao fim, ou melhor, chegamos - começou Estela a falar, depois de
recostar-se na cama. Não tenho feito outra coisa a não ser tentado ajudar você
nesses últimos anos. Não pense que estou lhe jogando isso na cara, ou mesmo que
esteja arrependida. Não, não é nada disso. O que eu quero dizer é que, de
repente, descobri que você não precisa mais de mim e que também já nada posso
fazer por você. De uns tempos para cá, só tenho sido um estorvo em sua vida.
Mas agora tudo acabou...
-
Não diga tolices, Estela. Você está começando a entrar numa nova crise, é só
isso. Você sairá desta como conseguiu superar as outras. Nós ainda vamos nos
casar e aí você vai ver... tudo irá mudar.
-
Por favor, Bill, compaixão não. Por Deus, não me diga nada. Ouça, apenas. Hoje
descobri que ainda posso lhe ser útil uma única vez. Vou afastar-me de você e
vim aqui para me despedir. Embarco amanhã para o interior. Irei passar o tempo
que me resta de vida ao lado de meus parentes.
Houve
um pequeno silêncio. Bill entendeu que talvez aquela fosse a melhor solução
para os dois. Pelo menos, naquele momento.
-
É, talvez esta viagem agora lhe faça bem - disse ele. Deixe o endereço comigo
porque, mais cedo do que você pensa, irei buscá-la.
-
Esta será a última ajuda que irei lhe prestar - continuou ela, como se não
tivesse escutado as palavras de Bill. Vou deixá-lo livre e esta será a noite de
nossa despedida. Não quero ouvir de você uma só palavra, desejo apenas que me
possua. Preciso de seu sexo pela última vez. Quero guardar para o resto de
minha vida sua imagem dentro de mim, possuindo-me. Desejo sentir seu corpo
viril sobre o meu, fazendo-me urrar de prazer. Venha - e, estendendo os braços
para ele, implorou - Venha, Bill, por favor...
Ao
iniciar as carícias Bill entendeu que não conseguiria. Não naquela noite, e
diante daquelas circunstâncias. Mas, apesar disso, lutou. Lutou com todas as
forças que possuía. Não importava a ele, naquele momento, se o que sentia era
apenas compaixão. O que realmente importava era o desejo imperioso de atender
ao apelo patético daquela mulher que fora, até então, o maior amor de sua vida
e a quem devia tanto...
-
Por favor, Bill, por favor... por favor... por favor...
Mas
como satisfazê-la da forma que ela desejava se não conseguia ter ereção? -
pensava. Estela debatia-se, desesperava-se. Aquela dose de uísque fora o
bastante. O álcool encontrara-se com outros produtos químicos fortíssimos,
dentro daquele debilitado organismo, fazendo provocar a explosão.
-
O que está acontecendo? - perguntou ela. Meu corpo já não lhe diz mais nada? Ou
será você? Claro, só pode ser você...
Estela
estava frenética. A voz estava esganiçada e o riso, histérico. Todo o seu corpo
tremia e apenas seus olhos estavam estáticos.
-
Você ficou impotente, é isso. Você ficou frouxo, frouxo. Frouxo!
-
Por Deus, Estela, pare de gritar! Não é nada disso. Acalme-se...
-
Claro que é. Eu sei que ainda sou uma mulher desejável. Basta por os pés na
rua. Percebo como os homens me olham. Sei reconhecer um olhar de desejo.
Estela
já não falava. Gritava cada palavra que proferia. Bill pôs a mão sobre sua boca
e a beijou no rosto, tentando acalmá-la. Ela ficou furiosa e, desvencilhando-se
de sua mão, gritou com todas as forças do pulmão:
-
Você está broxa. Você não é mais homem... não é mais homem. Sim, é isso... você
virou bicha. BICHA !
-
Cale-se! - gritou e a esbofeteou ao mesmo tempo.
A
emoção dos últimos acontecimentos, junto à tensão daquela noite, fizeram gerar
uma carga emocional insuportável e Bill acabou por se descontrolar
inteiramente.
-
Não há nada comigo; é com você, Estela. Há muito tempo que você, nem de longe,
me faz lembrar a mulher que conheci e amei...
-
Bicha, bicha, bicha! - voltava Estela a gritar, tentando abafar as palavras de
Bill. Ele, por sua vez, passou a gritar também:
-
Você perdeu a compostura, a dignidade... você não é... não é mais mulher, você
é um lixo. Lixo, não, porque ainda pode ser reciclado. Você não é mais nada!
Bill
juntou um urro de dor à última palavra que pôde pronunciar. A terceira estocada
ele ainda conseguiu evitar. No entanto, as duas primeiras atingiram em cheio
seu baixo ventre. O lençol, impecavelmente alvo, aos poucos foi sendo tingido
de vermelho. Na mão direita de Estela a espátula de prata ainda gotejava
sangue. Em desespero, ela correu em direção ao telefone. Embora falasse entre
soluços e gritos dilacerantes, Bill ia escutando a voz dela cada vez mais baixa
até que não conseguiu ouvir mais nada. Depois de desligar o telefone, Estela
destrancou a porta de entrada do apartamento. Como autômato pegou um copo de
água na cozinha. Em seguida, retirou de sua bolsa um pequeno frasco e despejou
na boca, de uma só vez, todos os comprimidos que havia nele.
-
E o meu filho, como está ele? - perguntou Germaine, aflita. O senhor irá
salvá-lo, não é doutor? Meu filho vai sobreviver, não vai? Por Deus, doutor,
responda-me!
-
Por favor, minha senhora, calma. O estado dele é muito delicado... grave mesmo.
Seu filho perdeu muito sangue... mas, acredite em mim, ele está em boas mãos.
Usaremos todos os recursos disponíveis da medicina para salvá-lo. Procure ficar
calma e tenha fé. Neste exato momento ele está sendo operado.
Sentado
numa poltrona da sala de espera do hospital, Giacomo estava entorpecido. O
médico acabara de lhe aplicar uma forte dose de sedativo injetável.
EPÍLOGO
A foto na primeira página do jornal
mostrava Bill doze anos mais moço. Ele estava atraente e elegante, vestindo um
terno de tergal quadriculado, num tom azul céu, com colete e cravo vermelho na
lapela. Aquela foto havia sido tirada no primeiro desfile de moda organizado
por ele. A manchete principal daquela edição dizia: "ENTRE A VIDA E A
MORTE O FALSO COSTUREIRO FRANCÊS". O subtítulo da matéria estava assim
impresso: "Presume-se que o ciúme tenha sido a causa do crime". E, em
seguida, podia-se ler: "Giuseppi Spata, mais conhecido como Bill Morrison,
foi gravemente ferido por uma espátula de prata, recebendo duas profundas
estocadas no baixo ventre, desferidas por sua amante Estela Ravache, conhecida
editora de modas. Maiores detalhes na terceira página deste caderno".
Pela íntegra do texto da citada
matéria, podia-se perceber que só um jornalista poderia tê-la escrito: Mário
Jordão. Ele, na verdade, tinha motivos mais que suficientes para desmascarar
Bill, mas sabia que não poderia fazê-lo sem correr o risco de desmascarar-se a
si próprio. Mário Jordão havia sido parceiro de Bill na estória de Jean Louis
Marchand, o costureiro francês que jamais existiu. Como jornalista, ajudara a
dar credibilidade àquela farsa e, agora, estaria arriscando sua carreira
profissional se revelasse a verdade. No entanto, nada o impedia de escrever a
matéria, fornecer fotos e subsídios a outro repórter, tão ambicioso e
inescrupuloso quanto ele, e que estivesse trabalhando para outro jornal. Assim
fazendo poderia não só vingar-se como também ganhar um bom dinheiro. Do
pensamento à ação foi um pulo. A matéria oferecida ao concorrente foi aceita e
o acordo, feito. A reportagem, publicada no dia seguinte ao atentado, ganhou
destaque de primeira página.
Apesar de ter sido publicada num
jornal de pouca expressão, a reportagem completa, bem redigida e rica em
detalhes, fez gerar interesse nos principais órgãos de comunicação do país. De
uma hora para outra, a matéria sobre Bill, o Dom Juan dos nossos tempos, deu
ensejo a artigos, crônicas, entrevistas e debates através de jornais, revistas,
emissoras de rádio e de televisão. Intimamente, Mário Jordão estava realizado.
Pena é que não poderia gritar, a plenos pulmões, que havia sido ele o
responsável por todo o alvoroço que sacudia e dividia a opinião pública.
Durante muitos anos Mário Jordão
alimentou o desejo de ver a estória do costureiro francês vir à tona, pela
simples curiosidade de saber qual seria a reação do público diante da verdade,
já que o próprio público havia sido ludibriado por aquela mentira durante tanto
tempo. Mário já havia desistido da ideia quando ocorreu o atentado a Bill e, ao
ser um dos primeiros a apurar a notícia, sentiu-se gratificado. Entendeu que
não podia perder o presente que o destino estava lhe oferendo numa bandeja.
Agora já não era apenas a curiosidade que o movia a revelar, à opinião pública,
a farsa que ajudara a criar. Havia em Mário Jordão um sentimento mais forte
para motivá-lo: a vingança. Ele jamais esqueceu a última vez em que esteve com
Bill.
- Você está tentando me chantagear,
Mário? - perguntou Bill.
- O que é isso, irmão... não é nada
disso. Como pode pensar um coisa dessa de mim? - respondeu Mário.
- E pare de me chamar de irmão. Já
estou cansado de carregá-lo nas costas. Se pensa que pode me chantagear, saiba
também que poderei processá-lo.
Mário cuspiu o palito de fósforo que
mastigava, manteve a calma e falou com voz de súplica:
- Não é nada disso... cara... é que
eu estou na pior, mesmo. Tem gente por aí querendo me apagar, sumir comigo, e
você não vai querer que o seu amigo desapareça, não é? Garanto que vou ficar
limpo assim que pagar esta dívida, e que não vou mais me meter com essa gente.
No passado eu lhe fiz um grande favor, e acho que não custa nada agora você me
livrar dessa, não é?
- Você não me fez favor algum... nem
no passado, nem nunca. O trabalho que fez pra mim eu paguei com dinheiro,
lembra-se?
- Você costuma chamar de dinheiro
aquela quantia que me deu? Naquela época você estava começando e era um duro
igual a mim... por isso eu aceitei aquela ninharia. Agora, não. Agora você está
bem graças ao que fiz por você, e pode me ajudar. Lembre-se que é um empréstimo
o que eu estou lhe pedindo... apenas isso.
- É um empréstimo igual aos outros
que fez a mim, e que ainda não pagou...
- Bem, um dia eu vou poder pagar
tudo, mas...
- Seu poço não tem fundo, Mário. Você
é um viciado incorrigível, e seu vício é muito caro. Não vou poder ficar
alimentando-o eternamente. Não, basta... desta vez, não.
- Mas você é a única pessoa que pode
me ajudar... é o único amigo que tenho...
- Já fui seu amigo, mas não sou mais.
Você não soube preservar nossa amizade, e para que não tenhamos que encerrar,
de todo, o nosso relacionamento, proponho a você o seguinte: a partir desse
momento vou perdoar todo o dinheiro que me deve... e olha que o total já dá
hoje uma boa soma. Não precisa se preocupar mais com esta dívida, que me diz?
- Quer dizer que não vai me ajudar
mesmo? - perguntou Mário, como se não tivesse escutado a proposta de Bill.
- Com mais dinheiro? Esqueça.
- Pois muito bem, vou desmascará-lo.
Você irá se arrepender...
- Para me desmascarar, Mário, você terá
que desmascarar-se também. É,
faça isso; faça mesmo. Mas agora suma da minha frente antes que eu perca a
cabeça. Vá, ande logo. Desapareça.
- Esta é a última coisa que tem a me
dizer, seu farsante miserável?
- Não. A última coisa que eu tenho a
lhe dizer é: vá pra puta que o pariu! - gritou Bill.
Agora, ao tomar ciência da
repercussão que aquela história a respeito de Bill, revelada por ele, causara,
Mário Jordão considerou-se vingado.
A tragédia invadiu a mansão dos
Manzini através de letras, imagens e sons. O todo poderoso Sr. Alberto proibiu
que aquelas notícias fossem, sequer, comentadas, mesmo entre as quatro paredes
de sua residência. Só o silêncio poderia livrá-los do escândalo. Indiferença
total foi a posição tomada.
Possivelmente por se negar a viver,
Estela veio a falecer, antes que nela fossem aplicados todos os recursos da
medicina.
Por outro lado, a morte foi ao
encontro de Bill com alguns minutos de atraso. Talvez por este motivo não tenha
sido possível, a ele, esperá-la. Bill salvou-se quase que por milagre. A
melindrosa operação acabou revestida de pleno êxito. Levados ao hospital pelo
noticiário dos jornais matutinos, pouco a pouco foram chegando familiares e
amigos de Bill. Alguns curiosos também apareceram por lá em busca de notícias e
à medida que o assunto foi sendo explorado pela quase totalidade dos veículos
de comunicação, o número de curiosos, - mulheres em sua grande maiori - foi
crescendo de forma preocupante. Algumas choravam; outras rezavam, muitas
levavam flores e todas aguardavam notícias através dos boletins médicos. Apesar
do texto maldoso, a reportagem escrita por Mário Jordão conseguiu transformar
Bill, o jovem galã, num Dom Juan dos tempos modernos. Vítima de uma mulher mais
velha do que ele, e por certo despeitada, recebia agora a solidariedade de boa
parte da população. Outra parte, no entanto, via Estela como a vítima maior;
afinal, era ela quem estava morta. Não fora capaz de salvar-se diante da
ambição de um homem. Mas, na verdade, grande parte da opinião pública não havia
tomado partido. As notícias ainda estavam muito frescas. Faltavam
esclarecimentos, maior consistência. Só o tempo seria capaz de amadurecer
aqueles fatos ou, quem sabe, possivelmente fazer esquecê-los. O cotidiano é uma
ilha cercada de tragédias por todos os lados e a mais importante costuma ser,
sempre, a mais recente.
As opiniões divergentes passaram a
acirrar os ânimos entre pessoas que compunham a pequena multidão formada diante
da porta do hospital. A polícia foi chamada para intervir e dispersar os mais
exaltados. Entre os amigos de Bill, Baraúna era o mais inconformado. Com um
jornal nas mãos estava descontrolado e jurando vingança. De Estela sabia que
não poderia vingar-se, já que ela estava morta. No entanto, algo lhe dizia que
fora Mário Jordão o responsável por toda aquela lama derramada sobre seu maior
amigo. Joana, apesar de profundamente abatida, mantinha-se calma. Além de
grande amiga da família, era enfermeira e por isso sabia que só poderia ser
útil se conseguisse transmitir equilíbrio. Ela não saiu da cabeceira de Bill um
instante sequer, durante as primeiras horas após a cirurgia. Joana chorou e
sorriu de felicidade ao ouvi-lo, inconsciente, chamar por ela, várias vezes,
enquanto esteve sob os efeitos da anestesia.
No momento em que chegou à sala de
recepção do hospital, logo após ter deixado o Centro Cirúrgico, O Dr. Uyrandei
De Paula, conceituado urologista, procurou tranquilizar os pais de Bill:
- Bem, a operação foi muito delicada
- começou ele a falar, mas foi logo interrompido por Germaine que perguntou,
aflita:
- Como está meu filho agora, doutor?
- Ele perdeu muito sangue, como vocês
sabem mas, por ser um homem forte, gozar de boa saúde e por ter sido socorrido
a tempo, conseguiu resistir bem...
- Ele vai ficar bom, não é doutor? -
agora era Giacomo quem fazia a pergunta.
- Esperamos que sim - falou o médico,
calmamente. Vamos observar suas reações nas próximas vinte e quatro horas...
- A vida de meu filho ainda corre
perigo, doutor? - perguntou Germaine, angustiada.
- A margem de risco é bem pequena, e
vamos esperar pelo melhor - falou o médico, procurando acalmá-la. Ele receberá
todos os cuidados pós-operatórios que se farão necessários. Não se preocupem.
-Meu filho ficará completamente
curado, não é doutor? - perguntou Giacomo.
- Bem, gostaria de poder dizer isso, mas...
- Pelo amor de Deus, doutor, não nos
esconda nada - falou Giacomo.
- Acontece que esta operação foi
feita, em princípio, para salvar a vida de seu filho, já que aconteceu com ele
uma coisa rara...
- Como assim? - perguntou Germaine,
com grande aflição.
- Bem, nós temos duas artérias
hipogástricas, uma de cada lado - e apontou em seu próprio corpo, as regiões -
e, vejam bem, por uma infeliz coincidência, ambas foram atingidas pelas duas
estocadas da espátula...
- E qual é a importância dessas
artérias? - perguntou Giacomo.
- É que dessas artérias derivam as
artérias pudendas que, por sua vez, originam as artérias penianas principais...
- E daí, doutor? - perguntou
Germaine, cada vez mais aflita.
- Daí que para salvarmos a vida de
seu filho, tivemos que ligar as artérias lesionadas. Em conseqüência dessa
ligação, advém a perda da funcionalidade do órgão, quero dizer, do pênis, para
ser mais claro.
- O senhor não está querendo nos
dizer que nosso filho vai ficar definitivamente impotente, não é doutor? -
perguntou Giacomo, em pânico.
- Prefiro dizer, temporariamente. É
no que acreditamos.
- Como assim? - perguntou Germaine.
- É que a medicina já encontrou
solução para esse tipo de problema. No entanto, será necessária uma posterior
cirurgia, na qual será inserida uma prótese de silicone com fios de prata que
irão restaurar a funcionalidade peniana em termos de ereção...
- E com essa cirurgia nosso filho
ficaria normal? - perguntou Giacomo.
- Normal não é bem o termo. Ficaria
curado, melhor dizendo. Ou seja, estaria apto para exercer atividades sexuais,
podendo até, evidentemente, procriar - concluiu Dr. De Paula.
Bill começou a mover a cabeça,
lentamente. O efeito da anestesia estava passando. Os lábios começavam também a
mover-se e, logo a seguir, emitiu sons incompreensíveis. Naquele momento Joana
enxugava o suor de sua testa com um chumaço de algodão. Ao sentir aquela suave
carícia Bill conseguiu articular corretamente a primeira palavra:
- Estela!? - disse ele.
- Não, meu amor. Sou eu, Joana.
Bill abriu os olhos. A imagem de
Joana ainda estava turva, mas, no momento em que, aos olhos de Bill, ela se
mostrou nítida, ele sorriu, e havia muita felicidade em seu sorriso.
- Parece que estive com você o tempo
todo - disse ele, falando pausadamente e quase num sussurro.
- E por que me chamou de Estela? -
perguntou Joana, ao mesmo tempo em que pousava suavemente a mão sobre os lábios
de Bill, impedindo-o de responder. Não, não diga nada - falou, e depois retirou
a mão.
- Espero não ter chegado tarde em sua
vida - continuou Bill a falar com dificuldade - e não era desta forma que
pretendia chegar. Perdoe-me.
- É melhor não falar tanto assim.
Procure repousar. Vamos ter muito tempo para falar sobre nossas vidas. Agora
deixe-me chamar seus pais. Eles estão ansiosos para vê-lo desperto. Todos os
seus amigos já estiveram aqui para saber de você. Ficaram de voltar mais tarde.
Baraúna foi o único que não arredou o pé daqui um segundo sequer, desde que
chegou.
- Baraúna é meu melhor amigo... amigo
de infância. Não, não é apenas um amigo, ele é o irmão que não tive.
Bill quis que o álbum que sua mãe
fizera para ele ficasse sobre a mesinha de cabeceira, ao lado de sua cama. Foi
um dos poucos pedidos que fez aos pais. Nos momentos em que esteve só, naquele
hospital, ele aproveitou para reler o que Germaine escrevera. Parecia que Bill
buscava encontrar um novo caminho, dentre tantos trilhados por seus pais. Uma
vida digna, íntegra, útil. Uma vida sem oscilações de ordem emocional, sem
fugas covardes e sem ambições descabidas. Parecia que Bill buscava encontrar um
espaço onde o verdadeiro amor pudesse radicar-se tranquilamente.
O sol coloria o céu de vermelho ao
cair da tarde do segundo dia. Fazia um calor abrasador. Joana fechou os vidros
da janela e ligou o ar refrigerado. Bill não sabia ainda que estava impotente
e, talvez por isso estivesse com a cabeça povoada por lindos sonhos.
- Você quer se casar comigo? -
perguntou a Joana, repentinamente.
- Por que chamou por Estela quando
voltou a si da anestesia?
- Não fui eu quem chamou, foi meu
inconsciente, pois na verdade era você quem eu gostaria de ver naquele momento.
E, já que fui premiado com sua presença, não desejaria deixar de vê-la nunca
mais. Não a deixarei escapar novamente, a não ser que... esteja comprometida.
Se estiver, não diga nada agora. Estou sem forças para suportar a decepção de
ter chegado tarde demais em sua vida.
- Gostaria de ter certeza de que
realmente me quer - falou ela com ternura.
- Nas poucas vezes em que estivemos
juntos, durante todo esse tempo, jamais escondi
meu amor por você, não é verdade?
E afinal, ainda permaneço solteiro...
- Eu sei, meu amor, só que eu já não
sou aquela menina que você conheceu no Encantado. Hoje sou uma mulher
experiente que...
- Não precisa me dizer o que é -
interrompeu Bill - e nem gostaria de ouvi-la falar a respeito de suas
experiências... basta que diga que ainda me ama.
- Você foi, e ainda é, o único homem
que amei. Se ainda não me casei, foi porque, na verdade, sempre esperei por
esse dia. Se você estiver certo agora a respeito de seus sentimentos para
comigo, serei a mulher mais feliz do mundo e me sinto recompensada por ter
esperado tanto...
Bill estendeu os braços para ela e
falou:
- Venha, meu amor. Quero beijar minha
futura esposa. Quero que esteja certa de que o que sinto por você não é uma
carência momentânea, consequência dos últimos acontecimentos. O amor intenso,
verdadeiro, que sempre nutri por você foi, por mais paradoxal que seja, o mesmo
sentimento que fez afastar-me de você. Apesar de tê-la, todo esse tempo em meu
coração, quis preservá-la de participar, ao meu lado, de uma louca corrida, em
minha desenfreada ambição. Você poderia ser o freio que eu não queria usar. Sua
ingenuidade e pureza de caráter, poderiam ser o espelho de minha
consciência....
Joana havia sido informada a respeito
do estado de Bill, porém estava disposta a aceitá-lo sob quaisquer
circunstâncias. No entanto, alimentava a esperança de vê-lo completamente
curado em um ou dois anos. O difícil, sabia, era fazer Bill casar-se com ela
depois que fosse informado sobre seu estado atual. Só com amor, com muito amor
- pensou - é que tal compreensão seria possível.
Próxima de completar 30 anos, Joana
estava bela em suas feições maduras. Com os cabelos negros, lisos e soltos
caindo sobre os ombros, uma suave maquilagem que ajudava a realçar os olhos
castanhos amendoados, e uma boca pequena de lábios carnudos, Joana despertava a
cobiça do mais frio dos homens. Ela ficara bem no uniforme impecavelmente
branco, com a saia batendo à altura dos joelhos. O último botão da saia estava
desabotoado e Bill pode admirar o contorno perfeito daquelas pernas morenas e
roliças.
- Como é, em que está pensando? -
perguntou ele, que permaneceu com os braços estendidos na direção de Joana.
Estou esperando. Venha para os meus braços, meu amor...
Foi um beijo longo e sôfrego. Enquanto
beijava, Bill imaginou uma cena fortemente erótica e, ao surpreender-se com a
ausência de sua ereção, lembrou-se de que havia sido operado. Ao lembrar-se,
sentiu um estranho temor e, ao interromper o beijo, falou como se estivesse se
justificando:
- É evidente que agora acredito que
vamos nos casar, no entanto, isto só será possível quando eu estiver totalmente
curado, naturalmente.
Joana não disse nada, apenas olhou-o
com muita ternura com seus olhos embaçados.
- Sabe? - disse ele - já fiz meus
planos. Durante a noite passada pensei em como será minha vida, de agora em
diante. Minha mãe escreveu em seu álbum que, para sermos felizes, devemos antes
saber o que queremos ser, e eu nunca soube. Só o dinheiro e o poder é que
tinham importância para mim. O que eu realmente desejava era chegar ao topo,
qualquer topo. As pessoas acreditavam em mim, e este crédito me deu muita
força. Dentre tantas, o Capitão Carneiro e o Sr. Manzini, em fases distintas e
importantes de minha vida, disseram-me exatamente as mesmas palavras:
"Você será um vencedor, e eu acredito em você". E sabe que eles
estavam certos? Eu vou ser um vencedor. Mas não aquele vencedor que eles
esperavam que eu fosse, e sim, o vencedor que agora desejo ser.
- E eu posso saber quais são os seus
planos? - perguntou Joana.
- Mas é claro, meu amor. Como poderei
escondê-los de você? Para começar, vou aproveitar toda a carga de experiência que
pude acumular e descarregar minha energia num único objetivo de vida. O
importante é que, além da experiência, adquiri bens. Bens que agora irão me
proporcionar tempo para reciclar melhor a cabeça. Já tenho algumas ideias.
Enquanto não decidir o que será mais adequado para mim, poderei ajudar meus
pais, quem sabe. Seria uma forma de retribuir o muito que fizeram por mim, e eu
sei que eles estão precisando de minha ajuda. Uma coisa eu já decidi: vou
comprar uma casa confortável e, de preferência, num lugar tranquilo onde eu
possa criar nossos filhos com liberdade que só o chão firme pode oferecer.
Gostaria de poder revolver a terra, cultivar rosas e ter um cão. Um cão
parecido com o Sultão, o único que pude ter. E quando eu me certificar do que
realmente eu sempre quis ser, recomeçarei a trabalhar. Quem sabe eu seja capaz
de explorar o campo da ficção? É, eu bem que poderia vir a ser um escritor de
contos, novelas e romances. Já tenho até um bom tema para desenvolver: a vida
de meus pais. Estou certo de que, bem escrito, daria um bom romance, se eles
não se opuserem, é claro. Como escritor eu poderia ser, ao mesmo tempo, pai e
mãe de muitas vidas. Terei o útero no cérebro para poder dar à luz e criar
vidas sobre folhas de papel. Quem sabe?
- Maravilhoso, querido! Escolha o que
escolher, você será um vencedor, e eu acredito em você, meu amor - falou Joana
emocionada.
Quando as pessoas conseguem encontrar
uma brecha no destino costumam, comumente, retornar às origens.
Raízes, sempre as raízes.
Início: Rio de Janeiro, 01 de janeiro de 1980
Final : Cabo Frio, 31 de janeiro de 1985.
Início: Rio de Janeiro, 01 de janeiro de 1980
Final : Cabo Frio, 31 de janeiro de 1985.
Grato
a quem nos acompanhou em cada capítulo postado aqui, já deixando o convite para
continuarem conosco, pois as nossas cortinas sempre estarão abertas para lhes apresentar
um fato novo!
Olá Angelo Romero, o seu enredo flui com muita suavidade, e extrema relevância, nos fazendo desejosos de saber o que acontece ali adiante.
ResponderExcluirParabéns pelo seu instigante roteiro literário, um grande abraço, e boa sorte nos seus escritos, MJ.
Obrigado pelo comentário, Miguel Jacó! Espero que continuar a acompanhar e a curtir o primeiro de meus romances, romance este, que levei cinco anos produzindo, ainda em máquina de escrever. Um abraço!
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